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VI.1.1- O sertão que não é só lamento e a mítica Bahia
“festanças brasileiras” coloridas por Rosa Magalhães abrem alas para os últimos setores do desfile em curso.
VI. 1. 1 – O sertão que não é só lamento e a mítica Bahia
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O enredo portelense de 2018 revisita o mesmo universo temático pelo qual a autora passeou no desfile gresilense de 1999: a presença holandesa no Nordeste brasileiro, no século XVII. Acordes nordestinos, nos carnavais de Rosa Magalhães, são bastante comuns – algo justificado pela artista, no encontro que tivemos, em 04 de outubro de 2012, no barracão da Unidos de Vila Isabel. Segundo ela, as raízes paternas, nordestinas (Raimundo Magalhães Júnior nasceu em Ubajara, no Ceará), sempre a encantaram, despertando um natural interesse por “temas sertanejos, folclóricos e indígenas.” Ainda nas palavras da carnavalesca, o artesanato e os folguedos populares nordestinos oferecem uma aula de uso da cor: “eles usam as cores com muito mais liberdade que os europeus, que a gente estuda na universidade. Isso é maravilhoso e me interessa cada vez mais.” Os sertões de Rosa Magalhães, via de regra, são um espaço de florescimento, e não de penúria. As riquezas animais, vegetais e minerais brotam do solo; as manifestações culturais explodem em paetês, guizos e canutilhos. O exemplo-síntese deste olhar é o enredo de 1995: na narrativa levada à Marquês de Sapucaí, iniciada com um encantador bailar de sombrinhas (diálogo com danças e festividades nordestinas, como o frevo, os maracatus, o bumba-meu-boi), 4 das 9 alegorias retratavam o interior nordestino como um lugar de alegrias e tesouros (na alegoria 4, O Eldorado, cornucópias e jarros dourados reuniam guirlandas de frutos e buquês de pedras preciosas; na alegoria 8, O Passeio do Camelo, ainda mais frutos emprestavam o seu colorido à composição cênica, onde também se viam rendas, cestarias, cactos, flores e bonecos de barro; no último carro, intitulado Viva o jegue!, os elementos decorativos dialogavam com coroações populares e vestes de festejos juninos, sobrando remendos, fitas, babados, laçarotes.). O samba, assinado por Eduardo Medrado, João Estevam, Waltinho Honorato e César Som Livre, afirmava, em seu grand finale, que “o sertão não é só lamento, meu momento é aqui / faço a festa e lavo a alma hoje na Sapucaí”. Este mesmo sertão festivo desfilou as suas maravilhas em 1988, nos batuques dos bumbás (não faltando, em um enredo sobre o boi, os tradicionais vaqueiros – que também desfilaram em 95); em 1990, no vastíssimo imaginário armorial (que será explorado
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adiante); em 1999, nas pinceladas de Post e Eckhout; em 2001, no girar das cavalhadas e das moendas dos engenhos; em 2013, na homenagem ao homem do campo e à agropecuária brasileira. O desfile de 2013, campeão absoluto, expressa o único momento da trajetória da artista em que também é exposto o outro lado da moeda: a miséria da seca, o fantasma da morte, o suplício dos retirantes nos períodos de estiagem. As alas que antecediam a segunda alegoria da apresentação da Vila Isabel concentravam cores tristes, pesadas, e exibiam caveiras (de animais e de seres humanos), árvores esturricadas e demais alusões às mazelas causadas pela fome (pensemos em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto). Os nomes das fantasias não deixam mentir: A imagem da devastação, Queimadas, População de famintos, Efeitos da seca e Colheitas perdidas. No segundo carro alegórico do cortejo, intitulado Homens e animais na luta contra a fome, dezenas de famintos clamavam por água e alimentos em volta de um imenso tatu. O chão rachado do sertão se misturava à carapaça do animal, compondo um todo bastante curioso. Ainda na apresentação de 2013, cujo enredo foi assinado por Rosa Magalhães, Alex Varela e Martinho da Vila (talvez por isso a maior das sinopses analisadas – texto que, para um enredo sobre a pujança da agricultura, por vezes se mostra estéril e desconjuntado, resvalando em clichês que denunciam a mão da entidade patrocinadora, a empresa BASF349, e apelando para colagens mal realizadas de fragmentos musicais350), há inúmeras referências a artistas populares (costumeiramente classificados como “artistas naif”), a começar por Francisco da Silva, cearense, onipresente no carro AbreAlas (imagens 101 e 102). Esculturas de galos, cavalos e serpentes inspiradas no trabalho dele, conforme o explicado na defesa da alegoria, coloriram a Sapucaí. Obras de Manuel Graciano, Fé Córdula, Costinha e Zezinha também se faziam notar, em diferentes momentos da apresentação. No caso de Zezinha, Maria José Gomes da Silva, a mais conhecida bonequeira do Vale do Jequitinhonha (fronteira entre Minas Gerais e Bahia, o sertão de Guimarães Rosa), a carnavalesca apresentou diversos bonecos giratórios, em um tripé que representava uma igrejinha sertaneja (a igreja cujo “sino vem anunciar”,
349 O dirigismo se mostra desnudo nas referências bibliográficas apresentadas ao júri. A primeira obra referenciada é BASF Brasil, 100 anos – Transformando a química da vida. Um vídeo publicitário da empresa também é elencado, o que reforça o entendimento. 350 É preciso destacar, porém, que o enredo de 2013 é um caso bastante rico para se pensar a plasticidade do quesito – afinal, uma sinopse “desconjuntada” (para não dizer fraca e desestimulante) gerou uma apresentação de visual surpreendente e um samba de enredo extraordinário.
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conforme a letra do arrebatador samba de enredo composto por Martinho da Vila, Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Tunico da Vila).
Imagem 101: Cobra e Dragão, pintura do artista plástico nordestino Francisco da Silva. Fonte: https://www.leilaodearte.com/leilao/2017/agosto/37/francisco-da-silva-cobra-e-dragao-8406/. Acesso em 13/03/2018.
Imagem 102: Carro abre-alas do desfile de 2013 da Unidos de Vila Isabel, sobre a agropecuária brasileira e a vida do homem do campo. O diálogo com a obra de Francisco da Silva é evidente. Fonte: https://extra.globo.com/noticias/carnaval/carnaval-2013-vila-isabel-comemora-terceiro-titulo-de-suahistoria-7572894.html Foto: AP. Acesso em 13/03/2018.

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Para além dos sertões, há outras expressões nordestinas, de caráter festivo, na obra da carnavalesca. O último setor da apresentação de 2007 reunia frevos, maracatus e bonecos de Olinda para homenagear o bloco Bacalhau do Batata, fundado pelo garçom Isaías Pereira da Silva, em 1962. As baianas, naquela ocasião, representavam Damas do Paço, carregando Calungas. O imaginário dos maracatus (Rural, com os Caboclos de Lança; e Nação ou de Baque Virado, com os cortejos reais) já havia sido explorado pela autora em Brasil, mostra a sua cara..., de 1999, quando utilizou variações de vestes dessas manifestações culturais para traduzir visualmente as ilustrações de animais (aéreos, aquáticos e terrestres) e plantas reunidas no Theatrum Rerum. Logicamente, em um enredo que se propunha a mapear as festividades das cinco regiões brasileiras, tanto as folias sertanejas quanto as litorâneas deveriam se fazer presentes. E assim foi feito, em 2014, no único desfile mangueirense assinado por Rosa Magalhães. Festas juninas (a quarta alegoria representava A maior festa junina em Campina Grande), mamulengos, vaquejadas, congadas, cacumbis, caboclinhos, cavalhadas, maracatus, frevos, marujadas, coroações do Divino, folias de reis, tudo desfilou, em variações de verde e rosa. E um setor inteiro foi dedicado às festas de Iemanjá, Rainha do Mar, ganhando a Bahia o maior dos destaques. A descrição do terceiro carro alegórico não deixa mentir:
A mais venerada entidade feminina do candomblé, Iemanjá é celebrada no dia 2 de fevereiro, na Bahia, com uma procissão-regata que é, ao mesmo tempo, uma das maiores e mais importantes festas populares brasileiras. Esta alegoria faz também uma citação especial a outra grande festa – a lavagem das escadarias da igreja do Bonfim – com suas famosas fitas coloridas e suas baianas impecavelmente trajadas de branco.351
Uma das “baianas impecavelmente trajadas de branco”, com torso, pulseiras e colares, era a própria carnavalesca, Rosa Magalhães, numa inédita aparição utilizando fantasia completa; depois, isso virou uma constante. Se o Morro da Mangueira, como diz a canção, é “onde o Rio é mais Bahia”, nada mais coerente que tamanho cuidado para com os festejos musicados por Caymmi e traduzidos literariamente nas páginas amadianas. A admiração da “mítica Bahia” é algo existente desde sempre, no contexto das escolas do Rio. No concurso de 1933, quando a
351 Justificativa do terceiro carro alegórico da Estação Primeira de Mangueira, no carnaval de 2014, encontrada no Livro Abre-Alas daquele ano. Disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA.
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ala das baianas se tornou obrigatória, a bicampeã Mangueira cantou Uma segunda-feira do Bonfim, na Ribeira; a Azul e Branco do Salgueiro, Uma noite na Bahia; a União do Uruguai, Na Bahia. 352 Três agremiações desfiaram o mesmo tema (na época, não havia a obrigatoriedade do quesito enredo e as escolas podiam cantar diferentes sambas durante a apresentação). Em 1969, o Acadêmicos do Salgueiro cantou Bahia de todos os deuses, enredo de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, sagrando-se campeão após um desfile memorável – que contou com Maria Augusta Rodrigues e Joãosinho Trinta enquanto assistentes diretos. Arlindo revisitaria a Bahia em 1980, na Imperatriz Leopoldinense, dando o primeiro título de campeã do Grupo Especial à escola de Ramos. O enredo, O que é que a Bahia tem, exaltava as belezas naturais e culturais do estado cuja capital foi a primeira capital do país. A estética do desfile jamais sairia das retinas do GRESIL – e por este motivo Rosa Magalhães a revisitou duas vezes, enquanto lá esteve: em 1993 e em 2009.
No enredo Marquês que é Marquês do Sassarico é Freguês, em 93, a carnavalesca inseriu O que é que a Bahia tem para homenagear a obra de Arlindo Rodrigues, um dos três carnavalescos escolhidos para, na narrativa sobre a história do carnaval carioca, ilustrar a estética das escolas de samba:
As Escolas de Samba, de certa forma oriundas das Sociedades Carnavalescas, foram representadas por alguns carnavalescos. O barroco e a Bahia de Arlindo Rodrigues – uma referência ao próprio carnaval da Imperatriz e ao seu primeiro campeonato -, o delírio inigualável de Fernando Pinto, com índios, motocicletas, flores e um grande tatu, e logo em seguida uma alegoria relembrando um enredo de Joãosinho Trinta, Ratos e Urubus, cujos figurinos eram do Viriato (Ferreira), que fez então uma releitura do próprio trabalho.353
Em 2009, no enredo que abordava as origens do bairro de Ramos e o cinquentenário da própria escola, a Bahia desenhada por Arlindo voltou a entrar em cena, com todo orequinte a que tinha direito. O conjunto de alas e alegorias dedicado à memória do campeonato de 1980 foi o mais bonito daquele desfile, especialmente as grandes esculturas de baianas giratórias (imagem 103), com tabuleiros nas cabeças, e as fantasias de filigranas (de ouro, diamantes, prata e esmeraldas). A fantasia da bateria Swing da
352 Ver MUSSA, Alberto; SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 353 MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. Obra citada, p. 38/39.
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