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VI.2.4 – Onisuáquisólamento
Voltariam a aparecer, as caçarolas e as frigideiras, no último carro alegórico do desfile que Rosa Magalhães desenhou para a São Clemente, em 2016. Intitulado O Manifesto do Palhaço, o carro exibia um gigantesco boneco articulado com roupas em verde e amarelo, cara branca e nariz redondo vermelho (imagem 120). Nas mãos, duas tampas de panelas. O boneco sintetizava a ideia defendida pela autora no final da sinopse de Mais de mil palhaços no salão: “a garotada que saiu de cara pintada, fazendo barulho pelas ruas, seguindo o exemplo dos nossos palhaços. A eles, a pátria agradece.”396
Imagem 120: Última alegoria do cortejo de 2016 da São Clemente, O manifesto do palhaço. Batendo tampas de panelas, o imenso boneco articulado misturava as manifestações contra os governos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, uma generalização. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.
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VII. 2. 4 – Onisuáquisólamento
Há uma ambiguidade curiosa, no palhaço batedor de panelas. Ele é turvo, conflituoso: qual o rosto por debaixo da maquiagem? Não há qualquer dúvida no que tange às inclinações políticas do enredo de 2018 da Paraíso do Tuiuti, que pode ser lido
396 MAGALHÃES, Rosa. Mais de mil palhaços no salão. Sinopse do enredo do carnaval de 2016 do Grêmio Recreativo Escola de Samba São Clemente, presente no Livro Abre-Alas daquele ano (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval – LIESA).
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à luz da esquerda progressista: não apenas Jack Vasconcelos já declarou publicamente a sua militância, o seu repúdio ao “presidente golpista” e o seu apoio às pautas de nomes como Marcelo Freixo, do PSOL, como a linguagem do desfile era bastante clara, quase didática (sem perder a carnavalização, o que é louvável). A Reforma Trabalhista, o Projeto de Lei do Senado nº 432/2013 (que propõe a revisão do conceito de trabalho escravo, um retumbante retrocesso) e as guinadas neoliberais propostas por Michel Temer foram execradas; os manifestantes que bateram panelas contra o segundo mandato de Dilma Rousseff (e que apoiaram a deposição da presidenta sob argumentos dos mais frágeis, processo que impulsionou uma onda discursiva de preconceitos e truculências), transformados em “marionetes abobalhados” , palhaços sem graça “cavalgando” patos (imagem 121).

Imagem 121: Brincantes vestindo a fantasia Manifestoches, no desfile de 2018 da Paraíso do Tuiuti, do carnavalesco Jack Vasconcelos. Trata-se de uma leitura que contrasta ideologicamente com aquela apresentada em 2016 por Rosa Magalhães. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.
No desfile da São Clemente, porém, a batida das panelas ganhou uma conotação sinfônica (a autora chegou a declarar, em uma entrevista, que Villa Lobos aprovaria o
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barulho dos panelaços397), que, no entanto, não chega a tocar o heroísmo – a “pátria agradece”, mas não há glorificação. Talvez porque o heroísmo, na obra de Rosa Magalhães, é algo situado no passado e colorido de romantismo. Anita e Giuseppe Garibaldi merecem honras e glórias; no Brasil de hoje, aos olhos da autora, isso não existe mais – a vaca continua no brejo. Na mesma entrevista em que falou das panelas, ela disse que o foco do enredo não era a cena política brasileira: “vai ter uma pitadinha, só. A realidade é muito enjoada, a gente foi para um outro lado de falar sobre o palhaço…” Voltava a defender o que afirmou na UERJ, em 2013: o carnaval não combina com imagens de sofrimento e falar das nossas mazelas é a ocupação dos jornalistas e dos cientistas sociais. Ela, carnavalesca, não se sentia confortável para mexer nessas vísceras tão antigas quanto malcheirosas – apenas cutucava, de leve, a fim de provocar o público. Pode-se dizer, e isso foi tencionado nos fóruns de discussão carnavalescos, que tais cutucões expressaram uma “crítica coxinha”, na terminologia quase maniqueísta que tomou conta das redes sociais brasileiras, em 2015 e 2016. A maquiagem do palhaço condensava ao menos duas épocas (os caras-pintadas de 1992 e os manifestantes de 2015; pode-se debater a presença - ou a ausência - dos manifestantes de 2013, posto que não há dados suficientes para uma afirmação categórica) e dois contextos políticos (ou dois blocos de motivações) completamente diferentes, havendo, sim, uma generalização –leitura epitelial ou ironia esfumaçada? Se Jack Vasconcelos elencou os problemas um por um e deu nome (e faisões) aos bois398, no desfile de 2018 da Paraíso do Tuiuti, Rosa Magalhães desfiou, no desfile de 2016 da São Clemente, uma crítica gelatinosa - ainda que não tão confusa quanto aquela que apresentaria no ano seguinte, 2017, quando, ao final do enredo Onisuáquimalipanse, inseriu a tal ala de presidiários com os números 171
397 Quando questionada, a artista declarou que não bateu panelas, eximindo-se de qualquer polêmica de ordem pessoal. Nas palavras dela: “Não bati panela, até porque moro tão retirada, nem ouço. Mas o panelaço é uma coisa engraçada, porque é musical. Se o (Heitor) Villa-Lobos (maestro brasileiro) ouvisse isso, ele colocava numa daquelas sinfonias dele. Poderia fazer uma sinfonia do panelaço. E foi no Brasil inteiro. Em cada lugar teve um ritmo diferente.” Disponível no seguinte sítio: http://sambarazzo.com.br/site/tag/desfiles-da-rosa-magalhaes. Acesso em 12/03/2018. 398 É digno de nota o fato de que no carnaval de Nice, conforme o vivenciado durante o período de mobilidade acadêmica, a crítica política é explícita e escrachada. O tema da folia de 2017 era Rei da Energia (Roi de l’énergie), sobrando ridicularizações de líderes mundiais como Donald Trump, apresentado, em um carro alegórico do corso iluminado, diante de um imenso secador de cabelos. Usinas nucleares defecando em vasos sanitários e dragões chineses escarrando no planeta Terra são apenas algumas das imagens “leves” que desfilaram na Place Masséna. Os líderes franceses tampouco foram poupados: em uma alegoria de grande inventividade, caricaturas de políticos se digladiavam em uma espécie de roda-gigante. François Hollande, Marine Le Pen, Nicolas Sarkozy, François Fillon e Emmanuel Macron, todos se esbofeteavam risonhos – exemplo do espirituoso bom humor francês.
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no peito (releitura de uma famosa fantasia de carnaval, em vestes do século XVII). Com a roupa em preto e branco (imagem 122), a carnavalesca ensaiava um paralelo entre a condenação de Fouquet e as prisões da operação Lava Jato, mas o acento político, como dito páginas atrás, não causou alarde. Se há algo em comum nos desfiles assinados por Rosa Magalhães, em 2016, e por Jack Vasconcelos, em 2018, além das citações aos panelaços de 2015, é a presença de Samile Cunha, famosa Drag do universo carnavalesco, na última alegoria de ambos os cortejos. No carro das caçarolas, a artista vestiu a fantasia Palhaçada; no carro dos manifestoches, a fantasia Quem é o pato? Um mesmo contexto sob dois olhares e dois caminhos ideológicos. Duas rotas em um mesmo mapa, aquele que, na defesa de Joãosinho Trinta para o antológico Ratos e Urubus, tanto pode expressar um coração quanto uma bunda, caso o olhar se mostre invertido399. O mapa do Brasil, a comissão de frente do Theatrum Rerum, no divã do carnaval.

Imagem 122: Desfilante da última ala do desfile de 2017 da São Clemente, com fantasia intitulada O Nobre 171. A carnavalesca não apenas se referia, de forma bem-humorada, à prisão de Fouquet, mas à sucessão de prisões levadas a cabo pela Operação Lava Jato, no cenário brasileiro. Foto: Wigder Frota. Acervo pessoal.
399 Na sinopse de Ratos e Urubus, o carnavalesco defendeu o seguinte: “Este enredo é um protesto. Protesto contra esta grande maldade que estão fazendo com nossa terra, com nossa gente, com nosso Brasil. Este país tem, na sua geografia, a forma de um grande coração. Invertido e desequilibrado, de cabeça para baixo, mostra os contornos de uma grande bunda. E uma bunda do tamanho do Brasil tem muita sujeira nos seus intestinos para ser expelida.” In: GOMES, Fábio; VILLARES, Stella. O Brasil é um luxo – Trinta carnavais de Joãosinho Trinta. Rio de Janeiro: CBCP – Centro Brasileiro de Produção Cultural: Axis Produções e Comunicação, 2008, p. 151.
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