JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO
Faculdade de Filoso a, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP
60 anos do golpe militar no Brasil
ANO 24 Nº 139
2024
Abril/Maio
Quando falamos sobre 60 anos atrás, lembranças não muito distantes ocupam as nossas mentes. Pessoas nas ruas pedindo intervenção militar, a luta e a destruição dos patrimônios públicos, a convocação das forças armadas e a tentativa de um golpe violento do Estado Democrático de Direito enrustido no discurso de uma falsa liberdade de expressão.
Neste ano, no dia próximo ao marco da instalação do golpe militar, o presidente Lula vetou eventos, do próprio governo, críticos à ditadura. Na mesma semana, entrou em discussão, no Supremo Tribunal Federal, a questão da atribuição de um Poder Moderador no artigo 21 da Constituição que permite a intervenção militar sobre os três Poderes. A discussão é clara: a influência militar ainda não ficou no passado.
Os filhos que nasceram após a redemocratização já estudam o que ontem as músicas de protesto não poderiam falar: vivemos um golpe militar. Uma pesquisa realizada pelo Open Society Foundations (OSF), concluiu que 74% dos adultos entre 18 e 35 anos desejam “viver em um Estado democrático”, no entanto, 31% considera ditaduras militares uma possibilidade de governo e outros 21% ainda apoiam ser comandados por um líder “que não respeita, nem o Poder Legislativo, nem eleições livres”. Os números podem não ser expressivos, mas a porcentagem de pessoas que se consideram conservadoras dobrou no último governo, de acordo com o levantamento da pesquisa “A Cara da Democracia”. Ainda em 2022, o Ministério da Defesa fez uma declaração em homenagem ao marco da instituição da ditadura, “o movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira”; além de ter enaltecido Carlos Brilhante Ustra, um coronel ex-chefe dos centros de tortura e assassinatos às pessoas que se opunham ao regime.
Se hoje vivemos uma democracia, que ainda luta pela sua resistência, lembrar e remoer esse passado pelas gerações posteriores é impedir que ideologias radicais destruam a consciência e a criticidade das pessoas. Para que a liberdade e o direito de um povo não seja colocado em forca novamente, ou que a tentativa de deterioração do espaço político de uma sociedade não perca o sentido da tolerância de conviver com o diferente.
Essa edição temática do Contraponto reforça sobre como vinte e um anos de pura brutalidade militar ainda estão envergadas nos rastros e nas lacunas da história brasileira.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)
Reitora Maria Amalia Pie Abib Andery
Vice-Reitora Angela Brambilla Lessa
Pró-Reitor de Pós-Graduação Márcio Alves da Fonseca
Pró-Reitora de Graduação Alexandra Fogli Serpa Geraldini
Pró-Reitora de Planejamento e Avaliação Acadêmicos Márcia Flaire
Pedroza
Pró-Reitora de Educação Continuada Altair Cadrobbi Pupo
Pró-Reitora de de Cultura e Relações Comunitárias Mônica de Melo
Chefe de Gabinete Mariangela Belfiore Wanderley
FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES (FAFICLA)
Diretor Fabio Cypriano
Diretora Adjunta Priscila Almeida Cunha Arantes
Chefe do Departamento de Comunicação MiSaki Tanaka
Vice-chefe do Departamento de Comunicação Vânia Penafieri de Farias
Coordenador do Curso de Jornalismo Diogo de Hollanda
Vice-coordenador do Curso de Jornalismo Fábio Fernandes
EXPEDIENTE CONTRAPONTO
Editora Responsável Anna Flávia Feldmann
Editora Assistente Giuliana Zanin
Secretário de Redação João Curi
Fotografia Lídia Rodrigues de Castro Alves
Mídias Sociais Maria Ferreira dos Santos
Assistente de Produção Rafaela Reis Serra
Editorias
Artes e Cultura Amanda Furniel
Entretenimento Thainara Sabrine
Esportes Leonardo de Sá Política Beatriz Barboza
Ambiental Vítor Nhoatto Cidades Annanda Deusdará Internacional Khauan Wood
Revisão Beatriz Loss, Enrico Souto, Gabrielly Mendes, Guilherme Tirelli, Juliana Sousa, Laís Carnelosso, Vanessa Orcioli
Ombudsman Fabio Cypriano
Comitê Laboratorial Cristiano Burmester, Diogo de Hollanda, Fabio Cypriano, José Arbex Jr., Maria Angela Di Sessa e Pollyana Ferrari
Capa Porta da cela preservada do D.O.P.S. Fotografia de Lídia Rodrigues de Castro Alves
Contracapa Adaptado de Comissão Nacional da Verdade
Projeto e diagramação Alline Bullara
Contraponto é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUC-SP.
Rua Monte Alegre 984 – Perdizes
CEP 05014-901 – São Paulo/SP
Fone (11) 3670-8205
Ed. Número 139 – Abril/Maio de 2024
Editorial
2 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Operação Brother Sam: o papel dos Estados Unidos no golpe de 64 16 Internacional 60 anos depois, a história se repete… ou quase 4 Progresso, democracia e futebol: as faces de Nadir Kfouri 5 DOI-Codi: a materialização da violência da ditadura militar 6 PUC-SP contra a ditadura: um legado mais vivo do que nunca 8 Vladimir Herzog vive: lembrar é resistir 10 Jornalismo alternativo: a voz da imprensa enquanto resistência 12 Resistência feminista: conheça o outro lado da imprensa alternativa 13 A repressão sob uma nova roupagem: movimento LGBTQIAPN+ ainda luta pela garantia de direitos 14 Quem foi Francisco Julião, líder camponês na luta pela Reforma Agrária nos anos 60? 15 Política Ambiental Política do extermínio: Amazônia como alvo do golpismo militar 18 ©
Enfrentando a Precarização: a realidade da saúde na ditadura 17 Saúde © Pedro
Cinema Novo e Marginal: desafios da identidade brasileira no período da repressão 20 Produção musical e os Instrumentos de Censura no Brasil 22 Músicas de protesto: uma tradição brasileira 26 Crônica: «Exílio» 27 © Reprodução Cultura e comportamento Ensaio fotográfico D.O.P.S ........................................................................... 24 Ditadura como revolução ......................................... 28 A sarja versus o sargento 30 Moda Das Arquibancadas à Resistência: a luta pela democracia e contra o regime militar 32 Entre gols e golpes, o tricampeonato mundial como propaganda política 34
Abril/Maio 2024 3
Carlos Latuff
Martinelli
Esportes
© Irmo Celso/Placar
60 anos depois, a história se repete… ou quase
O que há em comum entre o Golpe Militar e o Atos Antidemocráticos de 8 de janeiro
Por Khauan Wood, Nathalia de Moura e Wanessa Campos
Oano de 1964 marcou uma virada histórica para o Brasil. Militares, apoiados por importantes setores da alta cúpula da sociedade, tomaram o governo com o objetivo de impedir a chegada do comunismo ao país, supostamente representado pelo governo do então presidente João Goulart (PTB). Passados 60 anos do golpe que instaurou o regime totalitário, centenas de pessoas foram às ruas a favor da intervenção militar, sob a mesma justificativa de conter uma ameaça comunista, agora representada por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato eleito presidente da república em 2022.
Como iniciou o golpe de 64?
No dia 31 de março de 1964, as Forças Armadas foram às ruas com o objetivo de derrubar o governo de João Goulart, conhecido popularmente como Jango. Ao lado dos militares, latifundiários e grandes empresários compunham o grupo de conservadores contrários às Reformas de Base propostas pelo presidente. O projeto de Jango incluía alterações estruturais que contemplavam os setores eleitoral, educacional e, sobretudo, agrário. Segundo a oposição, as reformas de Goulart representavam uma ameaça comunista.
Os Estados Unidos também se opunham ao chefe de estado brasileiro e o consideravam um esquerdista radical. Os americanos financiaram, clandestinamente, grupos da oposição ao João Goulart e apoiaram campanhas de políticos conservadores com a finalidade de barrar os projetos do presidente.
O golpe de 64 levou à instauração da ditadura civil-militar, que se estendeu até 1985. Os anos do governo totalitário foram marcados pela perseguição aos opositores do regime e pela censura à imprensa e às manifestações artísticas de protesto.
© Acervo Arquivo
De acordo com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH-PR), nos primeiros meses de ditadura, cerca de 50 mil pessoas foram presas e 20 mil brasileiros foram torturados.
Um quase golpe em 2023
Após eleições presidenciais de 2022 consagrarem a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), sobre o então presidente Jair Messias Bolsonaro, filiado ao Partido Liberal (PL), apoiadores bolsonaristas acamparam em frente aos quartéis das Forças Armadas em mais de 20 estados brasileiros. Os manifestantes reivindicavam “intervenção militar com Bolsonaro no poder”, incitação que, conforme o Código Penal brasileiro, configura-se uma conduta inconstitucional e portanto, uma ameaça à democracia.
servidor da Polícia Federal afirmou à revista Fórum que, até o decreto da Intervenção, o golpe estava consumado.
Em entrevista ao Contraponto, o professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor do livro “As Forças Armadas e o Poder da Constituinte”, Pedro Fassoni, fez um comparativo entre o Golpe de 1964 e os Atos Antidemocráticos de 08 de janeiro. Para ele, no Golpe, havia um consenso interno nas Forças Armadas para a derrubada de Goulart, apoiada pela mídia hegemônica e pelo “baronato”, o que não ocorreu em 2023.
Perdão para quem?
Golpistas
No dia 8 de janeiro de 2023, após dois meses de mobilização nos acampamentos bolsonaristas, milhares de pessoas foram às ruas de Brasília em direção à Praça dos Três Poderes, tomadas pelo anseio de fazer “justiça com as próprias mãos” e mudar o resultado das eleições. Os golpistas invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, quebraram paredes, invadiram salas de Ministros, depredaram vidros, picharam muros e desfiguraram o Plenário da Casa.
O Governo do Distrito Federal (GDF) e a Polícia Militar distrital não foram capazes de conter o ato antidemocrático, o que levou à Intervenção Federal na Secretaria de Segurança Pública do GDF, decretada pelo presidente Lula. O então secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Capelli, foi nomeado para gerir a pasta no lugar do titular, o ex-ministro Anderson Torres. Um
A Lei da Anistia, decretada seis anos antes da redemocratização, perdoou crimes políticos cometidos durante a ditadura, assim como garantiu impunidade aos torturadores. Em 2024, a lei do perdão ainda é debatida. O ex-presidente Jair Bolsonaro, investigado por possível participação nos atos antidemocráticos, tem retomado discursos de apoiadores do regime militar para reivindicar anistia aos golpistas: “o que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado”, afirmou durante uma manifestação em São Paulo, em fevereiro desse ano.
“A não concessão de anistia, neste episódio mais recente, é um compromisso com a justiça e com a busca da verdade, para que não se abra um precedente para outras tentativas [de golpe]”, declarou Fassoni. O Supremo Tribunal Federal (STF) tem trabalhado nos processos de investigação e condenação dos golpistas. Até março deste ano, foram 145 condenados por participações nos atos, de acordo com reportagem do Jornal Nacional. Cada acusado teve sua situação analisada de forma individual, de acordo com as provas colhidas durante o processo.
Mesmo com a brava resistência de nossos antepassados, uma pequena parte barulhenta dos que agora vivem, clama pela volta do período mais violento da República Brasileira. Algo já anunciado na música de Belchior, interpretada por Elis Regina: “apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda vivemos como nossos pais”.
Tanques saem pelas ruas do país
destroem prédio do STF
Nacional
© Marcelo Camargo/Agência Brasil
4 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Progresso, democracia e futebol: as faces de Nadir Kfouri
Conheça o legado de coragem da primeira reitora da PUC-SP, aquela que se recusou a apertar a mão do Coronel Erasmo Dias
Por Helena Barra, Isabela Gama e Leticia Falaschi
“D
ia, a predileta de todos”, é assim que o jornalista Juca Kfouri definiu sua tia, Nadir Kfouri, em entrevista ao jornal Contraponto. Apelidada carinhosamente de “Dia”, ele conta que ela jogava futebol com os sobrinhos no domingo à tarde. Dona dos melhores carinhos nas costas, com uma fé incontestável nos frades dominicanos, a corinthiana enfrentou o machismo e coronéis da ditadura militar com elegância e coragem.
Nadir foi a pioneira em muitas coisas, ainda hoje, é o orgulho dos Kfouri. Viveu como acreditava que deveria viver. Contestadora e ao mesmo tempo doce, ela tinha um senso de humor inigualável e não aceitava falta de educação ou desumanidade.
Ávida pela leitura desde cedo, o gosto pelos livros veio de berço, com um pai autodidata e leitor voraz de Machado de Assis. A jovem presenciou um ambiente familiar rico de referências, se formou em uma escola católica e sempre se interessou por pautas sociais. Se aventurou em um curso ainda em estruturação no Brasil, o de Serviço Social, que estudou na Escola Normal Caetano de Campos.
Em uma época em que mulheres tinham dificuldades para ocupar espaços acadêmicos e de prestígio, Nadir conquistou uma pós-graduação em Washington, nos Estados Unidos, na Catholic University, em 1942, além de lecionar em Barcelona e no Brasil. Prestou serviços às Nações Unidas, quando atuou em diversos países da América Latina e percorreu o Brasil inteiro com a Legião Brasileira de Assistência (LBA).
Sua sólida trajetória profissional, aliada ao seu engajamento nas pautas sociais levantadas pela Igreja Católica, permitiu
sua chegada à reitoria da PUC-SP. O ano foi 1975, nomeado como o ano internacional da mulher e a universidade queria uma no comando; era a vez dela.
“Dia” foi a primeira reitora de uma universidade católica no mundo. O convite foi feito por D. Paulo Evaristo Arns, Grão-Chanceler da universidade, que precisou interceder em seu favor junto ao Papa Paulo VI.
No final do primeiro mandato de sua a administração da PUC-SP, em 1980, mais uma vez ela foi inovadora, tornou-se a primeira reitora eleita do país, com voto direto da comunidade universitária e mostrou ao mundo o que os brasileiros queriam à época: “Diretas já!”.
Em um discurso publicado na revista Serviço Social & Sociedade, ela conta que aprendeu como é difícil a prática democrática, “eu me considero uma mulher democrática e estou convencida de que a democracia se aprende vivendo”, disse ela após a reeleição.
Seus horizontes profissionais, que já eram limitados na época, passaram a ser mais perigosos no auge de sua jornada. Mas Nadir sempre trouxe suas opiniões políticas à tona e não tinha medo de se sacrificar por aquilo que acreditava.
Em sua reitoria, a invasão militar na universidade, em 22 de setembro de 1977, marcou seu legado. Com a morte de Vladimir Herzog dois anos antes, o movimento estudantil se reergueu em todo o país e voltou a ocupar as ruas, nove anos depois da promulgação do AI-5, que tornava crime organizar, participar ou apoiar atos públicos.
Na noite do dia 22 de setembro estava programada a realização do 3° Encontro Nacional dos Estudantes, que tentava reorganizar a União Nacional dos Estudantes (UNE). A reunião aconteceu com a presença de 70 delegados estudantis de dez outros estados, na sala 225 do Prédio Novo.
Logo depois do fim do encontro, a assembleia estudantil decidiu realizar um ato público em frente ao Tuca, teatro da Universidade. A ação contou com cerca de 2 mil alunos que acompanhavam a leitura de uma carta aberta, quando foram interrompidos por uma violenta operação policial sob o comando do Coronel Erasmo Dias, Secretário de Segurança de São Paulo.
A tropa de choque chegou disparando bombas de gás efeito moral, que fez com que todos entrassem para dentro do campus. Os militares invadiram salas de aula, laboratórios, centros acadêmicos e diretórios. Alunos foram presos, agredidos e queimados por bombas.
Os estudantes detidos foram conduzidos em fila indiana com as mãos dadas até
um estacionamento próximo à PUC-SP. Os militares realizaram uma primeira seleção, utilizando listas fornecidas por serviços de inteligência da época e informações de agentes disfarçados na multidão.
Cerca de 514 alunos da Pontifícia foram transferidos para o Batalhão Tobias de Aguiar, 92 foram fichados no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, o DOPS, e 42 acabaram sendo processados com base na Lei de Segurança Nacional, acusados de subversão.
Nadir não estava na universidade naquela noite, mas logo que foi informada dirigiu-se ao campus para expressar indignação. Ao encontrar o Coronel Erasmo Dias, ele tentou apertar-lhe a mão e ela recusou dizendo: “eu não dou a mão aos assassinos” e virou de costas. Esta frase ficou marcada na história da PUC-SP como um símbolo de resistência.
Após a invasão, Nadir conta em uma entrevista ao Jornal Porandubas, que existiam rumores de que ela seria cassada. Mas o militar e político brasileiro Ney Braga segurou essa proposta. “Erasmo destruiu a minha vida acadêmica, ele acabou mesmo [...] Era DOPS, era CEI (Comissão Especial de Investigação), prisões de alunos[...] Não tivemos mais tranquilidade”, conta a reitora ao veículo.
Inspiração em movimentos estudantis, feministas e democráticos dentro e fora da universidade, Nadir se aposentou em 1984, aos 71 anos. Mesmo assim, a PUC não deixou de ser pauta em suas conversas.
Como uma pessoa indignada até o fim da vida. Certa vez, no Itaim Bibi onde morava, pisou em um buraco e caiu enquanto caminhava. O sobrinho, Juca Kfouri conta que no chão, ela xingava o prefeito Paulo Maluf: “Prefeito de m****! Como é que deixa uma calçada assim?”.
Nunca se casou e nem teve filhos, dedicou seu amor aos sobrinhos, aos alunos, à democracia e, claro, ao Corinthians. No testamento, deixou seu apartamento para o filho de sua empregada doméstica, que cuidou dela até os últimos dias. “Dia” faleceu em 2011, aos 97 anos, por conta de uma pneumonia.
Política
Nadir foi uma das pioneiras no estudo da área de Serviço Social
Nadir Kfouri na invasão da PUC-SP (1977)
© Comissão da Verdade da PUC-SP Reitora Nadir Gouvêa KfouriCVPUC
© Hélio Campos Mello
Abril/Maio 2024 5
DOI-Codi: a materialização da violência da ditadura militar
Centro de Operações do regime totalitário é símbolo de brutalidade e traz registros para o não esquecimento dos anos violentos que marcaram a história do Brasil
Por Ana Julia Mira, Beatriz Alencar Gregório da Silva, Isabelli Albuquerque Pontes Silva, Luane França e Vitória Kauanny da Silva Nascimento
Durante a ditadura que assolou o Brasil entre 1964 e 1985, a violência se tornou a nova política. Sob o comando do DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações e Defesa Interna), um edifício localizado na Vila Mariana, bairro paulista, escondia a brutalidade em sua forma mais pura: pessoas consideradas inimigas do regime eram sujeitas à diversas formas de tortura.
Criado em 1969, o órgão surgiu como sucessor da OBAN (Operação Bandeirante) e tinha como finalidade a repressão dos opositores do regime militar. Segundo o pesquisador Pedro Estevam da Rocha Pomar, em entrevista publicada no Memorial da Democracia, aproximadamente 6.700 pessoas foram presas e 50 morreram no Centro de Operações da capital paulista.
Os opositores torturados eram eletrocutados e submetidos a sessões de espancamentos. O jornalista Vladimir Herzog foi uma das vítimas do local. Em outubro de 1975, entrou voluntariamente no prédio do DOI-Codi para prestar depoimento e foi encontrado morto. De acordo com os militares, a causa teria sido suicídio – versão desmentida posteriormente.
Após ser desativado em 1990, o prédio recebeu uma nova função. Atualmente, abriga o 36º Departamento de Polícia de São Paulo. Em 2014, a propriedade foi tombada como Patrimônio Histórico pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), que reconheceu a simbologia política do edifício.
“O tombamento foi feito de forma participativa, com uma perspectiva multidisciplinar que contemplou não apenas aspectos da arquitetura, mas aspectos da história e da sociologia”, relatou Deborah Neves, historiadora e coordenadora do grupo responsável pelas escavações, em entrevista ao Contraponto
Apesar do tombamento, o Ministério Público reconheceu que o Estado não tomou medidas suficientes para garantir que o espaço fosse visto como um lembrete histórico. Em 2021, uma liminar que garantia a preservação do imóvel foi concedida.
Escavações no DOI-Codi
Em 2023, pesquisadores da Unicamp, Unifesp e UFMG realizaram escavações no antigo edifício. O projeto, que tinha como objetivo relembrar a história do DOI-Codi e assegurar uma retratação para as vítimas e
seus familiares, teve início em 2 de agosto de 2023 e se estendeu por duas semanas.
“Nós tínhamos apenas 12 dias para contar uma história que não foi contada em sua plenitude por mais de 50 anos”, contou Deborah Neves.
Visitas guiadas com a presença de ex-presos políticos ocorreram no local. Foram encontrados resíduos de material biológico, marcações de um calendário em uma das paredes do banheiro do primeiro andar e objetos como botões, pedaços de vidro e cerâmica. Todos os itens descobertos foram processados e estudados no Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp.
Deborah explicou as expectativas sobre o projeto. “Nós entendíamos que essas escavações poderiam firmar também a ideia de que aquele espaço não pode ser ocupado por qualquer outra atividade que não uma atividade que rememore o que foi aquele lugar. Serviria para fomentar o debate sobre os direitos humanos e sobre a forma que construímos as nossas forças de segurança pública no Brasil”, contou.
Violência policial como herança da ditadura militar
Dados indicam que a cultura de violência e impunidade ainda está presente nas instituições de segurança atualmente. Práticas autoritárias, como o uso excessivo da força, continuam a ser observadas.
Os anos de Governo de Jair Messias Bolsonaro deram forças para que fossem expostos os ideais de supervalorização da violência vinda das forças armadas. O então presidente apresentou em seu mandato oito ministros militares, a maior participação destes desde a redemocratização.
Nos 55 anos do golpe de 1964, Bolsonaro negou a natureza antidemocrática da data. Na época, Otávio Rêgo Barros, porta-voz da presidência, afirmou que Bolsonaro determinou que o Ministério da Defesa fizesse as “comemorações devidas”.
De acordo com Julia de Macedo Rabahie, aluna do programa de pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), “através do aparato repressivo das polícias e das Forças Armadas, essa violência se estabeleceu como uma estrutura de caráter sistemático, e não apenas como casos isolados de abusos”.
A historiadora Deborah explica o legado da violência ditatorial a partir da troca
Sala de tortura localizada no segundo andar
da atribuição da política de segurança pública que pertencia aos estados ao exército que ocorreu em 1969. “A lógica do combate prevaleceu nessa visão e o combate a sua própria população. Portanto, foi aplicada uma lógica de que a população era inimiga do país”, explica.
Deborah também conta que a transição da ditadura em democracia foi um processo negociável que não puniu os agentes públicos que cometeram crimes. A resolução criou um aval para a impunidade. “Não tenho dúvidas de que essa é ainda a mentalidade das forças de repressão do Brasil, principalmente da Polícia Militar, que foi transformada de força pública em Polícia Militar e é uma força auxiliar do Exército”, afirmou.
Essa perseguição tem se reproduzido constantemente, como mostra o 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022). O documento apresenta uma taxa de mortalidade de 6.430 pessoas. O número representa cerca de 17 mortes diárias cometidas pelas mãos de policiais.
Essa estatística possui idade, cor e endereço: jovens, negros e periféricos. Na
Entrada do edifício onde funcionou o aparelho de repressão militar DOI-Codi (1970-1976) em São Paulo
© Sophia Linares
6 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Sophia Linares
edição de 2023, a porcentagem de pessoas pretas mortas por intervenções policiais representava 83,1%.
Em janeiro de 2024, a Secretaria de Estado de Segurança Pública de São Paulo (SSP) afirmou que “investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas, como o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo”.
Em contrapartida, as mortes cometidas por PMs subiram 94% no 1º bimestre de 2024, segundo levantamento feito pela Globo News.
Fragilidade democrática
“O que acontece nos anos 1970, não é uma ditadura ‘policialesca’ simplesmente. É a impossibilidade de se dizer a verdade em qualquer circunstância. Por quê? Porque o direito à livre expressão estava enterrado. Não se dialoga, não é possível supor que se dialogue, com um pau de arara, o choque elétrico e a morte”, afirmou Dilma Rousseff em uma comissão do Senado Federal, em 2008.
À época, Rousseff era ministra da Casa Civil da Presidência da República. Com a voz embargada, resumiu anos de repressão e mortes de cidadãos brasileiros que lutavam pela democracia. A ex-presidente também foi presa durante a ditadura pela recém iniciada OBAN.
Tudo o que ocorreu, de 1964 a 1985, está no conhecimento de todos os brasileiros, e a justificativa para tais práticas era a de manter a ordem e o progresso do país. Mas, os anos de repressão militar se moldaram na negação a uma vida de direitos.
Em entrevista para o Contraponto, o professor Luiz Antonio Dias afirmou que “a Lei da Anistia promulgada em 1979 permitiu que torturadores e assassinos do regime ficassem impunes. Ainda hoje, esse tema é alvo de debates e controvérsias, pois muitas vítimas e familiares das vítimas buscam justiça e reparação”.
Dias conta ainda que a Constituição de 1988 já previa a reparação para as vítimas da ditadura civil-militar, direcionando-a àqueles que sofreram os atos de violência, não aos responsáveis por cometê-los.
Apoiadores da repressão militar e instituições envolvidas na época da ditadura ainda afirmam que a violência que marcou o período foi cometida para estabelecer a ordem e harmonia nacional.
Mortes em Itaipu
A usina hidrelétrica foi um projeto do período da ditadura que teve como objetivo firmar o setor elétrico como uma evolução para o país. O que a Itaipu tenta apartar é a responsabilidade em assumir a falta de direitos humanos durante a sua construção.
A negação de cumplicidade da usina com atos ditatoriais se comprova quando ela delega que “foi pioneira ao estabelecer, ainda em 1975, os Atos Normativos para a Saúde e Segurança dos Trabalhadores”.
Ao mesmo tempo, no período de sua construção, necessitou de mais de 100 mil trabalhadores e, desses, 43 mil sofreram com acidentes de trabalho e 106 faleceram (óbitos registrados). Além disso, quase 40 mil pessoas foram retiradas de suas casas para a expansão territorial da usina, segundo dados oficiais disponibilizados pela estatal.
Casos como Itaipu e o Doi-Codi são exemplos históricos das memórias para a consolidação de uma cultura em direitos humanos. A pauta é considerada prioritária para críticos do período ditatorial do país.
Conservação da memória
A professora Vera Paiva, que é filha de Rubens Paiva, um engenheiro civil e ex-deputado que foi torturado e assassinado pelo DOI-Codi do Rio de Janeiro em 1971, fez parte da Comissão Nacional da Verdade (2015-2022). Nomes como o de Vera prezam pela conservação da memória viva como uma forma de resistência e não repetição do passado. Porém, a memória é o fator mais negligenciado nos processos de transição democrática.
Desse modo, uma reconstrução no fazer da democracia em uma nação que preferiu permanecer silenciada e afastada de cidadania e direitos humanos elementares se torna um desafio que ultrapassa os aspectos institucionais.
“Sem um acerto de contas com o passado, sem uma justiça de reparação, ao menos historicamente, sem a condenação da apologia à ditadura e aos torturadores, não avançaremos no processo de superação do trauma”, afirma Luiz Antônio.
O que aconteceu durante esse período permanece como uma sombra sobre nós, de uma era construída e maquiada a partir de narrativas negacionistas de muitos, do silêncio de alguns e do testemunho de poucos. Os anos marcados pelo esquecimento e pela banalização da violência do regime militar fizeram dos familiares das vítimas sobreviventes e opositores importantes vozes na construção da memória histórica no Brasil.
Portas: à esquerda entrada para uma das salas de tortura e à direita uma das celas
Iara Prado visita local onde foi presa e torturada durante a ditadura militar no Brasil
Escadaria de acesso e saída às dependências do DOI-Codi
© Sophia Linares
© Sophia Linares
Abril/Maio 2024 7
© Sophia Linares
PUC-SP contra a ditadura: um legado mais vivo do que nunca
Exposição relembra a história de luta da universidade durante o período militar, no Memorial da Resistência de São Paulo
Por Khauan Wood, Nathalia de Moura, Nicole Domingos, Victória da Silva e Vítor Nhoatto
Localizado em um edifício na Santa Ifigênia, centro histórico de São Paulo, está o Memorial da Resistência de São Paulo. Administrado pela prefeitura, o local que serviu como centro carcerário e de tortura durante a ditadura, hoje é um espaço dedicado a relembrar esse condenável momento da história do país e sedia a nova mostra temporária, “Resistência na PUC-SP”.
Integrando o projeto “Ocupações Memorial”, a exposição conta a atuação efetiva da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) na luta contra o regime militar. Integrando o projeto “Ocupações Memorial”, a exposição conta a atuação efetiva da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) na luta contra o regime militar. A instituição foi um importante lugar de acolhimento a militantes,artistas e intelectuais e professores expulsos de outras instituições acusados de serem contra o governoda época.
Militância puquiana
A mostra é dividida em cinco setores e visa levar os visitantes a uma viagem no tempo: "Invasão da PUC-SP e a resistência à ditadura"; "Docentes, artistas e intelectuais acolhidos pela PUC-SP"; "Comissão da Verdade da PUC-SP Reitora Nadir Gouvêa Kfouri"; "Arte e resistência no TUCA" e "A defesa radical da democracia".
Com uma comissão curatorial formada basicamente por professores doutores da própria Pontifícia, o espaço se apresenta repleto de informações históricas. Cada um dos eixos tem uma cor diferente e conta por meio de fotografias e relatos em vídeo, os atos antiditatoriais promovidos pela instituição. Fabio Cypriano, professor, diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação,
Letras e Artes (Faficla) e um dos curadores, destaca que a alma da universidade sempre foi a democracia e o exercício da cidadania.
Durante a década de 1970, a PUC-SP ficou conhecida como um espaço relativamente livre de opressão, já que não era administrada pelo Estado. O local era tido como um respiro e amparo para educadores expulsos de instituições de ensino superior públicas como a Universidade de São Paulo (USP), devido ao Decreto-Lei 477/1969, que previa a punição de membros acusados de subversão ao regime.
Mesmo diante de ameaças, a comunidade universitária manteve-se firme em seus protestos a favor da justiça social. Em 1971, uma Reforma Universitária inovadora foi implantada, tendo como foco modernizar e reestruturar o ensino superior do país. Algumas das mudanças previstas eram a criação de universidades estaduais, a aplicação de vestibulares unificados, a ampliação do acesso à educação superior, entre outros movimentos. Com isso, esse movimento contrariava a expectativa do regime, o qual pressionava por uma atitude de maior conformidade. Nos anos seguintes, mesmo com forte repressão, a instituição não parou, sendo palco para manifestações e encontros proibidos de ocorrer em universidades públicas, como a 29ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1977.
No mesmo ano, foi realizado o 3º Encontro Nacional de Estudantes, em 22 de setembro de 1977, quando um dos eventos mais terríveis da história da Pontifícia ocorreu. Tropas da Polícia Militar, liderada por Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, invadiram
o campus Monte Alegre com tanques e armamentos pesados. Muitos alunos e professores foram presos acusados de subversão ou ficaram gravemente feridos pelos ataques da polícia.
Chegando ao local, Nadir Gouvêa Kfouri, reitora na época, deu as costas para Erasmo, que estava a caminho de cumprimenta-lá e disse a marcante frase: “não dou a mão a assassinos”. Eleita a primeira reitora mulher de uma universidade brasileira em 1976, Nadir é outro destaque nas paredes da exposição, lutando bravamente junto a sua Comissão da Verdade da PUC-SP, para que as memórias da resistência não fossem esquecidas.
Palco da democracia
Avançando na jornada histórica, chega a hora do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), um importante espaço cultural e palco não só de apresentações, mas de manifestações. Nele ocorreram debates políticos, peças críticas ao regime e shows de artistas que lutavam contra a censura do regime. Um dos eventos marcantes no período foi a apresentação de Caetano Veloso no final de 1968, cantando “É proibido proibir”.
O teatro era alvo frequente de perseguição e censura dos militares, que proibiram peças, interromperam eventos e deteram artistas, numa tentativa de calar a voz do povo. Em 22 de setembro de 1984, sete anos depois da invasão do campus, o TUCA foi criminosamente incendiado por grupos paramilitares. O episódio, segundo Padre Edênio Valle, professor desde 1969 da PUC, “eram marcas da violência arbitrária que pretendia deixar claro à Universidade que o mais seguro era abandonar sua postura de resistência à ditadura militar”.
Mesmo assim, a universidade não cedeu em sua luta radical pela democracia, último setor da exposição. No mesmo ano do crime ocorrido no teatro, centenas de estudantes e professores saíram juntos do campus em direção às manifestações das Diretas Já, que borbulhavam por todo o país. A potência da universidade não conseguiu ser apagada pela ditadura e continuou ecoando cada vez mais forte.
A mostra finaliza abordando o tema como a PUC-SP manteve vivo o seu legado de resistência e defesa dos direitos humanos, expondo algumas de suas principais ações nos últimos anos. Cypriano frisa como as ações em defesa da democracia refletem na qualidade de ensino da universidade, que tem a função de formar cidadãos e não somente profissionais.
8 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Victória da Silva
Ilustração sobre a iniciativa de reconstrução do TUCA
(Teatro da Universidade Católica de São Paulo)
que esteve presente na invasão e fez importantes registros dos momentos vividos pelos estudantes na PUC-SP
Introdução sobre a Universidade e sua atuação no período
Alunos e professores da instituição, como Pollyana Ferrari do curso de jornalismo, visitaram a exposição
Sobre o museu
O Memorial da Resistência é aberto de forma gratuita todos os dias, exceto às terças-feiras, das 10:00 às 18:00, podendo retirar os ingressos na recepção ou reservá-los pela internet. O local é de fácil acesso, tendo entrada direto pela estação da Luz na plataforma 1 da Linha 7 - Rubi, sentido Jundiaí, contando ainda com estacionamento para carros e bicicletas.
Parte da exposição que apresenta Nadir Kfouri e o incêndio no TUCA
Tendo adotado o atual nome em 2009, o Memorial é o maior museu de história do país focado na memória política de luta pela democracia e das resistências no Brasil. Seus objetivos são valorizar a cidadania, a pesquisa e a educação por um olhar plural e diverso, não deixar que se esqueçam as atrocidades ocorridas na ditadura, e espalhar informação e história.
Hélio Campos Mello, fotógrafo
Dos que resistiram à intolerância
© Lídia Rodrigues de Castro Alves
© Lídia Rodrigues de Castro Alves
© Victória da Silva
© Victória da Silva
© Victória da Silva
© Khauan Wood
Abril/Maio 2024 9
Vladimir Herzog vive: lembrar é resistir
A história do jornalista assassinado durante a ditadura militar e seu marco para a defesa dos direitos humanos
Por Geovanna Bosak, Guilherme Tirelli, Júlia Takahashi, Júlia Zuin e Luiza Fernandes
No marco dos 60 anos do golpe militar no Brasil, surge a oportunidade de homenagear e relembrar o legado daqueles que lutaram ativamente pela resistência, compromisso e defesa da democracia durante esse período tão sombrio da história do País. Vladimir Herzog é uma dessas importantes figuras que se tornaram um símbolo de coragem pela liberdade de expressão face à opressão.
Nascido em 27 de junho de 1937, em Osijek, na Iugoslávia, Vlado – seu nome de batismo - passou seus primeiros anos em Banja Luka, na atual Bósnia e Herzegovina, até agosto de 1941. Nesse ano, o exército nazista ocupou sua cidade e forçou sua família a fugir para a Itália.
No país de Michelangelo, eles permaneceram por dois anos em um campo de refugiados em Bari e, no final de 1946, decidiram começar uma vida nova no Brasil. Já adulto e após se naturalizar brasileiro, formou-se em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Sua preocupação com os problemas urgentes do País, como o desenvolvimento e a administração centralizada em Brasília, levou-o a trilhar um caminho dentro do jornalismo. Sua trajetória teve início na década de 1960, no jornal ‘O Estado de S. Paulo ’, onde cobriu eventos significativos, como a inauguração da nova capital federal.
Rapidamente, sua dedicação e seriedade com a profissão o impulsionaram a alçar voos maiores. Em 1963, suas habilidades o credenciaram para a posição de correspondente em Londres, pela BBC. Três anos mais tarde, retornou ao Brasil e assumiu o cargo de professor nas faculdades de Jornalismo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Além disso, Herzog demonstrava um profundo interesse pelo cinema e seu vasto campo audiovisual. Sua intenção era explorar a cultura inserida na realidade brasileira, utilizando as produções cinematográficas como um instrumento para ampliar a consciência social e política da população.
Posicionamento Político e incômodo governamental
Em 1975, o autoritarismo e a repressão cresciam. Naquele ano, a TV Cultura nomeou Vlado para o cargo de diretor de jornalismo. No exercício de sua nova função, Herzog se dedicou a expor as questões sociais que aconteciam na época, assumindo uma posição proeminente na imprensa e nas salas de aula como professor. Consequentemente, sua postura pró-democracia atingia e incomodava o governo totalitário.
No Dossiê Herzog, o jornalista Fernando Pacheco Jordão ressaltou o posicionamento de Vladimir na profissão: “Fazer jornalismo, para ele, era informar e discutir sua época, e nisso empenhava toda sua integridade e honestidade profissional”.
centro de violação dos direitos humanos durante a ditadura.
Assim que chegou ao local, foi encapuzado, amarrado em uma cadeira e torturado, uma rotina que a maioria dos presos políticos enfrentava diariamente. Os militares o submeteram a choques elétricos, ao espancamento e ao sufocamento com gás amoníaco que provocava náusea e enjôos.
De acordo com a narrativa oficial da época, respaldada pelo laudo assinado pelo legista Harry Shibata, Vladimir teria se enforcado utilizando o cinto do seu macacão de prisioneiro. Todavia, era proibido aos detentos portar o acessório, justamente para prevenir seu uso como arma. Além disso, relatos de colegas que também estiveram detidos na mesma ocasião corroboram a versão de que ele foi assassinado.
O relato de Jordão evidencia o posicionamento de Herzog em relação à ditadura, que exalta o incômodo que ele causava ao expor as ações do governo através de fatos. Vlado se preocupava genuinamente com a verdade que tentavam censurar perante a sociedade, o que o tornou um alvo para os militares.
Dias de terror: Luto no jornalismo
Segundo Clarice, esposa de Herzog, diante das ameaças contra a democracia e a liberdade de expressão, o próprio admitia que só existiam duas formas de enfrentar o sistema: pela Igreja ou por meio do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O que ninguém imaginava era que as constantes reuniões da coligação do partido se tornariam pretextos de uma grande tragédia.
Na semana de sua morte, o professor foi convidado a comparecer ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) para prestar esclarecimentos. No dia 24 de outubro de 1975, Herzog se apresentou voluntariamente no quartel, que posteriormente seria classificado como o maior
Vlado se dedicou ao jornalismo durante 15 anos
A censura das circunstâncias reais que levaram à morte de Vladimir Herzog levantou ainda mais suspeitas sobre tortura e abuso de poder. O assassinato gerou comoção em grande parte da sociedade pelo fim da ditadura, tornando-se símbolo da resistência e luta pela democracia brasileira, contra a repressão e a violência do regime militar.
O jornalista Eric Nepomuceno vivenciou na pele esse período turbulento e, em entrevista para o Contraponto, relembrou o clima de tensão que pairava no ar. Na época, o escritor morava na Argentina e, sempre que possível, retornava ao Brasil para visitar sua esposa grávida. Perseguido assim como Vlado e outros colegas, o autor viu-se em uma situação delicada, tendo que deixar sua mulher sozinha à espera do seu filho.
Nesse intervalo, Eric descobriu que havia comprado o apartamento onde Jorge Estrada, Vladimir e Paulo Markun lideravam as reuniões do PCB. Foi nesse momento que o escritor entendeu o real motivo pelo qual também estava sendo procurado pelo governo.
Vlado na redação da BBC em Londres
© Acervo pessoal Ivo Herzog
© Instituto Vladimir Herzog
10 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Pouco antes da morte de Herzog, temendo que algo de ruim pudesse acontecer, levou sua mulher e o filho recém-nascido para a fazenda do sogro, em Minas Gerais. Quando retornou ao seu prédio, acompanhado do também jornalista Eduardo Galeano, o porteiro lhe informou que dois homens o esperavam até quinze minutos antes de sua chegada. “Foi o tempo de entrar em casa, fazer as malas e disparar para o aeroporto”, relata Nepomuceno.
Emocionado, ele também contou como soube da morte de Herzog. “Estava jantando com o Galeano, quando uma amiga me contou sobre o Vlado. Eram dez e meia da noite, e liguei para o Jornal da Tarde, onde trabalhava. Conversei com o Ari Schneider, meu vice-chefe, e perguntei o que havia acontecido. A voz do outro lado da linha só dizia repetidamente: ‘Suicidaram ele!’”, lembra.
No dia 27 de outubro de 1975, o corpo de Vlado foi enterrado no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo, sob a alegação oficial de suicídio. De acordo com as tradições judaicas, a causa da morte indicaria que ele deveria ser sepultado às margens do cemitério. Para os judeus, o suicídio é considerado uma violação do princípio sagrado da preservação da vida, e suas ramificações vão além da perda individual.
No entanto, o rabino Henry Sobel, importante líder judeu na comunidade brasileira e ferrenho defensor dos direitos humanos e da justiça social, recusou-se a aceitar a versão de que Herzog havia tirado a própria vida. Sobel, que havia visto o corpo e as evidentes marcas de tortura, optou por desafiar abertamente as autoridades e as pressões internas de parte da comunidade judaica ao enterrar Herzog no centro do cemitério, em um ato desafiador contra a versão oficial promovida pelo regime militar.
Em entrevista à BBC News Brasil em 2019, o filho mais velho de Vladimir Herzog, Ivo Herzog, destacou a importância da decisão tomada pelo rabino para o Brasil e a memória do pai. “Ele (Sobel) faz parte da história da nossa família. Foi a primeira pessoa que denunciou o assassinato do meu pai. Algumas horas depois da morte ele dizia que tinha sido um assassinato. Na mesma semana, eles fizeram um ato ecumênico na praça da Sé, que marcou o início do fim da ditadura no Brasil”, afirmou.
O assassinato de Vladimir Herzog representou um ponto de virada na história da ditadura. O trágico evento provocou uma paralisação nas redações dos principais veículos de comunicação de São Paulo, incluindo jornais, emissoras de televisão, rádios e revistas. Mais de oito mil pessoas
se reuniram na Catedral da Sé para homenageá-lo e protestar contra o regime.
Em outubro de 1978, o juiz Márcio Moraes responsabilizou a União pela morte do jornalista. Quase duas décadas depois, em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu que Herzog foi vítima de assassinato.
Já em 2013, o Tribunal de Justiça de São Paulo atendeu o pedido da Comissão Nacional da Verdade e emitiu um novo atestado de óbito, retificando que a morte ocorreu em decorrência de “lesões e maus-tratos durante o interrogatório”. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pela falta de apuração e impunidade. Finalmente, em 2020, seis pessoas foram condenadas pelo episódio.
Opressão e violência, seis décadas depois
A simples busca no Google “quantos jornalistas foram assassinados no ano passado?” não possui resposta óbvia. Isso
porque os critérios de classificação para que as vítimas sejam inseridas nas estatísticas diferem, a depender do levantamento. Dessa forma, é difícil concluir porcentagens que apresentem a problemática - mas isso não quer dizer que ela não exista.
De 2022 para 2023, o número de profissionais de comunicação assassinados aumentou em 36.47%. O levantamento foi realizado de acordo com os fatos expostos nos relatórios anuais da International News Safety Institute (INSI), uma organização internacional dedicada à segurança dos jornalistas. Segundo o estudo do último ano, a variável que mais matou este grupo foi a participação em conflitos armados.
O assassinato de Vlado, no entanto, ganhou destaque entre tantos outros e se converteu em um símbolo de resistência. Os aspectos demonstram que jornalistas são vítimas de mortes violentas até os dias de hoje. Vladimir Herzog vive.
Velório de Herzog no Hospital Albert Einstein
Abril/Maio 2024 11
© Instituto Vladimir Herzog
Jornalismo alternativo: a voz da imprensa enquanto resistência
O papel dos veículos não hegemônicos na reconstrução da democracia e no fomento à informação
Por Eduarda Basso, Luiza Miranda, Maria Laura Medeiros, Melissa Joanini e Stefany Santos
“A
imprensa é a arma mais poderosa no nosso partido”. A frase de Joseph Stalin, revolucionário soviético e líder do Partido Comunista, expressa a importância do jornalismo para a estruturação de um governo. A atuação jornalística também foi destaque nos anos de ditadura civil-militar no Brasil.
Em 1967, Marechal Castelo Branco assinou a Lei nº 5.250, que ficou conhecida como Lei da Censura à Imprensa, a qual se desdobrou, três anos depois, na Lei da Censura Prévia. O objetivo dos militares era claro: regular a mídia para obter completo controle sobre a opinião pública, à medida em que continham o avanço da oposição.
Os meios de comunicação denominados ‘grande imprensa’, como Folha de São Paulo, Estadão e O Globo, apoiaram a ditadura militar. Jornalistas, estudantes e pensadores que se opunham ao autoritarismo recorreram à chamada ‘imprensa alternativa’ para lutar pelo que acreditavam.
Dentro das universidades, centro acadêmicos e coletivos estudantis criaram jornais independentes. O jornalista José Arbex Júnior fazia parte d’O Trabalho, baseado na corrente esquerdista ‘Liberdade e Luta’ (LIBELU). Em entrevista ao Contraponto, o professor da PUC-SP declara que “ser jornalista naquela época era ser militante. Se você não abraçasse a causa, não aguentava uma semana”. Arbex ainda pontuou algumas das publicações alternativas que se popularizaram no período: Pif-Paf, O Pasquim e Última Hora.
Pif-Paf
O primeiro veículo alternativo que surgiu após o golpe foi o Pif-Paf, do jornalista Millôr Fernandes, inicialmente como uma seção do jornal carioca O Cruzeiro, ainda em 64. Após ser demitido, ele passou a publicá-lo semanalmente em formato de revista, a qual tinha como principal característica seu humor satírico. O veículo era feito de maneira pouco pragmática, já que os humoristas que cediam seus trabalhos não colaboravam fixamente e a produção era inteira a cargo de Millôr.
A revista teve apenas oito edições devido à censura. O Pif-Paf influenciou fortemente os jornais que surgiram a partir de seu término, principalmente por tornar-se um símbolo da imprensa não-hegemônica da época e por introduzir um humor diferente do que era visto no Brasil.
O Pasquim
O cartunista Jaguar, em conjunto com os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral, fundaram O Pasquim, um dos
veículos mais importantes para a história da imprensa alternativa. Sua primeira edição saiu em junho de 1969 e vendeu 28 mil cópias. Os cinco anos seguintes marcaram o auge do jornal. Com publicações semanais, foram vendidos 250 mil exemplares ao todo, com um acúmulo de 1.072 edições em seu acervo.
Juntos, os redatores formavam a “patota”, que quebrava o modelo tradicional e burocrático da criação de um jornal. As pautas eram elaboradas através das relações pessoais e discussões espontâneas que aconteciam entre os amigos. Essa era a essência d’O Pasquim: liberdade, tanto em sua escrita, quanto em sua filosofia. Além do tom sarcástico carregado pelas crônicas e charges da revista. “O humor faz parte da história do Brasil”, afirma Arbex sobre o ar descontraído e diferenciado que o Pasquim possuía naquela época.
Em 1 de novembro de 1970, policiais do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) entraram na redação e prenderam os jornalistas presentes. Tarso de Castro fugiu pelo muro dos fundos e não foi pego, o que permitiu que continuasse dirigindo o jornal clandestinamente. Após esse episódio, as publicidades acabaram e as vendas caíram pela metade. Desavenças entre os integrantes e crises financeiras tornaram-se constantes e, em 1991, seu último exemplar foi publicado.
Capa do jornal O Pasquim
Última Hora
© O Pasquim
O periódico carioca defendia abertamente os trabalhadores, a democracia e a soberania nacional. Foi um dos únicos diários a defender João Goulart e seu governo nas primeiras horas após o golpe militar. Como consequência, teve suas sedes no Rio de Janeiro e Recife invadidas e depredadas. Samuel teve seus direitos políticos cassados, mas permaneceu atuando clandestinamente durante seu exílio.
Ao longo dos anos de ditadura, o jornal enfrentou uma crise financeira em razão da perda de anunciantes, que desistiram do patrocínio por medo de represálias. Samuel Weiner, exilado, vendeu o Última Hora aos mesmos compradores do Correio da Manhã e sua última publicação ocorreu em abril de 1971.
Nós Mulheres
O jornal Nós Mulheres foi produzido por militantes contrárias ao regime totalitário, que apoiavam o fim da censura e reivindicavam a presença feminina na política. O periódico, organizado e publicado pela Associação de Mulheres, foi lançado em 1976 e se estendeu por dois anos, deixando apenas 8 edições. O veículo foi visto como um instrumento para dar voz e visibilidade a pautas feministas, negligenciadas pela mídia dominante.
Demandas como aborto, contracepção, dupla jornada de trabalho, divórcio e direitos das mulheres eram amplamente tratadas pela publicação. Nós Mulheres contava com editoriais, entrevistas, cartas de leitoras e charges. Sua atuação multifacetada incluiu desde a participação em guerrilhas rurais até a divulgação de informações na imprensa clandestina. Além disso, campanhas a favor da redemocratização também ocuparam as páginas do jornal feminino.
Em entrevista ao Contraponto, a psicanalista Maria Aparecida Kfouri, que colaborou com o veículo, compartilhou que o Nós Mulheres começou no porão de Marcus Faerman, idealizador do jornal Versus, também criado durante o regime militar. ‘’Era uma opressão medonha, tinha medo de sair na rua. Quando entrei no jornal, senti uma liberdade”, aponta.
O Última Hora foi criado pelo jornalista Samuel Wainer em 1951. Era publicado no formato diário no Rio de Janeiro e chegou em São Paulo no ano seguinte. Segundo seu fundador, seu objetivo era acabar com a formação oligárquica da imprensa brasileira e promover um jornalismo popular e independente, em oposição à classe dirigente e favorável a um governo de cunho popular.
O professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Pedro Aguiar, criou o gráfico Imprensa Alternativa na Ditadura Militar, com o objetivo de pontuar alguns dos quase 200 jornais alheios à mídia dominante que circulavam pelo Brasil durante todo o período.
Apesar do exercício do jornalismo ter sido dificultado, impedido e até perseguido, a imprensa alternativa nunca deixou de criticar o modelo político-econômico autoritário, denunciar torturas e reivindicar direitos.
12 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Resistência feminista: conheça o outro lado da imprensa alternativa
Em um contexto político marcado pela censura, a luta das mulheres contra o autoritarismo era refletida através da comunicação popular
Por Ana Julia Bertolaccini, Maria Elisa Tauil e Marina Jonas
Aimprensa foi uma das primeiras instituições a sentir os efeitos do golpe de 1964 e da implementação da ditadura militar no Brasil. Com o decreto do AI-5, os anos seguintes foram considerados os mais repressivos deste período.
Qualquer reportagem que abordasse assuntos considerados como uma ameaça ao regime totalitarista sofria repressão. Pautas voltadas ao movimento feminista eram barradas nas redações, dando espaço para a consolidação da imprensa alternativa como forma de resistência.
“Os Nanicos”, como também ficaram conhecidos os jornais militantes, surgiram como forma de oposição à ditadura por meio de humor, análise política ou informação. Os exemplares continham análises sobre decisões políticas, notícias censuradas e charges irônicas com tom de denúncia contra o governo.
O periódico “O Pasquim” circulou entre os anos 1969 e 1991, e foi destaque entre os movimentos de esquerda. Suas edições utilizavam o humor com tom irônico para protestar contra o ataque à imprensa.
Jornalista e escritor formado pela Universidade de São Paulo, em 1982, Arbex contribuiu para o jornal alternativo “O Trabalho”, que circula desde 1978. Segundo ele, as edições eram pautadas nas necessidades da classe trabalhadora.
“Era um jornal semanal clandestino e as reuniões de pauta eram reuniões políticas, nas quais recebíamos informações de grupos militantes do movimento operário, como bancários, metalúrgicos etc”, explica.
A imprensa alternativa atuava sob princípios progressistas para a época, mas reivindicações femininas não eram levadas em consideração. “As mulheres não eram retratadas. Existiam mulheres que escreviam sobre economia, política e temas gerais da sociedade, mas nada sobre pautas femininas”, aponta Arbex.
Imprensa feminina
A necessidade de colocar as mulheres em foco e amplificar suas reinvidações contribuiu para o surgimento do primeiro jornal feminista do país, o “Brasil Mulher”.
Criado em 1975 por Therezinha Zerbini e Joana Lopes, jornalistas precursoras dentro da luta contra o regime autoritarista, o periódico foi um posicionamento feminista em meio ao cenário político conturbado do país.
O jornal, que saiu de circulação no início da década de 80, foi financiado por suas participantes, alcançando a marca de 10 mil exemplares a cada publicação.
Ao longo de suas vinte edições, abordou tópicos como aborto, sexualidade, divórcio e direitos das mulheres.
Inspirados pela luta do movimento feminista dentro do jornalismo, outros periódicos populares surgiram. Neste contexto, em junho de 1976, foi publicado o primeiro exemplar do “Nós Mulheres”. Fundado pela Associação de Mulheres, em 1976, o "Nós Mulheres" circulou pelas bancas por dois anos e se tornou um ponto de referência para aquelas que buscavam assuntos não veiculados nos jornais oficiais.
Com uma linguagem considerada inovadora para a época e uma abordagem comprometida com a resistência social, o jornal denunciava as diversas formas de opressão das cidadãs brasileiras.
Em suas páginas foram reivindicados direitos que iam desde a educação e a garantia de salário mínimo digno para o custo de vida da época, até melhores condições trabalhistas e igualdade salarial. Além disso, publicavam matérias de denúncia ao machismo estrutural no ambiente de trabalho, em sua própria residência ou até mesmo no próprio corpo.
O editorial da primeira edição do periódico feminista levou às suas leitoras um ativo discurso contra as convenções de gênero da época.
“Desde que nascemos, nós, mulheres, ouvimos em casa, na escola, no trabalho, na rua e em todos os lugares que nossa
função na vida é casar e ter filhos. Que nós, mulheres, não precisamos estudar ou trabalhar, pois isto é coisa para homem (...)”, expôs o editorial.
Enfrentando a tortura e a repressão, as mulheres da época assumiram um papel de protagonismo na imprensa alternativa e na luta contra a ditadura. No entanto, a opressão estrutural e desigual que assola gerações do movimento feminista impactou diretamente na diminuição de sua importância.
Em uma entrevista ao jornal Contraponto, a jornalista Maristela Bernardo conta que foi presidente do centro acadêmico da Escola de Comunicação e Artes da USP durante aquele período. Para ela, a conturbada época contribuiu para o seu desenvolvimento político e social.
“Ser mulher e jovem nesse período dos anos 1960 era, por um lado, você continuar sofrendo a repressão da sociedade tradicional e, por outro, entender o enorme campo que se abria diante dos estímulos que eram dados, não só pela luta política como também pela revolução dos costumes que ocorria naquela época”, explica.
A entrevistada conta que o vestuário das militantes da época também desempenhava um importante papel na luta contra o machismo. A libertação das mulheres se dava em diferentes campos da simbologia, como as roupas.
“Eu, minhas amigas, as militantes de esquerda, todo mundo passou a se libertar do sutiã, da saia comprida. O visual das mulheres passou a ser um visual mais livre, você se vestia como bem entendia”, relata a jornalista.
Capa da primeira edição do jornal "Nós Mulheres"
Brasil Mulher, edição número 12
© Acervo fundação Carlos Chagas
Abril/Maio 2024 13
© Acervo CSBH/FPA
A repressão sob uma nova roupagem: movimento
LGBTQIAPN+ ainda luta pela garantia de direitos
A permanência das estruturas opressoras pós-ditadura sobre corpos da comunidade traz questionamentos: redemocratização para quem?
Por Ana Luiza Pires, Malu Araujo e Maria Luisa Lisboa
Orelatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue em 2014, destacou que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais sofreram perseguições e abusos de forma violenta durante o regime da ditadura civil-militar brasileira.
Segundo Marcos Tolentino, artista, pesquisador e educador do Acervo Bajubá, esse relatório possui um valor político e histórico importante, visto que representa o primeiro momento em que o Estado brasileiro reconheceu que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ foram vítimas de violações aos direitos humanos durante a ditadura.
Embora o preconceito a pessoas dissidentes já existisse antes do golpe, a ascensão de um Estado autoritário trouxe formas de repressão às expressões desse grupo enquanto sociedade.
‘Em uma sociedade agressiva, existir é revolucionário’
Uma das formas de repressão usada pelo regime eram as rondas militares em locais de socialização da comunidade. De acordo com Tolentino, “já existia uma noite homossexual a plena forma em São Paulo, ao mesmo tempo que a violência policial era uma presença constante na vida dessas pessoas”.
O pesquisador lembra que esses espaços eram vistos como perigosos ou de marginalidade, mas o fato de serem pessoas que estavam sempre à margem da sociedade permitia algumas expressões de liberdade.
Além das rondas militares, existia a “lei da vadiagem”, utilizada para controlar a circulação dos grupos pela cidade. “Uma mulher transexual, travesti, era presa porque estava se prostituindo ou porque estava simplesmente circulando com uma roupa diferente do gênero que estava no documento”, narra o educador.
Na busca da liberdade de ir e vir, travestis e transexuais utilizavam a carteirinha do DRT. Essa carteirinha possibilitava que, durante uma batida policial, elas não fossem pegas na lei de vadiagem porque tinham uma carteira de trabalho assinada, conta o historiador. Além disso, com a censura, a comunidade passou a utilizar a imprensa alternativa para se expressar e comunicar o que ocorria tanto no Brasil como no mundo.
Jornais como o “Lampião da Esquina” serviam como meio de informação para mostrar quais lugares eram seguros, onde estavam as boates, sendo também os primeiros a informarem sobre questões de saúde sexual. Nesse contexto, surgiu
o folheto “ChanacomChana”, que trazia pautas lésbicas e feministas. O folhetim era distribuído no Ferro’s Bar, antigo ponto de encontro de mulheres lésbicas.
Espaços de reExistência
Os espaços de resistência, assim como no período da ditadura militar, tiveram e ainda têm um papel crucial na sociabilidade, nas práticas artísticas e na organização da militância destes grupos.
Ao falar sobre a importância desses espaços, Tolentino conta que “naquela época, a noite era onde você ia para tentar encontrar pessoas iguais a você, onde você tinha possibilidade de repensar sua relação com sua identidade de gênero, bem com sua vida sexual afetiva”.
Para Willow Oliveira, travesti, estudante de audiovisual e artista, é dentro do movimento artístico de resistência e acolhimento, o ballroom - surgido na década de 1960, em Nova York, e importado para o Brasil nos últimos dez anos -, que ela encontra esse espaço de afirmação. “Lá era um local acolhedor, onde as pessoas vivem o que você vive”, completa.
Recortes são necessários
“No Brasil, nós sempre temos que pensar em classe e raça, quem eram as LGBTs que eram vistas pela cidade? Eram justamente mulheres transexuais ou travestis que estavam trabalhando na situação de prostituição”, afirma Tolentino.
Ao pensar no recorte social, é possível perceber que mulheres trans, travestis, pretas e pobres eram a parcela que mais sofria repressão. E, ainda hoje, isso não é diferente. Segundo dados da Associação de Travestis e Transexuais (Antra), 72% das vítimas no Brasil da transfobia seguida de assasinato são mulheres trans e travestis, pretas ou pardas. Atualmente, o Brasil figura como o país que mais mata pessoas trans no mundo, pela 15ª vez consecutiva, ainda de acordo com dados do Antra.
Ao abranger esses dados, no ano passado foram registradas 257 mortes violentas de pessoas LGBTQIAPN+, segundo o Grupo Gay Bahia (GGB). Vale destacar que a maior parte desses dados são coletados de associações que não fazem parte do Estado brasileiro. Para Tolentino, esse “grande apagão de dados oficiais” é muito perigoso para a comunidade.
‘É como se [a gente] fosse um bicho’
Embora o fim da ditadura tenha sido oficializado ao final do processo de redemocratização, em 1988, não encerrou a repressão às pessoas dissidentes. Ao refletir sobre isso, o pesquisador do Acervo Bajubá questiona: “redemocratização pra quem?”, enfatizando a permanência, ainda nos dias de hoje, das estruturas que oprimiram as pessoas LGBTQIAPN+ durante a ditadura militar.
De acordo com o Dossiê da Antra “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023”, o Brasil registrou um aumento de 10,7% no número de assassinatos de pessoas trans.
Soma-se a isso a incerteza da permanência dos direitos conquistados pela comunidade na constituição, uma vez que “basta mudar minimamente a composição da suprema corte para que um direito que foi garantido seja retirado”, afirma o historiador.
Após 60 anos da ditadura, os preconceitos, agora sob uma nova roupagem, permanecem reprimindo pessoas dissidentes em seu cotidiano.
“O corpo travesti é um corpo em destaque. Quando as pessoas veem uma pessoa travesti sempre têm um olhar, gente que fala, gente que não fala, ou que só olha e disfarça, é como se [a gente] fosse um bicho”, relata Willow Oliveira. Ela completa dizendo que a esperança não morrerá e que batalhará por isso, sendo uma voz que diz: “estamos só querendo viver em paz”.
Protesto contra a discriminação dos trabalhadores homossexuais
14 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Fernando Uchoa
Quem foi Francisco Julião, líder camponês na luta pela Reforma Agrária nos anos 60?
Trajetória do advogado, preso político durante ditadura, teve grande influência na formação das Ligas Camponesas, movimento precursor do MST
Por Annanda Deusdará, Beatriz Barboza e Gabriel Porphirio Brito
Francisco Julião (1915-1999), político e escritor brasileiro, é conhecido por defender as causas dos desfavorecidos e desempenhou um papel crucial nas Ligas Camponesas, movimento pioneiro na luta pela reforma agrária no Brasil. Sua abordagem simples ao ensinar a população rural sobre seus direitos e como conquistá-los foi fundamental para o crescimento e a mobilização do coletivo, o qual o adotou como principal figura incentivadora.
Essas organizações entre camponeses surgiram no início da década de 1950, em um contexto de industrialização e insatisfação social no Nordeste brasileiro. Temas como sindicalização rural, criação do estatuto do trabalhador do campo e lei da reforma agrária eram discutidos e reivindicados pelo campesinato.
Incendiador de Consciências
Em entrevista para o Contraponto, Cláudio Aguiar, autor do livro “Francisco Julião, uma biografia” (2014), conta que o advogado não chegou às Ligas Camponesas, mas que o movimento é que o encontrou.
Segundo Aguiar, a pedido dos camponeses do Engenho Galileia, de Vitória do Santo Antão, em Pernambuco, Julião, então deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), criou e registrou juridicamente, em 1954, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, a primeira associação de trabalhadores do campo do Recife, que defendia seus direitos diante de entidades públicas e privadas.
Anos mais tarde, em 1961, a cidade de Belo Horizonte foi palco do Primeiro Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. O evento marcou a materialização das reivindicações do campesinato que agora se organizava e tinha representações nacionais.
João Goulart, na época presidente da República, ao lado de Francisco Julião, ponderou a reforma agrária como prioridade em seu governo. Após esse encontro, no imaginário camponês, a redistribuição das terras aconteceria “na lei ou na marra”.
A mobilização do agrário ganhou atenção dos jornais “Diario de Pernambuco” e “Jornal do Commercio”, que passaram a pautar a atuação dos coletivos nas páginas policiais, o que, segundo Aguiar, representava a tentativa de vincular a luta camponesa à criação de ligas pelos comunistas
“Muitas notícias me atribuíram a fama de ‘incendiário’, no entanto, minha preocupação não era incendiar canaviais, eu tinha o afã de incendiar consciências”, afirmou Francisco Julião durante um discurso na associação de trabalhadores rurais de Pernambuco.
Embora fosse filho de senhor de engenho e tivesse formação superior, Julião se firmou como importante comunicador popular. O deputado expunha suas propostas por meio de cordéis e panfletos breves, claros e diretos. Sobre essa articulação, o biógrafo afirma que os camponeses aprendiam com facilidade por conta da oralidade simples de Julião, visto que quase todos eram analfabetos.
Inimigo dos Estados Unidos
À época, os Estados Unidos observavam com cautela não apenas as propostas de Goulart, que visavam remodelar setores da sociedade brasileira como a redistribuição de terras, mas também o surgimento das Ligas Camponesas e seu líder, Julião, que representava uma potencial ameaça política para os americanos.
No documentário estadunidense “Brasil: terra turbulenta” (1961), o líder Francisco Julião foi intitulado “inimigo dos Estados Unidos”, já que a grande luta das Ligas era pela Reforma Agrária, desafiando diretamente os interesses dos grandes proprietários de terras e empresários, que eram uma parcela abastecida pelos norte-americanos. Além disso, ações armadas por camponeses contra medidas repressivas de latifundiários intensificaram as preocupações.
Em plena Guerra Fria, os EUA temiam que o movimento pudesse promover ideologias comunistas e ameaçar a estabilidade dominante sob a América Latina, aumentando as tensões e incertezas na região. “As Ligas Camponesas foram totalmente desarticuladas e destruídas pelo Golpe Militar de 1964. Julião foi cassado e, em 1965, exilou-se no México. Quatorze anos depois, retornou ao Brasil”, contou Aguiar.
O autor pontua que o líder camponês sofre hoje um ‘lastimável processo de esquecimento’ que não é novidade no país. “No Brasil, seus mais ilustres filhos são esquecidos, na maioria dos casos, de propósito, para que as futuras gerações não tomem conhecimento desses exemplos notáveis que, no final de contas, concorreram para que essa terra se torne mais rica, independente e soberana”, afirma.
A Luta Continua
Dilei Schiochet, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da Paraíba, afirmou ao Contraponto que o modelo de organização horizontal e participativa das Ligas Camponesas influenciou a forma como muitos movimentos sociais se organizam hoje.
“Para os Sem Terra, as Ligas Camponesas foram um berço, pelo fato de inserir um levante memorável na história do Brasil sobre o tema da reforma agrária. Foi a partir dela que o MST nasceu como uma organização de vocação nacional. Nossa contribuição na atualidade é manter viva a luta pela reforma agrária popular, que é a maior forma que temos de dar continuidade a luta iniciada pelas Ligas Camponesas”, destacou Schiochet.
Em 2006, foi fundado no Povoado de Barra de Antas, na cidade de Sapé, na Paraíba, o Memorial das Ligas e Lutas Camponesas. Weverton Rodrigues, historiador e diretor de projetos do memorial, foi entrevistado pelo Contraponto e destaca a importância do acervo: “Não há democracia sem memória e sem reforma agrária. São peças fundamentais para a construção da identidade nacional em um país tão desigual e violento como o Brasil. O Memorial tem a tarefa histórica de ampliar a visibilidade sobre a atuação e história dos camponeses, na perspectiva de que as próximas gerações não se esqueçam do que aconteceu e entendam a nossa realidade”.
Francisco Julião, político e escritor brasileiro
Abril/Maio 2024 15
© Acervo Arquivo Nacional
Operação Brother Sam: o
dos Estados Unidos no golpe de 64
A desconhecida quase incursão norte-americana no Brasil e a influência de seus aspectos
Por João Pedro Stracieri e Pedro Bairon
Adécada de 1960 foi um período conturbado no cenário geopolítico global, com dois blocos principais, o soviético e o estadunidense. Marcado por conflitos em busca do poder, a Guerra Fria, protagonizada por esses dois grupos, ficou marcada como o período histórico em que o mundo estava polarizado entre socialismo e capitalismo.
Em contextos como esse, nos quais a desarmonia dirigia o cenário internacional, ter países sob suas interferências era fundamental para a disseminação e consolidação de poder. Tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética tentaram expandir suas influências para outras nações, e a maneira como isso aconteceu foi desde acordos comerciais até a intromissão direta na soberania de outros países.
Com a disputa em jogo no tabuleiro geopolítico, qualquer país que demonstrasse a mínima aproximação de políticas inclinadas à esquerda, fazia os radares norte-americanos dispararem. Eles soaram ruidosos com a posse de João Goulart, em setembro de 1961, à presidência do Brasil, na qual havia propostas de reformas, sendo elas: a agrária, bancária e imobiliária. Essas pautas foram engajadas pelo Pentágono, sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, e por parte da elite brasileira, como comunistas e próximos aos ideais soviéticos.
Em entrevista exclusiva ao Contraponto, Eugênio Bucci, jornalista, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), afirma: “não seria interessante para os Estados Unidos ter governos refratários à presença de Washington em sua política nacional, e os americanos viram na ditadura uma possibilidade de impedir que isso acontecesse no Brasil”.
O início das conspirações
“Antes da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, das 55 maiores empresas no Brasil, 32 eram pertencentes aos Estados Unidos, que com esses números lucraram 3,5 bilhões de dólares em um só ano nas terras brasileiras”, conta o escritor, jornalista e tradutor Eduardo Bueno, em dos seus livros “Brasil, uma história”. Isso começou a mudar quando, em 1962, João Goulart propôs a Lei de Remessa de Lucros (Lei 4.131/1962), visando taxar parte do capital extraído do Brasil pelo governo norte-americano.
A decisão tarifária abalou as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. Com a intenção de conter os ânimos internacionais, Goulart visitou o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy.
O encontro amistoso de dois chefes de Estado pareceu amolecer os problemas políticos e ideológicos entre os países. Contudo, a viagem não foi suficiente para reduzir o medo norte-americano de um suposto comunismo no Brasil.
Segundo Eduardo, com a Lei de Remessa de Lucros sendo encaminhada para votação no Congresso e a aproximação das eleições nacionais de 1962, Kennedy teria comprado governadores, senadores e deputados, não apenas para se demonstrarem contrários a essa lei, mas para fazer oposição ao então presidente, Jango.
Além das articulações diretas com políticos brasileiros, o embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon, também teria planejado todo o aparato golpista com os EUA contra a democracia brasileira e a temida ameaça comunista.
Diante das alegações norte-americanas aumentando o receio entre os militares a respeito do socialismo no Brasil e as manifestações elitistas que ocorriam no país nas vésperas do golpe, não tardou para que o Exército Nacional, apoiado pelos estadunidenses e pela aristocracia brasileira, saísse dos quarteis em direção a Brasília.
Após a tomada de poder das tropas nacionais em 1964, o Senador de São Paulo, Aldo de Moura Andrade, que lançou um manifesto à nação após a participação na Marcha da Família com Deus pela Liberdade convocando as forças armadas a se posicionar em relação à insatisfação da gestão e do rompimentoentre o legislativo com o executivo, declara vago o cargo de presidência da República, assim nomeando o deputado Ranieri Mazilli como chefe de Estado. Poucas horas após a nomeação, os Estados Unidos reconhecem o novo governo brasileiro.
Ao perceber a rápida aprovação do golpe por parte dos norte-americanos, Goulart notou que isso não era apenas uma incursão motivada pelo desespero anticomunista, mas sim de algo maior e mais
Charge da representação dos EUA, o Tio Sam, munido com aparatos militares mirando nos países da América do Sul
articulado. Por esse parecer, o presidente deposto inconstitucionalmente decidiu não mobilizar o 3º Exército, assim não oferecendo resistência ao golpe. No entanto, João Goulart não sabia que com sua desistência em tentar retomar a democracia no Brasil, acabaria por abortar uma das operações mais simbólicas da história contemporânea brasileira: Operação Brother Sam.
A operação
Até a metade dos anos 1970, acreditava-se que os navios estadunidenses navegando em direção à costa brasileira, nos dias que sucederam o golpe, eram embarcações petroleiras,. Entretanto, em 1976, a pesquisadora Phyllis Parker descobriu na biblioteca do Congresso norte-americano, documentos comprovados de que tais barcos de fato carregavam petróleo, porém seu conteúdo não continha apenas o combustível.
Parker, constatou que além do carregamento de petróleo, havia nessas embarcações: porta-aviões, esquadrilha de caças, helicópteros, aviões e toneladas de armas e munições. Todo esse arsenal estava pronto para ser distribuído para o exército golpista caso houvesse resistência por parte do governo deposto, de acordo com o documento. Porém, com Mazzilli nomeado presidente, as embarcações tiveram ordens para voltar às bases norte-americanas, cancelando a operação.
A Operação Brother Sam, mesmo não posta em prática, resultou de ataques à democracia brasileira. Essas incursões sutis na soberania nacional possibilitaram medidas drásticas, como a violência que Washington poderia impor ao governo legítimo de João Goulart.
papel
A Operação: USS Forrestal, porta-aviões da Marinha norte-americana que integrava a frota da Operação Brother Sam
© Blog Entendendo a Guerra Fria
Internacional 16 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Memorial Da Democracia
Enfrentando a Precarização: a realidade da saúde na ditadura
Marcado por surtos de doenças e alta taxa de mortalidade infantil, período militar condenava população a viver à própria sorte
Por Giovanna Takamatsu, Kimberlly Ferreira Costa Ramos e Victória Rodrigues
Oacesso aos serviços de saúde de qualidade, no Brasil, sempre foi destinado a uma pequena e privilegiada fração da população. Isso, somado com a deficiência das políticas públicas, causou um abismo de desigualdade entre os brasileiros.
Durante a ditadura, a situação só piorou. Além de um êxodo rural que levou a população à extrema pobreza por ausência de suporte urbano à parcela, benefícios direcionados somente aos grupos dominantes, como militares, políticos e famílias de alto padrão e influência, um sistema com enfoque na medicina curativa - que, por focar apenas na cura e não na prevenção das doenças, abriu portas para diversas epidemias - e a falta de iniciativa estatal, com a rede privada vista como referência, e, portanto, limitando o acesso aos atendimentos, destinaram ao país uma das piores fases para a saúde pública.
O benefício é para quem paga
Somente em 1923, com pressão dos migrantes europeus, foi criado o primeiro sistema, que até o fim da ditadura mudou de nome várias vezes. Começou com o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) que previa assistência social e acesso aos serviços de saúde de maneira “gratuita” para trabalhadores formais - isto é, apenas os trabalhadores urbanos. Entretanto, aqueles que não se encaixavam nesses critérios, como os próprios ex-camponeses e pessoas pobres, dependiam de sistemas filantrópicos.
Paulo Capel Narval, professor de Saúde Pública da USP, em entrevista ao Contraponto, afirma como os serviços eram elitizados. “Quem não era segurado da previdência social ou dependente de alguém que fosse segurado, ou seja, algum trabalhador com carteira assinada, não tinha direito a nada, e ficava sem assistência”, afirma.
Em 1985 esse sistema mudou para o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica), da mesma forma só podia usufruir do programa quem tinha carteira assinada. Os que não possuíam recursos financeiros eram considerados indigentes da saúde. Paulo afirma que “a assistência à saúde não era um direito das pessoas. A maioria não podia pagar por cuidados assistenciais e dependia da assistência pública, que era muito precária”.
A criação de sistemas previdenciários gerou um significativo retorno financeiro para o Estado, já que os impostos, pelo uso do programa, eram descontados diretamente dos salários dos trabalhadores. Mas, ao invés de destinar a verba para investimento em hospitais públicos e para a fabricação
de remédios nacionais, o governo passou a investir esse lucro na iniciativa privada.
A vida na cidade leva à precarização
Para o governo militar, a saúde não era uma prioridade. A privatização desses serviços era incentivada, com a precarização dos hospitais que eram destinados à previdência. Dessa maneira, o Estado não realizava investimentos voltados para essa área e preferia aplicar capital no desenvolvimento e segurança, que rendiam mais economicamente.
O governo gastava mais do que investia. O modelo do sistema utilizado seguia a medicina curativa - que foca, diretamente, na cura de uma enfermidade -, e possui custo elevado. Isso foi visto, especificamente, nas zonas urbanas, quando ocorreu o êxodo rural com um consequente crescimento de trabalhadores, o qual não foi acompanhado pelo sistema de assistência. Narval ressalta que a saúde previdenciária tinha uma cobertura muito pequena, e que só se ampliou na segunda metade do século XX , porém, mesmo assim, a garantia era insuficiente para atender as necessidades da população . “Os custos da saúde previdenciária eram crescentes, tanto que isso levou à chamada crise da saúde previdenciária em 1980. Essa crise foi um dos fatores que levou a necessidade de o Brasil repensar e reestruturar seu sistema de saúde”.
A epidemia censurada
A doença que acarretou uma epidemia no Brasil ditatorial foi a meningite. A censura sobre os estudos e a paralisação das pesquisas, que são base da descoberta de infecções e novas enfermidades, prejudicou o reconhecimento e a contenção das epidemias, acredita o professor da USP. “No caso da meningite, o fato de a censura ter impedido a divulgação da epidemia contribuiu para ampliá-la, além de agravar o problema, retardar a vacinação e o tratamento das pessoas.”
O governo militar se negou a admitir a existência da epidemia, proibiu todos os meios de comunicação de divulgarem sobre para não alarmar a população e acabou por gerar uma crise extensiva na saúde pública brasileira. O surto da doença, que ocorreu em 1974, matou aproximadamente 2500 brasileiros, equivalente a 179,71 casos por 100 mil habitantes, de acordo com o portal da Fiocruz.
Para fazer valer a proibição e evitar que informações sobre a epidemia fossem divulgadas, o governo utilizava o Decreto-Lei nº 1077, que previa a censura da
mídia na divulgação da situação da época. Profissionais da saúde não podiam dar entrevistas e citar o assunto. A liderança militar temia que a notícia de uma crise sanitária no Brasil manchasse a imagem do “milagre econômico” na qual o país estava inserido.
O trecho da música “Tá certo, doutor”(1975), de Gonzaguinha, descreve o cenário em que a população se encontrava, vivendo o intenso surto de meningite e o que se via nas áreas de isolamento do hospital São Sebastião (no Rio de Janeiro) em que os enfermos ficavam. “Dá licença, dá licença, ó o menino com meningite aqui, dá licença, afasta aí/Esse homem está enfermo, nem precisa exame sério, seu mal está constatado,/Depressa, põe no hospital/Deve ficar bem isolado, em quarto bem fechado/Sem portas ou janelas pois pode ser contagiante”.
O número de casos foi tão alto que exigiu uma ação do governo. A criação da campanha de vacinação foi somente em 1975, e imunizou, em média, nove milhões de pessoas.
O povo resiste
Com o fim do “milagre econômico”, a máscara caiu. Números exorbitantes de mortes infantis evitáveis e uma coleção de doenças preveníveis indicavam que o país não estava tão bem como os militares mostravam. A sociedade entendeu que mudanças precisavam ser feitas se tratando do sistema de saúde. Narval ainda ressalta: “Na área da saúde, se organizaram muitos movimentos sociais em torno da ideia de que a saúde deveria ser um direito de todos. Movimentos sociais que lutavam por acesso à água tratada, por melhores condições de vida, contra a carestia e a desnutrição”, constata.
A percepção negativa sobre as mortes e falta de recursos necessários para o cuidado público, conduziu a mudança urgente da organização assistencial dos hospitais e das redes de serviço para o bem-estar. A condutividade e os desafios enfrentados durante o período autoritário vingaram, já na redemocratização, a partir da Lei nº8080/1990, “a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes foi intitulado o Sistema Único de Saúde (SUS).
Saúde
Movimento de resistência
Abril/Maio 2024 17
© Erik Barros Pinto
Política do extermínio: Amazônia como alvo do golpismo militar
Como o projeto de desenvolvimento da ditadura impulsionou a ideia de “floresta em pé” como inimiga do progresso
Por Maria Ferreira dos Santos, Nicole Domingos, Sônia Xavier, Victória da Silva e Vitor Nhoatto
Há 60 anos, o Brasil assumiu uma posição intervencionista no território com o slogan de “modernizar o país”. No entanto, por meio de uma política colonizadora, o custo para “inovar” contou com uma agenda socioeconômica violenta e destrutiva, prejudicial sobretudo, para o espaço ambiental e para os indígenas que viviam naquelas terras. De maneira autoritária e sem a menor participação popular, o trabalho dos militares foi pautado no genocídio indígena, na maior concentração de terras e na realização de obras superfaturadas de infraestrutura em espaços ditos como “vazios demográficos”.
Para além da repressão, os militares traçaram um plano estratégico valendo do uso de propagandas, como “A Amazônia já era!”, as quais implantaram no imaginário coletivo brasileiro, a ideia de que a floresta impediria o desenvolvimento econômico do país. Ou seja, ao retratar a floresta como inimiga do crescimento econômico nacional, o bioma tornou-se um objeto de dominação não apenas do comando militar, como de países atuantes no Brasil, como Inglaterra e os Estados Unidos.
A ideia de evoluir às custas do Meio Ambiente já estava presente muito antes do período ditatorial, mas foi intensificada durante esse regime. Governos anteriores como os de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) e Juscelino Kubitschek (1956-1961), também adotaram políticas antiambientalistas.
O problema originário
A ideia de progresso e o desejo desenfreado da regência em expandir as áreas destinadas à construção de estradas e ao agronegócio competia com os espaços dos povos originários, que já eram marginalizados.
Segundo Agostinho Eibajiwu, indígena metade Tugarege e clã Iwagudu e estudante de mestrado do programa de pós-graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Universidade de São Paulo (USP), no Regime “a natureza e tudo que ela comporta, inclusive a população originária, quilombolas e camponeses, passaram a ser impedimentos ao projeto de avanço do capitalismo sobre as terras do Brasil.”
De acordo com dados da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), apenas 13,8% da extensão territorial brasileira eram reservadas ao território indígena. Em outras palavras, apesar de não ocuparem uma parcela considerável do território brasileiro, eles eram apresentados como empecilhos ao desenvolvimento nacional.
No período, uma série de escândalos envolvendo o antigo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) dificultava o controle dos indígenas por parte dos militares. O Relatório Figueiredo, que ficou desaparecido por 40 anos, descrito pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, denunciou uma série de escândalos de maus-tratos contra a população por parte do governo envolvendo o primeiro órgão indigenista.
Os sobreviventes da desnutrição por parte do abandono estatal, eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cruéis relatadas, está a morte por facão, quando a pessoa era cortada ao meio. Foram denunciados 132 militares, outros servidores públicos, cidadãos comuns, homens e mulheres. Porém, ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Nenhum foi preso, revela o documento que percorreu mais de 16 mil quilômetros e visitou 130 postos de atendimento aos indígenas.
Diante desses percalços, da intenção de unificação do SPI com o CNPI (Conselho Nacional de Proteção aos Índios) e com o Parque Nacional do Xingu em uma única instituição para facilitar o controle, a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi criada em 1967. Como tentativa de pôr panos quentes na corrupção e nos crimes cometidos contra a comunidade indígena, o órgão iria dar assistência aos indígenas, porém, a atuação mostrou-se contraditória.
Danicley Aguiar, porta-voz da Greenpeace Brasil, ressalta que, no decorrer dos anos, a missão da Funai, renomeada para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, em 2023, transformou-se significativamente. Além da demarcação de terras
para a garantia de proteção às reservas nativas, a instituição passou a desempenhar um papel crucial no que diz respeito à preservação e recuperação dos territórios tradicionais brasileiros.
Terras para quem?
A súbita e suposta mudança de vista sobre as áreas amazônicas assumiu novos rumos de uso e distribuição de terras a partir de incentivos governamentais e empresariais encobertos por viéses de interesses econômicos. A partir disso, os governos municipais, estaduais e federal promoveram diversos programas de fomento à produção e imigração para o chamado “vazio demográfico”.
Dispositivos como o Novo Código Florestal de 1965 e a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), em 1966, serviram como pontapés iniciais para a implementação do projeto de governo envolto na máxima “integrar para não entregar”, slogan nacionalista de Castelo Branco, presidente da República na época.
No entanto, tais medidas nada tinham a ver com preservação e sustentabilidade, como comenta Lúcia Helena, professora de Ciências Sociais e coordenadora do curso de Ciências Socioambientais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP): “A pauta ambiental, assim como hoje, não estava mesmo na ordem do dia”.
“Chega de lendas, vamos faturar”, pois “a Amazônia já era”
A fim de incentivar a migração para o norte do país, o governo tentou vender a ideia de que a floresta tinha deixado de ser um lugar perigoso e selvagem. Paralelamente, as empresas que patrocinavam o desmatamento local complementavam o plano através de propagandas que exibiam a floresta como um inimigo domado.
Do lado esquerdo, uma propaganda da Sudam, publicada nas grandes revistas brasileiras nos anos 1970; e, do lado direito, propaganda da Companhia de Navegação
Marítima, Netumar
18 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Revista Realidade / Acervo Ricardo Cardim
A visão destrutiva do Meio Ambiente e a sua consequente exploração começaram a tomar forma com obras de grande porte que prometiam integrar e levar desenvolvimento para o “inferno verde”. Um dos maiores exemplos é a BR-230, conhecida como Transamazônica, cuja construção iniciou-se em 1970. A chamada ‘estrada do ouro’ foi idealizada para interligar de forma horizontal o Norte e o Nordeste, escoando a produção e levando infraestrutura às regiões.
Apesar da intenção de interligar as regiões, o planejamento da rodovia não levou em consideração a geografia do território, a vegetação existente ou a presença das populações indígenas. Segundo a Comissão Nacional da Verdade – CNV, a estrada com trechos inacabados até hoje, atravessou 29 etnias indígenas, as quais foram removidas de maneira forçada.
Este rasgo passa pelo banco de Londres!
Além da demonização, era comum que as campanhas publicitárias da época também evidenciassem o protagonismo das grandes empresas e latifundiários no financiamento da chamada transformação das matas.
de Colonização e Reforma Agrária), em 1970. O órgão federal foi o responsável por orquestrar e regularizar a dinâmica de concentração latifundiária que ocorreu nos anos seguintes. Agostinho Eibajiwu esclarece que o projeto econômico, político e ideológico dos militares era exclusivamente voltado aos interesses financeiros de grandes corporações e latifundiários.
O agro é pop, o agro é futuro
Sob esse pretexto, medidas drásticas foram tomadas contra os indígenas, guardiões históricos da floresta. “Não pedimos licença, usamos a técnica dos portugueses”, disse Carlos Aloysio Weber, coronel responsável pelo 5º Batalhão de Engenharia de Construção (5º BEC) em Porto Velho-RO durante a construção da Transamazônica, para a Revista Realidade em 1971.
Do lado esquerdo, uma propaganda da construtora Andrade Gutierrez publicada na Edição Especial Amazônia da Revista Realidade de 1972 e, do lado direito, propaganda do Banco de Londres também publicada nesta mesma edição
Outros exemplos de rodovias que cortam a Amazônia são a BR 163, que se estende desde o Rio Grande do Sul até o Pará, e a BR 319, interligando os estados do Amazonas e de Rondônia. As Infraestruturas foram amplamente adotadas, pois possibilitavam o transporte de informação, mercadoria e pessoas, principalmente pelo loteamento de terras e a sua distribuição à beira das estradas.
Para realizar a administração da nova logística, criou-se o Incra (Instituto Nacional
Para reforçar a atuação governamental, foi instituída a SEMA (Secretaria Nacional de Meio Ambiente) em 1973, antecessora do atual Gabinete do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. Na época, subordinado ao Ministério do Interior, o órgão era responsável pela administração das reservas de terras e riquezas naturais, facilitando a concessão de autorizações para desmatamento e oferecendo financiamentos para empresas interessadas em estabelecer-se em áreas florestais. Além disso, outros tantos incentivos eram oferecidos a multinacionais, como isenção de impostos, descontos em maquinário e doação de terras. Um exemplo emblemático foi a “Fazenda Modelo”, da Volkswagen, um complexo de criação de gado com cerca de 140 mil hectares, iniciado em 1971 e amplamente divulgado na imprensa. Visto inicialmente como símbolo do futuro e do progresso na região amazônica, o empreendimento da fabricante de automóveis alemã foi responsabilizado por ações criminosas. Conforme aponta relatório de 2021 do Ministério Público, a montadora – comprovadamente envolvida no golpe, em casos de sequestro e tortura de presos políticos – promoveu desenfreados incêndios florestais e frequentemente utilizava mão de obra análoga à escravidão. A ativista Eloenia Ararua destaca que essa lógica do período baseava-se na crença de que o respeito ambiental era sinônimo de fracasso, enquanto o modo de vida indígena poderia ser associado à improdutividade. Tem-se aqui o ponto de partida para a implementação do modelo pecuário extrativista atual.
Genocídio Indígena
Para o governo, a posse de terras representava poder econômico, principalmente por conta das áreas agrícolas, mineração e abundância de recursos naturais, elementos que seriam essenciais na promoção do falso milagre econômico, propagado por Emílio Médici, durante sua governança entre 1968 a 1973.
De forma brutal, o regime militar deslocava dezenas de comunidades para áreas designadas pelo Estado. A professora Lúcia lembra como o governo atuava sob as aldeias: “É o espírito da época, eles não pediam licença para ninguém. E, assim, eles derrubaram tudo. O trator entrava nas terras e dá-lhe gente correndo, enfim tinha que correr”, ressalta.
A negligência à saúde e a falta de cuidado durante as remoções, somadas a imunidade baixa e os ambientes degradados repletos de entulhos e infestados por mosquitos, resultaram em epidemias de varíola, sarampo, tuberculose e malária. De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade Indígena, lançado em 2014, após a investigação de apenas dez povos, constatou-se mais de oito mil mortes entre 1964 e 1984. Contudo, considera-se esse número subestimado devido à ausência de documentação adequada e subnotificação de casos.
Um legado, cada vez mais contestado Já na década de 1980, a degradação na região amazônica alcançava proporções sem precedentes. Conforme dados do INPE (Instituto de Pesquisas Espaciais), em 1978, 14 milhões de hectares da floresta já haviam sido desmatados e a pressão internacional em prol da preservação ambiental começava a se intensificar. Movimentos em defesa dos direitos humanos e dos povos originários borbulhavam igualmente.
Posteriormente, em 1981, a PNMA (Política Nacional de Meio Ambiente) foi criada pelo então presidente, João Figueiredo. O intuito dessa movimentação era tentar apaziguar os ânimos internacionais e nacionais, em especial, após o assassinato do ambientalista Chico Mendes. No entanto, a destruição persistiu, como revelam os dados do INPE: em 1978, o desmatamento era de 152 mil km2, já em 1988, 377 mil km2
Danicley Aguiar, do Greenpeace, reforça como a mentalidade da época persistiu mesmo após o fim da ditadura e continua a influenciar a visão de desenvolvimento atualmente. “Dentre os muitos legados está o estabelecimento do chamado Arco do Desmatamento, que ao longo dos últimos 60 anos concentrou as maiores taxas de degradação, e uma infinidade de violações de direitos humanos [...] ainda hoje a Amazônia se orienta por uma economia incapaz de conviver com a floresta”, reforça o ambientalista.
Ambiental
© Acervo Ricardo Cardim
Abril/Maio 2024 19
Cinema Novo e Marginal: desafios da identidade brasileira no período da repressão
Um mergulho nas narrativas cinematográficas que provocaram a opressão política e a concepção cultural no país durante os turbulentos anos 60 e 70
Por Felipe Assis e Romulo Santana
Ocinema brasileiro, durante as décadas de 60 e 70 possuía duas vertentes mais conhecidas: o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Ambas as expressões possuíam semelhanças e divergências características em suas obras, trazendo elementos mais complexos em suas composições.
A concepção do Cinema Novo, por exemplo, é voltada para a construção de um cinema verdadeiramente brasileiro, desde às produções, até às abordagens culturais. Com o intuito de criticar o estrelismo das produções hollywoodianas entre os consumidores brasileiros, se utilizando de narrativas densamente políticas e poéticas, a fim de criticar o abandono do Estado.
Já o Cinema Marginal, buscava por cenários e narrativas à “margem” da sociedade e personagens que não detinham protagonismo até aquele momento, como: prostitutas, moradores de rua, batedores de carteira, dentre outros. Os filmes utilizam a violência e o grotesco com a intenção de gerar um cinema de desconforto, mostrando imagens que não estavam comumente presentes em uma tela de cinema, o mesmo que poderia ser experienciado ao andar pelas ruas utilizadas nas gravações e se deparar com essas pessoas reais.
Ambas as vertentes cinematográficas coexistiam com a repressão e violência da ditadura civil-militar.
Estética da
fome política
Na década de 50, as bilheterias brasileiras lotadas nos finais de semana refletiam como a cultura ocidental norte-americana dominava os meios de produção da sétima arte - forma como o cinema foi definido por Ricciotto Canuto no Manifesto das Sete Artes. Essa condição submissa embarcou em discussões entre jovens intelectuais e a classe artística do país. As produções nacionais eram consideradas inferiores e genéricas por aqueles que consumiam obras do cinema imperialista, uma vez que a realidade do Brasil terceirizava à adaptação do modelo estadunidense na tela.
“É quando no pós-guerra que aparecem as câmeras pequenas, mais baratas e mais ágeis, funcionando com menos luz.” Explica o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e um dos diretores da TV PUC, Julio Wainer.
A primeira fase do Cinema Novo (19591964) compreende às produções que antecederam o Golpe, introduzindo cenários do interior de um país abandonado e violento,
a partir de críticas sociais e políticas das mais distintas realidades, construindo uma fórmula emancipatória de fazer cinema com o olhar responsável por questionar o que é o Brasil. O movimento teve como precursores: Aruanda (1959) um curta com requintes documentais, dirigido por Linduarte Noronha de forma independente, tendo personagens quilombolas vivenciando embates com colonos escravistas no sertão da Paraíba. Já Arraial do Cabo (1960) de Mário Carneiro e Paulo César Seraceni, traça paralelos entre as realidades da comunidade de funcionários e os impactos sofridos por pescadores afetados pelo extrativismo. Ambas as produções fazem críticas sociais, com personagens populares, análise de narrativas contrastantes entre si, além da utilização de muitos gêneros cinemáticos ao mesmo tempo, estava fundada a gênese do movimento.
Em 1964, Glauber Rocha foi responsável pela primeira exposição mundial do movimento, por meio da obra Deus e o Diabo na Terra do Sol. O longa retrata a miserabilidade dos sertões brasileiros, abordando temas como a fome e o despertar da consciência crítica e política da classe trabalhadora. Ele chega ao Festival de Cannes com indicação à Palma de Ouro em um momento caracterizado por condições de distribuição global praticamente inexistentes para produções brasileiras.
A segunda fase do movimento (1964 - 1968) foi inaugurada com produções mais focadas nas críticas aos discursos de ordem social e ao próprio regime militar. O clássico Terra em Transe (1967) dirigido
também por Glauber Rocha, abordava as temáticas como a corrupção, o populismo político e o controle exercido pela igreja em um país latino-americano fictício. Em abril do mesmo ano, o filme foi considerado “subversivo” pela censura, além de desrespeitoso com a igreja por conta do personagem que representava o clérigo não ser nomeado, único impeditivo para estreia.
A terceira fase (1968 - 1972) marcou o surgimento tramas com menos alinhamento político por conta da censura imposta em 1969 pelo regime, com o Ato Institucional n°5 - medida estatal institucionaliza a tortura e a censura - o episódio foi responsável pelo exilamento de grande parte dos Cinemanovistas. Esteticamente e criticamente as obras adotam o impacto da Tropicália - movimento estético e político que se utiliza de alegorias para fazer críticas à repressão do regime autoritário - a sátira política e referências do movimento Antropofágico - movimento do modernismo brasileiro que consiste na disrupção da arte brasileira com a arte europeia.
Macunaíma, o livro de Mário de Andrade, considerado símbolo da primeira fase do movimento modernista brasileiro, ganha uma adaptação de Joaquim Pedro de Andrade. A produção aborda a figura heroica do indígena diante de uma visão contrastante do que é ser brasileiro.A película utiliza do surrealismo, o qual é característico nas produções que adotaram a criação de realidades paralelas, como forma de justificar as posteriores críticas ao regime militar, sem sofrerem censura.
Movidos pelo lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’’, entoado por Glauber Rocha, surgiram novos diretores que ajudaram a construir essa nova linguagem,
Deus e o Diabo na Terra do Sol é considerado um marco do cinema novo. Em 2015 entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos
Considerada uma das principais obras do período, Terra em Transe (1967) é o filme em que Glauber Rocha aprofunda o estudo da situação nacional. Põe em cena amplo leque de personagens: militantes, militares, intelectuais, políticos e empresários, todos envolvidos na disputa do poder
Reprodução
Reprodução
Reprodução 20 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
©
©
©
dentre eles: Paulo Cezar Saraceni (19322012), Joaquim Pedro de Andrade (19321988), Leon Hirszman (1937 - 1987), Cacá Diegues (1940 -), formando uma geração revolucionária de cineastas.
“[O Cinema Novo] Nunca foram populares. Era de uma elite para uma elite que se advogava porta voz do povo, do interesse nacional popular. Não tinha expressão de público não. Eram vistos por dezenas de pessoas, centenas no máximo, não chegava até o povo.” Diz o professor da PUC, Julio Wainer.
Embora as ideologias buscassem renovar o ar cultural, o machismo da época ainda sombreava a ascensão dos trabalhos femininos. Helena Solberg (1938 -) foi a única mulher cineasta nesse ambiente predominado por homens. Com obras feministas de grande impacto social, abordando questões políticas e religiosas, Solberg surge em meio às discussões sobre o papel da mulher na sociedade brasileira. Ela foi responsável por obras como: A Entrevista (1966) - filmado em 1964, reunindo uma série de depoimentos de mulheres de classe média alta que discutiam sobre assuntos tabu daquela sociedade, tais como: sexo, virgindade, casamento e fidelidade. Carmen Miranda: Banana is my Business (1995) busca investigar a construção de uma figura midiática, como Carmem Miranda. Esse último rendeu à cineasta prêmios de Melhor Documentário em mais de cinco festivais de cinema ao redor do mundo, em países como Brasil, Cuba, Estados Unidos, Japão, Uruguai e Portugal.
Popular entre a massa
Entre as esquinas da Rua Triunfo e Vitória, no bairro da Luz, em São Paulo, nasce o Cinema Marginal, conhecido também por “Boca de Lixo”, região onde estúdios norte-americanos, como MGM, Paramount e Fox se instalaram. Em 1961, o local se tornou palco das grandes migrações com a inauguração do Terminal Rodoviário da Luz, porta de entrada das populações que formaram as regiões periféricas da capital paulista, tema central do Cinema Marginal.
“Imagens urbanas de pessoas que moram na cidade, que trafegam na cidade e que são marginalizados e subversivos politicamente. Marginalizados no sentido de que não encontraram um lugar de significado” Explica Marlyvan Moraes, mestre da PUC-SP em comunicação e semiótica.
Diferente do já aclamado Cinenovismo, o Boca de Lixo tinha características mais cruas, sem alegorias ou poesias e era mais enfático em suas críticas, misturando gêneros cinemáticos e se utilizando da experimentação e do que era considerado subversivo. Se destacou como o exemplo popular de fazer cinema de forma independente, com baixo orçamento e muita criatividade. “Ele [cinema marginal] vai desconstruir esteticamente o que seria a linguagem clássica, desafia essas convenções de corte, de respeito ao eixo, da câmera
acompanhar sempre o personagem onde ele estiver”, complementa Moraes
Rechaçado por Glauber Rocha, o movimento era chamado pejorativamente de “udigrudi”, em referência à palavra vinda do inglês “underground”, cultura “subterrânea”, que foge do padrão imposto pela sociedade. Com origens próximas à pornochanchada, o movimento se utilizava da sociedade subdesenvolvida urbana e suas narrativas, fundando clássicos do cult brasileiro.
Ozualdo Candeias (1922 - 2007), Geraldo Veloso (1944 - 2018), Júlio Bresani (1946 -) e Rogério Sganzerla (1946 - 2004) são considerados precursores do gênero.
Em 1967, A Margem, dirigido por Ozualdo Candeias, abordou tramas dos moradores de uma favela que margeava o Rio Tietê, pela ótica de alguns moradores dessa comunidade, a exemplo de um “louco” que procura por uma rosa e uma prostituta que perambula pelas vielas vestida de noiva.
Outra temática foi abordada por Rogério Sganzerla, em O Bandido da Luz Vermelha, lançada em 1968, que tem como protagonista o assaltante de residências João Acácio, conhecido de forma homônima pelo título do filme. É considerado representante da categoria de experimentação reunindo linguagens como documentário, comédia e faroeste urbano. Moraes cita o filme de Sganzerla como destaque do Cinema Rebelde, “Se coloca claramente contra o que acontecia nesse período no Brasil, que é esse regime autoritário, então quando você tem um bandido como herói, um bandido que não tem ideal, que não é capturado por esse autoritarismo militar, tem um modo de falar do Brasil, assim como é o Cinema Novo .”
O movimento contracultural sofreu censuras expressivas do Regime Militar, que exilou os artistas e corroborou para o fim do Cinema Marginal, soterrado pela retomada da produção pornochanchada na região.
EMBRAFILME como aparato de distribuição e instrumento repressivo
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz foi fundada em 1949, por Ciccillo Matarazzo, sobrinho de Francisco Matarazzo e o produtor italiano Franco Zampari. Responsável pela distribuição das produções nacionais, teve origem num período de efervescência cultural, propiciada pelo fim da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Em 1954, a ausência de medidas governamentais, no que diz respeito à distribuição nacional e internacional das obras brasileiras exacerbou o privilégio das produções estrangeiras às nacionais, que não sofriam com perdas inflacionárias, já que o governo subsidia as diferenças de arrecadação no ato de importação da obra por meio do câmbio monetário. A Vera Cruz, mergulhada em dívidas, decretou falência no mesmo ano por questões relacionadas aos baixos valores pagos pela Columbia Pictures, produtora norte-americana, fornecedora no ato de compra das fitas.
Durante o governo do militar de Artur Costa e Silva, foi criada a Empresa Brasileira de Filmes - EMBRAFILME, aparelho cultural responsável por gerar as medidas de financiamento e distribuição nacional e internacional das obras brasileiras. A empresa operou também em alguns casos como órgão de censura do regime. Foram criadas medidas de subsídios de até 30% da produção das obras com direito à participação nos lucros, além da Cota da Tela que determinava janelas de até 140 dias de exibição.
O Cinemanovismo foi de certa forma mais privilegiado do que o Marginal, pois estava apto a receber subsídios. Ambos os movimentos eram vistos pelo Regime como subversivos, mas ainda assim as políticas estatais criadas pela EMBRAFILME mantiveram as produções nas salas de cinema.
A Empresa Brasileira de Filmes foi extinta em 1990, durante o governo Collor, que foi responsável pelo fim de inúmeros mecanismos estatais de incentivos culturais. Com a medida, o cinema nacional sofreu uma parada em suas produções.
Dora e Josué no premiado Central do Brasil
O enredo gira em torno de Dora, uma professora aposentada que trabalha como escritora de cartas para pessoas analfabetas na Estação Central do Brasil. 1998
“Não é uma questão de herança, mas inspiração”
Ambos os movimentos foram responsáveis por criar narrativas brasileiras que se tornaram documentos históricos, possibilitando o estudo de períodos da história de forma ativa por meio das obras produzidas. O “politicamente crítico” foi o rótulo atribuído, a fim de qualificar a produção nacional. Em obras aclamadas internacionalmente como: Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002), ou até mais recentemente Bacurau (2019), é possível encontrar características exploradas nesses dois gêneros fundadores do “cinema com cara de Brasil”, aquele que faz críticas complexas, buscando debater os contextos sociais do país e que derruba ordens estabelecidas pelo cinema imperialista. “O cinema autoral brasileiro ele deve muito tanto ao cinema marginal quanto ao cinema novo, como se eles tivessem aberto a porta para as possibilidades estéticas e de abordagem da filmografia contemporânea brasileira”, conclui Marlyvan Moraes.
Cultura e comportamento
© Reprodução
Abril/Maio 2024 21
Produção musical e os Instrumentos de Censura no Brasil
A repressão na indústria da música e sua resistência durante a ditadura
Por Gabriela Blanco, Helena Haddad, Lorena Basilia, Kyle Accioli e Thainara Sabrine
Aarte sempre foi utilizada como ferramenta de subversividade, uma simbologia de história e comunicação. A interpretação é moldada por nossa própria bagagem, experiências e emoções, e nenhuma interpretação está livre do preconceito. Isso significa que uma única obra pode evocar uma variedade de respostas e significados. A arte significa um caminho para comunicar, expressar e movimentar a sociedade em certo sentido.
Durante a ditadura do golpe de 1964, o Estado exerceu um controle rígido sobre a produção cultural, incluindo a indústria fonográfica. Isso foi feito principalmente através da censura e da criação de órgãos de controle. Apesar disso, a música foi usada como forma de protesto durante o período.
No primeiro verso, Caetano denuncia a situação de crianças desnutridas, abandonadas pelo governo; já no segundo, usa um jogo fonético (“ta, ta”) que transmite a ideia de metralhadora, simbolizando o uso de armas de fogo e a violência durante o período. A composição inspirou diversos artistas no Brasil e, em 1968, é lançado o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis, com diversos intérpretes. Assim, surge um movimento de resistência cultural, que utilizava de suas músicas para expressar suas críticas e insatisfações com as políticas autoritárias.
Em entrevista, o professor de história Vinícius Gomes cita a importância de compreender o que é a censura e como foi atribuída durante os períodos históricos brasileiros. O docente pontua que “no Primeiro Reinado, já se estabelecia o que poderia ou não veicular no Brasil. Mas o que ficou muito marcante foi a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no governo Vargas, em 1939, estabelecendo editores nomeados por ele para dirigir os jornais da época e selecionar as notícias que poderiam ser divulgadas”.
Nesse contexto, a Música Popular Brasileira (MPB) nasceu e ganhou muita força em programas de televisão da época com o uso de metáforas, em que os artistas militantes demonstravam repulsa por esse regime. O tropicalismo, por exemplo, surge com a proposta de movimentar os protestos contra a ditadura de forma indireta. A música Tropicália (1967), de Caetano Veloso, inaugura o movimento com uma letra que criticava o período:
“E no joelho uma criança Sorridente, feia e morta
Estende a mão
Viva a mata, ta, ta”.
Manifestação e controle da indústria musical durante o período da ditadura
Os controles sobre as produções culturais partiam de diversas movimentações, desde repressões e ameaças até movimentos institucionais e governamentais que limitavam as possibilidades de criações dos artistas da época.
Eram comuns situações de perseguição a artistas específicos que se opunham à ação do sistema ditatorial, muitas vezes forçando-os a se autocensurar sob ameaças. A cantora e intérprete Suely Chagas, ganhadora do Festival Universitário de Música Popular Brasileira, em 1968, revelou que “eles já sabiam quais eram os artistas mais visados e consequentemente aqueles artistas teriam músicas censuradas. Eram, em sua maioria, os da Tropicália e outros independentes, como Taiguara do MPB”.
Para as músicas serem gravadas, era necessário enviar para a gravadora as letras das canções, junto ao título e ao
nome do compositor. Dentro das próprias empresas fonográficas, havia secretários enviados dos militares, que faziam o controle das músicas que poderiam ser publicadas ou descartadas.
As censuras não eram apenas veladas, mas também institucionais e governamentais. Durante o regime de 1964, houve a elaboração de diversas leis que tinham como principal objetivo a censura. Uma das mais contundentes foi o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que contribuiu para a perseguição, violência e exílio de diversos artistas da época. Na mesma linha, a Lei de Segurança Nacional (LSN) objetivava criminalizar qualquer tipo de atividade considerada contrária à segurança nacional, podendo ser música, pinturas ou outros meios de expressão artísticas. E, ainda, o Decreto-Lei 1077/70 foi sancionado para implementar um controle estatal sobre as produções artísticas e culturais. O decreto permitia a existência de um órgão de “Censura Federal” que monitorava e analisava as criações artísticas, a fim de definir quais poderiam ou não ser lançadas e divulgadas ao público.
Apesar das repreensões autoritárias impostas pelo regime, alguns artistas demonstravam resiliência, desenvolvendo estratégias para preservar seus ideais e manter a continuidade da produção musical espontânea. Enfrentando as violências institucionais, esses músicos desafiavam as imposições do governo através de suas obras, que carregavam mensagens de resistência e contestação.
Festivais de Música como Resistência Os festivais de música que ocorriam no Brasil tinham infl uência direta dos festivais que aconteciam no exterior. Diferente do que acontecia nos Estados Unidos, por exemplo, o principal objetivo dos eventos era buscar uma renovação da música popular brasileira, com a inserção de artistas novatos.
Em grandes eventos, como festivais de música, havia uma pressão sobre os organizadores para as escolhas dos artistas que iriam se apresentar nos palcos, visto que eram televisionados e recebiam grande audiência. Durante os festivais, houve uma tentativa de crítica, de acordo com os artistas colocados nos palcos, assim como também havia aqueles que iam apenas para se apresentar e “curtir” o evento.
Artistas da época, como a Jovem Guarda, que explorava um nicho voltado aos jovens a partir da utilização de instrumentos eletrônicos (guitarra e baixos elétricos), e
Passeata dos Cem Mil, Rio de Janeiro - RJ. Em primeiro plano, da direita para a esquerda: Paulo Autran, Gilberto Gil, Nana Caymmi e Caetano Veloso
© Evandro Teixeira, Acervo IMS
22 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
os integrantes do movimento Tropicália, cuja proposta era junção do popular e do erudito, faziam papéis opostos quanto à representação musical. No decorrer da entrevista, Suely citou um episódio marcante envolvendo as guitarras elétricas durante um show do Gilberto Gil. A inserção do novo instrumento foi recebida com vaias de protesto, já que para parte da plateia era uma simbologia da “invasão imperialista norte-americana”.
Phonogram, gravadora de grandes artistas da época, como Roberto Carlos e Chico Buarque, resolveu fazer um festival voltado para a promoção de músicas recentes e também de inéditas. Entre essas apresentações, a memorável performance da música “Cálice (Cale-se)”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, ganhou destaque pela sua clara tentativa de censura. A construção elaborada de rimas e versos que criticavam de forma bruta o regime, utilizando de trocadilhos entre a palavra “Cálice” e a expressão “Cale-se”, contribuiu para que, antes mesmo da apresentação, fosse rejeitada a proposta de publicação.
Embora houvesse a desaprovação da gravadora, os cantores resolveram apresentá-la para o público presente e em televisão aberta a música composta por eles. Durante a performance, Chico e Gil murmuravam palavras aleatórias, com exceção do título da música, permitindo que a melodia e a expressão “Cale-se” ganhassem destaque. Porém, enquanto acontecia a apresentação, os microfones e as caixas de som foram desligados pela produção, frustrando a experiência do público e dos artistas. Anos depois, ainda na ditadura, foi permitida a publicação da canção, com ressalvas.
Apesar da tentativa de silenciamento, os movimentos contrários eram constantes e demonstravam a vontade da classe artística em combater o autoritarismo. É comum escutar de quem viveu na época sobre os diversos movimentos coletivos que surgiram com o objetivo de se contrapor às censuras e às restrições. A cantora Suely comenta como eram os sentimentos na época: “Os festivais eram momentos muito enriquecedores, alvoroço, participação do público, momento de extravasar em um período tão tenso.”
Assim como no verso “Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia” (Chico Buarque, 1970), os artistas acreditavam no futuro em que a arte voltasse a um ser mecanismo de expressões diversas, sem censura ou repressão.
Desdobramentos
A produção cultural foi muito limitada durante esse período e expôs a realidade política e social de um governo autoritário. É importante reconhecer também o baque dessa censura, afinal, antes da ditadura militar os tópicos discutidos eram de justiça social e tiveram que ser interrompidos. Por exemplo, o filme Cabra Marcado para Morrer (1984), que teve sua produção interrompida pelo golpe e só pôde ser terminado 20 anos depois.
Também é interessante pensar em como a cultura foi dividida entre alienação e o protesto de maneira inédita. A música já tinha sido usada como propaganda do governo Vargas, mas durante o período da ditadura, as músicas de alienação muitas vezes não eram encomendadas pelo governo e sim produzidas por conta própria dos artistas, e utilizadas de forma distorcida pelo governo ditatorial.
Sob outra ótica, havia propagandas feitas a favor do regime e que utilizavam músicas para chamar atenção dos cidadãos brasileiros. Um exemplo clássico foi a canção da dupla adesista — artistas a favor da repressão — Dom e Ravel, “Eu te amo meu Brasil ”. “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil ”; A peça, que foi regravada pelo grupo “Os incríveis” no clima de Copa do Mundo, tornou-se ainda mais famosa e, assim, veio a se tornar uma das vinhetas nacionalistas do canal SBT. Em 2018, a composição foi usada erroneamente pelo mesmo programa como slogan, ao lado de outras frases marcantes da época, para simpatizar com o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Ainda hoje, utiliza-se músicas de protesto, por vezes distorcendo as críticas ou modificando o significado por trás das letras metafóricas. Um exemplo disso é a manifestação pró-Bolsonaro, que ocorreu no dia 25 de fevereiro de 2024, onde o público presente cantava a música “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores”, escrita por Geraldo Vandré, que é uma das músicas mais conhecidas de protesto contra a ditadura.
Vinicius Gomes alerta que o perigo principal é descontextualizar. “Quando você distorce uma música ou transforma em favor de um objetivo que não é o principal, está afirmando mais sobre aquilo que você está vivendo do que necessariamente do significado original, ou seja, você está afastando mais essa música do autor e do que ele pensava na época”, explica.
É impossível estudar este período da história brasileira sem levar em consideração a música e seu impacto. Nessa época tudo era um ato político, no sentido de que ficar calado era um posicionamento tão grande quanto protestar.
Letra da composição “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico Buarque de Hollanda, censurada em maio de 1973
Capa da música de Suely e os Kantikus na música “Que Bacana”
© Youtube
© Arquivo Nacional, Serviço de Censura de Diversões Públicas
Abril/Maio 2024 23
Ensaio fotográfico D.O.P.S
Por Lídia Rodrigues de Castro Alves
Visitei o Memorial da Resistência pela primeira vez e senti uma angústia muito específica ao entrar nas celas preservadas do DOPS.
Os escritos nas paredes são capazes de transmitir toda a tristeza que as pessoas que foram presas e torturadas sentiram. É um lugar que preserva a memória de um dos períodos mais desprezíveis que o Brasil já viveu. Além das celas, é possível encontrar cartas de parentes enviadas aos prisioneiros, o corredor onde tomavam sol, os colchões em que passavam noites em claro e o corredor do banho de sol.
Um ensaio feito com muito cuidado e com a intenção de registrar esse momento obscuro e cruel, que jamais devemos esquecer.
Presos pela busca da liberdade nacional
“Pegaram meu bebê para me ameaçar”. Frase escrita por Rose Nogueira, que é jornalista e foi presa em novembro de 1969, época em que militava pela ALN, (Ação Libertadora Nacional). No momento da prisão, Rose estava em seu apartamento com o marido, Luiz Roberto Clauset, e o filho que tinha apenas 33 dias de vida
Este é o “banheiro” da cela. Mais de 10 pessoas dividiam o espaço. Para tomar banho, apenas um cano que despejava pingos gelados de água
24 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Corredor estreito do banho de sol. Alguns, dali
Falso descanso
não voltaram
“Fora ditadura assassina”, escrito na parede da cela 4
Abril/Maio 2024 25
Cela vista de fora, apenas dois colchões, os prisioneiros faziam rodízio. O conforto de modo geral era nulo, mas as mulheres eram prioridade
Músicas de protesto: uma tradição brasileira
Brasil, resistência e memória: os trajetos de Chico Buarque, Racionais MC’s e Emicida
Por Anna Cândida Xavier, Giovana Laurelli e Juliana Salomão
Aditadura militar, época propositalmente varrida para debaixo do tapete da nossa história, ganha cores toda vez que alguém escuta com a devida atenção as músicas de protesto desse período. Apesar da redemocratização de 1988, ainda hoje, a juventude negra e periférica é assassinada pela polícia com a mesma brutalidade que outrora matou aqueles que se opuseram à ditadura. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, no Brasil, 83,1% das vítimas de intervenções policiais eram pessoas negras, sobretudo, na faixa etária de 12 a 29 anos.
Para Daniel Brazil, formado em Cinema pela ECA/USP e pesquisador de música popular brasileira há mais de 30 anos, conhecer a história e a cultura do Brasil é fundamental para a garantia da cidadania. “É preciso lembrar que a música de protesto não surgiu na ditadura de 1964. Há músicas populares que, desde a época do Império, criticavam ou ironizavam governos e autoridades”, aponta.
Chico Buarque foi um dos artistas da MPB mais perseguidos pela censura na ditadura. Em dezembro de 1968, cinco dias após o decreto do AI-5, o artista foi detido para interrogatório no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Ao ser liberado, autoexilou-se por quinze meses, na Itália. De volta ao Brasil, em 1970, compôs Apesar de Você, canção originalmente aprovada pela Divisão de Censura de Diversões Pública por ter sido interpretada como uma música romântica, quando, na realidade, foi um grito pela liberdade.
“Músicas de protesto expressam sentimentos de um povo. Esse sentimento não está restrito a um gênero musical. Não existe formalmente ‘música de protesto’, mas ‘letras de protesto’, que podem ser adaptadas a todas as formas de música”, afirma Brazil.
O rancor latente em versos como “Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ Este samba no escuro”, não dizem respeito a um romance mal-acabado, mas ao período que o Brasil passava. A letra clama que o mundo há de ser outro ao findar a tirania, garantindo que ainda existe alegria e força para lutar: “Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/ Da enorme euforia/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar ”.
Pouco depois do lançamento explosivo da canção, um jornal carioca sugeriu que a letra fazia referência ao então presidente Emílio Garrastazu Médici. Por consequência, o exército invadiu a gravadora e destruiu todas as cópias do disco. Contudo, a matriz da gravação permaneceu intacta e foi relançada oito anos mais tarde.
Na década seguinte, em 1988, o grupo Racionais MC’s - um dos maiores representantes do hip-hop nacional - surgiu em São Paulo. Suas letras denunciavam a ação da polícia dentro das comunidades periféricas e as desigualdades sociais. Em 1997, lançam Diário de um Detento, música que narra o Massacre do Carandiru, presídio era conhecido pela superlotação e precariedade, a partir dos relatos de Josemir Prado, um dos sobreviventes da tragédia.
Em 2 de Outubro de 1992, a resposta da Polícia Militar a uma rebelião resultou na chacina de 111 detentos. Daniel Brazil comenta que “essas novas camadas sociais acrescentam nuances comportamentais impensáveis durante a ditadura”. Para o pesquisador, as novas formas de expressão surgidas nas periferias no final do século XX protestam contra aqueles que os perseguem e os oprimem. “Se não é o governo central, é a polícia ou a mídia”, completa.
Diário de um Detento destaca as condições desumanas do cárcere, a urgência de reformas no sistema de justiça criminal e a importância da ressocialização. “Tem uma cela lá em cima fechada/ Desde terça-feira ninguém abre pra nada/ Só o cheiro de morte e Pinho Sol/ Um preso se enforcou com o lençol ”. Por meio de retratos verídicos, expõe o descaso evidente do governo e da sociedade em relação aos presos. “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral/ Um dia no Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia”.
Em manifestações mais recentes, já na década de 2000, o rapper e compositor Emicida se inspira na MPB para um resgate da música brasileira em um movimento de
conscientização política. Dessa fusão, surgem parcerias com Gilberto Gil e com Mano Brown, assim como a música AmarElo, lançada após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2019. A inspiração para AmarElo veio de um poema de Paulo Leminski, abrindo com uma amostra de Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, com a participação das cantoras Majur e Pabllo Vittar.
Mano Brown e Emicida na premiação 'Man of the year'
AmarElo é uma canção sobre resistência, divulgada como um manifesto pelo afeto em um mundo cruel. “Difícil é viver no inferno e vem à tona/ Que o mesmo império canalha/ Que não te leva a sério/ Interfere pra te levar à lona”. E o refrão de Sujeito de Sorte, repetido diversas vezes - “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro” -, carrega esperança.
Há muito tempo, por meio da arte, a sociedade expressa suas críticas, mas as circunstâncias históricas trazem à tona diferentes nuances desse sistema. “O alvo mudou, mas os anseios permanecem: liberdade de expressão, direitos iguais para todos, fim da discriminação, fim da violência policial”, retrata o pesquisador.
Durante a ditadura, Chico Buarque precisou escrever sua posição nas entrelinhas, enquanto, nos anos 1990, os Racionais MC’s precisavam escancarar as fragilidades de um estado democrático de direito que existia só no papel. Atualmente, com legado da liberdade de expressão, conquistado por eles e por tantos outros artistas, Emicida pôde compor o álbum AmarElo e mergulhar na arte brasileira.
Explorando as manifestações artísticas nacionais, é possível desvendar a opressão e a luta por emancipação. Para muito além de Chico, Racionais e Emicida, tantos artistas atemporais marcam a cultura do país. Essa diversidade de vozes é uma fonte rica de conhecimento sobre as realidades multifacetadas do Brasil. Por meio da arte é possível estabelecer uma visão crítica da história complementar a narrativa, e devolver suas cores.
Letra manuscrita de 'Apesar de você' de Chico Buarque
© Luciana Prezia
© Instituto Antonio Carlos Jobim
26 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
«Exílio»
Por Artur Maciel
A impossibilidade de falar sobre. Estar fora. Dentro, com e sem. Exílio é sinônimo de ditadura, de governo roubado, de vida tardia. Está no abandono da cama fria numa «Colônia». Compreender ou entender o paradoxo. Quem melhor descreveu o Brasil estava a milhares de quilômetros desse país, inúmeros sem documentação ou reivindicação.
Se escreve em francês sobre a cultura nordestina e sua resistência à seca. Impossibilidade do pensamento, saudade e não poder. E a esperança, cadê? Tá em casa, escondida embaixo da cama e nós, aqui, servindo Sauerkraut no fundo de um bistrô. Cadê? Onde tá o samba, o feijão preto e a goiabada? Tá ali, embaixo da cama, escondido junto às juras de casamento, de amor e de abandono. Se larga tudo, é tirado tudo por mãos impossíveis e camadas invisíveis. Tortura, ameaça ou julgamento. Vem, vamos embora. Trocar a certeza do fim para a incerteza do abandono. Onde ou como ir ?
1976, Polônia. Um grupo de intelectuais exilados se encontram. Após horas de discussão, uma conclusão chega a eles: “Precisamos contar a história daqueles expatriados do Brasil”. O resultado? Duas mil páginas de Entrevistas, poemas, contos e manuscritos. 376 folhas entraram no primeiro volume de “memórias do exílio”.
O tempo não perdoa, come as pontas do papel e a beira da memória. A estimativa é de que cinco a dez mil pessoas saíram do país durante aqueles vinte anos. E agora buscamos os cacos de quem escreveu. Sessenta anos é pouco e muito tempo. Quem sobrou se espalhou pelos caminhos que se entrega. Frei Tito, que depois de noites sendo torturado vai pro exílio e lá se mata, escreve a frase: «São noites de silêncio/Vozes que clamam num espaço infinito/Um silêncio do homem e um silêncio de Deus».
Dentre as histórias achadas e eternizadas, temos Marijane Vieira Lisboa, hoje com 76 anos. Há sessenta, ela participava de causas estudantis contra a ditadura, foi presa e torturada, e depois exilada em dois países. Ela sabe da maturidade que cada palavra possui. Das experiências e da dor. São sons sutis dentro da sala branca com o pé direito alto e levemente mofada que estávamos.
Ela olha o “Memórias do exílio”, com o qual contribuiu há mais de cinquenta anos, e começa a folhear e ver nomes e nomes. Reconhece e comenta sobre os autores, mas avisa que faltou muita gente: “Só eu e a Maria Auxiliadora demos entrevista. Os outros que estavam envolvidos na liderança achavam que eram perigosas as declarações”. Marijane fala calma, com simpatia, do destino de Dorinha-Dora-Dorinha. “[Ela] foi minha grande amiga. Tava na Alemanha. Ela se suicida pouco tempo depois dessa história. Talvez tenha o texto mais bonito”.
Dora escreve com saudade e com muita dor: “Recebe o afeto que se encerra em nosso peito. Peito infanto juvenil, querido símbolo da terra/ amada terra Brasil”.
O calor da pequena sala incomoda e o ventilador nos acuda barulhento. A professora do quase extinto curso de ciências me conta de seu tempo na Alemanha. Entre as histórias de Arthur Poerner, um brasileiro dando aula de português com sotaque de Portugal, ela conta que poucos queriam falar. “Eu mesmo, na época, achava estranho. Parecia que reconhecer o exílio era reconhecer o que é uma derrota”. Ela
evita falar do Chile. “Mais do que uma coisa política, é uma experiência existencial, cultural”.
Ela me conta analiticamente da década de 1970.“Ficar na Alemanha foi uma das coisas mais importante que me aconteceu, foi quando eu realmente entendi a gravidade do Holocausto”. Diz que era um país que não sabia viver com aquele passado, em que os filhos desconfiavam dos pais. Ela aprofunda como vivia, trabalhando em um “órgão de cooperação do terceiro mundo” e ensinando português, vendo os alemães aceitando o que foi o Nazismo. “Apesar de tudo que estava acontecendo eu estava aceitando o exílio, reconstruído um novo projeto de vida. Eu e a Dora tínhamos entendido o que era, mas com conclusões diferentes”, solta.
A impossibilidade de pensar no exílio reina e o Chile se aproxima. “Estávamos quase todos no segundo exílio. Não era uma nova experiência”, disse Marijane. E aqui o baque. É fácil pensar no exílio como um processo contínuo de dor ou sofrimento, mas é parte da vida, e ela só segue. “Meu maior choque foi o Chile. Até hoje não gosto de lá. Quando fui pra lá pensava em voltar. Na Alemanha eu fui pra ficar, talvez para sempre”.
Em 1970, o Chile era um país de esquerda que vivia diferente do resto da América. Mas algo incomodava, uma esquerda muito tradicional, atrasada. Na entrevista dada em 1976, ela diz que «O Primeiro ano no Chile foi Traumático. A sistematicidade com que eu falava da cadeia, o mundo emocional preso à prisão. Todos pensando numa volta imediata pro Brasil». Marijane sabia que o golpe no Chile não ia demorar muito, então buscou embaixadas até entrar em um vácuo burocrático do México. Lá, descobriu estar grávida. E, enfim, foi pra Berlim, em 1973, voltando pro Brasil só em 1978.
“Uma hora eu cheguei à conclusão: ‘Não vai dar certo essa revolução’”. Ela muda bem ali. Algo liga ou desliga. A conversa muda de prosa para mando. “Vou te dizer, boa parte da minha geração ainda não entende o que aconteceu. Tem um trauma muito grande”. Nietzsche engole nossa sala e o ventilador, sempre presente, continua sua sinfonia. Ela explica que o contexto social latino era impossivelmente diferente do dito por Marx, das coincidências e dos favores que montaram as três nações socialistas. “Acreditávamos em um monte de coisa que era pura crença. Não foi a ditadura. A gente perdeu a luta porque a gente não entendeu a realidade”, diz ela, que foi torturada aos 20 anos por defender uma causa estudantil. “Isso é uma tragédia, quando não tem solução boa”.
O ventilador se torna mais agressivo, o sol se esconde de nossa sala. De um lado, a caderneta cada vez mais cheia e, do outro, a caixa de pandora abre e mostra o fundo. “Uma juventude que se baseia em dogmas de momentos particulares, de Fidel, de Castro. Tentamos repetir. E fomos uma geração de jovens sacrificados e mortos”.
A sala finalmente perde seu formato, cor e sons, uma aura impossível, vazia, abandonados até mesmo os sentimentos de um lugar pelo qual se pertence. Marijane, e todos os outros, viram a memória. Sentado na sala, olho para a luz plástica e me lembro do hino verdadeiro, alterado com sutileza: «Me sinto mais Brasileira do que nunca, com mais direitos as palmeiras e sabiás do que muitos que estão lá».
Abril/Maio 2024 27
Ensaio fotográfico Ditadura como revolução
Por Thais de Mattos
Golpe ou Revolução? Sessenta anos após a ditadura civil-militar, ainda existem embates e defesas relacionadas ao período histórico que começou em 1964, no Brasil. Em meio à intensa polarização que se vive no cenário político atual, alguns movimentos da extrema-direita reivindicam os 21 anos como a “Revolução de 64". Isso não é algo inédito. Desde o começo do regime militar, jornais como O Globo, Correio da Manhã, Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo defendiam o regime e o cunhavam como revolucionário por ter impedido uma suposta ameaça comunista durante o governo de João Goulart, o Jango. Antes e depois do golpe, ocorreram, inclusive, as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, que inicialmente protestaram contra as ações progressistas de Jango, temendo, também, a presença comunista. Inicialmente, o movimento encabeçou o apoio de parte da população ao que posteriormente seria a “revolução” e, ao longo do período, seguiu defendendo valores nacionalistas, cristãos e ufanistas. Essas bandeiras ainda são levantadas pela extrema-direita, mesmo nos dias de hoje, enquanto a percepção da ditadura como revolução segue viva na memória de parte da população brasileira, seja por influência da mídia da época, ou por afinidade ideológica.
Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu 500 mil pessoas contra as reformas de base de Jango, fomentando o apoio popular ao Golpe
Os estilhaços da democracia
© Carlos Ceneviva/AP
28 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Gabriela Biló/Folha de São Paulo
Após
das eleições
Capa da edição de 02 de abril de 1964 do jornal O Globo
Manifestantes do 8 de janeiro demandam intervenção militar
Capa da edição do dia 03 de abril de 1964 do jornal O Estado de São Paulo
resultado
presidenciais de 2022, bolsonaristas clamam por “intervenção federal”, em Balneário Camboriú (SC)
© Acervo digital Jornal O Globo
© Eraldo Peres/AP
© Herculano Barreto Filho/UOL
Abril/Maio 2024 29
© O Estado de S. PauloAcervo Estadão
A sarja versus o sargento
Zuzu Angel: a estilista que revolucionou a moda com criações que denunciavam a ditadura militar
Por Gabriela Jacometto, Julia Barbosa e Manuela Mourão
© André Seiti
Nos meandros da história brasileira, Zuzu Angel permanece como um ícone de resistência e justiça. Nascida em uma pequena cidade de Minas Gerais, em 1921, e crescida em Belo Horizonte, Zuleika de Souza Netto é considerada por muitos a primeira estilista do Brasil. Responsável por alavancar a moda brasileira, tanto em âmbito nacional quanto internacional, pioneira nos realces das brasilidades em suas peças de roupa, foi também um símbolo contra a ditadura militar.
Costureira de mão cheia, Zuzu deixou seu legado na moda e na história do Brasil. Aprendeu a costurar e bordar ainda quando jovem, mas seu dom e gosto pela arte da moda só vieram à tona quando Zuleika deixou seu estado de origem.
No momento que Zuzu se muda para o Rio, em 1947, é quando a costura e o design começam a aparecer bordados na sua história. Já nos anos 50, por indicação de uma tia, ela passa a trabalhar com a primeira-dama da época, Sarah Kubistchek, esposa do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), em uma instituição filantrópica e sem fins lucrativos chamada “Pioneiras sociais”, costurando os uniformes da fundação. E assim foi ganhando gosto pela costura, tanto que começou a produzir saias com tecidos e materiais diversos.
Os modelos acabaram fazendo sucesso entre as mulheres, o que fez a futura
Manuscrito de Zuzu Angel em cartaz de desfile da estilista
estilista passar a receber visitas de atrizes, ícones brasileiros e internacionais daquele tempo, contando com nomes como Elke Maravilha, Yvonne de Carlo e a primeira-dama Iolanda Costa e Silva, esposa de Artur da Costa e Silva (1967-1969). Ganhando cada vez mais seu espaço na moda e usando a costura como fonte de renda para sustentar sua casa e seu ateliê, Angel fez seu primeiro desfile em 1966 no Segundo Salão de Moda da Feira Brasileira do Atlético, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
Mas foi para muito além de apenas suas habilidades na moda que Zuzu deixou sua marca indelével. Durante os anos sombrios da ditadura militar, ela emergiu como uma voz incansável em busca de justiça. Sua movimentação começou ao receber um telefonema, dizendo que seu filho, Stuart Angel Jones, do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e militante contra o regime militar, havia sido preso.
Com isso, encontrar Stuart virou o objetivo da estilista, que passou dias visitando quartéis e suplicando aos órgãos de segurança, políticos e até mesmo ao presidente da época, o ditador Ernesto Geisel, por alguma resposta do paradeiro de seu filho. Mesmo com tanto apelo, Zuzu não obteve respostas.
Algum tempo depois, a designer recebeu uma carta escrita pelo também preso político e amigo de Stuart, Alex Polari de Alverga. Nela, Angel teve a confirmação da morte de seu filho, junto a narrativa excruciante da tortura sofrida por ele. O corpo de Stuart foi jogado ao mar, e Zuzu nunca conseguiu se despedir dele. Foi a gota d’água. A partir desse momento, a estilista assume a luta contra a ditadura, tal posicionamento que até então não existia, buscando justiça e o direito de uma mãe de enterrar seu próprio filho.
Para o Contraponto, Guilherme de Beauharnais, Fashion Editor da Harper’s BAZAAR, explicou um pouco sobre a dualidade de Zuzu Angel. “Aqui no Brasil ela vestia as mulheres dos políticos militares, ela não estava preocupada com política, mas o filho dela, o Stuart, estava […] e foi com a morte do filho dela que a Zuzu começou a usar a moda dela como uma forma de protesto.”, explica Beauharnais.
30 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
Com o nome em destaque, Guilherme conta que, em 1968, Zuzu passou a fazer seus desfiles nos Estados Unidos, país que sediou seu desfile-protesto, ou como o editor apelidou “seu fatídico desfile”, em Nova York, dentro da casa do Cônsul Brasileiro.
O desfile foi marcado pelo protesto da estilista sobre a perda de seu filho. As estampas alegres que a costureira costumava apresentar se tornaram bordados de desenhos coloridos que apresentavam mensagens sombrias. Canhões, tanques militares, soldados, aviões, pássaros em gaiolas estavam estampados no vestido de linho branco que ela apresentou. E um emblemático vestido vermelho-escuro
longo, com a imagem de um anjo bordado na frente, por miçangas e paetês.
“Então tinha esse lugar de uma estamparia, de um bordado violento, que remetesse a essa violência do governo militar, ao mesmo tempo que tinha essas silhuetas de resort, essas silhuetas de holiday (feriado em inglês) mesmo, que tinham sido criadas para uma moda de férias, uma moda de diversão, de lazer, de viagem”, ilustra Guilherme.
Angel fechou seu desfile entrando na passarela com um vestido preto, longo, acompanhado de véu preto e um cinto de crucifixos como forma de representar sua dor e luto pela morte de seu filho.
A sobrevida de Zuzu
“Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho.” Esse é um trecho do “bilhete-testamento” que foi entregue em 1975 a dezenas de artistas e intelectuais a quem a estilista confiava. Dito e feito. Em 14 de abril de 1976, cinco anos depois do desaparecimento e morte de seu filho, Zuzu é encontrada sem vida em seu carro, devido a um suposto acidente.
Em 1998, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu ambas as mortes como assassinatos orquestrados por agentes do Estado brasileiro. Hoje, o túnel em que Zuzu morreu, leva seu nome. Frente a morte da estilista, Chico Buarque, Zuenir Ventura e Paulo Pontes,
Bilhete-testamento escrito e entregue por Zuzu Angel a amigos próximos
Collection Ill', desfilada em 1971. A peça é bordada com referências à ditadura militar, como os aviões dos quais eram jogados os presos políticos e passarinhos enjaulados (em referência aos jovens)
datilografaram cópias do bilhete que Zuzu os havia endereçado e enviaram pelos correios para jornalistas e senadores. No entanto, nenhum jornal o publicou.
Em 1977, Chico compôs a música “Angélica” em que canta: “Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar”. Ainda escreve: “Só queria agasalhar meu anjo, e deixar seu corpo descansar”. Também em “Cálice”, com Milton Nascimento, os versos fazem alusão a Stuart e a forma como foi torturado e morto: arrastado por um jipe na Base Aérea do Galeão, com a boca encostada ao cano de descarga até a morte. Esse era o começo de muitas homenagens e, hoje, Zuzu e Stuart acumulam tributos em seu nome.
Em 1993, nasceu no Rio de Janeiro, a partir da iniciativa de Hildegard Angel, uma de suas filhas, o Instituto Zuzu Angel, que visa difundir a moda, seus profissionais e as memórias da estilista, assim como manter um acervo de todas suas coleções.
Moda
Zuzu Angel, vestida inteira de preto, em luto, para apresentar sua coleção-protesto, em 1971
Vestido de noiva da coleção International Dateline © Instituto Zuzu Angel
© Acervo Zuzu Angel
© Instituto Zuzu Angel
© Acervo Zuzu Angel
Abril/Maio 2024 31
Das Arquibancadas à Resistência: a luta pela democracia e contra o regime militar
Revista Placar não poupou esforços e aproveitou descaso dos órgãos censuradores para usar o futebol como instrumento político
Por Ana Luiza Pêgo, Beatriz Loss, Gabriel Flores, Julia Sena Batista, Pedro Amancio Camargo Netto
No 60° aniversário do golpe militar no Brasil, é fundamental relembrar o papel militante do jornalismo na luta pela democracia. Não foi somente o jornalismo político que fez parte desse movimento, mas o esportivo também. A Revista Placar foi um exemplo: ao defender a democracia saiu do papel apenas informativo mostrando resistência contra o regime imposto à época, ilustrando movimentos contrários à ditadura dentro do mundo futebolístico, dando destaque à Democracia Corinthiana.
É sobre esse movimento de resistência que o documentário Placar: a revista militante, que será lançado este ano, vai abordar. O longa é produzido por jornalistas que trabalham ou já trabalharam na revista, sendo eles: Ricardo Corrêa, Alexandre Battibugli, Sergio Xavier e Alfredo Ogawa.
Em entrevista ao Contraponto, Corrêa explicou sobre o objetivo do documentário. “Mostrar o legado de uma revista que transcende o papel jornalístico, que lutou pela democracia e liberdade, contra a ditadura. Placar foi uma revista militante”.
Já Xavier destacou que a ideia é mostrar como a Placar realizou um “jornalismo de sobrevivência”. Esta matéria teve acesso antecipado à primeira hora do documentário que aborda o período da ditadura, mostrando como uma revista de futebol teve papel militante à favor da democracia e da liberdade em tempos de censura.
O futebol como ferramenta política
Nos meandros da política brasileira, uma analogia com o mundo do futebol não é apenas uma figura de linguagem, mas uma representação de como essas esferas se entrelaçam. Assim como os torcedores defendem seus times, os cidadãos se polarizam em torno de partidos políticos.
Essa ligação ganhou outros contornos durante a ditadura militar no Brasil, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Naquela época, o futebol não era apenas um esporte, mas uma ferramenta de propaganda do regime. Os estádios se tornaram palcos para discursos patrióticos, enquanto a seleção nacional era utilizada como um símbolo de unidade e força do país.
Para José Paulo Florenzano, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e professor de jornalismo esportivo na mesma instituição, o regime militar vigente tentou se associar à seleção brasileira de futebol masculino de diversas maneiras.
“Ele [o regime militar] utiliza a euforia desencadeada pela vitória como uma euforia a
favor do próprio contexto da época, que era o contexto do milagre econômico. Então, essas coisas acabaram se entrelaçando e se confundindo nessa estratégia propagandística do regime”, analisou o professor.
Florenzano observa que essa “apropriação” da conquista esportiva, por parte dos militares, foi uma manobra do próprio governo para que a imagem do regime estivesse ligada apenas a momentos gloriosos, como a vitória na Copa do Mundo de 1970 e o desenvolvimento econômico do país.
Além disso, a relação entre futebol e política se estendeu para além das arquibancadas. Muitos jogadores e dirigentes foram cooptados pelo governo, transformando clubes e competições em territórios políticos. A censura nos estádios era uma realidade e manifestações contra o regime eram duramente reprimidas.
Logo, a relação entre política, futebol e ditadura no Brasil é uma imersão em um período complexo da história do país, no qual a modalidade se transformou em uma ferramenta de controle e manipulação, deixando marcas na sociedade e na memória coletiva do povo.
Quando política e esporte jogam “o mesmo jogo”
O engajamento político no universo do futebol não é uma novidade. Um exemplo marcante foi a “Democracia Corinthiana”, movimento iniciado no Sport Club Corinthians Paulista na década de 1980. Além das causas internas do clube, a iniciativa se destacou por ser abertamente favorável às eleições diretas, um marco na história política do país.
A Placar, revista brasileira especializada em esportes, foi lançada em 20 de março de 1970 pela Editora Abril. A estreia coincidiu com a Copa do Mundo de futebol realizada no México. Com o país experimentando um crescimento econômico significativo no início da década e uma classe média consumista em ascensão, a Placar se consolidou no cenário esportivo nacional como uma voz respeitada.
Rapidamente, a revista se tornou um espaço essencial, um “terceiro tempo” para os torcedores e leitores continuarem suas discussões sobre futebol. Mesmo diante de desafios, como a censura e a pressão política da época, a Placar emergiu como a principal publicação nacional de esportes na década de 1980. Sua cobertura abrangente não se limitou ao futebol nacional, mas também ofereceu percepções sobre o cenário internacional do esporte.
Desde a Democracia Corinthiana até o movimento “Diretas Já”, o impresso desempenhou um papel fundamental ao ampliar o diálogo sobre política e futebol no Brasil. Sua influência moldou a narrativa esportiva e política do país durante um período crucial de sua história.
A revista como agente e veículo da resistência
No regime político brasileiro da época, o futebol tornou-se uma ferramenta de mobilização nacional e a Placar estava na vanguarda deste movimento. O objetivo era criar uma nova identidade nacional, que teria o futebol como meio para mobilizar a sociedade brasileira na superação do atraso político do país.
A revista começou a abordar o tema das “Diretas Já” ainda em 1983, mas foi em 1984, com o crescente interesse da sociedade na campanha, que a cobertura se intensificou. O ápice aconteceu em abril de 1984, especialmente na edição nº 727 do dia 27 do mesmo mês, quando a revista declarou expectativas pela aprovação da emenda para o voto direto.
Nesse contexto, um personagem fundamental foi Sócrates, que atuava no Corinthians, tanto como jogador quanto como cidadão. A Placar o destacou como exemplo a ser seguido pelos torcedores e leitores.
Reconhecendo o impacto do esportista como ativista político, o periódico deu destaque especial às suas declarações e ações em prol do voto direto. Na edição nº 727, Sócrates foi entrevistado e suas palavras ecoaram em todo o país: “O voto é uma das poucas armas que o povo tem. A política
Sócrates estampa capa que faz referência ao "Dia do Fico" de Dom Pedro I
32 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Acervo Revista Placar
não deve ser um jogo só dos políticos. Cada brasileiro tem o direito de tomar parte das decisões que dizem respeito ao seu futuro”.
Além do jogador do Corinthians, o jornalista Juca Kfouri, diretor da revista durante o período, desempenhou um papel crucial para o impresso. As análises contundentes na Placar e em outros veículos de mídia foram essenciais para conscientizar os leitores sobre a importância da participação política. Em um dos editoriais mais memoráveis da Placar, Kfouri escreveu: “O futebol não pode ser apenas um escape da realidade. Ele deve ser uma ferramenta de transformação. O país precisa de mais Sócrates, mais cidadãos que se levantem e lutem pelo direito de escolher seus líderes”.
Essas declarações no veículo, que vieram tanto de Sócrates quanto de Kfouri, foram como “chamados à ação” para os leitores. A revista não apenas informava sobre os jogos e os jogadores, mas também estimulava o debate e a participação política. Assim, a Placar se tornou não apenas uma publicação esportiva, mas um farol de esperança e engajamento cívico em um momento crítico da história do Brasil.
Após a Placar defender a liberdade democrática através de um clube de futebol, o próximo passo foi usar a figura de Juca Kfouri para sair em defesa da liberdade na política brasileira.
O periódico abraçou as ideias do diretor e apoiou abertamente a campanha das Diretas Já. Na edição nº 726, de 20 de abril de 1984, ela foi responsável por um marco na história da política e do futebol. Nesta, Pelé, o rei do futebol, posou com uma camisa da seleção brasileira escrito: “Diretas Já”. A foto, feita por Ronaldo Kotscho, foi emblemática, pois foi um apoio fundamental para a solidificação do movimento democrático.
Na edição seguinte, nº 727, de 27 de abril de 1984, outra capa emblemática. Nela, foi feita uma referência ao “Dia do Fico”, de
Dom Pedro I. Na capa, o jogador Sócrates, caracterizado de Dom Pedro I, declara: “Se o Brasil mudar, eu fico”. A palavra “mudar”, na frase, se refere à aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que tentava introduzir eleições diretas no Brasil.
O bicampeão brasileiro chocou ao ameaçar a sua saída, porém, um mês depois, Sócrates cumpriu a promessa e aceitou uma proposta da Fiorentina, da Itália, já que a emenda não foi aprovada.
Dom Paulo Evaristo Arns: ativista e corintiano
Durante a redemocratização do Brasil, esporte, política e religião convergiram para a ideia de liberdade e autonomia. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal e arcebispo de São Paulo, foi essencial nesse cenário, engajando-se na luta antiditatorial. O escritor defendeu políticas para trabalhadores e áreas periféricas e apoiou as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), promovendo a união pela liberdade e democracia.
Ficou muito conhecido na área esportiva por sua paixão pelo Sport Club Corinthians Paulista, mas a luta pelos direitos humanos foi o que o tornou uma figura representativa em diversos contextos. Assim, Dom Paulo alimentou uma admiração popular, que o tornaria um grande personagem na história do Estado de São Paulo principalmente.
As ações humanitárias do arcebispo renderam reconhecimento nacional e internacional. O jornalista Ricardo Carvalho o elegeu como “Cardeal da Resistência”, visto que foi diversas vezes premiado e homenageado por atuar como agente de mudança em uma sociedade em que prevalecia uma visão de mundo conservadora e antidemocrática.
A presença do cardeal na capa da revista esportiva mais importante do país foi crucial para potencializar solidariedades que eram convergidas em uma democracia participativa, entrelaçando as esferas política, esportiva e religiosa. Logo, mesmo o Brasil sendo um estado laico, os três pilares juntos convergiam em uma espécie de alicerce na construção da identidade social brasileira.
“Tem duas coisas que se sabiam muito sobre o cardeal, uma delas é que ele era um defensor dos direitos humanos e que tinha uma ação política muito eficiente contra a ditadura militar, e a outra é que ele era torcedor do Corinthians”, disse Carlos Maranhão ao documentário sobre a Placar. Maranhão foi o editor da matéria de Dom Paulo Evaristo Arns, publicada em fevereiro de 1973 na Revista Placar, mesma edição que leva a capa do arcebispo segurando o escudo do clube de coração.
A Democracia Corinthiana e a relevância do movimento para o esporte e a política
Entre 1982 e 1984, os últimos anos da ditadura militar no Brasil, o Corinthians viabilizou uma experiência inovadora ao
e redemocratização
mundo do futebol brasileiro com a Democracia Corinthiana.
A iniciativa histórica foi organizada pelos jogadores, que tomavam decisões coletivas sobre todas as questões que envolviam o clube, desde as táticas de jogo até os direitos trabalhistas dos atletas. Essa abordagem desafiou as estruturas hierárquicas no Timão.
O objetivo do movimento era impulsionar o fim da ditadura militar no Brasil, e também fazia parte dos ideais defendidos pelos jogadores trazer melhores condições para o próprio clube, algo que realmente aconteceu. Nomes como Sócrates, Wladimir, Casagrande, Zé Maria e Zenon foram grandes expoentes do movimento.
A relação da Revista Placar com os jogadores do Timão, que estavam na linha de frente do Democracia, era de “muito respeito”, segundo Walter Casagrande Jr., comentarista esportivo, jornalista e ex-jogador de futebol brasileiro. “O legal de tudo isso é que nunca saiu uma linha, em nenhum lugar, do que se conversava ou do que nós estávamos fazendo dentro do clube”, disse o participante do movimento corintiano no documentário sobre a revista.
Tanto os atletas quanto a Placar lutavam por um ponto em comum: a democracia. “As pessoas que gostavam da gente, eram pessoas que pensavam igual, contra a ditadura militar, queriam a democracia, a liberdade e queriam votar”, revelou Casagrande.
De acordo com o professor da PUC-SP, José Paulo Florenzano, quando a Democracia Corinthiana surge, já havia uma certa “saturação com o regime militar”. O professor acredita que por essa insatisfação coletiva e social, a revista não tardou em apoiar o movimento do clube paulista. “Por conta dessa saturação, a mídia esportiva, como a Placar, por exemplo, apoiou a Democracia Corinthiana”.
Esportes
Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, grande representante religioso na luta pelos direitos humanos
Pelé se torna "garoto propaganda" do movimento das Diretas Já e anuncia o posicionamento na Revista Placar
© Acervo Revista Placar
© Acervo Revista Placar
Abril/Maio 2024 33
Entre gols e golpes, o tricampeonato mundial como propaganda política
Por trás da Copa do Mundo de 1970, o futebol do ‘Esquadrão’ serviu o ufanismo, e a sua conquista, como ferramenta para o regime ditatorial
Por Isabela Fabiana de Oliveira Almeida, Maria Clara Magalhães e Pedro Alcantara da Silva Neto
Otítulo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970, no dia 21 de junho, desempenhou um papel expressivo como ferramenta política. O Brasil, após uma eliminação dolorida na Copa de 66, derrotou a Itália por 4 a 1 e tornou-se o primeiro país a ser tricampeão mundial de futebol, conquista que serviu como apropriação política para a ditadura militar.
Os brasileiros que se apaixonaram com Pelé em 58 e Garrincha em 62, se frustraram absurdamente após a eliminação vexatória na primeira fase da Copa do Mundo de 66. O clima era de desconfiança e inúmeras críticas pairavam no ar antes da edição de 70.
No México, o time foi comandado por Zagallo e tinha lendas como Pelé, Carlos Alberto Torres, Gerson, Rivellino, Jairzinho e Tostão. Todos eles fizeram história, levaram o caneco para casa e devolveram ao povo o orgulho de ser brasileiro. Prato cheio para um governo autoritário se glorificar em meio a ditadura militar.
A fim de valorizar a suposta influência do militarismo no título, os oficiais organizaram diversos eventos esportivos, tais como as Olimpíadas do Exército, as Olimpíadas Operárias e até um Campeonato Nacional. Embora não tivessem o mesmo prestígio que uma Copa do Mundo, essas competições foram potencializadas pela conquista da Seleção.
Assim, os militares estabeleceram uma abordagem que promovia o nacionalismo, o anticomunismo e o conservadorismo autoritário. Isso gerou uma polarização do povo brasileiro, que se dividiu entre aqueles que apoiavam o regime e os que o desafiavam constantemente.
No fim, o governo se apropriou do triunfo esportivo, atribuindo o sucesso à disciplina militar, expressa nas diretrizes dos jogadores e na preparação física ocorrida na Escola de Educação Física do Exército. Essa premissa omitia o papel das classes populares no futebol brasileiro, o que seria destacado no Sesquicentenário da Independência.
João sem medo
No período pré-Copa, em 1969, a Seleção Brasileira estava desorganizada e poucos acreditavam no título, até que surge um novo técnico com potencial para vingar no comando: João Saldanha, um dos treinadores mais bem cotados na década de 60, jornalista, militante político, assumidamente comunista, e o maior nome do esporte a se posicionar contra o regime.
Em entrevista ao Contraponto, João Saldanha Filho revelou os bastidores do convite que o pai recebeu de Antônio do Passo para comandar a equipe. “Foi o sexto chamado para ser o técnico do Brasil. Ele perguntou para nós [esposa e filhos] se deveria aceitar uma proposta financeiramente maior do Fluminense ou tentar a sorte na Seleção”.
Pouco tempo após o técnico assumir o cargo, tomou posse o novo presidente do Brasil: Emílio Garrastazu Médici (19691974). Na época, o AI-5 (Ato Institucional nº 5), instaurado durante o mandato anterior, representava grande ameaça aos opositores do governo e João era um deles.
Saldanha viu amigos sendo presos, mortos e torturados por militares e mesmo assim se apropriou de seu espaço público e relevância no mundo futebolístico para criticar o autoritarismo. Suas denúncias contra as ações do regime eram feitas pelas rádios do País.
Sob o seu comando, a seleção dominou as eliminatórias e finalmente retomou o seu protagonismo. No entanto, perto da convocação oficial para a Copa do Mundo, iniciou-se uma discussão: o centroavante Dadá Maravilha deveria ser convocado ou não?
Médici insistia pela tal convocação, porém, o treinador não gostou do político ter manifestado publicamente sua vontade pessoal e, quando questionado por um jornalista gaúcho, declarou: “Nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala o time”. Restando apenas três meses para o início da competição, o técnico seria demitido do cargo.
Ao ser perguntado sobre o que acha do apelido João sem Medo, Saldanha Filho dividiu os possíveis anseios de seu pai frente a opressão: “Acho que o medo é próprio do homem, todo homem tem medo. Ele também é invenção! Mas nenhum governo calou seus ideais de uma vida mais justa.”
Salve-nos, Seleção
Médici era frequentador assíduo dos estádios de futebol e atuou nos bastidores para tirar João Saldanha do comando técnico da seleção. Sobretudo, o presidente queria persuadir a torcida brasileira de que uma eventual conquista estaria ligada à política e, por meio do patriotismo exagerado, fortalecer o regime com campanhas ufanistas.
Após o tricampeonato, o regime autoritário tinha uma forte arma em mãos. O jingle “Pra Frente Brasil”,
criado para a Copa de 70, tornou-se a música oficial do governo. O êxtase da população fortaleceu os slogans produzidos pelos ditadores que, depois da conquista da taça, também foram incorporados na campanha política.
À época, os políticos também utilizaram da conquista para omitir a repressão, a censura, a tortura, os desaparecimentos e a violação dos direitos humanos. Em entrevista ao Contraponto, o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, José Paulo Florenzano, chamou a atenção para a manipulação das imagens que relacionavam o título ao regime civil-militar:
“A montagem fotográfica continha uma incongruência, pois ao lado do ‘milagre econômico’, das obras faraônicas, da educação moral e cívica, ela incluía de forma indevida o tricampeonato. Tratava-se de uma apropriação.”
Após a conquista da Copa de 1970, Médici proferiu um discurso reconhecendo na seleção, princípios defendidos pelo regime ditatorial para o conjunto da nação brasileira. Para o professor, “tratava-se da projeção, no campo esportivo, da utopia autoritária imposta às múltiplas esferas da vida social.”
A Copa do México reafirmou os aspectos negativos da ditadura militar, mas também gerou outras narrativas que atravessariam os anos 70 e 80, incluindo movimentos históricos como a Democracia Corinthiana.
Fora dos gramados, a lacuna deixada por Saldanha foi preenchida pela sua atuação contínua em prol dos seus ideais, mesmo após o desligamento do cargo de técnico da Seleção Brasileira. Florenzano destacou suas ações como jornalista: “ocupou uma posição de destaque na crônica esportiva, criticando com veemência as estruturas de poder, a classe dirigente e os interesses econômicos que bloqueavam o desenvolvimento do campo esportivo.”
João Saldanha no estádio, enquanto era vigiado por um soldado
34 CONTRAPONTO Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo – PUC-SP
© Acervo Globo
Aos filhos da democracia
Quantos rostos se perderam pisoteados entre o sangue e a fumaça por um único grito de “ordem”?
Por Giuliana Barrios Zanin
Sessenta anos se passaram desde o golpe militar. As contas ainda não fecham e os julgamentos ainda não foram concluídos. Vinte e dois guerrilheiros desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, 1781 assassinatos de camponeses, dos quais somente 29 foram a julgamento e apenas 14 foram condenados. 6591 militares contra o sistema foram presos e torturados. Dos apenas 10 povos investigados, houve mais de 8000 mortes de indígenas brasileiros em conflitos de terra. Esses são números apontados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Dossiê de Desaparecidos e Mortos durante os vinte e um anos de ditadura.
Lembrar é resistir contra uma história de matança pura. A desordem regeu milhares de militares a servir apenas um verbo: “matar”. Matar quem pensasse, andasse ou falasse diferente. Dossiês, comissões, manifestações e pesquisas concluem: os números de mortes e desaparecidos não irão parar de crescer.
Em uma exclusiva para a Rede TV!, em 2023, Lula foi claro sobre a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que foi extinta pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no penúltimo dia de seu mandato, em 2022: “Já causou o sofrimento que causou. Eu, sinceramente, não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo”, declarou o petista.
Pensemos então que crianças naquela época hoje estão no poder. Qual a história contada a elas?
Em 2023, o governo de Tarcísio de Freitas tentou sancionar o projeto de lei que homenagearia Antonio Erasmo Dias, ex-militar de reserva e secretário de Segurança Pública na ditadura, no viaduto de Paraguaçu Paulista, no interior do Estado de São Paulo. Erasmo, assim como a maioria dos militares que atuaram por, pelo menos, vinte e um anos com severa brutalidade no Brasil, nunca foram condenados por assassinatos e tortura. Isso porque a Lei da Anistia, aprovada em 1979, pelo presidente João Figueiredo, concedeu “perdão” a todos que cometeram crimes políticos entre 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Somente em agosto de 2012, durante o governo de Dilma Rousseff, torturada e exilada no período de repressão, a Comissão Nacional da Verdade foi instalada. Com o intuito de indenizar familiares e vítimas do autoritarismo, e prosseguir a responsabilização institucional militar sobre o caso, o último relatório da Comissão apontou que 377 pessoas que foram responsáveis por assassinatos e torturas entre 1946 e 1988, 210 estavam desaparecidas e 191 mortas.
O texto foi revisado a partir do pedido de partidos progressistas sobre a diferenciação de impunidade de presos políticos e torturadores pela Lei da Anistia, em 2014.
Quero escrever um conto [1984]
Beatriz Nascimento
Quero escrever um conto. Pode ser um conto-de-fadas, um conto-do-vigário, um conto erótico.
Quero escrever um conto, um conto de amor e de vida.
Quero dizer de felicidades. Alguma coisa que seja ela mesma
Assim como um sentido em atuação: ouvidos, olhos e bocas
Quero escrever um conto de amor.
Um conto verdadeiro, com eletricidade de ser.
Quero um conto, um canto, um ponto na trajetória do devenir
Para um futuro mais belo.
Futuro que vislumbro na cor dourada do sol da janela dos Arquivos
Arquivo casa onde eu morei e que em mim mora.
Quero escrever um conto ao silêncio dos documentos.
Andar sob o mesmo chão de quem enfrentou ou não a ordem apontada, de quem, mesmo com medo, não temeu pela farda e ergueu seus braços em nome da esperança de um novo tempo, ouvir, clamar e resistir pelos gritos silenciados entre paredes e marcas de destruição deixadas nas vidraças é lutar para que ninguém possa sentir novamente a perseguição, para que ninguém diga o que é certo e errado sob um comando uniformizado e repressor.
Se hoje ainda comemoram a dor dos que foram pisoteados e dos que sobreviveram ao tamanho massacre, é pela falha judiciária daqueles que usufruem de seu poder e ficam impunes diante da lei brasileira.
Enquanto aos filhos que a democracia pariu, que hoje vivem da memória e das histórias contadas, lembrar e cobrar da Justiça a reparação à trajetória daqueles que tiveram suas vidas interditadas e encobertas, seus corpos desconhecidos, suas mortes desrespeitadas e a angústia de suas famílias sem respostas que ainda sofrem, é lutar pelo Movimento de familiares das vítimas do massacre de Paraisópolis, pelas famílias de vítimas contra a Operação Verão no Guarujá, pelas Mães de maio de todo o Brasil e todos aqueles que ainda sofrem as marcas do autoritarismo apontadas sobre a cabeça todos os dias, marcados para morrer.
© rawpixel.com/Freepik
Abril/Maio 2024 35
60 anos do golpe militar no Brasil