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Vladimir Herzog vive: lembrar é resistir
A história do jornalista assassinado durante a ditadura militar e seu marco para a defesa dos direitos humanos
Por Geovanna Bosak, Guilherme Tirelli, Júlia Takahashi, Júlia Zuin e Luiza Fernandes
No marco dos 60 anos do golpe militar no Brasil, surge a oportunidade de homenagear e relembrar o legado daqueles que lutaram ativamente pela resistência, compromisso e defesa da democracia durante esse período tão sombrio da história do País. Vladimir Herzog é uma dessas importantes figuras que se tornaram um símbolo de coragem pela liberdade de expressão face à opressão.
Nascido em 27 de junho de 1937, em Osijek, na Iugoslávia, Vlado – seu nome de batismo - passou seus primeiros anos em Banja Luka, na atual Bósnia e Herzegovina, até agosto de 1941. Nesse ano, o exército nazista ocupou sua cidade e forçou sua família a fugir para a Itália.
No país de Michelangelo, eles permaneceram por dois anos em um campo de refugiados em Bari e, no final de 1946, decidiram começar uma vida nova no Brasil. Já adulto e após se naturalizar brasileiro, formou-se em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP).
Sua preocupação com os problemas urgentes do País, como o desenvolvimento e a administração centralizada em Brasília, levou-o a trilhar um caminho dentro do jornalismo. Sua trajetória teve início na década de 1960, no jornal ‘O Estado de S. Paulo ’, onde cobriu eventos significativos, como a inauguração da nova capital federal.
Rapidamente, sua dedicação e seriedade com a profissão o impulsionaram a alçar voos maiores. Em 1963, suas habilidades o credenciaram para a posição de correspondente em Londres, pela BBC. Três anos mais tarde, retornou ao Brasil e assumiu o cargo de professor nas faculdades de Jornalismo da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

Além disso, Herzog demonstrava um profundo interesse pelo cinema e seu vasto campo audiovisual. Sua intenção era explorar a cultura inserida na realidade brasileira, utilizando as produções cinematográficas como um instrumento para ampliar a consciência social e política da população.
Posicionamento Político e incômodo governamental
Em 1975, o autoritarismo e a repressão cresciam. Naquele ano, a TV Cultura nomeou Vlado para o cargo de diretor de jornalismo. No exercício de sua nova função, Herzog se dedicou a expor as questões sociais que aconteciam na época, assumindo uma posição proeminente na imprensa e nas salas de aula como professor. Consequentemente, sua postura pró-democracia atingia e incomodava o governo totalitário.
No Dossiê Herzog, o jornalista Fernando Pacheco Jordão ressaltou o posicionamento de Vladimir na profissão: “Fazer jornalismo, para ele, era informar e discutir sua época, e nisso empenhava toda sua integridade e honestidade profissional”.
O relato de Jordão evidencia o posicionamento de Herzog em relação à ditadura, que exalta o incômodo que ele causava ao expor as ações do governo através de fatos. Vlado se preocupava genuinamente com a verdade que tentavam censurar perante a sociedade, o que o tornou um alvo para os militares.
Dias de terror: Luto no jornalismo
Segundo Clarice, esposa de Herzog, diante das ameaças contra a democracia e a liberdade de expressão, o próprio admitia que só existiam duas formas de enfrentar o sistema: pela Igreja ou por meio do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O que ninguém imaginava era que as constantes reuniões da coligação do partido se tornariam pretextos de uma grande tragédia.
Na semana de sua morte, o professor foi convidado a comparecer ao Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) para prestar esclarecimentos. No dia 24 de outubro de 1975, Herzog se apresentou voluntariamente no quartel, que posteriormente seria classificado como o maior centro de violação dos direitos humanos durante a ditadura.
Assim que chegou ao local, foi encapuzado, amarrado em uma cadeira e torturado, uma rotina que a maioria dos presos políticos enfrentava diariamente. Os militares o submeteram a choques elétricos, ao espancamento e ao sufocamento com gás amoníaco que provocava náusea e enjôos.
De acordo com a narrativa oficial da época, respaldada pelo laudo assinado pelo legista Harry Shibata, Vladimir teria se enforcado utilizando o cinto do seu macacão de prisioneiro. Todavia, era proibido aos detentos portar o acessório, justamente para prevenir seu uso como arma. Além disso, relatos de colegas que também estiveram detidos na mesma ocasião corroboram a versão de que ele foi assassinado.

A censura das circunstâncias reais que levaram à morte de Vladimir Herzog levantou ainda mais suspeitas sobre tortura e abuso de poder. O assassinato gerou comoção em grande parte da sociedade pelo fim da ditadura, tornando-se símbolo da resistência e luta pela democracia brasileira, contra a repressão e a violência do regime militar.
O jornalista Eric Nepomuceno vivenciou na pele esse período turbulento e, em entrevista para o Contraponto, relembrou o clima de tensão que pairava no ar. Na época, o escritor morava na Argentina e, sempre que possível, retornava ao Brasil para visitar sua esposa grávida. Perseguido assim como Vlado e outros colegas, o autor viu-se em uma situação delicada, tendo que deixar sua mulher sozinha à espera do seu filho.
Nesse intervalo, Eric descobriu que havia comprado o apartamento onde Jorge Estrada, Vladimir e Paulo Markun lideravam as reuniões do PCB. Foi nesse momento que o escritor entendeu o real motivo pelo qual também estava sendo procurado pelo governo.
Pouco antes da morte de Herzog, temendo que algo de ruim pudesse acontecer, levou sua mulher e o filho recém-nascido para a fazenda do sogro, em Minas Gerais. Quando retornou ao seu prédio, acompanhado do também jornalista Eduardo Galeano, o porteiro lhe informou que dois homens o esperavam até quinze minutos antes de sua chegada. “Foi o tempo de entrar em casa, fazer as malas e disparar para o aeroporto”, relata Nepomuceno.
Emocionado, ele também contou como soube da morte de Herzog. “Estava jantando com o Galeano, quando uma amiga me contou sobre o Vlado. Eram dez e meia da noite, e liguei para o Jornal da Tarde, onde trabalhava. Conversei com o Ari Schneider, meu vice-chefe, e perguntei o que havia acontecido. A voz do outro lado da linha só dizia repetidamente: ‘Suicidaram ele!’”, lembra.
No dia 27 de outubro de 1975, o corpo de Vlado foi enterrado no Cemitério Israelita do Butantã, em São Paulo, sob a alegação oficial de suicídio. De acordo com as tradições judaicas, a causa da morte indicaria que ele deveria ser sepultado às margens do cemitério. Para os judeus, o suicídio é considerado uma violação do princípio sagrado da preservação da vida, e suas ramificações vão além da perda individual.
No entanto, o rabino Henry Sobel, importante líder judeu na comunidade brasileira e ferrenho defensor dos direitos humanos e da justiça social, recusou-se a aceitar a versão de que Herzog havia tirado a própria vida. Sobel, que havia visto o corpo e as evidentes marcas de tortura, optou por desafiar abertamente as autoridades e as pressões internas de parte da comunidade judaica ao enterrar Herzog no centro do cemitério, em um ato desafiador contra a versão oficial promovida pelo regime militar.
Em entrevista à BBC News Brasil em 2019, o filho mais velho de Vladimir Herzog, Ivo Herzog, destacou a importância da decisão tomada pelo rabino para o Brasil e a memória do pai. “Ele (Sobel) faz parte da história da nossa família. Foi a primeira pessoa que denunciou o assassinato do meu pai. Algumas horas depois da morte ele dizia que tinha sido um assassinato. Na mesma semana, eles fizeram um ato ecumênico na praça da Sé, que marcou o início do fim da ditadura no Brasil”, afirmou.
O assassinato de Vladimir Herzog representou um ponto de virada na história da ditadura. O trágico evento provocou uma paralisação nas redações dos principais veículos de comunicação de São Paulo, incluindo jornais, emissoras de televisão, rádios e revistas. Mais de oito mil pessoas se reuniram na Catedral da Sé para homenageá-lo e protestar contra o regime.
Em outubro de 1978, o juiz Márcio Moraes responsabilizou a União pela morte do jornalista. Quase duas décadas depois, em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu que Herzog foi vítima de assassinato.
Já em 2013, o Tribunal de Justiça de São Paulo atendeu o pedido da Comissão Nacional da Verdade e emitiu um novo atestado de óbito, retificando que a morte ocorreu em decorrência de “lesões e maus-tratos durante o interrogatório”. Em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pela falta de apuração e impunidade. Finalmente, em 2020, seis pessoas foram condenadas pelo episódio.
Opressão e violência, seis décadas depois
A simples busca no Google “quantos jornalistas foram assassinados no ano passado?” não possui resposta óbvia. Isso porque os critérios de classificação para que as vítimas sejam inseridas nas estatísticas diferem, a depender do levantamento. Dessa forma, é difícil concluir porcentagens que apresentem a problemática - mas isso não quer dizer que ela não exista.
De 2022 para 2023, o número de profissionais de comunicação assassinados aumentou em 36.47%. O levantamento foi realizado de acordo com os fatos expostos nos relatórios anuais da International News Safety Institute (INSI), uma organização internacional dedicada à segurança dos jornalistas. Segundo o estudo do último ano, a variável que mais matou este grupo foi a participação em conflitos armados.
O assassinato de Vlado, no entanto, ganhou destaque entre tantos outros e se converteu em um símbolo de resistência. Os aspectos demonstram que jornalistas são vítimas de mortes violentas até os dias de hoje. Vladimir Herzog vive.
