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DOI-Codi: a materialização da violência da ditadura militar
Centro de Operações do regime totalitário é símbolo de brutalidade e traz registros para o não esquecimento dos anos violentos que marcaram a história do Brasil
Por Ana Julia Mira, Beatriz Alencar Gregório da Silva, Isabelli Albuquerque Pontes Silva, Luane França e Vitória Kauanny da Silva Nascimento
Durante a ditadura que assolou o Brasil entre 1964 e 1985, a violência se tornou a nova política. Sob o comando do DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações e Defesa Interna), um edifício localizado na Vila Mariana, bairro paulista, escondia a brutalidade em sua forma mais pura: pessoas consideradas inimigas do regime eram sujeitas à diversas formas de tortura.
Criado em 1969, o órgão surgiu como sucessor da OBAN (Operação Bandeirante) e tinha como finalidade a repressão dos opositores do regime militar. Segundo o pesquisador Pedro Estevam da Rocha Pomar, em entrevista publicada no Memorial da Democracia, aproximadamente 6.700 pessoas foram presas e 50 morreram no Centro de Operações da capital paulista.
Os opositores torturados eram eletrocutados e submetidos a sessões de espancamentos. O jornalista Vladimir Herzog foi uma das vítimas do local. Em outubro de 1975, entrou voluntariamente no prédio do DOI-Codi para prestar depoimento e foi encontrado morto. De acordo com os militares, a causa teria sido suicídio – versão desmentida posteriormente.
Após ser desativado em 1990, o prédio recebeu uma nova função. Atualmente, abriga o 36º Departamento de Polícia de São Paulo. Em 2014, a propriedade foi tombada como Patrimônio Histórico pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), que reconheceu a simbologia política do edifício.
“O tombamento foi feito de forma participativa, com uma perspectiva multidisciplinar que contemplou não apenas aspectos da arquitetura, mas aspectos da história e da sociologia”, relatou Deborah Neves, historiadora e coordenadora do grupo responsável pelas escavações, em entrevista ao Contraponto.
Apesar do tombamento, o Ministério Público reconheceu que o Estado não tomou medidas suficientes para garantir que o espaço fosse visto como um lembrete histórico. Em 2021, uma liminar que garantia a preservação do imóvel foi concedida.
Escavações no DOI-Codi
Em 2023, pesquisadores da Unicamp, Unifesp e UFMG realizaram escavações no antigo edifício. O projeto, que tinha como objetivo relembrar a história do DOI-Codi e assegurar uma retratação para as vítimas e seus familiares, teve início em 2 de agosto de 2023 e se estendeu por duas semanas.
“Nós tínhamos apenas 12 dias para contar uma história que não foi contada em sua plenitude por mais de 50 anos”, contou Deborah Neves.
Visitas guiadas com a presença de ex-presos políticos ocorreram no local. Foram encontrados resíduos de material biológico, marcações de um calendário em uma das paredes do banheiro do primeiro andar e objetos como botões, pedaços de vidro e cerâmica. Todos os itens descobertos foram processados e estudados no Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp.
Deborah explicou as expectativas sobre o projeto. “Nós entendíamos que essas escavações poderiam firmar também a ideia de que aquele espaço não pode ser ocupado por qualquer outra atividade que não uma atividade que rememore o que foi aquele lugar. Serviria para fomentar o debate sobre os direitos humanos e sobre a forma que construímos as nossas forças de segurança pública no Brasil”, contou.

Violência policial como herança da ditadura militar
Dados indicam que a cultura de violência e impunidade ainda está presente nas instituições de segurança atualmente. Práticas autoritárias, como o uso excessivo da força, continuam a ser observadas.
Os anos de Governo de Jair Messias Bolsonaro deram forças para que fossem expostos os ideais de supervalorização da violência vinda das forças armadas. O então presidente apresentou em seu mandato oito ministros militares, a maior participação destes desde a redemocratização.
Nos 55 anos do golpe de 1964, Bolsonaro negou a natureza antidemocrática da data. Na época, Otávio Rêgo Barros, porta-voz da presidência, afirmou que Bolsonaro determinou que o Ministério da Defesa fizesse as “comemorações devidas”.
De acordo com Julia de Macedo Rabahie, aluna do programa de pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), “através do aparato repressivo das polícias e das Forças Armadas, essa violência se estabeleceu como uma estrutura de caráter sistemático, e não apenas como casos isolados de abusos”.
A historiadora Deborah explica o legado da violência ditatorial a partir da troca da atribuição da política de segurança pública que pertencia aos estados ao exército que ocorreu em 1969. “A lógica do combate prevaleceu nessa visão e o combate a sua própria população. Portanto, foi aplicada uma lógica de que a população era inimiga do país”, explica.
Deborah também conta que a transição da ditadura em democracia foi um processo negociável que não puniu os agentes públicos que cometeram crimes. A resolução criou um aval para a impunidade. “Não tenho dúvidas de que essa é ainda a mentalidade das forças de repressão do Brasil, principalmente da Polícia Militar, que foi transformada de força pública em Polícia Militar e é uma força auxiliar do Exército”, afirmou.
Essa perseguição tem se reproduzido constantemente, como mostra o 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022). O documento apresenta uma taxa de mortalidade de 6.430 pessoas. O número representa cerca de 17 mortes diárias cometidas pelas mãos de policiais.
Essa estatística possui idade, cor e endereço: jovens, negros e periféricos. Na edição de 2023, a porcentagem de pessoas pretas mortas por intervenções policiais representava 83,1%.
Em janeiro de 2024, a Secretaria de Estado de Segurança Pública de São Paulo (SSP) afirmou que “investe permanentemente no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas, como o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo”.
Em contrapartida, as mortes cometidas por PMs subiram 94% no 1º bimestre de 2024, segundo levantamento feito pela Globo News.

Fragilidade democrática
“O que acontece nos anos 1970, não é uma ditadura ‘policialesca’ simplesmente. É a impossibilidade de se dizer a verdade em qualquer circunstância. Por quê? Porque o direito à livre expressão estava enterrado. Não se dialoga, não é possível supor que se dialogue, com um pau de arara, o choque elétrico e a morte”, afirmou Dilma Rousseff em uma comissão do Senado Federal, em 2008.
À época, Rousseff era ministra da Casa Civil da Presidência da República. Com a voz embargada, resumiu anos de repressão e mortes de cidadãos brasileiros que lutavam pela democracia. A ex-presidente também foi presa durante a ditadura pela recém iniciada OBAN.
Tudo o que ocorreu, de 1964 a 1985, está no conhecimento de todos os brasileiros, e a justificativa para tais práticas era a de manter a ordem e o progresso do país. Mas, os anos de repressão militar se moldaram na negação a uma vida de direitos.
Em entrevista para o Contraponto, o professor Luiz Antonio Dias afirmou que “a Lei da Anistia promulgada em 1979 permitiu que torturadores e assassinos do regime ficassem impunes. Ainda hoje, esse tema é alvo de debates e controvérsias, pois muitas vítimas e familiares das vítimas buscam justiça e reparação”.
Dias conta ainda que a Constituição de 1988 já previa a reparação para as vítimas da ditadura civil-militar, direcionando-a àqueles que sofreram os atos de violência, não aos responsáveis por cometê-los.
Apoiadores da repressão militar e instituições envolvidas na época da ditadura ainda afirmam que a violência que marcou o período foi cometida para estabelecer a ordem e harmonia nacional.

Mortes em Itaipu
A usina hidrelétrica foi um projeto do período da ditadura que teve como objetivo firmar o setor elétrico como uma evolução para o país. O que a Itaipu tenta apartar é a responsabilidade em assumir a falta de direitos humanos durante a sua construção.
A negação de cumplicidade da usina com atos ditatoriais se comprova quando ela delega que “foi pioneira ao estabelecer, ainda em 1975, os Atos Normativos para a Saúde e Segurança dos Trabalhadores”.
Ao mesmo tempo, no período de sua construção, necessitou de mais de 100 mil trabalhadores e, desses, 43 mil sofreram com acidentes de trabalho e 106 faleceram (óbitos registrados). Além disso, quase 40 mil pessoas foram retiradas de suas casas para a expansão territorial da usina, segundo dados oficiais disponibilizados pela estatal.
Casos como Itaipu e o Doi-Codi são exemplos históricos das memórias para a consolidação de uma cultura em direitos humanos. A pauta é considerada prioritária para críticos do período ditatorial do país.

Conservação da memória
A professora Vera Paiva, que é filha de Rubens Paiva, um engenheiro civil e ex-deputado que foi torturado e assassinado pelo DOI-Codi do Rio de Janeiro em 1971, fez parte da Comissão Nacional da Verdade (2015-2022). Nomes como o de Vera prezam pela conservação da memória viva como uma forma de resistência e não repetição do passado. Porém, a memória é o fator mais negligenciado nos processos de transição democrática.
Desse modo, uma reconstrução no fazer da democracia em uma nação que preferiu permanecer silenciada e afastada de cidadania e direitos humanos elementares se torna um desafio que ultrapassa os aspectos institucionais.
“Sem um acerto de contas com o passado, sem uma justiça de reparação, ao menos historicamente, sem a condenação da apologia à ditadura e aos torturadores, não avançaremos no processo de superação do trauma”, afirma Luiz Antônio.
O que aconteceu durante esse período permanece como uma sombra sobre nós, de uma era construída e maquiada a partir de narrativas negacionistas de muitos, do silêncio de alguns e do testemunho de poucos. Os anos marcados pelo esquecimento e pela banalização da violência do regime militar fizeram dos familiares das vítimas sobreviventes e opositores importantes vozes na construção da memória histórica no Brasil.
