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Entre gols e golpes, o tricampeonato mundial como propaganda política

Por trás da Copa do Mundo de 1970, o futebol do ‘Esquadrão’ serviu o ufanismo, e a sua conquista, como ferramenta para o regime ditatorial

Por Isabela Fabiana de Oliveira Almeida, Maria Clara Magalhães e Pedro Alcantara da Silva Neto

O título da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970, no dia 21 de junho, desempenhou um papel expressivo como ferramenta política. O Brasil, após uma eliminação dolorida na Copa de 66, derrotou a Itália por 4 a 1 e tornou-se o primeiro país a ser tricampeão mundial de futebol, conquista que serviu como apropriação política para a ditadura militar.

Os brasileiros que se apaixonaram com Pelé em 58 e Garrincha em 62, se frustraram absurdamente após a eliminação vexatória na primeira fase da Copa do Mundo de 66. O clima era de desconfiança e inúmeras críticas pairavam no ar antes da edição de 70.

No México, o time foi comandado por Zagallo e tinha lendas como Pelé, Carlos Alberto Torres, Gerson, Rivellino, Jairzinho e Tostão. Todos eles fizeram história, levaram o caneco para casa e devolveram ao povo o orgulho de ser brasileiro. Prato cheio para um governo autoritário se glorificar em meio a ditadura militar.

A fim de valorizar a suposta influência do militarismo no título, os oficiais organizaram diversos eventos esportivos, tais como as Olimpíadas do Exército, as Olimpíadas Operárias e até um Campeonato Nacional. Embora não tivessem o mesmo prestígio que uma Copa do Mundo, essas competições foram potencializadas pela conquista da Seleção.

Assim, os militares estabeleceram uma abordagem que promovia o nacionalismo, o anticomunismo e o conservadorismo autoritário. Isso gerou uma polarização do povo brasileiro, que se dividiu entre aqueles que apoiavam o regime e os que o desafiavam constantemente.

No fim, o governo se apropriou do triunfo esportivo, atribuindo o sucesso à disciplina militar, expressa nas diretrizes dos jogadores e na preparação física ocorrida na Escola de Educação Física do Exército. Essa premissa omitia o papel das classes populares no futebol brasileiro, o que seria destacado no Sesquicentenário da Independência.

João sem medo

No período pré-Copa, em 1969, a Seleção Brasileira estava desorganizada e poucos acreditavam no título, até que surge um novo técnico com potencial para vingar no comando: João Saldanha, um dos treinadores mais bem cotados na década de 60, jornalista, militante político, assumidamente comunista, e o maior nome do esporte a se posicionar contra o regime.

Em entrevista ao Contraponto, João Saldanha Filho revelou os bastidores do convite que o pai recebeu de Antônio do Passo para comandar a equipe. “Foi o sexto chamado para ser o técnico do Brasil. Ele perguntou para nós [esposa e filhos] se deveria aceitar uma proposta financeiramente maior do Fluminense ou tentar a sorte na Seleção”.

Pouco tempo após o técnico assumir o cargo, tomou posse o novo presidente do Brasil: Emílio Garrastazu Médici (19691974). Na época, o AI-5 (Ato Institucional nº 5), instaurado durante o mandato anterior, representava grande ameaça aos opositores do governo e João era um deles.

Saldanha viu amigos sendo presos, mortos e torturados por militares e mesmo assim se apropriou de seu espaço público e relevância no mundo futebolístico para criticar o autoritarismo. Suas denúncias contra as ações do regime eram feitas pelas rádios do País.

Sob o seu comando, a seleção dominou as eliminatórias e finalmente retomou o seu protagonismo. No entanto, perto da convocação oficial para a Copa do Mundo, iniciou-se uma discussão: o centroavante Dadá Maravilha deveria ser convocado ou não?

Médici insistia pela tal convocação, porém, o treinador não gostou do político ter manifestado publicamente sua vontade pessoal e, quando questionado por um jornalista gaúcho, declarou: “Nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala o time”. Restando apenas três meses para o início da competição, o técnico seria demitido do cargo.

Ao ser perguntado sobre o que acha do apelido João sem Medo, Saldanha Filho dividiu os possíveis anseios de seu pai frente a opressão: “Acho que o medo é próprio do homem, todo homem tem medo. Ele também é invenção! Mas nenhum governo calou seus ideais de uma vida mais justa.”

Salve-nos, Seleção

Médici era frequentador assíduo dos estádios de futebol e atuou nos bastidores para tirar João Saldanha do comando técnico da seleção. Sobretudo, o presidente queria persuadir a torcida brasileira de que uma eventual conquista estaria ligada à política e, por meio do patriotismo exagerado, fortalecer o regime com campanhas ufanistas.

Após o tricampeonato, o regime autoritário tinha uma forte arma em mãos. O jingle “Pra Frente Brasil”, criado para a Copa de 70, tornou-se a música oficial do governo. O êxtase da população fortaleceu os slogans produzidos pelos ditadores que, depois da conquista da taça, também foram incorporados na campanha política.

À época, os políticos também utilizaram da conquista para omitir a repressão, a censura, a tortura, os desaparecimentos e a violação dos direitos humanos. Em entrevista ao Contraponto, o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, José Paulo Florenzano, chamou a atenção para a manipulação das imagens que relacionavam o título ao regime civil-militar:

“A montagem fotográfica continha uma incongruência, pois ao lado do ‘milagre econômico’, das obras faraônicas, da educação moral e cívica, ela incluía de forma indevida o tricampeonato. Tratava-se de uma apropriação.”

Após a conquista da Copa de 1970, Médici proferiu um discurso reconhecendo na seleção, princípios defendidos pelo regime ditatorial para o conjunto da nação brasileira. Para o professor, “tratava-se da projeção, no campo esportivo, da utopia autoritária imposta às múltiplas esferas da vida social.”

A Copa do México reafirmou os aspectos negativos da ditadura militar, mas também gerou outras narrativas que atravessariam os anos 70 e 80, incluindo movimentos históricos como a Democracia Corinthiana.

Fora dos gramados, a lacuna deixada por Saldanha foi preenchida pela sua atuação contínua em prol dos seus ideais, mesmo após o desligamento do cargo de técnico da Seleção Brasileira. Florenzano destacou suas ações como jornalista: “ocupou uma posição de destaque na crônica esportiva, criticando com veemência as estruturas de poder, a classe dirigente e os interesses econômicos que bloqueavam o desenvolvimento do campo esportivo.”

João Saldanha no estádio, enquanto era vigiado por um soldado. Imagem: © Acervo Globo
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