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Produção musical e os Instrumentos de Censura no Brasil
A repressão na indústria da música e sua resistência durante a ditadura
Por Gabriela Blanco, Helena Haddad, Lorena Basilia, Kyle Accioli e Thainara Sabrine
A arte sempre foi utilizada como ferramenta de subversividade, uma simbologia de história e comunicação. A interpretação é moldada por nossa própria bagagem, experiências e emoções, e nenhuma interpretação está livre do preconceito. Isso significa que uma única obra pode evocar uma variedade de respostas e significados. A arte significa um caminho para comunicar, expressar e movimentar a sociedade em certo sentido.
Durante a ditadura do golpe de 1964, o Estado exerceu um controle rígido sobre a produção cultural, incluindo a indústria fonográfica. Isso foi feito principalmente através da censura e da criação de órgãos de controle. Apesar disso, a música foi usada como forma de protesto durante o período.
Nesse contexto, a Música Popular Brasileira (MPB) nasceu e ganhou muita força em programas de televisão da época com o uso de metáforas, em que os artistas militantes demonstravam repulsa por esse regime. O tropicalismo, por exemplo, surge com a proposta de movimentar os protestos contra a ditadura de forma indireta. A música Tropicália (1967), de Caetano Veloso, inaugura o movimento com uma letra que criticava o período:
“E no joelho uma criança Sorridente, feia e morta
Estende a mão
Viva a mata, ta, ta”.
No primeiro verso, Caetano denuncia a situação de crianças desnutridas, abandonadas pelo governo; já no segundo, usa um jogo fonético (“ta, ta”) que transmite a ideia de metralhadora, simbolizando o uso de armas de fogo e a violência durante o período. A composição inspirou diversos artistas no Brasil e, em 1968, é lançado o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis, com diversos intérpretes. Assim, surge um movimento de resistência cultural, que utilizava de suas músicas para expressar suas críticas e insatisfações com as políticas autoritárias.
Em entrevista, o professor de história Vinícius Gomes cita a importância de compreender o que é a censura e como foi atribuída durante os períodos históricos brasileiros. O docente pontua que “no Primeiro Reinado, já se estabelecia o que poderia ou não veicular no Brasil. Mas o que ficou muito marcante foi a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no governo Vargas, em 1939, estabelecendo editores nomeados por ele para dirigir os jornais da época e selecionar as notícias que poderiam ser divulgadas”.

Manifestação e controle da indústria musical durante o período da ditadura
Os controles sobre as produções culturais partiam de diversas movimentações, desde repressões e ameaças até movimentos institucionais e governamentais que limitavam as possibilidades de criações dos artistas da época.
Eram comuns situações de perseguição a artistas específicos que se opunham à ação do sistema ditatorial, muitas vezes forçando-os a se autocensurar sob ameaças. A cantora e intérprete Suely Chagas, ganhadora do Festival Universitário de Música Popular Brasileira, em 1968, revelou que “eles já sabiam quais eram os artistas mais visados e consequentemente aqueles artistas teriam músicas censuradas. Eram, em sua maioria, os da Tropicália e outros independentes, como Taiguara do MPB”.
Para as músicas serem gravadas, era necessário enviar para a gravadora as letras das canções, junto ao título e ao nome do compositor. Dentro das próprias empresas fonográficas, havia secretários enviados dos militares, que faziam o controle das músicas que poderiam ser publicadas ou descartadas.
As censuras não eram apenas veladas, mas também institucionais e governamentais. Durante o regime de 1964, houve a elaboração de diversas leis que tinham como principal objetivo a censura. Uma das mais contundentes foi o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que contribuiu para a perseguição, violência e exílio de diversos artistas da época. Na mesma linha, a Lei de Segurança Nacional (LSN) objetivava criminalizar qualquer tipo de atividade considerada contrária à segurança nacional, podendo ser música, pinturas ou outros meios de expressão artísticas. E, ainda, o Decreto-Lei 1077/70 foi sancionado para implementar um controle estatal sobre as produções artísticas e culturais. O decreto permitia a existência de um órgão de “Censura Federal” que monitorava e analisava as criações artísticas, a fim de definir quais poderiam ou não ser lançadas e divulgadas ao público.
Apesar das repreensões autoritárias impostas pelo regime, alguns artistas demonstravam resiliência, desenvolvendo estratégias para preservar seus ideais e manter a continuidade da produção musical espontânea. Enfrentando as violências institucionais, esses músicos desafiavam as imposições do governo através de suas obras, que carregavam mensagens de resistência e contestação.
Festivais de Música como Resistência
Os festivais de música que ocorriam no Brasil tinham infl uência direta dos festivais que aconteciam no exterior. Diferente do que acontecia nos Estados Unidos, por exemplo, o principal objetivo dos eventos era buscar uma renovação da música popular brasileira, com a inserção de artistas novatos.
Em grandes eventos, como festivais de música, havia uma pressão sobre os organizadores para as escolhas dos artistas que iriam se apresentar nos palcos, visto que eram televisionados e recebiam grande audiência. Durante os festivais, houve uma tentativa de crítica, de acordo com os artistas colocados nos palcos, assim como também havia aqueles que iam apenas para se apresentar e “curtir” o evento.
Artistas da época, como a Jovem Guarda, que explorava um nicho voltado aos jovens a partir da utilização de instrumentos eletrônicos (guitarra e baixos elétricos), e os integrantes do movimento Tropicália, cuja proposta era junção do popular e do erudito, faziam papéis opostos quanto à representação musical. No decorrer da entrevista, Suely citou um episódio marcante envolvendo as guitarras elétricas durante um show do Gilberto Gil. A inserção do novo instrumento foi recebida com vaias de protesto, já que para parte da plateia era uma simbologia da “invasão imperialista norte-americana”.
Phonogram, gravadora de grandes artistas da época, como Roberto Carlos e Chico Buarque, resolveu fazer um festival voltado para a promoção de músicas recentes e também de inéditas. Entre essas apresentações, a memorável performance da música “Cálice (Cale-se)”, de Gilberto Gil e Chico Buarque, ganhou destaque pela sua clara tentativa de censura. A construção elaborada de rimas e versos que criticavam de forma bruta o regime, utilizando de trocadilhos entre a palavra “Cálice” e a expressão “Cale-se”, contribuiu para que, antes mesmo da apresentação, fosse rejeitada a proposta de publicação.
Embora houvesse a desaprovação da gravadora, os cantores resolveram apresentá-la para o público presente e em televisão aberta a música composta por eles. Durante a performance, Chico e Gil murmuravam palavras aleatórias, com exceção do título da música, permitindo que a melodia e a expressão “Cale-se” ganhassem destaque. Porém, enquanto acontecia a apresentação, os microfones e as caixas de som foram desligados pela produção, frustrando a experiência do público e dos artistas. Anos depois, ainda na ditadura, foi permitida a publicação da canção, com ressalvas.

Apesar da tentativa de silenciamento, os movimentos contrários eram constantes e demonstravam a vontade da classe artística em combater o autoritarismo. É comum escutar de quem viveu na época sobre os diversos movimentos coletivos que surgiram com o objetivo de se contrapor às censuras e às restrições. A cantora Suely comenta como eram os sentimentos na época: “Os festivais eram momentos muito enriquecedores, alvoroço, participação do público, momento de extravasar em um período tão tenso.”
Assim como no verso “Apesar de você/ Amanhã há de ser outro dia” (Chico Buarque, 1970), os artistas acreditavam no futuro em que a arte voltasse a um ser mecanismo de expressões diversas, sem censura ou repressão.
Desdobramentos
A produção cultural foi muito limitada durante esse período e expôs a realidade política e social de um governo autoritário. É importante reconhecer também o baque dessa censura, afinal, antes da ditadura militar os tópicos discutidos eram de justiça social e tiveram que ser interrompidos. Por exemplo, o filme Cabra Marcado para Morrer (1984), que teve sua produção interrompida pelo golpe e só pôde ser terminado 20 anos depois.
Também é interessante pensar em como a cultura foi dividida entre alienação e o protesto de maneira inédita. A música já tinha sido usada como propaganda do governo Vargas, mas durante o período da ditadura, as músicas de alienação muitas vezes não eram encomendadas pelo governo e sim produzidas por conta própria dos artistas, e utilizadas de forma distorcida pelo governo ditatorial.
Sob outra ótica, havia propagandas feitas a favor do regime e que utilizavam músicas para chamar atenção dos cidadãos brasileiros. Um exemplo clássico foi a canção da dupla adesista — artistas a favor da repressão — Dom e Ravel, “Eu te amo meu Brasil ”. “Eu te amo, meu Brasil, eu te amo / Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil ”; A peça, que foi regravada pelo grupo “Os incríveis” no clima de Copa do Mundo, tornou-se ainda mais famosa e, assim, veio a se tornar uma das vinhetas nacionalistas do canal SBT. Em 2018, a composição foi usada erroneamente pelo mesmo programa como slogan, ao lado de outras frases marcantes da época, para simpatizar com o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Ainda hoje, utiliza-se músicas de protesto, por vezes distorcendo as críticas ou modificando o significado por trás das letras metafóricas. Um exemplo disso é a manifestação pró-Bolsonaro, que ocorreu no dia 25 de fevereiro de 2024, onde o público presente cantava a música “Para Não Dizer Que Não Falei das Flores”, escrita por Geraldo Vandré, que é uma das músicas mais conhecidas de protesto contra a ditadura.
Vinicius Gomes alerta que o perigo principal é descontextualizar. “Quando você distorce uma música ou transforma em favor de um objetivo que não é o principal, está afirmando mais sobre aquilo que você está vivendo do que necessariamente do significado original, ou seja, você está afastando mais essa música do autor e do que ele pensava na época”, explica.
Vinicius Gomes alerta que o perigo principal é descontextualizar. “Quando você distorce uma música ou transforma em favor de um objetivo que não é o principal, está afirmando mais sobre aquilo que você está vivendo do que necessariamente do significado original, ou seja, você está afastando mais essa música do autor e do que ele pensava na época”, explica.
É impossível estudar este período da história brasileira sem levar em consideração a música e seu impacto. Nessa época tudo era um ato político, no sentido de que ficar calado era um posicionamento tão grande quanto protestar.
