6 minute read

Progresso, democracia e futebol: as faces de Nadir Kfouri

Conheça o legado de coragem da primeira reitora da PUC-SP, aquela que se recusou a apertar a mão do Coronel Erasmo Dias

Por Helena Barra, Isabela Gama e Leticia Falaschi

"Dia, a predileta de todos”, é assim que o jornalista Juca Kfouri definiu sua tia, Nadir Kfouri, em entrevista ao jornal Contraponto. Apelidada carinhosamente de “Dia”, ele conta que ela jogava futebol com os sobrinhos no domingo à tarde. Dona dos melhores carinhos nas costas, com uma fé incontestável nos frades dominicanos, a corinthiana enfrentou o machismo e coronéis da ditadura militar com elegância e coragem.

Nadir foi a pioneira em muitas coisas, ainda hoje, é o orgulho dos Kfouri. Viveu como acreditava que deveria viver. Contestadora e ao mesmo tempo doce, ela tinha um senso de humor inigualável e não aceitava falta de educação ou desumanidade.

Ávida pela leitura desde cedo, o gosto pelos livros veio de berço, com um pai autodidata e leitor voraz de Machado de Assis. A jovem presenciou um ambiente familiar rico de referências, se formou em uma escola católica e sempre se interessou por pautas sociais. Se aventurou em um curso ainda em estruturação no Brasil, o de Serviço Social, que estudou na Escola Normal Caetano de Campos.

Nadir foi uma das pioneiras no estudo da área de Serviço Social. Imagem: © Comissão da Verdade da PUC-SP Reitora Nadir Gouvêa KfouriCVPUC

Em uma época em que mulheres tinham dificuldades para ocupar espaços acadêmicos e de prestígio, Nadir conquistou uma pós-graduação em Washington, nos Estados Unidos, na Catholic University, em 1942, além de lecionar em Barcelona e no Brasil. Prestou serviços às Nações Unidas, quando atuou em diversos países da América Latina e percorreu o Brasil inteiro com a Legião Brasileira de Assistência (LBA).

Sua sólida trajetória profissional, aliada ao seu engajamento nas pautas sociais levantadas pela Igreja Católica, permitiu sua chegada à reitoria da PUC-SP. O ano foi 1975, nomeado como o ano internacional da mulher e a universidade queria uma no comando; era a vez dela.

“Dia” foi a primeira reitora de uma universidade católica no mundo. O convite foi feito por D. Paulo Evaristo Arns, Grão-Chanceler da universidade, que precisou interceder em seu favor junto ao Papa Paulo VI.

No final do primeiro mandato de sua a administração da PUC-SP, em 1980, mais uma vez ela foi inovadora, tornou-se a primeira reitora eleita do país, com voto direto da comunidade universitária e mostrou ao mundo o que os brasileiros queriam à época: “Diretas já!”.

Em um discurso publicado na revista Serviço Social & Sociedade, ela conta que aprendeu como é difícil a prática democrática, “eu me considero uma mulher democrática e estou convencida de que a democracia se aprende vivendo”, disse ela após a reeleição.

Seus horizontes profissionais, que já eram limitados na época, passaram a ser mais perigosos no auge de sua jornada. Mas Nadir sempre trouxe suas opiniões políticas à tona e não tinha medo de se sacrificar por aquilo que acreditava.

Em sua reitoria, a invasão militar na universidade, em 22 de setembro de 1977, marcou seu legado. Com a morte de Vladimir Herzog dois anos antes, o movimento estudantil se reergueu em todo o país e voltou a ocupar as ruas, nove anos depois da promulgação do AI-5, que tornava crime organizar, participar ou apoiar atos públicos.

Na noite do dia 22 de setembro estava programada a realização do 3° Encontro Nacional dos Estudantes, que tentava reorganizar a União Nacional dos Estudantes (UNE). A reunião aconteceu com a presença de 70 delegados estudantis de dez outros estados, na sala 225 do Prédio Novo.

Logo depois do fim do encontro, a assembleia estudantil decidiu realizar um ato público em frente ao Tuca, teatro da Universidade. A ação contou com cerca de 2 mil alunos que acompanhavam a leitura de uma carta aberta, quando foram interrompidos por uma violenta operação policial sob o comando do Coronel Erasmo Dias, Secretário de Segurança de São Paulo.

A tropa de choque chegou disparando bombas de gás efeito moral, que fez com que todos entrassem para dentro do campus. Os militares invadiram salas de aula, laboratórios, centros acadêmicos e diretórios. Alunos foram presos, agredidos e queimados por bombas.

Os estudantes detidos foram conduzidos em fila indiana com as mãos dadas até um estacionamento próximo à PUC-SP. Os militares realizaram uma primeira seleção, utilizando listas fornecidas por serviços de inteligência da época e informações de agentes disfarçados na multidão.

Nadir Kfouri na invasão da PUC-SP (1977). Imagem: © Hélio Campos Mello

Cerca de 514 alunos da Pontifícia foram transferidos para o Batalhão Tobias de Aguiar, 92 foram fichados no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, o DOPS, e 42 acabaram sendo processados com base na Lei de Segurança Nacional, acusados de subversão.

Nadir não estava na universidade naquela noite, mas logo que foi informada dirigiu-se ao campus para expressar indignação. Ao encontrar o Coronel Erasmo Dias, ele tentou apertar-lhe a mão e ela recusou dizendo: “eu não dou a mão aos assassinos” e virou de costas. Esta frase ficou marcada na história da PUC-SP como um símbolo de resistência.

Após a invasão, Nadir conta em uma entrevista ao Jornal Porandubas, que existiam rumores de que ela seria cassada. Mas o militar e político brasileiro Ney Braga segurou essa proposta. “Erasmo destruiu a minha vida acadêmica, ele acabou mesmo [...] Era DOPS, era CEI (Comissão Especial de Investigação), prisões de alunos[...] Não tivemos mais tranquilidade”, conta a reitora ao veículo.

Inspiração em movimentos estudantis, feministas e democráticos dentro e fora da universidade, Nadir se aposentou em 1984, aos 71 anos. Mesmo assim, a PUC não deixou de ser pauta em suas conversas.

Como uma pessoa indignada até o fim da vida. Certa vez, no Itaim Bibi onde morava, pisou em um buraco e caiu enquanto caminhava. O sobrinho, Juca Kfouri conta que no chão, ela xingava o prefeito Paulo Maluf: “Prefeito de m****! Como é que deixa uma calçada assim?”.

Nunca se casou e nem teve filhos, dedicou seu amor aos sobrinhos, aos alunos, à democracia e, claro, ao Corinthians. No testamento, deixou seu apartamento para o filho de sua empregada doméstica, que cuidou dela até os últimos dias. “Dia” faleceu em 2011, aos 97 anos, por conta de uma pneumonia.

This article is from: