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Músicas de protesto: uma tradição brasileira
Brasil, resistência e memória: os trajetos de Chico Buarque, Racionais MC’s e Emicida
Por Anna Cândida Xavier, Giovana Laurelli e Juliana Salomão
A ditadura militar, época propositalmente varrida para debaixo do tapete da nossa história, ganha cores toda vez que alguém escuta com a devida atenção as músicas de protesto desse período. Apesar da redemocratização de 1988, ainda hoje, a juventude negra e periférica é assassinada pela polícia com a mesma brutalidade que outrora matou aqueles que se opuseram à ditadura. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, no Brasil, 83,1% das vítimas de intervenções policiais eram pessoas negras, sobretudo, na faixa etária de 12 a 29 anos.
Para Daniel Brazil, formado em Cinema pela ECA/USP e pesquisador de música popular brasileira há mais de 30 anos, conhecer a história e a cultura do Brasil é fundamental para a garantia da cidadania. “É preciso lembrar que a música de protesto não surgiu na ditadura de 1964. Há músicas populares que, desde a época do Império, criticavam ou ironizavam governos e autoridades”, aponta.
Chico Buarque foi um dos artistas da MPB mais perseguidos pela censura na ditadura. Em dezembro de 1968, cinco dias após o decreto do AI-5, o artista foi detido para interrogatório no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Ao ser liberado, autoexilou-se por quinze meses, na Itália. De volta ao Brasil, em 1970, compôs Apesar de Você, canção originalmente aprovada pela Divisão de Censura de Diversões Pública por ter sido interpretada como uma música romântica, quando, na realidade, foi um grito pela liberdade.

“Músicas de protesto expressam sentimentos de um povo. Esse sentimento não está restrito a um gênero musical. Não existe formalmente ‘música de protesto’, mas ‘letras de protesto’, que podem ser adaptadas a todas as formas de música”, afirma Brazil.
O rancor latente em versos como “Quando chegar o momento/ Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros, juro/ Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ Este samba no escuro”, não dizem respeito a um romance mal-acabado, mas ao período que o Brasil passava. A letra clama que o mundo há de ser outro ao findar a tirania, garantindo que ainda existe alegria e força para lutar: “Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/ Da enorme euforia/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar ”.
Pouco depois do lançamento explosivo da canção, um jornal carioca sugeriu que a letra fazia referência ao então presidente Emílio Garrastazu Médici. Por consequência, o exército invadiu a gravadora e destruiu todas as cópias do disco. Contudo, a matriz da gravação permaneceu intacta e foi relançada oito anos mais tarde.
Na década seguinte, em 1988, o grupo Racionais MC’s - um dos maiores representantes do hip-hop nacional - surgiu em São Paulo. Suas letras denunciavam a ação da polícia dentro das comunidades periféricas e as desigualdades sociais. Em 1997, lançam Diário de um Detento, música que narra o Massacre do Carandiru, presídio era conhecido pela superlotação e precariedade, a partir dos relatos de Josemir Prado, um dos sobreviventes da tragédia.
Em 2 de Outubro de 1992, a resposta da Polícia Militar a uma rebelião resultou na chacina de 111 detentos. Daniel Brazil comenta que “essas novas camadas sociais acrescentam nuances comportamentais impensáveis durante a ditadura”. Para o pesquisador, as novas formas de expressão surgidas nas periferias no final do século XX protestam contra aqueles que os perseguem e os oprimem. “Se não é o governo central, é a polícia ou a mídia”, completa.
Diário de um Detento destaca as condições desumanas do cárcere, a urgência de reformas no sistema de justiça criminal e a importância da ressocialização. “Tem uma cela lá em cima fechada/ Desde terça-feira ninguém abre pra nada/ Só o cheiro de morte e Pinho Sol/ Um preso se enforcou com o lençol ”. Por meio de retratos verídicos, expõe o descaso evidente do governo e da sociedade em relação aos presos. “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral/ Um dia no Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia”.
Em manifestações mais recentes, já na década de 2000, o rapper e compositor Emicida se inspira na MPB para um resgate da música brasileira em um movimento de AmarElo é uma canção sobre resistência, divulgada como um manifesto pelo afeto em um mundo cruel. “Difícil é viver no inferno e vem à tona/ Que o mesmo império canalha/ Que não te leva a sério/ Interfere pra te levar à lona”. E o refrão de Sujeito de Sorte, repetido diversas vezes - “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro” -, carrega esperança.

AmarElo é uma canção sobre resistência, divulgada como um manifesto pelo afeto em um mundo cruel. “Difícil é viver no inferno e vem à tona/ Que o mesmo império canalha/ Que não te leva a sério/ Interfere pra te levar à lona”. E o refrão de Sujeito de Sorte, repetido diversas vezes - “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro” -, carrega esperança.
Há muito tempo, por meio da arte, a sociedade expressa suas críticas, mas as circunstâncias históricas trazem à tona diferentes nuances desse sistema. “O alvo mudou, mas os anseios permanecem: liberdade de expressão, direitos iguais para todos, fim da discriminação, fim da violência policial”, retrata o pesquisador.
Durante a ditadura, Chico Buarque precisou escrever sua posição nas entrelinhas, enquanto, nos anos 1990, os Racionais MC’s precisavam escancarar as fragilidades de um estado democrático de direito que existia só no papel. Atualmente, com legado da liberdade de expressão, conquistado por eles e por tantos outros artistas, Emicida pôde compor o álbum AmarElo e mergulhar na arte brasileira.
Explorando as manifestações artísticas nacionais, é possível desvendar a opressão e a luta por emancipação. Para muito além de Chico, Racionais e Emicida, tantos artistas atemporais marcam a cultura do país. Essa diversidade de vozes é uma fonte rica de conhecimento sobre as realidades multifacetadas do Brasil. Por meio da arte é possível estabelecer uma visão crítica da história complementar a narrativa, e devolver suas cores.