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«Exílio»

Por Artur Maciel

A impossibilidade de falar sobre. Estar fora. Dentro, com e sem. Exílio é sinônimo de ditadura, de governo roubado, de vida tardia. Está no abandono da cama fria numa «Colônia». Compreender ou entender o paradoxo. Quem melhor descreveu o Brasil estava a milhares de quilômetros desse país, inúmeros sem documentação ou reivindicação.

Se escreve em francês sobre a cultura nordestina e sua resistência à seca. Impossibilidade do pensamento, saudade e não poder. E a esperança, cadê? Tá em casa, escondida embaixo da cama e nós, aqui, servindo Sauerkraut no fundo de um bistrô. Cadê? Onde tá o samba, o feijão preto e a goiabada? Tá ali, embaixo da cama, escondido junto às juras de casamento, de amor e de abandono. Se larga tudo, é tirado tudo por mãos impossíveis e camadas invisíveis. Tortura, ameaça ou julgamento. Vem, vamos embora. Trocar a certeza do fim para a incerteza do abandono. Onde ou como ir ?

1976, Polônia. Um grupo de intelectuais exilados se encontram. Após horas de discussão, uma conclusão chega a eles: “Precisamos contar a história daqueles expatriados do Brasil”. O resultado? Duas mil páginas de Entrevistas, poemas, contos e manuscritos. 376 folhas entraram no primeiro volume de “memórias do exílio”.

O tempo não perdoa, come as pontas do papel e a beira da memória. A estimativa é de que cinco a dez mil pessoas saíram do país durante aqueles vinte anos. E agora buscamos os cacos de quem escreveu. Sessenta anos é pouco e muito tempo. Quem sobrou se espalhou pelos caminhos que se entrega. Frei Tito, que depois de noites sendo torturado vai pro exílio e lá se mata, escreve a frase: «São noites de silêncio/Vozes que clamam num espaço infinito/Um silêncio do homem e um silêncio de Deus».

Dentre as histórias achadas e eternizadas, temos Marijane Vieira Lisboa, hoje com 76 anos. Há sessenta, ela participava de causas estudantis contra a ditadura, foi presa e torturada, e depois exilada em dois países. Ela sabe da maturidade que cada palavra possui. Das experiências e da dor. São sons sutis dentro da sala branca com o pé direito alto e levemente mofada que estávamos.

Ela olha o “Memórias do exílio”, com o qual contribuiu há mais de cinquenta anos, e começa a folhear e ver nomes e nomes. Reconhece e comenta sobre os autores, mas avisa que faltou muita gente: “Só eu e a Maria Auxiliadora demos entrevista. Os outros que estavam envolvidos na liderança achavam que eram perigosas as declarações”. Marijane fala calma, com simpatia, do destino de Dorinha-Dora-Dorinha. “[Ela] foi minha grande amiga. Tava na Alemanha. Ela se suicida pouco tempo depois dessa história. Talvez tenha o texto mais bonito”.

Dora escreve com saudade e com muita dor: “Recebe o afeto que se encerra em nosso peito. Peito infanto juvenil, querido símbolo da terra/ amada terra Brasil”.

O calor da pequena sala incomoda e o ventilador nos acuda barulhento. A professora do quase extinto curso de ciências me conta de seu tempo na Alemanha. Entre as histórias de Arthur Poerner, um brasileiro dando aula de português com sotaque de Portugal, ela conta que poucos queriam falar. “Eu mesmo, na época, achava estranho. Parecia que reconhecer o exílio era reconhecer o que é uma derrota”. Ela evita falar do Chile. “Mais do que uma coisa política, é uma experiência existencial, cultural”.

Ela me conta analiticamente da década de 1970.“Ficar na Alemanha foi uma das coisas mais importante que me aconteceu, foi quando eu realmente entendi a gravidade do Holocausto”. Diz que era um país que não sabia viver com aquele passado, em que os filhos desconfiavam dos pais. Ela aprofunda como vivia, trabalhando em um “órgão de cooperação do terceiro mundo” e ensinando português, vendo os alemães aceitando o que foi o Nazismo. “Apesar de tudo que estava acontecendo eu estava aceitando o exílio, reconstruído um novo projeto de vida. Eu e a Dora tínhamos entendido o que era, mas com conclusões diferentes”, solta.

A impossibilidade de pensar no exílio reina e o Chile se aproxima. “Estávamos quase todos no segundo exílio. Não era uma nova experiência”, disse Marijane. E aqui o baque. É fácil pensar no exílio como um processo contínuo de dor ou sofrimento, mas é parte da vida, e ela só segue. “Meu maior choque foi o Chile. Até hoje não gosto de lá. Quando fui pra lá pensava em voltar. Na Alemanha eu fui pra ficar, talvez para sempre”.

Em 1970, o Chile era um país de esquerda que vivia diferente do resto da América. Mas algo incomodava, uma esquerda muito tradicional, atrasada. Na entrevista dada em 1976, ela diz que «O Primeiro ano no Chile foi Traumático. A sistematicidade com que eu falava da cadeia, o mundo emocional preso à prisão. Todos pensando numa volta imediata pro Brasil». Marijane sabia que o golpe no Chile não ia demorar muito, então buscou embaixadas até entrar em um vácuo burocrático do México. Lá, descobriu estar grávida. E, enfim, foi pra Berlim, em 1973, voltando pro Brasil só em 1978.

“Uma hora eu cheguei à conclusão: ‘Não vai dar certo essa revolução’”. Ela muda bem ali. Algo liga ou desliga. A conversa muda de prosa para mando. “Vou te dizer, boa parte da minha geração ainda não entende o que aconteceu. Tem um trauma muito grande”. Nietzsche engole nossa sala e o ventilador, sempre presente, continua sua sinfonia. Ela explica que o contexto social latino era impossivelmente diferente do dito por Marx, das coincidências e dos favores que montaram as três nações socialistas. “Acreditávamos em um monte de coisa que era pura crença. Não foi a ditadura. A gente perdeu a luta porque a gente não entendeu a realidade”, diz ela, que foi torturada aos 20 anos por defender uma causa estudantil. “Isso é uma tragédia, quando não tem solução boa”.

O ventilador se torna mais agressivo, o sol se esconde de nossa sala. De um lado, a caderneta cada vez mais cheia e, do outro, a caixa de pandora abre e mostra o fundo. “Uma juventude que se baseia em dogmas de momentos particulares, de Fidel, de Castro. Tentamos repetir. E fomos uma geração de jovens sacrificados e mortos”.

A sala finalmente perde seu formato, cor e sons, uma aura impossível, vazia, abandonados até mesmo os sentimentos de um lugar pelo qual se pertence. Marijane, e todos os outros, viram a memória. Sentado na sala, olho para a luz plástica e me lembro do hino verdadeiro, alterado com sutileza: «Me sinto mais Brasileira do que nunca, com mais direitos as palmeiras e sabiás do que muitos que estão lá».

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