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Aos filhos da democracia

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«Exílio»

«Exílio»

Quantos rostos se perderam pisoteados entre o sangue e a fumaça por um único grito de “ordem”?

Por Giuliana Barrios Zanin

Sessenta anos se passaram desde o golpe militar. As contas ainda não fecham e os julgamentos ainda não foram concluídos. Vinte e dois guerrilheiros desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, 1781 assassinatos de camponeses, dos quais somente 29 foram a julgamento e apenas 14 foram condenados. 6591 militares contra o sistema foram presos e torturados. Dos apenas 10 povos investigados, houve mais de 8000 mortes de indígenas brasileiros em conflitos de terra. Esses são números apontados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Dossiê de Desaparecidos e Mortos durante os vinte e um anos de ditadura.

Lembrar é resistir contra uma história de matança pura. A desordem regeu milhares de militares a servir apenas um verbo: “matar”. Matar quem pensasse, andasse ou falasse diferente. Dossiês, comissões, manifestações e pesquisas concluem: os números de mortes e desaparecidos não irão parar de crescer.

Em uma exclusiva para a Rede TV!, em 2023, Lula foi claro sobre a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que foi extinta pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no penúltimo dia de seu mandato, em 2022: “Já causou o sofrimento que causou. Eu, sinceramente, não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo”, declarou o petista.

Pensemos então que crianças naquela época hoje estão no poder. Qual a história contada a elas?

Em 2023, o governo de Tarcísio de Freitas tentou sancionar o projeto de lei que homenagearia Antonio Erasmo Dias, ex-militar de reserva e secretário de Segurança Pública na ditadura, no viaduto de Paraguaçu Paulista, no interior do Estado de São Paulo. Erasmo, assim como a maioria dos militares que atuaram por, pelo menos, vinte e um anos com severa brutalidade no Brasil, nunca foram condenados por assassinatos e tortura. Isso porque a Lei da Anistia, aprovada em 1979, pelo presidente João Figueiredo, concedeu “perdão” a todos que cometeram crimes políticos entre 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

Somente em agosto de 2012, durante o governo de Dilma Rousseff, torturada e exilada no período de repressão, a Comissão Nacional da Verdade foi instalada. Com o intuito de indenizar familiares e vítimas do autoritarismo, e prosseguir a responsabilização institucional militar sobre o caso, o último relatório da Comissão apontou que 377 pessoas que foram responsáveis por assassinatos e torturas entre 1946 e 1988, 210 estavam desaparecidas e 191 mortas.

O texto foi revisado a partir do pedido de partidos progressistas sobre a diferenciação de impunidade de presos políticos e torturadores pela Lei da Anistia, em 2014.

Andar sob o mesmo chão de quem enfrentou ou não a ordem apontada, de quem, mesmo com medo, não temeu pela farda e ergueu seus braços em nome da esperança de um novo tempo, ouvir, clamar e resistir pelos gritos silenciados entre paredes e marcas de destruição deixadas nas vidraças é lutar para que ninguém possa sentir novamente a perseguição, para que ninguém diga o que é certo e errado sob um comando uniformizado e repressor.

Se hoje ainda comemoram a dor dos que foram pisoteados e dos que sobreviveram ao tamanho massacre, é pela falha judiciária daqueles que usufruem de seu poder e ficam impunes diante da lei brasileira.

Enquanto aos filhos que a democracia pariu, que hoje vivem da memória e das histórias contadas, lembrar e cobrar da Justiça a reparação à trajetória daqueles que tiveram suas vidas interditadas e encobertas, seus corpos desconhecidos, suas mortes desrespeitadas e a angústia de suas famílias sem respostas que ainda sofrem, é lutar pelo Movimento de familiares das vítimas do massacre de Paraisópolis, pelas famílias de vítimas contra a Operação Verão no Guarujá, pelas Mães de maio de todo o Brasil e todos aqueles que ainda sofrem as marcas do autoritarismo apontadas sobre a cabeça todos os dias, marcados para morrer.

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