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Cinema Novo e Marginal: desafi os da identidade brasileira no período da repressão
Um mergulho nas narrativas cinematográficas que provocaram a opressão política e a concepção cultural no país durante os turbulentos anos 60 e 70
Por Felipe Assis e Romulo Santana
O cinema brasileiro, durante as décadas de 60 e 70 possuía duas vertentes mais conhecidas: o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Ambas as expressões possuíam semelhanças e divergências características em suas obras, trazendo elementos mais complexos em suas composições.
A concepção do Cinema Novo, por exemplo, é voltada para a construção de um cinema verdadeiramente brasileiro, desde às produções, até às abordagens culturais. Com o intuito de criticar o estrelismo das produções hollywoodianas entre os consumidores brasileiros, se utilizando de narrativas densamente políticas e poéticas, a fim de criticar o abandono do Estado.
Já o Cinema Marginal, buscava por cenários e narrativas à “margem” da sociedade e personagens que não detinham protagonismo até aquele momento, como: prostitutas, moradores de rua, batedores de carteira, dentre outros. Os filmes utilizam a violência e o grotesco com a intenção de gerar um cinema de desconforto, mostrando imagens que não estavam comumente presentes em uma tela de cinema, o mesmo que poderia ser experienciado ao andar pelas ruas utilizadas nas gravações e se deparar com essas pessoas reais.
Ambas as vertentes cinematográficas coexistiam com a repressão e violência da ditadura civil-militar.
Estética da fome política
Na década de 50, as bilheterias brasileiras lotadas nos finais de semana refletiam como a cultura ocidental norte-americana dominava os meios de produção da sétima arte - forma como o cinema foi definido por Ricciotto Canuto no Manifesto das Sete Artes. Essa condição submissa embarcou em discussões entre jovens intelectuais e a classe artística do país. As produções nacionais eram consideradas inferiores e genéricas por aqueles que consumiam obras do cinema imperialista, uma vez que a realidade do Brasil terceirizava à adaptação do modelo estadunidense na tela.
“É quando no pós-guerra que aparecem as câmeras pequenas, mais baratas e mais ágeis, funcionando com menos luz.” Explica o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e um dos diretores da TV PUC, Julio Wainer.
A primeira fase do Cinema Novo (19591964) compreende às produções que antecederam o Golpe, introduzindo cenários do interior de um país abandonado e violento, a partir de críticas sociais e políticas das mais distintas realidades, construindo uma fórmula emancipatória de fazer cinema com o olhar responsável por questionar o que é o Brasil. O movimento teve como precursores: Aruanda (1959) um curta com requintes documentais, dirigido por Linduarte Noronha de forma independente, tendo personagens quilombolas vivenciando embates com colonos escravistas no sertão da Paraíba. Já Arraial do Cabo (1960) de Mário Carneiro e Paulo César Seraceni, traça paralelos entre as realidades da comunidade de funcionários e os impactos sofridos por pescadores afetados pelo extrativismo. Ambas as produções fazem críticas sociais, com personagens populares, análise de narrativas contrastantes entre si, além da utilização de muitos gêneros cinemáticos ao mesmo tempo, estava fundada a gênese do movimento.
Em 1964, Glauber Rocha foi responsável pela primeira exposição mundial do movimento, por meio da obra Deus e o Diabo na Terra do Sol. O longa retrata a miserabilidade dos sertões brasileiros, abordando temas como a fome e o despertar da consciência crítica e política da classe trabalhadora. Ele chega ao Festival de Cannes com indicação à Palma de Ouro em um momento caracterizado por condições de distribuição global praticamente inexistentes para produções brasileiras.
A segunda fase do movimento (1964 - 1968) foi inaugurada com produções mais focadas nas críticas aos discursos de ordem social e ao próprio regime militar. O clássico Terra em Transe (1967) dirigido também por Glauber Rocha, abordava as temáticas como a corrupção, o populismo político e o controle exercido pela igreja em um país latino-americano fictício. Em abril do mesmo ano, o filme foi considerado “subversivo” pela censura, além de desrespeitoso com a igreja por conta do personagem que representava o clérigo não ser nomeado, único impeditivo para estreia.

Macunaíma, o livro de Mário de Andrade, considerado símbolo da primeira fase do movimento modernista brasileiro, ganha uma adaptação de Joaquim Pedro de Andrade. A produção aborda a figura heroica do indígena diante de uma visão contrastante do que é ser brasileiro.A película utiliza do surrealismo, o qual é característico nas produções que adotaram a criação de realidades paralelas, como forma de justificar as posteriores críticas ao regime militar, sem sofrerem censura.
Movidos pelo lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’’, entoado por Glauber Rocha, surgiram novos diretores que ajudaram a construir essa nova linguagem, dentre eles: Paulo Cezar Saraceni (19322012), Joaquim Pedro de Andrade (19321988), Leon Hirszman (1937 - 1987), Cacá Diegues (1940 -), formando uma geração revolucionária de cineastas.
“[O Cinema Novo] Nunca foram populares. Era de uma elite para uma elite que se advogava porta voz do povo, do interesse nacional popular. Não tinha expressão de público não. Eram vistos por dezenas de pessoas, centenas no máximo, não chegava até o povo.” Diz o professor da PUC, Julio Wainer.
Embora as ideologias buscassem renovar o ar cultural, o machismo da época ainda sombreava a ascensão dos trabalhos femininos. Helena Solberg (1938 -) foi a única mulher cineasta nesse ambiente predominado por homens. Com obras feministas de grande impacto social, abordando questões políticas e religiosas, Solberg surge em meio às discussões sobre o papel da mulher na sociedade brasileira. Ela foi responsável por obras como: A Entrevista (1966) - filmado em 1964, reunindo uma série de depoimentos de mulheres de classe média alta que discutiam sobre assuntos tabu daquela sociedade, tais como: sexo, virgindade, casamento e fidelidade. Carmen Miranda: Banana is my Business (1995) busca investigar a construção de uma figura midiática, como Carmem Miranda. Esse último rendeu à cineasta prêmios de Melhor Documentário em mais de cinco festivais de cinema ao redor do mundo, em países como Brasil, Cuba, Estados Unidos, Japão, Uruguai e Portugal.

Popular entre a massa
Entre as esquinas da Rua Triunfo e Vitória, no bairro da Luz, em São Paulo, nasce o Cinema Marginal, conhecido também por “Boca de Lixo”, região onde estúdios norte-americanos, como MGM, Paramount e Fox se instalaram. Em 1961, o local se tornou palco das grandes migrações com a inauguração do Terminal Rodoviário da Luz, porta de entrada das populações que formaram as regiões periféricas da capital paulista, tema central do Cinema Marginal.
“Imagens urbanas de pessoas que moram na cidade, que trafegam na cidade e que são marginalizados e subversivos politicamente. Marginalizados no sentido de que não encontraram um lugar de significado” Explica Marlyvan Moraes, mestre da PUC-SP em comunicação e semiótica.
Diferente do já aclamado Cinenovismo, o Boca de Lixo tinha características mais cruas, sem alegorias ou poesias e era mais enfático em suas críticas, misturando gêneros cinemáticos e se utilizando da experimentação e do que era considerado subversivo. Se destacou como o exemplo popular de fazer cinema de forma independente, com baixo orçamento e muita criatividade. “Ele [cinema marginal] vai desconstruir esteticamente o que seria a linguagem clássica, desafia essas convenções de corte, de respeito ao eixo, da câmera acompanhar sempre o personagem onde ele estiver”, complementa Moraes.
Rechaçado por Glauber Rocha, o movimento era chamado pejorativamente de “udigrudi”, em referência à palavra vinda do inglês “underground”, cultura “subterrânea”, que foge do padrão imposto pela sociedade. Com origens próximas à pornochanchada, o movimento se utilizava da sociedade subdesenvolvida urbana e suas narrativas, fundando clássicos do cult brasileiro.
Ozualdo Candeias (1922 - 2007), Geraldo Veloso (1944 - 2018), Júlio Bresani (1946 -) e Rogério Sganzerla (1946 - 2004) são considerados precursores do gênero.
Em 1967, A Margem, dirigido por Ozualdo Candeias, abordou tramas dos moradores de uma favela que margeava o Rio Tietê, pela ótica de alguns moradores dessa comunidade, a exemplo de um “louco” que procura por uma rosa e uma prostituta que perambula pelas vielas vestida de noiva.
Outra temática foi abordada por Rogério Sganzerla, em O Bandido da Luz Vermelha, lançada em 1968, que tem como protagonista o assaltante de residências João Acácio, conhecido de forma homônima pelo título do filme. É considerado representante da categoria de experimentação reunindo linguagens como documentário, comédia e faroeste urbano. Moraes cita o filme de Sganzerla como destaque do Cinema Rebelde, “Se coloca claramente contra o que acontecia nesse período no Brasil, que é esse regime autoritário, então quando você tem um bandido como herói, um bandido que não tem ideal, que não é capturado por esse autoritarismo militar, tem um modo de falar do Brasil, assim como é o Cinema Novo .”
O movimento contracultural sofreu censuras expressivas do Regime Militar, que exilou os artistas e corroborou para o fim do Cinema Marginal, soterrado pela retomada da produção pornochanchada na região.
EMBRAFILME como aparato de distribuição e instrumento repressivo
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz foi fundada em 1949, por Ciccillo Matarazzo, sobrinho de Francisco Matarazzo e o produtor italiano Franco Zampari. Responsável pela distribuição das produções nacionais, teve origem num período de efervescência cultural, propiciada pelo fim da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Em 1954, a ausência de medidas governamentais, no que diz respeito à distribuição nacional e internacional das obras brasileiras exacerbou o privilégio das produções estrangeiras às nacionais, que não sofriam com perdas inflacionárias, já que o governo subsidia as diferenças de arrecadação no ato de importação da obra por meio do câmbio monetário. A Vera Cruz, mergulhada em dívidas, decretou falência no mesmo ano por questões relacionadas aos baixos valores pagos pela Columbia Pictures, produtora norte-americana, fornecedora no ato de compra das fitas.
Durante o governo do militar de Artur Costa e Silva, foi criada a Empresa Brasileira de Filmes - EMBRAFILME, aparelho cultural responsável por gerar as medidas de financiamento e distribuição nacional e internacional das obras brasileiras. A empresa operou também em alguns casos como órgão de censura do regime. Foram criadas medidas de subsídios de até 30% da produção das obras com direito à participação nos lucros, além da Cota da Tela que determinava janelas de até 140 dias de exibição.
O Cinemanovismo foi de certa forma mais privilegiado do que o Marginal, pois estava apto a receber subsídios. Ambos os movimentos eram vistos pelo Regime como subversivos, mas ainda assim as políticas estatais criadas pela EMBRAFILME mantiveram as produções nas salas de cinema.
A Empresa Brasileira de Filmes foi extinta em 1990, durante o governo Collor, que foi responsável pelo fim de inúmeros mecanismos estatais de incentivos culturais. Com a medida, o cinema nacional sofreu uma parada em suas produções.

“Não é uma questão de herança, mas inspiração”
Ambos os movimentos foram responsáveis por criar narrativas brasileiras que se tornaram documentos históricos, possibilitando o estudo de períodos da história de forma ativa por meio das obras produzidas. O “politicamente crítico” foi o rótulo atribuído, a fim de qualificar a produção nacional. Em obras aclamadas internacionalmente como: Central do Brasil (1998), Cidade de Deus (2002), ou até mais recentemente Bacurau (2019), é possível encontrar características exploradas nesses dois gêneros fundadores do “cinema com cara de Brasil”, aquele que faz críticas complexas, buscando debater os contextos sociais do país e que derruba ordens estabelecidas pelo cinema imperialista. “O cinema autoral brasileiro ele deve muito tanto ao cinema marginal quanto ao cinema novo, como se eles tivessem aberto a porta para as possibilidades estéticas e de abordagem da filmografia contemporânea brasileira”, conclui Marlyvan Moraes.