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Enfrentando a Precarização: a realidade da saúde na ditadura
Marcado por surtos de doenças e alta taxa de mortalidade infantil, período militar condenava população a viver à própria sorte
Por Giovanna Takamatsu, Kimberlly Ferreira Costa Ramos e Victória Rodrigues
O acesso aos serviços de saúde de qualidade, no Brasil, sempre foi destinado a uma pequena e privilegiada fração da população. Isso, somado com a deficiência das políticas públicas, causou um abismo de desigualdade entre os brasileiros.
Durante a ditadura, a situação só piorou. Além de um êxodo rural que levou a população à extrema pobreza por ausência de suporte urbano à parcela, benefícios direcionados somente aos grupos dominantes, como militares, políticos e famílias de alto padrão e influência, um sistema com enfoque na medicina curativa - que, por focar apenas na cura e não na prevenção das doenças, abriu portas para diversas epidemias - e a falta de iniciativa estatal, com a rede privada vista como referência, e, portanto, limitando o acesso aos atendimentos, destinaram ao país uma das piores fases para a saúde pública.
O benefício é para quem paga
Somente em 1923, com pressão dos migrantes europeus, foi criado o primeiro sistema, que até o fim da ditadura mudou de nome várias vezes. Começou com o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social) que previa assistência social e acesso aos serviços de saúde de maneira “gratuita” para trabalhadores formais - isto é, apenas os trabalhadores urbanos. Entretanto, aqueles que não se encaixavam nesses critérios, como os próprios ex-camponeses e pessoas pobres, dependiam de sistemas filantrópicos.
Paulo Capel Narval, professor de Saúde Pública da USP, em entrevista ao Contraponto, afirma como os serviços eram elitizados. “Quem não era segurado da previdência social ou dependente de alguém que fosse segurado, ou seja, algum trabalhador com carteira assinada, não tinha direito a nada, e ficava sem assistência”, afirma.
Em 1985 esse sistema mudou para o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica), da mesma forma só podia usufruir do programa quem tinha carteira assinada. Os que não possuíam recursos financeiros eram considerados indigentes da saúde. Paulo afirma que “a assistência à saúde não era um direito das pessoas. A maioria não podia pagar por cuidados assistenciais e dependia da assistência pública, que era muito precária”.
A criação de sistemas previdenciários gerou um significativo retorno financeiro para o Estado, já que os impostos, pelo uso do programa, eram descontados diretamente dos salários dos trabalhadores. Mas, ao invés de destinar a verba para investimento em hospitais públicos e para a fabricação de remédios nacionais, o governo passou a investir esse lucro na iniciativa privada.
A vida na cidade leva à precarização
Para o governo militar, a saúde não era uma prioridade. A privatização desses serviços era incentivada, com a precarização dos hospitais que eram destinados à previdência. Dessa maneira, o Estado não realizava investimentos voltados para essa área e preferia aplicar capital no desenvolvimento e segurança, que rendiam mais economicamente.
O governo gastava mais do que investia. O modelo do sistema utilizado seguia a medicina curativa - que foca, diretamente, na cura de uma enfermidade -, e possui custo elevado. Isso foi visto, especificamente, nas zonas urbanas, quando ocorreu o êxodo rural com um consequente crescimento de trabalhadores, o qual não foi acompanhado pelo sistema de assistência. Narval ressalta que a saúde previdenciária tinha uma cobertura muito pequena, e que só se ampliou na segunda metade do século XX , porém, mesmo assim, a garantia era insuficiente para atender as necessidades da população . “Os custos da saúde previdenciária eram crescentes, tanto que isso levou à chamada crise da saúde previdenciária em 1980. Essa crise foi um dos fatores que levou a necessidade de o Brasil repensar e reestruturar seu sistema de saúde”.
A epidemia censurada
A doença que acarretou uma epidemia no Brasil ditatorial foi a meningite. A censura sobre os estudos e a paralisação das pesquisas, que são base da descoberta de infecções e novas enfermidades, prejudicou o reconhecimento e a contenção das epidemias, acredita o professor da USP. “No caso da meningite, o fato de a censura ter impedido a divulgação da epidemia contribuiu para ampliá-la, além de agravar o problema, retardar a vacinação e o tratamento das pessoas.”
O governo militar se negou a admitir a existência da epidemia, proibiu todos os meios de comunicação de divulgarem sobre para não alarmar a população e acabou por gerar uma crise extensiva na saúde pública brasileira. O surto da doença, que ocorreu em 1974, matou aproximadamente 2500 brasileiros, equivalente a 179,71 casos por 100 mil habitantes, de acordo com o portal da Fiocruz.
Para fazer valer a proibição e evitar que informações sobre a epidemia fossem divulgadas, o governo utilizava o Decreto-Lei nº 1077, que previa a censura da mídia na divulgação da situação da época. Profissionais da saúde não podiam dar entrevistas e citar o assunto. A liderança militar temia que a notícia de uma crise sanitária no Brasil manchasse a imagem do “milagre econômico” na qual o país estava inserido.
O trecho da música “Tá certo, doutor”(1975), de Gonzaguinha, descreve o cenário em que a população se encontrava, vivendo o intenso surto de meningite e o que se via nas áreas de isolamento do hospital São Sebastião (no Rio de Janeiro) em que os enfermos ficavam. “Dá licença, dá licença, ó o menino com meningite aqui, dá licença, afasta aí/Esse homem está enfermo, nem precisa exame sério, seu mal está constatado,/Depressa, põe no hospital/Deve ficar bem isolado, em quarto bem fechado/Sem portas ou janelas pois pode ser contagiante”.
O número de casos foi tão alto que exigiu uma ação do governo. A criação da campanha de vacinação foi somente em 1975, e imunizou, em média, nove milhões de pessoas.

O povo resiste
Com o fim do “milagre econômico”, a máscara caiu. Números exorbitantes de mortes infantis evitáveis e uma coleção de doenças preveníveis indicavam que o país não estava tão bem como os militares mostravam. A sociedade entendeu que mudanças precisavam ser feitas se tratando do sistema de saúde. Narval ainda ressalta: “Na área da saúde, se organizaram muitos movimentos sociais em torno da ideia de que a saúde deveria ser um direito de todos. Movimentos sociais que lutavam por acesso à água tratada, por melhores condições de vida, contra a carestia e a desnutrição”, constata.
A percepção negativa sobre as mortes e falta de recursos necessários para o cuidado público, conduziu a mudança urgente da organização assistencial dos hospitais e das redes de serviço para o bem-estar. A condutividade e os desafios enfrentados durante o período autoritário vingaram, já na redemocratização, a partir da Lei nº8080/1990, “a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes foi intitulado o Sistema Único de Saúde (SUS).