
5 minute read
A repressão sob uma nova roupagem: movimento LGBTQIAPN+ ainda luta pela garantia de direitos
A permanência das estruturas opressoras pós-ditadura sobre corpos da comunidade traz questionamentos: redemocratização para quem?
Por Ana Luiza Pires, Malu Araujo e Maria Luisa Lisboa
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue em 2014, destacou que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais sofreram perseguições e abusos de forma violenta durante o regime da ditadura civil-militar brasileira.
Segundo Marcos Tolentino, artista, pesquisador e educador do Acervo Bajubá, esse relatório possui um valor político e histórico importante, visto que representa o primeiro momento em que o Estado brasileiro reconheceu que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ foram vítimas de violações aos direitos humanos durante a ditadura.
Embora o preconceito a pessoas dissidentes já existisse antes do golpe, a ascensão de um Estado autoritário trouxe formas de repressão às expressões desse grupo enquanto sociedade.
‘Em uma sociedade agressiva, existir é revolucionário’
Uma das formas de repressão usada pelo regime eram as rondas militares em locais de socialização da comunidade. De acordo com Tolentino, “já existia uma noite homossexual a plena forma em São Paulo, ao mesmo tempo que a violência policial era uma presença constante na vida dessas pessoas”.
O pesquisador lembra que esses espaços eram vistos como perigosos ou de marginalidade, mas o fato de serem pessoas que estavam sempre à margem da sociedade permitia algumas expressões de liberdade.
Além das rondas militares, existia a “lei da vadiagem”, utilizada para controlar a circulação dos grupos pela cidade. “Uma mulher transexual, travesti, era presa porque estava se prostituindo ou porque estava simplesmente circulando com uma roupa diferente do gênero que estava no documento”, narra o educador.
Na busca da liberdade de ir e vir, travestis e transexuais utilizavam a carteirinha do DRT. Essa carteirinha possibilitava que, durante uma batida policial, elas não fossem pegas na lei de vadiagem porque tinham uma carteira de trabalho assinada, conta o historiador. Além disso, com a censura, a comunidade passou a utilizar a imprensa alternativa para se expressar e comunicar o que ocorria tanto no Brasil como no mundo.
Jornais como o “Lampião da Esquina” serviam como meio de informação para mostrar quais lugares eram seguros, onde estavam as boates, sendo também os primeiros a informarem sobre questões de saúde sexual. Nesse contexto, surgiu o folheto “ChanacomChana”, que trazia pautas lésbicas e feministas. O folhetim era distribuído no Ferro’s Bar, antigo ponto de encontro de mulheres lésbicas.
Espaços de reExistência
Os espaços de resistência, assim como no período da ditadura militar, tiveram e ainda têm um papel crucial na sociabilidade, nas práticas artísticas e na organização da militância destes grupos.
Ao falar sobre a importância desses espaços, Tolentino conta que “naquela época, a noite era onde você ia para tentar encontrar pessoas iguais a você, onde você tinha possibilidade de repensar sua relação com sua identidade de gênero, bem com sua vida sexual afetiva”.
Para Willow Oliveira, travesti, estudante de audiovisual e artista, é dentro do movimento artístico de resistência e acolhimento, o ballroom - surgido na década de 1960, em Nova York, e importado para o Brasil nos últimos dez anos -, que ela encontra esse espaço de afirmação. “Lá era um local acolhedor, onde as pessoas vivem o que você vive”, completa.
Recortes são necessários
“No Brasil, nós sempre temos que pensar em classe e raça, quem eram as LGBTs que eram vistas pela cidade? Eram justamente mulheres transexuais ou travestis que estavam trabalhando na situação de prostituição”, afirma Tolentino.
Ao pensar no recorte social, é possível perceber que mulheres trans, travestis, pretas e pobres eram a parcela que mais sofria repressão. E, ainda hoje, isso não é diferente. Segundo dados da Associação de Travestis e Transexuais (Antra), 72% das vítimas no Brasil da transfobia seguida de assasinato são mulheres trans e travestis, pretas ou pardas. Atualmente, o Brasil figura como o país que mais mata pessoas trans no mundo, pela 15ª vez consecutiva, ainda de acordo com dados do Antra.
Ao abranger esses dados, no ano passado foram registradas 257 mortes violentas de pessoas LGBTQIAPN+, segundo o Grupo Gay Bahia (GGB). Vale destacar que a maior parte desses dados são coletados de associações que não fazem parte do Estado brasileiro. Para Tolentino, esse “grande apagão de dados oficiais” é muito perigoso para a comunidade.

‘É como se [a gente] fosse um bicho’
Embora o fim da ditadura tenha sido oficializado ao final do processo de redemocratização, em 1988, não encerrou a repressão às pessoas dissidentes. Ao refletir sobre isso, o pesquisador do Acervo Bajubá questiona: “redemocratização pra quem?”, enfatizando a permanência, ainda nos dias de hoje, das estruturas que oprimiram as pessoas LGBTQIAPN+ durante a ditadura militar.
De acordo com o Dossiê da Antra “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023”, o Brasil registrou um aumento de 10,7% no número de assassinatos de pessoas trans.
Soma-se a isso a incerteza da permanência dos direitos conquistados pela comunidade na constituição, uma vez que “basta mudar minimamente a composição da suprema corte para que um direito que foi garantido seja retirado”, afirma o historiador.
Após 60 anos da ditadura, os preconceitos, agora sob uma nova roupagem, permanecem reprimindo pessoas dissidentes em seu cotidiano.
“O corpo travesti é um corpo em destaque. Quando as pessoas veem uma pessoa travesti sempre têm um olhar, gente que fala, gente que não fala, ou que só olha e disfarça, é como se [a gente] fosse um bicho”, relata Willow Oliveira. Ela completa dizendo que a esperança não morrerá e que batalhará por isso, sendo uma voz que diz: “estamos só querendo viver em paz”.