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Das Arquibancadas à Resistência: a luta pela democracia e contra o regime militar
Revista Placar não poupou esforços e aproveitou descaso dos órgãos censuradores para usar o futebol como instrumento político
Por Ana Luiza Pêgo, Beatriz Loss, Gabriel Flores, Julia Sena Batista, Pedro Amancio Camargo Netto
No 60° aniversário do golpe militar no Brasil, é fundamental relembrar o papel militante do jornalismo na luta pela democracia. Não foi somente o jornalismo político que fez parte desse movimento, mas o esportivo também. A Revista Placar foi um exemplo: ao defender a democracia saiu do papel apenas informativo mostrando resistência contra o regime imposto à época, ilustrando movimentos contrários à ditadura dentro do mundo futebolístico, dando destaque à Democracia Corinthiana.
É sobre esse movimento de resistência que o documentário Placar: a revista militante, que será lançado este ano, vai abordar. O longa é produzido por jornalistas que trabalham ou já trabalharam na revista, sendo eles: Ricardo Corrêa, Alexandre Battibugli, Sergio Xavier e Alfredo Ogawa.
Em entrevista ao Contraponto, Corrêa explicou sobre o objetivo do documentário. “Mostrar o legado de uma revista que transcende o papel jornalístico, que lutou pela democracia e liberdade, contra a ditadura. Placar foi uma revista militante”.
Já Xavier destacou que a ideia é mostrar como a Placar realizou um “jornalismo de sobrevivência”. Esta matéria teve acesso antecipado à primeira hora do documentário que aborda o período da ditadura, mostrando como uma revista de futebol teve papel militante à favor da democracia e da liberdade em tempos de censura.
O futebol como ferramenta política
Nos meandros da política brasileira, uma analogia com o mundo do futebol não é apenas uma figura de linguagem, mas uma representação de como essas esferas se entrelaçam. Assim como os torcedores defendem seus times, os cidadãos se polarizam em torno de partidos políticos.
Essa ligação ganhou outros contornos durante a ditadura militar no Brasil, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Naquela época, o futebol não era apenas um esporte, mas uma ferramenta de propaganda do regime. Os estádios se tornaram palcos para discursos patrióticos, enquanto a seleção nacional era utilizada como um símbolo de unidade e força do país.
Para José Paulo Florenzano, doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e professor de jornalismo esportivo na mesma instituição, o regime militar vigente tentou se associar à seleção brasileira de futebol masculino de diversas maneiras.
“Ele [o regime militar] utiliza a euforia desencadeada pela vitória como uma euforia a favor do próprio contexto da época, que era o contexto do milagre econômico. Então, essas coisas acabaram se entrelaçando e se confundindo nessa estratégia propagandística do regime”, analisou o professor.
Florenzano observa que essa “apropriação” da conquista esportiva, por parte dos militares, foi uma manobra do próprio governo para que a imagem do regime estivesse ligada apenas a momentos gloriosos, como a vitória na Copa do Mundo de 1970 e o desenvolvimento econômico do país.
Além disso, a relação entre futebol e política se estendeu para além das arquibancadas. Muitos jogadores e dirigentes foram cooptados pelo governo, transformando clubes e competições em territórios políticos. A censura nos estádios era uma realidade e manifestações contra o regime eram duramente reprimidas.
Logo, a relação entre política, futebol e ditadura no Brasil é uma imersão em um período complexo da história do país, no qual a modalidade se transformou em uma ferramenta de controle e manipulação, deixando marcas na sociedade e na memória coletiva do povo.
Quando política e esporte jogam “o mesmo jogo”
O engajamento político no universo do futebol não é uma novidade. Um exemplo marcante foi a “Democracia Corinthiana”, movimento iniciado no Sport Club Corinthians Paulista na década de 1980. Além das causas internas do clube, a iniciativa se destacou por ser abertamente favorável às eleições diretas, um marco na história política do país.
A Placar, revista brasileira especializada em esportes, foi lançada em 20 de março de 1970 pela Editora Abril. A estreia coincidiu com a Copa do Mundo de futebol realizada no México. Com o país experimentando um crescimento econômico significativo no início da década e uma classe média consumista em ascensão, a Placar se consolidou no cenário esportivo nacional como uma voz respeitada.
Rapidamente, a revista se tornou um espaço essencial, um “terceiro tempo” para os torcedores e leitores continuarem suas discussões sobre futebol. Mesmo diante de desafios, como a censura e a pressão política da época, a Placar emergiu como a principal publicação nacional de esportes na década de 1980. Sua cobertura abrangente não se limitou ao futebol nacional, mas também ofereceu percepções sobre o cenário internacional do esporte.
Desde a Democracia Corinthiana até o movimento “Diretas Já”, o impresso desempenhou um papel fundamental ao ampliar o diálogo sobre política e futebol no Brasil. Sua influência moldou a narrativa esportiva e política do país durante um período crucial de sua história.
A revista como agente e veículo da resistência
No regime político brasileiro da época, o futebol tornou-se uma ferramenta de mobilização nacional e a Placar estava na vanguarda deste movimento. O objetivo era criar uma nova identidade nacional, que teria o futebol como meio para mobilizar a sociedade brasileira na superação do atraso político do país.
A revista começou a abordar o tema das “Diretas Já” ainda em 1983, mas foi em 1984, com o crescente interesse da sociedade na campanha, que a cobertura se intensificou. O ápice aconteceu em abril de 1984, especialmente na edição nº 727 do dia 27 do mesmo mês, quando a revista declarou expectativas pela aprovação da emenda para o voto direto.
Nesse contexto, um personagem fundamental foi Sócrates, que atuava no Corinthians, tanto como jogador quanto como cidadão. A Placar o destacou como exemplo a ser seguido pelos torcedores e leitores.
Reconhecendo o impacto do esportista como ativista político, o periódico deu destaque especial às suas declarações e ações em prol do voto direto. Na edição nº 727, Sócrates foi entrevistado e suas palavras ecoaram em todo o país: “O voto é uma das poucas armas que o povo tem. A política não deve ser um jogo só dos políticos. Cada brasileiro tem o direito de tomar parte das decisões que dizem respeito ao seu futuro”.

Além do jogador do Corinthians, o jornalista Juca Kfouri, diretor da revista durante o período, desempenhou um papel crucial para o impresso. As análises contundentes na Placar e em outros veículos de mídia foram essenciais para conscientizar os leitores sobre a importância da participação política. Em um dos editoriais mais memoráveis da Placar, Kfouri escreveu: “O futebol não pode ser apenas um escape da realidade. Ele deve ser uma ferramenta de transformação. O país precisa de mais Sócrates, mais cidadãos que se levantem e lutem pelo direito de escolher seus líderes”.
Essas declarações no veículo, que vieram tanto de Sócrates quanto de Kfouri, foram como “chamados à ação” para os leitores. A revista não apenas informava sobre os jogos e os jogadores, mas também estimulava o debate e a participação política. Assim, a Placar se tornou não apenas uma publicação esportiva, mas um farol de esperança e engajamento cívico em um momento crítico da história do Brasil.
Após a Placar defender a liberdade democrática através de um clube de futebol, o próximo passo foi usar a figura de Juca Kfouri para sair em defesa da liberdade na política brasileira.
O periódico abraçou as ideias do diretor e apoiou abertamente a campanha das Diretas Já. Na edição nº 726, de 20 de abril de 1984, ela foi responsável por um marco na história da política e do futebol. Nesta, Pelé, o rei do futebol, posou com uma camisa da seleção brasileira escrito: “Diretas Já”. A foto, feita por Ronaldo Kotscho, foi emblemática, pois foi um apoio fundamental para a solidificação do movimento democrático.
Na edição seguinte, nº 727, de 27 de abril de 1984, outra capa emblemática. Nela, foi feita uma referência ao “Dia do Fico”, de Dom Pedro I. Na capa, o jogador Sócrates, caracterizado de Dom Pedro I, declara: “Se o Brasil mudar, eu fico”. A palavra “mudar”, na frase, se refere à aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que tentava introduzir eleições diretas no Brasil.
O bicampeão brasileiro chocou ao ameaçar a sua saída, porém, um mês depois, Sócrates cumpriu a promessa e aceitou uma proposta da Fiorentina, da Itália, já que a emenda não foi aprovada.

Dom Paulo Evaristo Arns: ativista e corintiano
Durante a redemocratização do Brasil, esporte, política e religião convergiram para a ideia de liberdade e autonomia. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal e arcebispo de São Paulo, foi essencial nesse cenário, engajando-se na luta antiditatorial. O escritor defendeu políticas para trabalhadores e áreas periféricas e apoiou as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), promovendo a união pela liberdade e democracia.
Ficou muito conhecido na área esportiva por sua paixão pelo Sport Club Corinthians Paulista, mas a luta pelos direitos humanos foi o que o tornou uma figura representativa em diversos contextos. Assim, Dom Paulo alimentou uma admiração popular, que o tornaria um grande personagem na história do Estado de São Paulo principalmente.
As ações humanitárias do arcebispo renderam reconhecimento nacional e internacional. O jornalista Ricardo Carvalho o elegeu como “Cardeal da Resistência”, visto que foi diversas vezes premiado e homenageado por atuar como agente de mudança em uma sociedade em que prevalecia uma visão de mundo conservadora e antidemocrática.
A presença do cardeal na capa da revista esportiva mais importante do país foi crucial para potencializar solidariedades que eram convergidas em uma democracia participativa, entrelaçando as esferas política, esportiva e religiosa. Logo, mesmo o Brasil sendo um estado laico, os três pilares juntos convergiam em uma espécie de alicerce na construção da identidade social brasileira.
“Tem duas coisas que se sabiam muito sobre o cardeal, uma delas é que ele era um defensor dos direitos humanos e que tinha uma ação política muito eficiente contra a ditadura militar, e a outra é que ele era torcedor do Corinthians”, disse Carlos Maranhão ao documentário sobre a Placar. Maranhão foi o editor da matéria de Dom Paulo Evaristo Arns, publicada em fevereiro de 1973 na Revista Placar, mesma edição que leva a capa do arcebispo segurando o escudo do clube de coração.

A Democracia Corinthiana e a relevância do movimento para o esporte e a política
Entre 1982 e 1984, os últimos anos da ditadura militar no Brasil, o Corinthians viabilizou uma experiência inovadora ao mundo do futebol brasileiro com a Democracia Corinthiana.
A iniciativa histórica foi organizada pelos jogadores, que tomavam decisões coletivas sobre todas as questões que envolviam o clube, desde as táticas de jogo até os direitos trabalhistas dos atletas. Essa abordagem desafiou as estruturas hierárquicas no Timão.
O objetivo do movimento era impulsionar o fim da ditadura militar no Brasil, e também fazia parte dos ideais defendidos pelos jogadores trazer melhores condições para o próprio clube, algo que realmente aconteceu. Nomes como Sócrates, Wladimir, Casagrande, Zé Maria e Zenon foram grandes expoentes do movimento.
A relação da Revista Placar com os jogadores do Timão, que estavam na linha de frente do Democracia, era de “muito respeito”, segundo Walter Casagrande Jr., comentarista esportivo, jornalista e ex-jogador de futebol brasileiro. “O legal de tudo isso é que nunca saiu uma linha, em nenhum lugar, do que se conversava ou do que nós estávamos fazendo dentro do clube”, disse o participante do movimento corintiano no documentário sobre a revista.
Tanto os atletas quanto a Placar lutavam por um ponto em comum: a democracia. “As pessoas que gostavam da gente, eram pessoas que pensavam igual, contra a ditadura militar, queriam a democracia, a liberdade e queriam votar”, revelou Casagrande.
De acordo com o professor da PUC-SP, José Paulo Florenzano, quando a Democracia Corinthiana surge, já havia uma certa “saturação com o regime militar”. O professor acredita que por essa insatisfação coletiva e social, a revista não tardou em apoiar o movimento do clube paulista. “Por conta dessa saturação, a mídia esportiva, como a Placar, por exemplo, apoiou a Democracia Corinthiana”.