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emaranhados nos mecanismos legitimadores de desmemória, ocorrendo desta resultar tanto da disputa entre fazeres quanto do favorecimento de um destes fazeres por uma força maior. 3.2. O CANTO E AS LÍRICAS DO SAMBA Como são múltiplos os sambas, são também múltiplas as formas com que o canto assume. O canto aparece no samba como sua característica mais importante depois da síncope, sendo portador do discurso memorialístico e ressignificador de mitos. Também se apresenta como o elo mais forte para com o rastro dos fazeres da África Central, onde a relação com o religare20 é fundamentada na oralidade passada de geração em geração. O canto aparece como portador de histórias múltiplas e fragmentadas, estabelecem um novo elo em relação ao passado diferente do linear editado e legitimado pelo saber dominante. As “outras histórias” convergem como tendência da historiografia contemporânea que questionam a concepção de história como evolução linear e progressista e a do tempo vinculado a leis de mudança e prognósticos do futuro. Procurando acabar com a sedimentação entre passado e presente (...), levando a descobertas de temporalidades heterogenias, ritmos desconexos, tempos fragmentados e descontinuidades, descortinando o tempo imutável e repetitivo ligado aos hábitos, mas também o tempo criador e dinâmico das inovações, os tempos das memórias (MATOS, 2007, p. 21).
A força do canto no samba reside então nessa concepção de tempo em que futuro, presente e passado se conectam formando um todo, não sendo tratados separadamente. A experiência para o sambista se converte em discurso, que se volta em ler o presente a partir de sua relação com o passado, 20
Reginaldo Prandi em coletânea por ele organizada que busca converter para o escrito diversos mitos relativos aos Orixás cultuados pelos povos Iorubás e que se diversificam em variados cantos - que combinados a movimentos de desterritorialização e reterritorialização originaram as diversas religiões afro-americanas -, comenta em prólogo a importância da oralidade para a construção dessas mitologias. Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente. Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziram-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás no Brasil e em Cuba (PRANDI, 2001, p. 24).