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4.4. CANÇÕES DE DESASTRES
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
São vozes que, apesar das diferenças, têm no território uma experiência em comum. A narrativa que delas decorre é determinada por sua presença no cotidiano dessa comunidade, ocasionado de a violência antagonista se caracterizar precisamente como distanciamento que é estranho as relações sociais costuradas naquele território. A característica como crônica-canção remete a presença que é acompanhar e adentrar nesse cotidiano, situação que torna possível perceber o peso que é a impessoalidade do árbitro estatal ao interferir na continuidade da favela. O relato em seu caráter de crônica só se torna possível, então, devido ao olhar integrado à convivência social; sendo que um ponto de vista panorâmico, por cima, não poderia transmitir a narrativa do despejo em suas nuances cheias de sentido humano.
4.4. CANÇÕES DE DESASTRES.
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Ainda comentando o caráter promíscuo e irregular em “Abrigo de Vagabundos”, onde o narrador trava diálogo com o fiscal da prefeitura, Wilson Flores Jr. não deixa de abrir hipóteses sobre o resultado da nova maloca que resulta desse contato. Relacionando assim essa construção com o que ocorre constantemente as moradias irregulares nas grandes cidades, acredita na possibilidade de resultados catastróficos que possam atingir o novo abrigo.
A única menção ao poder público surge sob o suspeitíssimo “arranjou tudo pra mim”, que “legaliza” uma construção que, talvez, não devesse ser legalizada (fato que as tragédias anuais em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outros lugares do país só fazem acentuar, pois, de forma geral, as mortes ligam-se a ocupações irregulares, muitas vezes “legalizadas” de modo torto: continuam irregulares, mas o poder público, além de fazer vista grossa, instala serviços, escolas, postos de saúde). Ou seja, indiretamente, os versos apontam também para a precariedade da construção, realizada sem planta e absolutamente entregue aos esforços e possibilidades do sujeito, o que demonstra, consequentemente, a ausência de planejamento e de políticas públicas voltadas à habitação e à cidade como espaço de convivência coletivo; longe disso, o que se vê é um “salve-se quem puder”, uma terrível “terra de ninguém” (FLORES JR., 2011, 128).
Não pretender-se seguir aqui a leitura sociológica de Flores Jr acerca da legitimidade do Estado para avaliar se um local é digno de ser habitado ou não. Mais importante é a percepção de que muitas dessas moradias, construídas aleatoriamente de forma precária e em territórios inapropriados para construção podem sofrer sua destruição devido a sua própria fragilidade estrutural. Esse ponto fraco característico das práticas de ocupação do
território urbano pelos excluídos é ponto de partida para adentrar em outra temática presente nos sambas de Adoniran, que são os desastres esparsos que assolam a relação do excluído para com sua moradia.
A temática do desastre compartilha com a temática do despejo o caráter de tratar de uma força adversa aos interesses do excluído em sua relação com o território, os frustrando. Contudo, se na temática do despejo os personagens eram vítimas de relações de poder que dividiam o espaço urbano, tendo o Estado como mote legitimador, na temática do desastre o flagelo é referente a um elemento aleatório, vago, que desencadeia algo de catastrófico na vida do personagem. Pode ser um elemento externo, como nos casos dos desastres naturais, ou interno, como incêndios causados por irregularidades presentes no interior de uma moradia.
Isso não significa que as relações de poder sobre o espaço estejam ausentes, no que também é pertinente o comentário de Wilson Flores Jr; não pelo legalismo que envolve seu argumento, mas sim ao mostrar que esses desastres só são possíveis devido à exclusão social. Fator que é balizado no espaço urbano devido à cristalização de territórios específicos para abrigar a população pobre; muitas vezes caracterizados por degradação ou irregularidade no terreno que inviabiliza uma moradia digna. Em paralelo, os serviços ofertados pelo Estado ou por outros elementos provedores de recursos necessários para a vivência nas comunidades pobres o fazem de forma precária e indecente. Relembrando Certeau, essa precariedade faz parte dos mecanismos de controle operados pelo Estado, consagrando a exclusão social. Logo é sintoma dessa exclusão que, dentre a fraqueza de outros serviços, leva à ausência de uma política de escoamento que evite enchentes, ou a um serviço elétrico cujos curtos não se desenrolem em incêndios.
Evidencia-se então que por mais que difira da temática do despejo devido à incerteza futura que trará o elemento destruidor para a vida do personagem, a temática do desastre continua – e ao acrescentar a presença do incerto, torna mais complexos – os pressupostos que envolvem o despejo. Essa temática evidencia ainda mais o cotidiano como espaço de tensão, onde os desastres decorridos são motivos de choque do indivíduo para com o meio.