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DA MEMÓRIA
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
3. O SAMBA COMO FAZER MOVÊNTE E SUA CONCEPÇÃO COMO ARTE DA MEMÓRIA
Com o diagnóstico da modernidade urbana como fenômeno caracterizado pela volatilidade que afeta o todo, das estruturas físicas do ambiente até as relações sociais, considera-se que esse movimento é permeado por jogos que consistem tanto dos projetos daqueles que estão no poder quanto os dos grupos marginalizados por essa estrutura. Logo, conforme os intentos deste trabalho, chega-se assim à análise do samba como um componente desta modernidade e, mais importante, como um fazer que diga respeito aos excluídos.
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Conforme visto anteriormente, o samba nasceu e se manteve como manifestação artística ligada a fazeres das camadas marginalizadas que existem como maneiras de reinventar a vida cotidiana. Porém, é notório que assim como podem ser parte de uma concepção de viver que leva em conta o posicionamento dos indivíduos no espaço, ocorre que existe a possibilidade dos agentes de poder, em principal o Estado, cooptarem esses fazeres conforme interesses estratégicos. Tendo em vista este aspecto, o foco deste capítulo será o de como o samba é elaborado como resistência ao ser permeado por diversas características que são estruturadas pela memória.
Configurar uma resistência memorialística a uma modernidade concebida sobre imposições do poder é deveras um fator complexo. Pois se o cotidiano está submetido à destruição amnésica, os fazeres também podem, mesmo que sutilmente, ser afetados por esse encadeamento. As produções dos excluídos surgem numa conjuntura que “se dissipa e não se dissipa, insistindo como memória, projeto, presença, ou resíduo, ali mesmo onde parece extinguir-se de vez” (WISNIK, 2004, p. 252). Lembrando as teses de Certeau, encare-se esses fazeres e saberes como parte da ideia de uma arte da memória – em conformidade com a assimilação de memória para com o kairos grego, ou seja, de um tempo voltado para o momento – onde esta se coloca como fator diferencial da vida cotidiana; nela atua a alteridade, a modificação através do contato com o outro (CERTEAU, 1994, p. 163). A memória como alteridade assim é considerada dentro de
relações de espaço que são as experiências. Como posto no capítulo anterior, a experiência é proposta teoricamente por Benjamin como parte da dialética do indivíduo para com a multidão. A produção da memória ocorre então como resultante das experiências que se constituem em jogos de sensibilidade que o indivíduo estabelece em seu cotidiano; desencadeando sensações e sentimentos integrados a condutas socialmente fundamentadas, podendo ser rejeitados ou aceitos conforme o avançar das épocas (MATOS, 2007, p. 35 36).
Ora, se o estatuto do tempo atual, a modernidade urbana, se faz consonante a aniquilação do passado material e afetivo, a própria memória surge como algo a ser questionado. Sua condição é a de se configurar como resistência a uma concepção de cotidiano que busca diluir as nuances das relações pessoais.
As produções culturais resultam dessa conjuntura, se organizando sobre as interações originadas da experiência e também respondendo a elas. Seu aparecimento diz respeito a formas de representação desses anseios em sua ligação para com meio. Enxergue-se então o samba em sua inserção na modernidade, suas histórias e suas criações, como parte dessa formação como arte da memória. Deveras torne possível ler o samba conforme sua reconfiguração no espaço como transformação deste em memória através do momento; embora os aspectos fortalecidos na produção do registro cotidiano, feito através da conversão do samba em relato, ocorram sobre o preço de alguma perda em relação ao vínculo para com o passado de sua formação.
Se por um lado a lírica do samba muitas vezes é marcada por um discurso memorialístico, focado nas experiências cotidianas, por outro o desenvolvimento do samba como fazer em contato íntimo com a modernidade levou a uma série de trocas e modificações estruturais. Essas mudanças que afetaram os fazeres populares diluíram e recondicionaram o próprio conceito de samba per si. Pois na transição brasileira de um ambiente rural para um ambiente urbano, o espectro do samba aparece como paralelo a essa mudança de paradigma; ocasionando do gênero também sofrer revoluções estruturais conforme vai se aprofundando e enraizando nessa modernidade.