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2.2.2. O cotidiano e os mecanismos de cooptação

apelo simbólico ainda maior ao entrar na questão relativa a de como essas duas figuras são ligadas a formação da desigualdade brasileira. Quando o excluído entra na rua como um indivíduo, o espaço da multidão, espaço no qual ele deveria ser condicionado como apenas soma de um, ele modifica o estatuto desse espaço. Acontece o encontro dialético: o choque da multidão com o individuo, seu grito.

Se a multidão é alienante, nela se pratica a vivencia como conceito reacionário, misturando-se à massa e se entregando à alienação capitalista no cotidiano apático e desmemoriado da modernidade urbana. Em contraste, o individuo moderno, no que diz respeito à afirmação de si mesmo como agente que busca se afirmar na modernidade, se propõe a fundamentar para si uma experiência; que emerge do choque e que permite jogar com a memória, fazer dela o cerne de uma ação cotidiana (BENJAMIN, 1994, p. 108 - 110). O individuo retoma a rua, o andar se configura como linguagem, uma gramática na qual considera o movimento como um rastro, exercício constante das atividades cotidianas aplicadas (CERTEAU, 1984, p. 177). Assim, afirmar a individualidade na rua é modificar o caráter desta como espaço.

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2.2.2 – O cotidiano e os mecanismos de cooptação

Tornando ao samba produzido nas favelas, considera-se que a multiplicidade de criações que circundam essa associação entre o fazer e território confluíram na fundamentação de uma estética que viria a se sobressair na associação entre o samba e a modernidade. Do que alcançou essa modalidade de fazer samba, se evidencia a complexidade das relações entre o Estado e as populações, entre táticas e estratégias. Se as táticas surgem como manipulações a agir modificando um espaço marcado pelas imposições do Estado, a estratégia deste também pode se permitir de transformar o resultado das táticas10. Deveras, a recordação do período compreendido pela Era Vargas

10 O Tratado de Nomadologia de Deleuze e Guattari é rico em metáforas sobre a ação estratégica do Estado e de como afeta as populações que vivem no espaço por ele controlado. Primeiramente, compara o poder do Estado sobre o espaço ao jogo de xadrez.

O xadrez é um jogo de Estado, ou de corte; o imperador da China o praticava. As peças do xadrez são codificadas, têm uma natureza interior ou propriedades intrínsecas, de onde decoram seus movimentos, suas posições, seus afrontamentos. Elas são qualificadas, o cavaleiro é sempre cavaleiro, o infante um infante, o fuzileiro um

que elevou o samba ao status de música nacional, vindo a ocasionar a disseminação do gênero por via da difusão do rádio como meio de comunicação de massa, é um bom exemplo de mecanismo de cooptação no qual torna possível a assimilação dos fazeres para usos estratégicos.

A chegada de Getúlio Vargas ao poder trouxe novas formas de atuação do Estado em relação à população, embora este continuasse desempenhando o papel excludente do qual esteve associado historicamente. Se vinculando aos ideais propostos por intelectuais como Gilberto Freyre, o Estado adotou como plataforma cultural uma ideia de brasilidade que corresponderia a uma noção de mestiçagem como modelo da formação nacional. Elementos peculiares da diversidade cultural brasileira foram apadrinhados como exemplos de bem sucedida mistura étnica que caracterizasse o Brasil de forma excepcional (VIANNA, 2012, p.62). O samba, que outrora veio a ser tido como música marginal, repudiada pelas elites, mas que já por algum tempo passava por uma gradual fase de aceitação por certas partes dessas mesmas classes altas, se transforma na faceta musical dessa nova ideologia de Estado, música representante de um Brasil unido (VIANNA, 2012, p.110). Foi através desse pressuposto ideológico que o Estado desenvolveu um sofisticado mecanismo de cooptação dos fazeres da população, onde para tanto a massificação e institucionalização da cultura popular foi fator preponderante.

Da nova situação que o samba se encontrou com a ascensão do varguismo, dois fatores foram importantes no que diz respeito à relação entre o Estado e as artes populares. O primeiro foi o incentivo aos chamados sambas de exaltação, que associavam o gênero a um discurso ufanista. Se o samba

fuzileiro. Cada uma é como um sujeito enunciado, dotado de um poder relativo; e esses poderes relativos combinam-se num sujeito de enunciação, o próprio jogador de xadrez ou a forma de interioridade do jogo. (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 13)

Se o fazer tático pode ser cooptado pelo Estado, significa que ele pode de ser codificado conforme a simbologia do poder e ser assim compreendido como algo passivo de ser manobrado consonante pressupostos de estratégia. Algo que pode ser comparado ao nômade que os autores contrapõem ao Estado. Se o nômade, como força exterior, confronta o poder do Estado através do movimento da máquina de guerra, existe a possibilidade do Estado internalizar e coordenar esse movimento.

Em suma, a cada vez que se confunde a irrupção do poder de guerra com a linhagem de dominação do Estado, tudo se embaralha, e a maquina de guerra passa a ser concebida unicamente sob a forma de negativo, já que não se deixou nada de fora do próprio Estado. (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p. 16)

ascende como música nacional, previsivelmente o Estado havia de estimular que a lírica se voltasse para a exaltação de temáticas relacionadas à nação e a uma concepção de povo que correspondesse os anseios do poder. Os sambas exaltação pintavam um país realçando as belezas naturais, a alegria de uma população mista de muitas etnias. Traçava-se assim o retrato de um país desejado pelos ideais nacionalistas que vigoravam naquela época. O mais conhecido expoente desse gênero, Ary Barroso, é um exemplo bem acabado de compositor que atuava conforme os ditames da Era Vargas.

Natureza e mestiçagem, boêmia e Carnaval: Ary Barroso fundiu tudo isso em sua aquarela, carregando no tom ufanista, e criou, com base no Rio de Janeiro, a identidade brasileira de maior duração, adotada que foi pelos governos, pelo povo e pelos gringos. (...) A imagem do país, veiculada pela “Aquarela”, teve difusão garantida pela Rádio Nacional, que, no Rio de Janeiro, nacionaliza a cultura. O preço pago foi a eliminação da irreverência carioca de Noel . A “Aquarela” tinha a cara do Estado Novo. Enfatizava o Brasil, o nacionalismo, o otimismo a integração, a miscigenação a história. Não abria espaço para ironias e gozações. Ary voltou várias vezes ao tema, como em “Brasil Moreno”, de 1941, e em “Rio de Janeiro (Isto é meu Brasil)”, de 1944, quando estava nos Estados Unidos fazendo música para filmes, inclusive para Você já foi a Bahia? de Walt Disney. (CARVALHO, 2004, p.31)

O enfraquecimento de um samba irreverente para com os pressupostos do poder corresponde ao segundo fator do alinhamento entre Estado e o gênero musical. Se o Estado deu o subsídio para que um samba de exaltação a um Brasil estereotipado que interessava aos mecanismos estatais, por outro lado, em nome das ideologias que fundamentavam o varguismo, como o culto ao trabalho, o Estado passou a se contrapor às temáticas tradicionais do samba que afirmavam a malandragem e a vadiagem. Para além dos vetos da censura oficial sobre o que se veiculava em contraponto a imagem de país propagada pelo varguismo, o Estado empreendia também formas sutis de cooptação de sambistas através de órgãos de incentivo financeiro. Eis que artistas que outrora cantavam odes à malandragem e à boemia, transformavam suas líricas - dentro do contexto de apreensão da música por uma crescente indústria fonográfica - para se adequarem aos dogmas da sociedade pretendida pelo Estado Novo: entra assim o malandro regenerado, que abandona a boemia para se juntar a legião de trabalhadores. Talvez o caso mais conhecido desse tipo de cooptação seja o de Wilson Batista. Compositor de um dos mais famosos sambas sobre malandragem, “Lenço no pescoço”, Wilson Batista, em parceria com Ataulfo Alves, comporia o “Bonde São Januário”: música de

sucesso no carnaval de 1941, cuja letra contava sobre um operário, apresentado de forma simpática ao ouvinte, que toma o bonde que dá nome à canção para ir trabalhar com uma sensação de alegria e de contribuição para com a sociedade. Porém deve-se lembrar que, segundo algumas versões, essa seria a composição que veio ao público a partir da mediação da indústria fonográfica; pois, no lugar dos conhecidos versos “O bonde São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”, a lírica original, coerente com o passado do compositor, colocava que “O bonde São Januário/ leva mais um otário/ que vai indo trabalhar” (OLIVEN, 1984, p. 86). Assim, pode ser proposto um bom motivo para aprofundar a discussão acerca das relações entre Estado e populações, entre as estratégias e as táticas. Pois se a versão original do “Bonde São Januário” era cantada nas rodas, deixando a lírica alinhada com os ideais de Estado para as gravações radiofônicas, cabe o questionamento da extensão da capacidade do estatal de cooptar os fazeres. Santuza Cambraia Naves considera que a gravação de Baiano de “Pelo Telefone” e a atribuição autoral a Donga por uma música de criação coletiva como o ponto em que o samba se distanciou de uma cultura do tipo tradicional para se converter na metáfora de um Brasil em processo de modernização (NAVES, 2010). Embora este trabalho compartilhe da noção de que o samba possa servir como uma metáfora de uma modernidade brasileira, há de considerar que a entrada do samba na indústria fonográfica corresponde sim ao início das relações entre o gênero e os mecanismos de cooptação. Afinal, a oposição proposta entre composição coletiva e autoria individual não equivale a traçar um contraponto entre sociedades do tipo tradicional e do tipo modernas, mas sim da do projeto de modernidade criado nas ruas pelos fracos e excluídos que reinventam o seu cotidiano e entre a modernidade moldada conforme pressupostos de organização e de pensamento do poder instituído, no qual o Estado é o agente por excelência. Pois mesmo sendo alvo dos aparelhos de cooptação, ocorre do samba ainda ser designado como tática do mais fraco, não diminuindo a sua capacidade como forma de resistência cotidiana. Pois se as táticas consistem em manipulação do fraco de dentro dos mecanismos de dominação, os sambistas continuaram a cantar suas temáticas tradicionais de dentro da própria indústria fonográfica, mesmo durante e depois

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