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4.5. CANÇÕES DE EVENTOS MUSICAIS

verdade fortalecido pelo aspecto amistoso dos dois personagens, pois ao falar que o personagem do narrador “agora tá sempre de fogo” o dono da morada demonstra conhecimento dos excessos que aquele tem feito ultimamente. Assim, se limita para apenas uma noite o abrigo ao amigo como lição para que este reflita sobre sua parte no acidente.

O resultado final desta canção é uma interessante captura do momento em suas minúcias. Se em “Saudosa Maloca” certamente o mais importante é a narrativa, em “Quem bate” esta é submissa ao momento presente, do diálogo entre os dois personagens e no que ele resultará. Do minimalismo presente na lírica dessa canção, é notório como a captura do momento recria detalhadamente as formas assumidas numa conversa cotidiana, estando o malabarismo proposto entre fala e canto a serviço deste aspecto.

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4.5. CANÇÕES SOBRE EVENTOS MUSICAIS

É curioso que os motivos deflagradores de desgraças materiais que deixam os pobres na metrópole à própria sorte também o sejam, em algumas canções de Adoniran Barbosa, motivação para festejo; mais especificamente eventos musicais centrados no samba e na dança. É o que geralmente acontece no cancioneiro quando não é ocasionada perda material significativa, mas sim quando acidentes da mesma natureza geram apenas pequenos contratempos, facilmente contornáveis. Pois se os eventos mais graves serviam como subterfúgio para falar de solidariedade e de resignação, interrupções modestas que “dão o samba” cuja motivação é versar sobre sua própria essência, exercendo de certo função metalinguística. É o que acontece em canções como “Luz da Light”, onde o blecaute é comemorado como motivo para sambar.

Mas Adoniran Barbosa nem sempre precisa da desculpa proporcionada pela interrupção de um serviço externo para cantar sobre o samba, tratando-se de uma das temáticas mais abordas em seu cancioneiro. Em verdade, abordando essa temática, Adoniran se alinha à tradição discursiva do samba que é o cantar sobre o próprio fazer. Das improvisações do partido-alto até as gravações do samba no estilo novo, tudo aquilo que “dá samba” é visto como

motivo para desenvolvimento lírico do tema. E por tudo considere-se o entrelaçamento com outros assuntos muito abordados no gênero. As canções de amor, as alusões a mitos e, principalmente, a malandragem frequentemente coincidiam com a operação de criar sambas; por vezes levando a reflexões sobre a natureza do gênero. É o que acontece, por exemplo, na polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa, onde este buscara fortalecer o valor do sambista como compositor, afastando-o do estigma do malandro, o que o levou a investir em sua lírica que “o resultado do trabalho do sambista (em cujo peito bate também um coração) é, em última análise, ‘música’: algo a que finalmente a cultura contemporânea dá um estatuto de sinfonia” (SANDRONI, 2012, p. 176). Contudo, por mais que a ênfase no samba como música seja importante por significar seu fortalecimento como tal, deve-se considerar que o espectro lúdico que envolve o gênero também.

É a faceta lúdica do samba que chama mais a atenção de Adoniran ao compor suas canções voltadas ao próprio samba. Como seu olhar é dirigido aos acontecimentos do cotidiano, sua relação discursiva para com o samba é precisamente a da captura do momento em que é cantado, tocado e dançado por uma comunidade que se volta em torno desse gênero musical. O samba encarna o lúdico assim como um evento, ou mais precisamente uma reunião. Nesse sentido, os elementos que estão envoltos na reunião ou que são fundamentais para a sua ocorrência são tão importantes quanto o samba em si.

Representar esses arredores que orbitam em torno do fazer, manifestado como uma reunião, é valorizar os rastros que emergem da relação entre o fazer e o cotidiano em que está inserido. Assim, retratar o samba como uma reunião é identificar como o fazer age no cotidiano e como ele se caracteriza como um fazer coletivo. A despeito da individualização que é proporcionada pela captura feita pelos meios de reprodutibilidade e do discurso valorativo da figura do autor, a ideia do samba como reunião remete primeiramente a uma contribuição múltipla, bricolagem que torna o evento – e consequentemente a composição – possível. Processo interessante e irônico: Adoniran lança mão de sua qualidade como autor de sambas para assim retratar este como criação socializada.

E dos rastros que enunciam o samba socializado na reunião, nesta estão investidas diversas experiências que se inserem no evento, adicionando-se ao samba em que se centra ou agindo em paralelo a este. E um traço curioso da constituição dessas experiências dentro da reunião é que elas relacionam o samba ao território. Por mais que a ideia do samba de Adoniran como crônica é caracterizada pela relação entre o cotidiano e o território – sendo este aspecto bem evidente nas temáticas anteriormente abordadas – é ao adentrar na temática dos eventos musicais que Adoniran esmiúça a ligação do samba para com o território. Fator importante na investida de colocar o samba como memória da cidade, ocorrendo não apenas de remeter à captura do momento como também à construção da história do próprio samba em São Paulo, onde os territórios citados nessas canções se confundem com seu papel na história local do gênero.

O que esses aspectos evidenciam e no que eles também têm em comum com a tradição do samba é a forma com que o evento musical se envolve com certos signos, que conotam uma idealidade do samba em torno de imagens revestidas com significado. Semiótica que encontra sua base nos próprios instrumentos musicais, que se tornam simbólicos do tipo de samba que está sendo tocado. Considera-se assim que uma das inovações que o samba do estilo novo trouxe no plano discursivo foi a valorização simbólica não só dos seus instrumentos característicos, mas também de diversos outros elementos que serviriam para estabelecer uma mitologia em torno do gênero e que organizam as temáticas abordadas; jogo de signos que não é, contudo, estático, se movendo conforme o gênero se modifica. É o caso da valorização simbólica dos instrumentos de percussão cuíca, surdo e tamborim, que formam a base rítmica do samba oriundo dos morros.

Assim, penso ser legítimo atribuir a estes três instrumentos o papel de signos identitários, dando a cuíca, surdo e tamborim o lugar de equivalentes sintáticos da farofa, vela e vintém e de chapéu, tamanco e lenço. Ao mesmo tempo é preciso ter em conta que eles não são escolhidos como tais por seus vínculos práticos com o feitiço, como no primeiro caso, nem com a indumentária do malandro, como no segundo, mas por serem objetos musicais. Isso determina um outro plano, no qual eles substituem, como vimos, pandeiro, prato-e-faca e ganzá (SANDRONI, 2012, p. 183).

Sandroni assim identifica dois planos simbólicos em que o discurso do samba atua, que embora possam se entrecruzar, não suprimem a presença um do outro. Trata-se assim de um plano externo, que envolve os elementos de forma que se liguem direta ou indiretamente na constituição do samba, e um plano interno, sobre os elementos que são per se inerentes à criação do samba. São instância que Adoniran ajudaria a configurar no que concerne o deslocamento do novo samba urbano para a cidade de São Paulo, estabelecendo símbolos que foram precisos na identificação do gênero para com a cidade. A maloca de Adoniran surge nesse contexto acerca do simbólico, numa tentativa de levar o samba a proporcionar uma leitura do cotidiano instável da cidade de São Paulo. Nesse entender, Adoniran desempenha um papel semelhante ao encarnado por Noel Rosa e Wilson Batista no estabelecimento dentro do discurso do samba de símbolos que se comunicariam com a cidade.

Canções diferentes e de épocas diferentes, encontram um ponto de convergência ao retratarem o mesmo processo vivido pelas duas cidades, ressaltando as peculiaridades da forma como os acontecimentos foram registrados pelos artistas. Como forma peculiar de expressão popular estas obras permanecem até hoje no repertório das canções populares brasileiras como marcas de identidade de um Brasil que, longe de abrigar as formas de expressão popular, as coloca à margem. Contudo, é neste processo que elas ganham voz, retratando, denunciando e fixando paradigmas, como é o caso da figura do malandro carioca e do “maloqueiro” paulista (MARQUES, 2007, p. 7).

Da mesma forma que os acontecimentos narrados outrora, é interessante perceber que a maloca reaparece no discurso tematizador das reuniões de samba. Seu aparecimento simbólico é para dar suporte à conjuntura entre o cotidiano da cidade e o fazer artístico do samba. Eis que ao considerar essa possibilidade, Adoniran também retoma a simbologia interna ao fazer do samba, remetendo a tríade de instrumentos de percussão constituintes do samba do estilo novo como também a instrumentos referentes à herança africana, como o agogô, ou abordados de forma genérica, como o tambor. A reunião aparece assim como ponto de encontro entre esses elementos externos e internos da simbologia do samba, mostrando assim que sua retratação cumpre uma função metalinguística.

O que leva então nessa temática a algumas experimentações na conjuntura musical para com o discurso lírico que caracteriza a canção. Esse jogo metalinguístico é presente ao longo do cancioneiro de Adoniran sendo utilizado

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