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4.5.2. No Morro da Casa Verde
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
foi a dos mestres-de-obras italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neoclássica, floral e colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás , das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de Março dos sírios , da Caetano Pinto dos espanhóis, da Rapaziada do Brás (CANDIDO, 2002, p. 142).
Ao mesmo tempo em que essa fora a cidade que conhecera, também foi a cidade que viu ao longo de sua vida desaparecer, sendo sua obra pontuada pela melancolia decorrente da desintegração urbana. Logo, não deixa de ser curioso que em “Acende o Candieiro” Adoniran remeta à figura do terreiro, remanescente de uma São Paulo que não é a sua. Uma São Paulo negra, tão bem simbolizada pela Irmandade da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, cujo monumento foi destruído para dar lugar à nova cidade. Faz-se representativo que o ensaio proposto também seja convertido em simbólico da resistência cultural enraizada em uma herança em defensiva para com o anseio destrutivo e desagregador da modernidade urbana.
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4.5.2. No morro da casa verde
Som e silêncio são considerados em “No morro da casa verde” conforme o jogo de dualidades presente em parte do cancioneiro do compositor, servindo de base ao diálogo entre a música e a lírica, característico do desenvolvimento da metalinguagem na canção. A canção, gravada para o disco de 1975, começa por um fraseado de violão sutil, que quebra o silêncio que precede a canção. Se sucedendo assim ao ritmo suave do pandeiro e a um fraseado de metais, tão lento quanto o do violão anterior. Assim é dado espaço ao canto de Adoniran, que incrementa a voz rouca um cantar arrastado, sussurrante.
Silêncio, é madrugada No Morro da Casa Verde A raça dorme em paz. E lá em baixo, Meus colegas de maloca Quando começa a sambá Não para mais. (Silêncio!)
Valdir, vai buscar o tambor. Laercio, traz o agogô. Que o samba na Casa Verde infezou. (Silêncio!) (ADONIRAN BARBOSA, 2003).
Antes de abordar a dualidade já abordada, considere-se primeiramente o território mencionado como palco do evento retratado: o Morro da Casa Verde. Se em “Acende o Candieiro” alude ao terreiro como ponto de resistência de uma relação entre fazer e território em vias de extinguir-se, a região do Morro da Casa Verde se constitui durante o processo de urbanização da década de 30 como território de povoamento negro e local por excelência de suas práticas, com especial destaque para o samba. Sendo associado a importantes sambistas de São Paulo, como Zeca da Casa Verde, sua relevância no samba local foi inclusive tema de sambas de enredo, como “História da Casa Verde” de Geraldo Filme, além de também originar importantes escolas de samba de São Paulo. É então emblemático que Adoniran escolha o território do Morro da Casa Verde para ambientar um samba que se volta para o próprio ato criativo.
Considerando então o ato criativo que origina o samba, o compositor então demonstra a relevância que a dualidade entre som e silêncio tem na procedência da canção. E da consideração para com sua influência sobre o samba, o território é envolvido nessa dualidade basilar, que fomenta assim na lírica o aparecimento de outras oposições menores.
É o que acontece quando Adoniran enuncia “silêncio, é madrugada” que relaciona o espectro do silêncio a uma temporalidade que lhe é peculiar. É da combinação dos signos do silêncio e da madrugada em que a lírica prossegue na construção semântica, ocorrendo da situação retratada derivar dessa combinação enunciada em seu casamento para com o território. Pois o que acontece no Morro da Casa Verde é a fundamentação do momento como permeado por figuras simbólicas envolvidas no signo do silêncio, se alinhando a ele ou o antagonizando. Assim tem-se o verso “no morro da casa verde/ a raça dorme em paz”, onde a palavra morro significa tanto o nome próprio do bairro quanto a indicação de um lugar alto. A ele estão associadas as pessoas que dormem sob influência silêncio da madrugada. São figurações antagonizadas pelo paralelo enunciado ao cantar “e lá embaixo” que apresenta um grupo que se diverte ao produzir um samba, cujo festejo que “não para mais” contrasta com o silêncio característico do momento. Contudo, a
interjeição posterior “silêncio!” lembra que este desempenha papel fundamental na criação do samba, cuja tensão com os sons fundamenta o fazer musical.
Com a introdução da figura do evento musical dentro da lírica, Adoniran apresenta um caractere curioso no que diz respeito à questão de territorialidades, trazendo de volta o emblema da maloca; símbolo caro à mitologia que se formou em torno de sua persona. Dessa vez a maloca está solidificada no momento, sendo o lugar por excelência em que transcorre o samba. Sentido que faz o verso “não para mais” ganhar um sentido de infinitude e atemporalidade que concede à maloca uma condição cuja fragilidade de outrora lhe negara. É como se o samba, momento que acontece entre a criação do lugar e sua destruição, concedesse à maloca a ilusão da imortalidade tanto para esta quanto para os habitantes que nela festejam.
A sensação de imortalidade insone que ocorre no samba é fruto da tensão entre som e silêncio. Passando a lírica para a segunda, o compositor começa a esmiuçar o rastro do samba referente a essa dualidade. Apresenta assim os personagens que se ocupariam de produzir o samba, onde designados por seu nome próprio, repetem o ato de sair do silêncio para assim levar a sonoridade. Regra que ocorre na menção dos versos que anunciam a relação dos nomes com os instrumentos seja seguida das respostas dos instrumentos mencionados. Logo, quando é cantado “Valdir, vai buscar o tambor” o som deste, mais especificamente o de um surdo, se sobreponha aos demais instrumentos, sendo realçado na canção; mesmo movimento que faz com que no verso seguinte, “Laercio, traz o agogô” a sonoridade percussiva deste também se sobressaia em resposta. Esse diálogo é que possibilita ao cantor declamar que “o samba na Casa Verde infezou”, mostrando que este já se encontra estabelecido no evento.
Ainda sobre os instrumentos aludidos na lírica percebe-se que sua simbologia traz algo interessante sobre a própria natureza da composição. Afinal a canção faz referência ao agogô, cuja presença é mais associativa as sonoridades tradicionais afro-negras do que ao recente samba do estilo novo. Este é referenciado pelo surdo que responde ao chamado por um tambor. Porém, ao