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4.4.1. Aguenta a mão, João

A cidade de Adoniran encontra-se atravessada pelos pressupostos da disciplina e da cidadania, passando a ser reconhecida com espaço de tensões, de um cotidiano da população carente que enfrenta as adversidades da expulsão, exclusão, também falta de luz, os incêndios e as perdas (MATOS, 2007, p. 146).

Do aspecto que ocasiona o desastre como extensão das tensões sociais no espaço, Adoniran aproveita para continuar nas composições que tratam desse tema o exercício de resignação e solidariedade que marca seus personagens em vista à adversidade sofrida. Em verdade, quando trata de temática do desastre, o flagelo em si recebe menor destaque do que a reação que dele provém. É o pressuposto que leva o compositor a tratar de acidentes não graves como mote de festejos para a comunidade. Caso de “Luz da Light” –que como o evento retratado não envolve prejuízos graves para os personagens, não será comentada neste tópico. Mas a abordagem para com eventos de caráter mais degradantes também remete à forma com que os personagens respondem à desgraça aleatória que lhes atinge. Assim, as caracterizações dos personagens em sua resignação e solidariedade são aprofundadas, beirando por vezes o otimismo.

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O aperfeiçoamento em cima desses sentires também leva Adoniran a jogar com a prática da parábola, forma tradicional no samba no que considera sua conexão com a crônica urbana (SODRÉ, 1998, p. 43). Como nas músicas dessa temática Adoniran foca no pós-trágico, quando o dano já transcorrera na vida do personagem, existe então na mensagem da lírica um conselho, a transmissão de um aprendizado para que o personagem atingido prossiga em seu viver. São ensinamentos que geralmente atendem a uma moral internalizada no âmbito social vivido pelos personagens.

4.4.1. Aguenta a mão, João

Samba de 1965 composto por Adoniran em parceria com Hervê Cordovil, maestro muito ativo no meio radiofônico, responsável por composições de diversos expoentes da canção de rádio, trabalhou com Adoniran em sua produção radiofônica e também foi seu parceiro em diversas canções. A versão aqui considerada será a de 1975, cuja interpretação foi realizada em parceria com Djavan. A música é introduzida por um assobio, que dá um tom alegre e descontraído antes de apresentar a lírica.

Não reclama contra o temporal Que derrubou seu barracão. Não reclama Guenta mão, João Com o Cibide Aconteceu coisa pior Não reclama Pois a chuva só levou a sua cama Não reclama Guenta a mão João Que amanhã tu levanta um barracão muito melhor O Cibide coitado Não te contei? Tinha muita coisa a mais no barracão A enxurrada levou seus tamancos e um lampião E um par de meia que era de muita estimação. O Cibide tá que tá dando dó na gente Anda por aí Com uma mão atrás e outra na frente (ADONIRAN BARBOSA & HERVE CORDOVIL, 2010).

A lírica mostra que este samba, em contraste com aqueles vistos na temática do despejo, foi estruturado conforme os preceitos do samba do estilo novo. Ou seja, o motivo principal da lírica é um estribilho, composto de seis dísticos, que é enunciado pelo compositor em sua interpretação e logo repetido por um coro. Ao estribilho é posteriormente acrescida uma segunda poética, que dá continuidade a narrativa.

O motivo principal do estribilho é um aconselhamento para com o personagem do título, que acabara de perder a morada em uma enchente. Trata-se de um imperativo negativo voltado ao personagem, “não reclama”, que no segundo dístico ganha o complemento “guenta a mão, João”. A presença do imperativo como forma de aconselhamento perpassa na característica desse recurso em vista do uso diário no vocábulo popular; onde é frequente que o conselho se confunda ou se misture com uma ordem dada a alguém. Figuração que ganha força devido à situação apresentada. Tendo em vista da possibilidade de desespero do personagem título com as perdas materiais que angariou, o locutor lança mão do imperativo para primeiramente interditar a expressão de João e posteriormente para recomendar que este suporte o infortúnio; sinal de que a resignação seria a melhor medida para lidar com a gravidade da situação.

Com o imperativo dado para resignar-se, se segue o convite para que o personagem reavalie a situação e que considere um porvir. A reconsideração

sobre a perda material é carregada de ironia, o que aumenta o apelo bem humorado da canção. Pois o consolo ofertado a João é que, além de ter destruído a sua morada, a chuva também teria levado sua cama, tratada como apenas um detalhe. Sem teto e sem conforto, a moral cultivada é desassociação da vida para com a materialidade. A esta é oferecida a esperança do porvir. A sentença “Amanhã tu levanta/ um barracão muito melhor” aponta para um otimismo que enfatiza força do fazer de João em construir uma nova morada. A importância da materialidade em suprir necessidades cotidianas é diminuída tendo em vista que não se tratam de bens insubstituíveis; estabelecendo confiança na figura do barracão como habitação que pode ser levantada aleatoriamente.

Ainda no estribilho é apresentada a figura de Cibide, que antagoniza com o personagem título em sua representação. Sua situação é enunciada primeiramente para consolar João, diminuindo suas desgraças em comparação às de Cibide, pois com este “aconteceu coisa pior”. Contudo, quando na segunda é apresentado o que aconteceu com Cibide, o ouvinte fica sabendo que sua situação difere conceitualmente da de João. Ao lamentar o que aconteceu com Cibide, estabelece primeiro uma comparação quantitativa, “tinha muita coisa a mais no barracão”, para assim apresentar os pertences perdidos: “seus tamancos e um lampião/ e um par de meias que era de muita estimação”. Maria Izilda Santos Matos salienta que, quando o cantar recai sobre os pertences de Cibide, “com humor, o autor retratou o vínculo de Cibide com seus pertences, apesar de nada valerem” (MATOS, 2007, p.148). Mas é do vínculo desse personagem para com seus pertences é que se pressupõe que eles valem sim alguma coisa. Pois a ligação de Cibide para com os pertences perdidos configura valor afetivo, bem representado no adjetivo “estimação”, que é importante para o personagem. Esse valor afetivo provavelmente é oriundo de um rastro, uma trajetória que o personagem tivera em que sua experiência se entrecruza nesses objetos singelos. Valor que também é importante para os locutores, que encaram essa afetividade embutida em objetos simples como algo mais considerável do que a perda material de João.

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