7 minute read

2.2.3. Outras formas de saber

do Estado Novo. A associação entre samba e malandragem não somente sobreviveria como também articularia novas formas de representação simbólica de resistência aos ditames ideológicos do progresso; algo que seria fortalecido pela desterritorialização do samba que, ironicamente, teve como um dos principais fatores a difusão nacional do samba empreendida pelo varguismo e pelos meios de comunicação.

2.2.3 – Outras formas de saber

Advertisement

As formas de fazer cotidianas consequentemente geram maneiras novas de saber. O saber relacionado à tática se caracteriza pelo distanciamento em relação ao saber escriturístico que fundamentou a cultura ocidental e se espalhou pelo mundo conforme a expansão da dominação ocidental e da modernidade capitalista. Tal forma de saber que se baseia na proposição da excepcionalidade da escritura e do livro foi a que se constituiu como o postulado cultural dominante no ocidente. Sua ideologia fundadora é a da compreensão da totalidade do mundo que seja lido e capitado pela escritura. Decorrendo da adoção do livro como metáfora de uma concepção de saber, a compreensão escriturística acredita que pode não apenas englobar os saberes que estão fora de seu domínio, mas também que estes são dependentes do seu julgamento, que as formas, os fazeres e saberes não escriturísticos não tem sapiência da extensão de seus significados, dependendo do conhecimento das escrituras para que os saberes desses objetos sejam compreendidos, para que venham à luz (CERTEAU, 1994, p. 224 - 230).

Antes de Certeau, Jacques Derrida também identificou o problema da dominação de uma concepção de escritura em sua obra Gramatologia. Assim como Certeau, Derrida enxerga um problema etnológico, porém identifica-o de forma mais profunda, relacionando a um etnocentrismo que esteve ligado ao cerne histórico do pensamento ocidental. Acontece de não ser a escritura per si como o problema etnológico, porém sim a constituição desta no ocidente e o seu uso posterior como dominação. A escritura ocidental, que Derrida denomina como fonocêntrica, considera dentro de uma metafísica da presença que se liga ao que chama de logocentrismo, que corresponderia à fala como

significante e o livro vindo logo a seguir na sucessão de um significante que viria a compreender o saber como um todo.

Assim, a boa escritura foi sempre compreendida. Compreendida como aquilo mesmo que deveria ser compreendido: no interior de uma natureza ou de uma lei natural, criada ou não, mas inicialmente pensada numa presença eterna. Compreendida, portanto, no interior de uma totalidade e encoberta num volume ou num livro. A ideia do livro é a ideia de uma totalidade, finita ou infinita, do significante; essa totalidade do significante somente pode ser o que ela é, uma totalidade, se uma totalidade constituída do significante somente pode ser o que ela é, uma totalidade, se uma totalidade constituída do significante preexistir a ela, vigiando sua inscrição e seus signos, independente dela na sua idealidade. A ideia do livro que remete sempre a uma totalidade natural, é profundamente estranha ao sentido da escritura. É a proteção enciclopédica da teologia e do logocentrismo contra a disrupção da escritura, contra sua energia aforística e, como precisaremos mais adiante, contra a diferença em geral. (DERRIDA, 1973, p. 22)

Porém se Derrida fundamenta a sua resistência na ciência – sendo o nome do seu tratado, gramatologia, uma proposta de ciência para se estudar a escritura –, Certeau encontra a resistência nos modos de fazer que são constituídos no cotidiano11. Ironiza-se aqui o detalhe de que se a civilização do livro é fundamentada em um logos fundamentado pela fala, essa civilização é a mesma que propaga a excepcionalidade do seu saber através do ato de ler, subestimando as culturas que considera como orais. Ao se focar no aspecto do saber cotidiano, Certeau consegue por não somente a questão de outras formas de saber distanciadas do paradigma dominante, como também coloca a questão da falsa dicotomia entre uma cultura de letras e das culturas orais.

Que essas distinções, uma vez que apresentam como a relação entre o estabelecimento de um campo (por exemplo, a língua) ou de um sistema (por exemplo, a escritura) e de outra parte aquilo que constitui como sua exterioridade ou seu resto (a palavra e a oralidade), esses dois termos não são iguais ou comparáveis nem no que diz respeito à coerência (a definição de um põe o outro como indefinido) nem no que diz respeito à sua operatividade (um produtivo, dominante e articulado, institui o outro numa posição de inércia, de dominação e de opaca resistência). Portanto é impossível supor que tenham funcionamentos homólogos mediante uma inversão de sinais. A diferença entre eles é quantitativa, sem escala comum. (CERTEAU, 1994, 224)

Se a dicotomia não existe como algo verdadeiro, sendo fruto de construção ideológica, ocorre de sua fundamentação ser um dos mais recorrentes artifícios

11 Embora seja considerada a diferença na atitude de ambos os intelectuais, pode-se dizer que a proposta de Derrida não está separada da proposta de Certeau, ocorrendo da atitude de Derrida podendo ser lida conforme as conclusões do estudo de Certeau acerca das táticas presentes no trabalho de intelectuais como Michel Foucault e Pierre Bordieu. O estudo discorre como esses autores se utilizaram de sua produção para reverter os postulados científicos provenientes do iluminismo (CERTEAU, 1994, p.112). Concebe assim um bom diagnóstico do que veio a ser o pós-modernismo.

retóricos para consolidar a dominação cultural do ocidente. Dominação construída não apenas em uma ideia de cisma entre uma cultura letrada e uma cultura oral, mas ao considerar que seus mecanismos de saber são os detentores da razão na qual as culturas tidas como periféricas aparecem apensas como produtoras de material a ser dissecado por esse estatuto. Pela modernidade, com a universalização do capitalismo industrial, esses pressupostos aparecem na figura, conforme teorizado por Idelber Avelar, de uma divisão internacional do trabalho intelectual, degenerando em uma cisão entre países produtores de pensamento e os produtores de objeto para o pensamento (AVELAR, 2011, p.172).

Situada no entre termos, a etnologia se coloca de forma que, dentro dos pressupostos ocidentais de saber e correspondendo também à atividade perpassada por uma divisão de trabalho intelectual, se permite no questionamento dessa razão ao confronta-la, de dentro, com os saberes provenientes das outras civilizações e povos. A problemática etnológica, ao colocar o encontro dos saberes ocidentais em alteridade para com os outros saberes, permite novas possibilidades no que diz respeito à consideração às práticas não apreciáveis pelo universo da linguagem no qual se fundamenta o discurso científico (CERTEAU, 1994, p. 68). Seu propósito, no que tange aos aspectos intelectuais que fundamentaram o estruturalismo e o pósestruturalismo no decorrer do século XX, não é o de buscar a reinvindicação dessas práticas para a elucidação iluminista, porém sim o reverso: discorrer sobre como essas praticas e saberes que foram subestimados pelo conhecimento institucional têm a dizer sobre o mundo e as relações sociais.

Por este trabalho, recorre-se à leitura de uma obra que se originou da produção de fazeres urbanos ligados à cidade de São Paulo. Onde temos um objeto, o samba, caracterizado pela influência das práticas de origem africana, porém lidando com um compositor, Adoniran Barbosa, que joga essa prática no contexto de um descendente de italianos que se propõe a aventura cotidiana em uma megalópole que, apesar de sua ligação com a modernização brasileira em geral, tem suas peculiaridades como cidade. Importante aqui traçar como o samba, como forma de fazer-saber, pode servir de mecanismo de expressão para um representante de uma determinada camada urbana. Pois ao adotar o

samba como meio de expressão popular significa que ele possui um papel preponderante no que diz respeito à identificação das camadas e classes sociais que o consideram como tal. Sobre esse papel social do samba e dos sambistas, Lucia Lippi de Oliveira coloca em consideração o olhar destes nas transformações sociais:

Olhando o elenco de canções ao longo da República, posso levantar a hipótese de que os autores da música popular brasileira são intelectuais que mantem uma sintonia fina com seu tempo. Sintonia muito mais rápida e aguda do que a dos cientistas sociais. Os cancioneiros estão mais próximos as transformações em curso na sociedade brasileira (OLIVEIRA, 2004, P.102)

Para levar em consideração a hipótese de Lippi de Oliveira é necessário considerar como o samba se coloca como prática saber-fazer e como se relaciona com as outras práticas de igual estatuto; o que inclui a sua relação, porém não submissão, com os pressupostos de saber dominante. Afinal o samba diz respeito a uma estética própria, onde esta diz respeito a uma terceira força entre a prática e a teoria (CERTEAU, 1994, p.140-141). Para tanto cabe colocar a importância do samba como relato cotidiano. Seu aparecimento na esfera urbana, para além dos jogos de fazer, é também o da força desse relato. Para que uma leitura do samba como expressão e resistência seja possível, deve-se situar a sua constituição como instrumento de comunicação e de memória.

This article is from: