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4.4.2. Quem bate sou eu

Merece atenção que em “Aguenta a mão, João” a narrativa é inconvencional em sua apresentação, onde o apelo ao falar cotidiano corresponde ao burburinho de vozes pertencentes ao círculo social no qual estão inseridos João e Cibide. Do burburinho, pressupõe-se o estabelecimento de uma narrativa fragmentada, colocada como um plano dialogal, ou seja, de um apelo múltiplo que se dirige a João para cantar o conselho. Suas pistas estão dadas na interpretação de Djavan, que canta como se abordasse o personagem título, de forma informal e coloquial como em uma conversa, e no retorno da voz de Adoniran, que ao utilizar a sentença “ta dando dó na gente”, mostra que a situação de Cibide é preocupação de um coletivo. São informações que são atiradas na canção de forma quebrada, como numa bricolagem de falares. Trata-se de confusão referente à multiplicidade polifônica inerente ao viver cotidiano. O personagem título, sua desgraça e a moral internalizada nessas vozes para interpretar o acontecimento serve de ponto de encontro que referencia o burburinho, concentrando-o no assunto apresentado e nas formas com que o corpo social encara esse tema.

4.4.2. Quem bate sou eu!

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Composto por Adoniran Barbosa em parceria com Artur Bernardo, em 1956, “Quem bate sou eu!” é conhecida pela interpretação dos Demônios da Garoa em um período onde estes se consagraram tocando as canções de Adoniran. Samba que versa sobre a temática da destruição, é exemplo de onde a concepção lírico-musical dada pelo compositor propicia a base para que os experimentalismos do intérprete se reapropriem da canção.

Ô de Casa, quem bate? Quem bate, sou eu. Sou eu amigo que vem pedir-te abrigo Cheguei embriago no barraco, o seguinte aconteceu: Fui acende o fugão De querosene explodiu. Incendiô, queimô tudo que era meu (ADONIRAN BARBOSA & ARTUR BERNARDO, 2002)

Esse samba também é estruturado conforme o esquema padrão do estilo novo, correspondendo assim a um estribilho que embala a canção que é acrescido de uma segunda que complementa narrativamente a poética apresentada. O

estribilho é composto de apenas uma quadra simples, assim como a narrativa da segunda apresenta a situação de forma rápida, quase jornalística. Depreende-se então da lírica crua uma canção simplória.

Contudo, como já visto composições como “Saudosa Maloca”, um dos talentos de Adoniran Barbosa como letrista é de colocar em poucas palavras uma narrativa rica em informação conotativa, como também demonstrar capacidade de brincar com os signos do cancioneiro nessas poucas palavras; compartilhando também o fato da lírica estar divida em dois tempos, um presente enunciativo e um passado narrativo. Acrescente-se a importância da interpretação humorística dos Demônios da Garoa, que não apenas ressaltam o aspecto tragicômico inerente a uma narrativa embebida de realismo sobre o cotidiano, como também atravessam a canção com períodos de canto falado que aprofundam na intimidade para com a fala coloquial e diária.

A começar pelo fato de não haver uma introdução instrumental nessa canção, mas sim a enunciação do estribilho através da fala, onde o primeiro verso denuncia a reconstituição de um diálogo singelo; ocorrendo deste (“ô de casa/ quem bate?”), considerado em conjunto com as três batidas que antecipam a canção, trata-se de uma encenação do ritual típico que compreende a chegada do visitante a uma morada. Eis que a naturalidade com que esse falar leva ao canto, já presente a partir do segundo verso, reverbera a tese de Tatit sobre como a canção brasileira se origina na fala, onde aquela continuaria as tensões e multiplicidades inerentes a esta. “Por viver a voz da voz em seu duplo sentido, o cancionista não pode deixar de ser também malabarista. Como se ele sentisse a necessidade de preservar um gesto de origem sem o qual a canção perderia a própria identidade” (TATIT, 2002, p. 16). Desse gesto originário é que compositor e intérpretes pegam uma frase cristalizada no falar popular e o transformam em mote para a canção.

O canto do estribilho enuncia a voz do narrador, respondendo à pergunta do interlocutor com um singelo “quem bate sou eu?”, o que pressupõe não apenas que ambos os personagens se conhecem, mas também tem intimidade suficiente para que a voz anunciada seja o suficiente para o reconhecimento. O que é confirmado com os versos seguintes: “sou eu amigo/ que vem pedir-te

abrigo”. O narrador não apenas confirma que é amigo do interlocutor, como também recorre à amizade para que esse outro, possuidor de um teto, lhe seja solidário com sua situação e que partilhe a morada. A solidariedade assim marca presença novamente no cancioneiro, mas diferentemente do que normalmente ocorre nas canções de Adoniran, não se trata algo cedido para um personagem que sofre, porém sim é este quem solicita a solidariedade, procurando sensibilizar o interlocutor.

Como o apelo não é suficiente, apresenta-se enfim a narrativa contida na segunda que explica o que ocorreu com o narrador para agora encontrar-se sem moradia. Narrativa cuja honestidade é tanto o seu maior mérito como também é seu ponto mais problemático. Afinal, o narrador já mostra logo de início que tudo começou quando este se encontrava embriagado, caracterização que pode presumir sua responsabilidade sobre o ocorrido, podendo frustrar a possibilidade de receber apoio. Noção fortalecida com o que se segue do relato, onde o motivo do desabrigo do narrador foi devido a um acidente interno ocasionado pela irregularidade com que o fogão respondeu a aplicação da querosene; componente inflamável utilizado para ligar o aparelho.

O fator humano é assim importante, ainda mais sobre o estado em que se encontrava o narrador para ocasionar o acidente. Entretanto, os elementos domésticos que o proporcionaram também são reveladores da condição social enfrentada pelos personagens, intimamente ligada ao problema da moradia no espaço urbanizado, sempre tão presente nas canções de Adoniran. Se no período em que foi composta a canção já havia sido consolidado no âmbito doméstico o fogão a gás como ideal para a padronização da cozinha, resultante da síntese de interesses higienistas do poder público com os capitalistas colocados pelo monopólio da empresa Light sobre o gás36, o

36 Em artigo sobre a chegada do fogão a gás no âmbito doméstico paulistano, João Luiz Máximo da Silva comenta como essa empresa se utilizou do desejo estatal de padronização das moradias conforme critérios médicos-sanitários de higiene, para fortalecer seu produto no mercado e assim ganhar a preferência dos consumidores.

Nesse contexto em que a cozinha passava a estar no centro das preocupações de autoridades sanitárias, o equipamento doméstico teria um papel decisivo nas transformações exigidas. Dentre esses equipamentos, o fogão, como pudemos observar, destacava-se como centro de preparação dos alimentos na nova cozinha. O grupo Light centrou seus esforços na promoção do uso doméstico dos novos

manuseio do fogaréu de querosene revela a presença do arcaico como componente da vida doméstica dos excluídos. Fator cujas precariedades somadas à insalubridade e insustentabilidade – quando não ausência – da cozinha no espaço doméstico podem ter contribuído para o acidente que vitimaria a casa do narrador.

Enfim, o gesto de malabarista que é anunciado por Tatit como referencial no equilíbrio entre canto e fala é assim bem representado no movimento do interprete ao voltar, depois do cantar da lírica, à palavra falada. A canção é finalizada então com um diálogo entre dois membros do grupo, que encarnam os dois personagens presentes na canção. Essas emulações de conversas são por vezes utilizadas em algumas das canções de Adoniran Barbosa, aumentando a intimidade para com a vida cotidiana, e são potencializadas nas interpretações dos Demônios da Garoa, cuja dicção remete ainda mais ao falar diário, de forma bem humorada e salientando a manipulação gramatical contida no “falar errado”. Aqui o diálogo não apenas retoma o que já fora cantado na lírica como também da à sentença sobre o pedido de solidariedade solicitado.

- Eita negão! O que é houve? - Negão, vou te contá! Vinha tomando umas e otras, cheguei de zonzera no mio barraco, fui acende o fogão de querosene e ele... scatabrum!... expludiu, expludiu! - Tá vendo negão. Você agora tá sempre de fogo, e eu agora te guento mais, vai vê que isso e amanhã você dá o pira daqui. Hoje vai dormir, amanhã vai embora... Amanhã dá o pira!...Dá o pira! Dá o pira!... Hoje fica, amanhã dá o pira! - Foi o laço, sô! O laço... (ADONIRAN BARBOSA & ARTUR BERNARDO, 2002).

No fim das contas o dono do teto aceita partilhar deste com seu amigo desabrigado, mas só por uma noite. Como resultado da narrativa oferecida, amizade não é suficiente para livrar o narrador de um julgamento moralista. Em

combustíveis, elegendo o fogão a gás como seu principal produto. Há, então, um considerável avanço na tecnologia doméstica (gás, eletricidade, água encanada, esgoto) colocada à disposição para o consumo (ao menos para as classes mais abastadas). (SILVA, 2007, pp.198 - 199)

Interessante também que junto ao apelo à higiene e à padronização, a Light se utilizava para vender seu produto a tentativa de associa-lo ao progresso, aumentando sensação de intimidade do apelo publicitário para com o discurso do poder.

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