
8 minute read
2.1.1. Desenvolvimento e progresso
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
Se nas décadas de 50 e 60 o Brasil se encontra em um momento transitório no encaminhar da modernização, a capital paulistana já tinha se consolidado como o protótipo de desenvolvimento urbano a ser adotado pelo país, pois surge como precursora desse mesmo fortalecimento industrial. Sua idealização como cidade modelo é concomitante à propagação de uma determinada concepção de desenvolvimento que serviria como base ideológica para a implantação do capitalismo industrial no Brasil.
2.1.1. Desenvolvimento e progresso
Advertisement
O desenvolvimento de São Paulo é demonstrativo de como a modernidade é consequência de uma série de fatores ligados à expansão das atividades e das trocas entre seres humanos. Considerando que antes da primeira metade do século XX também estava inserida na estrutura tradicional de relações campo e cidade, de onde esta era dependente da economia daquela, São Paulo passou a desenvolver farta indústria na década de 20, consolidando-a nos decênios seguintes (MATOS, 2007, p. 61). O aparecimento de uma São Paulo industrializada é sintomático de alterações no comércio mundial e local que influenciaram na composição de uma nova rota comercial, fator relacionado ao surgimento da navegação a vapor que ocasionou a solidificação de um mercado dependente do litoral para prosperar. Essa modificação fortaleceu as cidades litorâneas, enfraquecendo as trocas comerciais interioranas.
Esse ciclo de utilização do espaço correspondia a uma evolução histórica cuja marca era igualmente passageira. Só nas grandes cidades do litoral – Rio e São Paulo – é que a expansão urbana aparentava ter uma base bastante sólida para poder ser irreversível: São Paulo contava com 240 mil habitantes em 1900, 590 mil em 1920, ultrapassava um milhão em 1928 e, hoje [o livro data sua escritura em 1955], duplica esse número. Mas, no interior, as espécies urbanas nasciam e desapareciam; a província se povoava e despovoava ao mesmo tempo. (...) Se excetuarmos as regiões mais remotas, o abandono em que caíra o Brasil central em princípio do século XX não refletia de modo algum uma situação primitiva: era o preço pago pela intensificação do povoamento e das trocas nas regiões costeira, em virtude das condições de vida moderna que se instauravam; ao passo que o interior, por ali ser o progresso demasiado difícil, regredia em vez de acompanhar o movimento no ritmo lento que é o seu. (LEVI-STRAUSS, 1996, pp. 106-107)
O pioneirismo paulistano, que concerne ao surgimento de uma urbanização alinhado ao fortalecimento de uma indústria nascente, fundamentou o que seriam as bases da noção de desenvolvimento corrente nas metrópoles brasileiras. A rapidez com que a urbanização de São Paulo tomou força a partir
da industrialização configurou no aparecimento de novos empreendimentos e serviços que cresceram a partir do contexto da urbanização. Caso da especulação imobiliária que viria a ser um dos sustentáculos da estruturação desse desenvolvimento.
Nos anos de 1930 e 1940, as inversões do setor imobiliário ganharam impulso, possibilitando novas edificações, tornando São Paulo “a cidade de um edifício por hora”. As implicações dos lucros dos capitais excedentes de diferentes atividades dirigiam-se para os investimentos imobiliários, com destaque para o setor da construção civil. Se, em 1920, eram 1875 novas construções; em 1930 eram 3.922; em 1940, atingiu 12.490; em 1950, chegaram a 21.600 construções. (MATOS, 2007, pp. 62-63)
O crescimento da especulação imobiliária se fundamentou como basilar da modernidade adotada em São Paulo, estruturando assim a ordem de uma cidade em constante mutação. O fortalecimento do capitalismo e a conjuntura espacial acelerada por ele desencadeada fazem da modificação uma característica intrínseca à condição moderna. É um aspecto que, porém, se mostra relativo à construção da modernidade em determinadas concepções desta, se especificando em uma historicidade civilizatória que abarca a territorialidade continental. Na Europa as cidades adentraram na modernidade onde esta busca estabelecer um diálogo com a antiguidade através das suas ruínas4 .
Já a modernidade americana, tendo São Paulo como um dos exemplos mais notórios, trabalha justamente em não ter passado, no que reside da concepção deste como memória. Marshall Berman, que se propôs a analisar a modernidade como fenômeno de nosso tempo, retoma o postulado da modificação constante do espaço no título de sua principal obra, que remete a uma frase de Marx: Tudo que é solido desmancha no Ar. Sobre a sua Nova Iorque natal, Berman observa na competição que as construções têm ao se erguer para suprimir as outras uma noção de sepultamento constante da cidade, ou seja, a ânsia de modernização em constructo permanente que rege essas cidades acaba por decretar a obsolescência das mesmas:
4 Walter Benjamin qualifica assim cidades como Roma, cuja face moderna se sedimenta em torno das ruínas das civilizações passadas. Trata-se de uma modernidade que ao estabelecer esse diálogo material com o monumento, ambiciona lugar semelhante ao da antiguidade na história. Nessa procura que envolve desde o espaço urbano até literatura de poetas como Baudelaire, a “modernidade é o que fica menos parecido consegue mesmo; e a antiguidade – que deveria estar nela inserida – apresenta, em realidade, imagens do antiquado” (BENJAMIN, 1994, p. 88).
A presença e a profusão das tais formas gigantescas fazem de Nova Iorque um local rico e estranho para viver. Mas também a tornam um lugar perigoso, pois seus símbolos e simbolismos estão em infatigável conflito uns com os outros em busca de sol e de luz trabalhando para eliminar-se mutuamente, desmanchando a si próprios e os outros no ar. Nova Iorque é pois, uma floresta onde machados e moto niveladoras estão em constante funcionamento e os grandes edifícios em demolição permanente. (BERMAN, 1984, p. 273)
Aqui a ideia de uma obsolescência da cidade deve ser trabalhada conforme um paradigma da decadência, onde a novidade se relaciona com o tempo de forma que a figura da degradação lhe pareça intrínseca. Esse é o diagnóstico que Levi-Strauss faz das cidades americanas – Nova Iorque, São Paulo –lamentando não o fato de essas cidades trabalharem com a novidade, mas sim que o que resulte do novo venha a ser considerado em pouco tempo como algo ultrapassado.
Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica; eternamente jovens, jamais são saudáveis, porém. Ao visitar Nova Iorque ou Chicago em 1941, ao chegar em São Paulo, em 1935, não foi, portanto, o aspecto novo que de início me espantou, mas a precocidade dos estragos do tempo. Não me surpreendeu que a essas cidades faltassem dez séculos, impressionou-me verificar que tantos bairros já tivessem cinquenta anos; que, sem pejo, alardeassem tais estigmas, visto que o único encanto a que poderiam aspirar seria o de uma juventude fugaz tanto para eles quanto para os vivos. (LEVI-STRAUSS, 1996, p. 92)
Permeando as constantes modificações materiais que levam ao fluxo acelerado de transformações correspondentes à concepção de metrópole como espaço, ao considerar que a fundamentação de ideias é resultado do que reverbera no plano material5, é relevante situar a reverberação ideológica desse capitalismo industrial que fundamenta uma concepção de cidade que tem no desenvolvimento constante a sua razão de existência. É através da ideia de progresso que temos esse sistema projetado no campo do discurso, mais
5 Dentre as teses expostas por Marx e Engels em A Ideologia Alemã, através do materialismo em que se alinham ideologicamente, concebem o plano das ideias, que intitulam de consciência, como emergente das relações estabelecidas materialmente.
Só agora, (....) verificamos que o homem tem também “consciência”. Mas também que não de antemão, como consciência “pura”. O “espírito” tem consigo de antemão a maldição de estar “preso” à matéria, a qual nos surge aqui na forma de camadas de ar em movimento, , de sons, numa palavra, da linguagem A linguagem é tão velha quanto a consciência – a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física do intercambio com outros homens. (...) A consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a selo enquanto existirem homens (MARX & ENGELS, 1984, pp. 33–34).
especificamente na retórica política. Como Walter Benjamin coloca, acerca da obra de Baudelaire, é na ideia de progresso que reside uma concepção de modernidade conforme o entendimento dos vencedores. Mais do que um discurso, Benjamin vê no progresso um espectro que permeia o próprio sentido do que vem a ser a modernidade:
Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia de catástrofe. Que tudo “continue assim”, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado. O pensamento de Strindberg: o inferno não é nada a nos acontecer, mas sim essa vida aqui.(...) Que Baudelaire tenha se colocado hostilmente perante o progresso foi a condição sine qua non para que pudesse dominar Paris em sua poesia. Comparada à sua, a poesia posterior sobre a cidade grande vem sob o signo da fraqueza e não menos, quando vê, na cidade grande, o trono do progresso (BENJAMIN, 1994, p. 174)
Pelo sucesso do capitalismo como sistema hegemônico, o progresso, discurso que fundamenta seu modus operandi sistemático, ressoa no cotidiano político das pessoas. Seu poder como ideologia da ordem é capaz inclusive de cooptar setores políticos da esquerda, como os sociais-democratas (BENJAMIN, 2012, p. 241). O ato político do cotidiano moderno corresponde precisamente na aceitação ou rejeição desse pressuposto, pois é através do conceito de progresso que agentes do sistema dominante, como o Estado e as corporações, transferem para o plano ideológico a questão do desenvolvimento da modernidade conforme seus entendimentos.
E é justamente a ideia de progresso que caracteriza a cidade americana como uma figura que deve mirar febrilmente para um futuro constante. Cidades como São Paulo fundamentaram o seu crescimento econômico com um discurso ufanista que vincula o trabalho ao progresso.
Ao qualificar São Paulo de “capital bandeirante” buscava-se valoriza-la como centro econômico e industrial, cujo destino se mantinha nas mãos das indústrias, capazes de gerar o progresso, revelava-se o empreendedorismo capitalista e os industriais, como os “bandeirantes do momento”. Destacavamse as virtudes dos paulistanos, seus ideais de liberdade e constitucionalidade, particularmente sua capacidade de trabalho e dinamismo – “São Paulo, terra de gente trabalhadora”, na apologia ao trabalho, ele aparece como símbolo da grandeza e do progresso. O progresso tinha como seu elemento de ação o trabalho, que articulava a produtividade, ao ritmo acelerado da vida e à modernidade. O trabalho e a ordem deviam ser exemplares, pois proporcionavam supressão do retrógrado pela positividade do moderno (MATOS, 2007, p. 82)
São as populações não apenas agentes fundamentais da formação dessa modernidade urbana, alvo da retórica do progresso, como também são aquelas