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4.2. CRÔNICA-CANÇÃO EM ADONIRAN E O CORPUS
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
O sucesso das interpretações dos Demônios da Garoa abriu caminho para o reconhecimento de Adoniran como compositor. Considerando a gravação de seu primeiro álbum em 1974, Adoniran já experimentara a consagração de suas composições pelos detentores do saber – aspecto, aliás, muito visível no texto de Antônio Candido contido na contracapa deste disco - e distorções por parte de aparelhos da ordem do significado de suas canções para que fossem encaixadas no tradicional discurso de ordem e progresso32. Porém, com a consagração levando a resultados irregulares em sua vida material, acontecendo de mesmo que uma composição de sucesso proporcionasse algum ganho financeiro, se tratava de situação passageira. Em meio a essa condição conflituosa que o envolveu até o fim da vida, as composições de Adoniran chamaram a atenção de artistas diversos, alguns com carreira já consagrada no cenário musical do país.
As interpretações isoladas feitas por esses diferentes artistas não serão focadas neste trabalho. Contudo, alguns desses músicos viriam a estabelecer interpretação conjunta com Adoniran, tomando parte inclusive em canções originais do compositor. Certamente é muito interessante perceber como essas parcerias afetaram a forma de interpretação de Adoniran para com suas próprias músicas, mostrando que mesmo na sua faceta como cantor existe possibilidade de movência; ainda mais quando a interpretação é encarnada em um diálogo entre diferentes modos de ler a canção.
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4.2. CRÔNICA-CANÇÃO EM ADONIRAN E O CORPUS
Ao considerar que os sambas de Adoniran Barbosa se constituem como crônica-canção por estabelecer na lírica relatos referentes ao cotidiano das classes baixas na metrópole paulistana, o que se seguirá neste capítulo é a leitura de líricas selecionadas do compositor com o intuito de compreender
32 Dentre as diversas propagandas utilizadas para demonstrar a relação da publicidade para com o paulistanismo que permeava a ideologia dos poderes na metrópole, Rocha considera especial atenção para um anúncio da Ultragás publicado na Folha de São Paulo em 1968. Nesse anúncio é feita uma associação curiosa entre o aniversário do prefeito Faria Lima – cuja gestão, como bem lembra Rocha, foi marcada pela intervenção urbana segundo os moldes orquestrados pela ditadura militar – e as canções “Saudosa Maloca”, “Trem das Onze” e “Samba do Arnesto”, resultando na completa distorção das figurações destas canções para que exaltassem “as vantagens do progresso, cujos benefícios se tornariam visíveis na proporção em que provocassem determinadas intervenções no mapa da cidade” (ROCHA, 2002, p. 89 – 90).
como esse discurso se manifesta particularmente em suas canções. Se até agora foi abordado como Adoniran forjou a si mesmo como artista identificado com a memória dos excluídos, é através de suas canções que se pode identificar como se deu essa associação.
Para tanto foi selecionado um corpus de canções que corresponderiam a critérios que as caracterizariam como crônicas-canções. Ao considerar esse cancioneiro como possíveis crônicas, a adoção deste termo será encarada em proximidade com o caráter que ganhou no Brasil, ou seja, a de um texto que aproxima a função informativa do jornalismo com a subjetividade inerente à literatura. Porém, com a devida relativização que a incorporação desse gênero textual à canção solicita, remetendo assim a uma temporalidade muito mais duradoura do que a estruturada no meio impresso. Logo, as canções escolhidas se caracterizariam como crônicas-canções por apresentarem temporalidades que referenciam uma informação – que pode ser localizada através das perguntas: Quem? Quando? Onde? Por quê? e Como? , por converterem essas temporalidades em momento simbólico, pela intimidade com que esse momento tem para com o cotidiano e pela carga subjetiva com que esses fatores são estruturados na lírica.
Da seleção dessas canções em sua caracterização como crônicas no que concerne a ligação para com o cotidiano, percebe-se que em Adoniran Barbosa a preferência por certas temáticas que aparecem em mais de uma canção. Essa conceitualização das canções possibilita que o corpus escolhido seja organizado em diferentes eixos temáticos, ou seja, os subcapítulos que se sucederão dirão respeito à temática abordada por um conjunto de canções que serão interpretadas conforme a abordagem que cada uma delas dá ao tema bordado.
A importância dada a essas temáticas compartilhadas na construção do cancioneiro, porém, não excluem a particularidade de cada das canções. Considerando inclusive que algumas canções servem de continuação à narrativa abordada em outra, mas nem sempre remetendo a mesma temática. Ademais, em consideração a crônica como texto literário, deve-se ter em conta sua capacidade de produzir múltiplos significados, através da ideia de captura
e lapidamento dos detalhes que envolvem sua característica como relato cotidiano.
Se por um lado a crônica em suas características literárias possibilita a formatação de diversos significados, essa característica é fortalecida no que concerne à ligação da canção para com o intérprete. Assim da mesma que será abordada a interpretação do próprio Adoniran, também receberão especial atenção as gravações do cancioneiro deste feitas pelo grupo Demônios da Garoa. Também serão abordadas algumas das canções de autoria de Adoniran que este interpretou em diálogo com outros artistas.
Tendo em vista as anteriores considerações sobre a seleção do corpus, este foi retirado de quatro álbuns: os dois primeiros discos de Adoniran Barbosa, ambos tendo como título apenas o nome do artista, gravados respectivamente em 1974 e 1975; o álbum Demônios da Garoa interpretam Adoniran Barbosa, de 197433; e a recente coletânea Adoniran Barbosa – Saudosa Maloca, de 2010, utilizada para suprir parcialmente a ausência do disco Adoniran Barbosa e Convidados, de 1980.
Os eixos temáticos são sete. Tendo em vista questões de tempo e sobre a possibilidade de aprofundar a análise em cada uma dessas canções, cada eixo abrigará no máximo três canções. Os eixos são divididos em canções de despejo, canções de desastres, canções sobre eventos musicais, canções sobre causos, canções de amor perdido e canções sobre a vivência urbana. Antes das análises propostas de cada canção individualmente, será feito um comentário geral sobre as temáticas e como elas se manifestam na lírica de Adoniran. Importante acrescentar que em uma mesma canção pode ser abordada em mais de uma interpretação, considerando as diferenças que essas possuem entre si e no que elas acrescentam na leitura dos sambas.
33 Esses são discos que tiveram relançamento no mercado em versão CD nos primeiros anos do século XXI. Logo, por serem utilizados esses relançamentos mais recentes, ao citar as canções contidas nestes álbuns, será referenciada a data do relançamento: 2003 para os discos de Adoniran Barbosa de 1974 e 1975, e 2002 para Demônios da Garoa interpretam Adoniran Barbosa lançado primeiramente em 1974.