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3.1. AS METAMORFOSES DO SAMBA
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
3.1. AS METAMORFOSES DO SAMBA
Como a frase de Wisnik acima citada evidencia, um fazer pode colocar a memória como pressuposto de resistência à imposição da amnésia ligada à destruição material que rege a modernidade urbana, porém isso não anula a influência que esses postulados de destruição possam exercer sobre os fazeres, considerando também a possibilidade de que estes mesmos sejam fundados no esquecimento. Então, do trato sobre formação do samba em sua conformidade com os encaminhamentos sócio-históricos, do que conflui em sua integração à modernidade, é importante saber quais foram as características abandonadas e quais permaneceram.
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Ter essa compreensão é também identificar os diversos fazeres musicais que se organizaram pela efígie do samba. Leve-se em conta que essas atividades, mais do que estilos musicais, também se constituem em uma forma de relação de identidade para com o território – abarcando um conjunto de música, dança, festas e fantasias. Porém, dessa diversidade de manifestações, uma dentre várias concepções superou as demais no imaginário nacional, sendo considerado o samba per si. Trata-se do samba originado nos morros cariocas, que por ter sido concebido e estruturado dentro da modernidade efervescente se espalhou pelo território nacional em consonância com a modernização do país.
Esse samba corresponde ao paradigma criado pelos compositores vinculados ao bairro carioca do Estácio de Sá e ao que lhe sucedeu em vista da influência de suas bases rítmico-musicais. Importante ressaltar que essa modalidade, para se consagrar sobre as outras no Brasil, teve que disputar dentro do Rio de Janeiro o detentor do título de samba; pois a história consagrada do gênero, em sua intercessão com um modo de ser carioca, divide o desenvolvimento do samba em dois momentos: o das reuniões nas casas das tias baianas que se situavam na Praça Onze entre 1900 e 1930 e sua apropriação pelas populações dos morros a partir de 1930 na qual coube pioneirismo aos sambistas do Estácio. Porém, de acordo com pesquisa de Carlos Sandroni, o aparecimento do samba do Estácio tratou-se de uma modificação muito mais profunda, no qual os bambas do Estácio alteraram por completo a estrutura do
samba, concebendo assim um gênero propriamente moderno. “O tipo de samba que teria sido criado no Estácio logo se difundiu, influenciando compositores de outras áreas da cidade, generalizando-se e tornando-se um sinônimo de samba moderno, de samba tal qual reconhecemos hoje em dia” (SANDRONI, 2012, p. 133). Trata-se assim de um estilo novo de fazer samba que se diferencia dos paradigmas antigos primeiramente por sua construção rítmico-musical (SANDRONI, 2012, p. 131).
Curiosamente a valorização desse novo samba cria uma relação complicada deste para com os estilos antecessores. Pois se existe sim um respeito dos artistas de samba do Estácio para com os antepassados ligados aos outros sambas, também ocorre a desvalorização destes gêneros como parte do que se considera samba. Ou melhor, são reconhecidos como tal, mas dentro de um discurso que recebe respaldo de uma inteligentisia que se envolveu na consolidação do samba do estilo novo como o samba legítimo, os outros sambas que vieram antes passam a serem considerados criações estranhas, formas incompletas ou de transição em relação a esse samba tido como legítimo (SANDRONI, 1994, p. 135). Então, dos vínculos constituídos entre o novo samba e os interesses do Estado e os das elites intelectuais, estabelecese assim uma relação de censura12 entre esse tipo de samba urbano e os outros sambas que vieram antes. Algo evidente no trato para como essas manifestações são referidas, sempre com um nome composto que os diferencia do samba urbano: samba de roda, samba de bumbo, samba amaxixado. Mais do que demarcar gêneros, esses termos servem para estabelecer a linha divisória entre os sambas tradicionais e o samba tido como tal.
12 Por censura deve ser entendida aqui não somente a ideia de impedimento de uma determinada manifestação artística, mas sim uma categoria de poder que concerne ao estabelecimento de formas de controle do sensível; dizendo respeito não só ao conceito proibicionista que remete mais ao imaginário do senso comum como também formas mais sutis de controle, caso da consagração de uma forma de fazer científica ou artística sobre outras de postulado semelhante. Como coloca Alexandre Nodari:
A censura seria – e é isso que tentaremos argumentar ao longo da tese – este poder excepcional (no sentido de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora da lei, antes e depois dela) com-formador, que conforma um costume, ou seja, que forma um costume comum, ligando o costume ao corpo político por meio da obediência: a censura criaria uma servidão não só voluntária, mas também “imaginária”, a servidão a uma forma, a uma roupa, a uma imagem (NODARI, 2012, p. 21).
Essa censura serve como aparelho de contraponto do poder para com a possibilidade de movência que o fazer possa operar. Considere-se que é graças ao aspecto da movência que o samba pode se modificar como gênero, estruturando sua força criativa em uma rede constantemente tecida para com outras culturas que modificaram seu funcionamento. Para Heloísa de Araujo Duarte Valente, a movência implica uma posição de nomadismo que
diz respeito à capacidade de memória que, por conseguinte, pressupõe mecanismos de permanência e esquecimento, aceitação e exclusão, orientados segundo o modus operandi de cada cultura em particular. Dito de outra maneira, são os critérios de seleção e exclusão dos elementos constituintes de um código cultural que, predominantemente, diferenciam uma cultura de outra (VALENTE, 2001, p. 163)
Ora, o samba é justamente marcado pela fundação de um caráter multicultural que o caracteriza como música propriamente brasileira e não como uma mera extensão musical de uma tradição. O aparecimento dessa diversidade com que motivos musicais se transformaram no continente americano criou um caráter musical próprio desse continente no qual o samba se inscreve (SANDRONI, 2012, p. 24). Música assim que é baseada na própria movência, em um jogo que envolve aspectos de territorialização e desterritorialização constantes.
Atente-se que é justamente no jogo de territorialidades que o samba organiza sua produção de afetos e, consequentemente, no trato para com a memória. Pois se a transformação constante é uma característica essencial do samba no qual ele absorve novos elementos e se recria como estilo, ao territorializar-se ele empreende nos atores envolvidos uma construção de identidades (AZEVEDO, 2006, p. 49). Territorializar-se no samba diz respeito tanto à criação e desenvolvimento de um enraizamento cultural de um coletivo quanto à experiência que um indivíduo possa ter nas relações para com o território; afinal é evidente em alguns sambistas a identificação com um território muitas vezes carregada no nome artístico. A territorialização é assim um movimento que o estilo toma, não se opõe ao seu nomadismo, mas sim o complementa e o fortalece.
Considerar o samba como passivo de múltiplas transformações que formam assim miríades de fazeres remete a uma outra maneira de encarar o fenômeno, diferente daquela relativa à inscrição deste em um Logos totalizante
e discriminador. Se o samba urbano, a partir do Estácio, empreende uma mudança radical no estilo que o coloca em sincronia com a modernidade ascendente, importa a situação que o leva à ambiguidade para com seu proceder. Afinal, no Brasil, na leitura otimista de Wisnik
(...)a tradição da música popular, pela sua inserção na sociedade e pela sua vitalidade, pela riqueza artesanal que está investida na sua teia de recados, pela sua habilidade de captar as transformações da vida urbana-industrial, não se oferece simplesmente como um campo dócil à dominação da indústria cultural estandardizada, nem à repressão da censura que se traduz num controle das formas de expressão política e sexual explícitas, nem as outras pressões que se traduzem na exigência de bom gosto acadêmico ou nas exigências de um engajamento estritamente concebido (WISNIK, 2004, p. 176 – 177).
Porém, não há como negar que o samba do estilo novo recebeu algum benefício de sua ligação com os detentores legitimados do poder e do saber. Como colocado no capítulo anterior, essa aliança não significou submissão total do samba urbano. Mas mesmo podendo se configurar como resistência, é de interesse perceber que a expansão do gênero como predominante influencia sua relação para com o passado. Sua estrutura memorialística surge como um equilibrista que fica entre o fortalecimento de afetos relativos à movência e os mecanismos de controle do poder, bem mais sutis do que a mera proibição de certos conteúdos.
Nas disputas sobre a modernidade marcadas pelas imposições de cima e as manobras de baixo, a questão da memória nesse novo samba mostra que, além de um discurso, diz respeito também, como os demais fazeres, a uma estrutura. Da fragilidade que é este aspecto, resta saber no que é mantido e lembrado dos sambas antepassados. Pois estes já tiveram sua penetração anterior no ambiente urbano e, no que é característico desses fazeres, se modificaram conforme se enraizavam nas cidades. Como parte-se do pressuposto que a movência também caracteriza o samba urbano, importa que este tenha uma relação mais profunda em suas estruturas do que a linha censora instituída pelos saberes institucionalizados.