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4.1.2. O sambista Adoniran Barbosa e a memória no samba

A figura de Adoniran Barbosa surge no rádio como representativa de certos momentos fundamentais de sua história social. Certamente não havia em João Rubinato nada que fugisse do artista padrão do veículo. Sua ascendência italiana não era barreira para participar das atividades radiofônicas. Por outro lado, além de compartilhar com outros artistas radiofônicos a fraca renda que a atividade no meio lhe atribuía, sua experiência na cidade – onde, até sua entrada definitiva na rádio, se constituía entre períodos de desemprego a uma nova atividade instável – lhe aproximava das pessoas cuja vida era desapossada de privilégios, interagindo assim com o trabalhador braçal até os lumpems da cidade. Da relação estabelecida com essas pessoas é que Adoniran pode, através dos textos de Moles, criar personagens que remetessem à realidade diária e que proporcionasse entretenimento com uma paródia desta. Através disso, aparecem no rádio diversos fatores que antes eram recalcados: da representação dos marginalizados até a formação de um contradiscurso. São experiências que Adoniran teve no veículo que foram cruciais em sua formação como sambista; quer seja influenciando este, quer em uma conjuntura que o sambista e o radioator compartilharam.

4.1.2. O sambista Adoniran Barbosa e a memória no samba

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Embora já compusesse sambas desde os anos 30, seu efetivo sucesso como compositor e, mais importante, seu “estilo característico” de criar sambas ligados intimamente ao cotidiano das camadas baixas das grandes metrópoles se manifesta a partir dos primeiros anos da década de 50, ou seja, depois de farta experiência e sucesso como radioator. A gravação de “Saudosa Maloca”, em 1951, já evidencia um compositor que se voltava a tematizar a metrópole paulistana e, principalmente, a história das pessoas que a habitam. Antes desse período, as tentativas de Adoniran no samba podem ser facilmente qualificadas como emulações do estilo dos sambistas cariocas, tanto da dicção quanto das temáticas29 .

29 Maria Izilda Santos de Matos chama atenção para aquela que seria a primeira canção de Adoniran, “Minha vida se consome”, composta em parceria com Pedro Romano e Verídico, algumas das temáticas pelo qual seria conhecido já estariam presentes, em especial a miséria urbana, manifestada na figura da fome.

Contudo, se o rádio foi fundamental para a construção da persona do sambista, o samba como fazer em Adoniran é resultante de uma relação mais complexa sobre a experiência, onde a trajetória individual se confunde com a memória de fazeres relacionados à cidade. Nesse sentido pode se colocar que se utilizando do samba nos moldes do estilo novo Adoniran proporcionou o encontro de diversos fatores que contribuíram ao longo da história da metrópole paulistana para a formação de uma cultura peculiar dessa cidade. Suas composições apontam para o uso da memória que abarca a captura do passado recente, memória afetiva que caracteriza as líricas como narrativas, e os rastros de

Minha vida se consome A noite vai chegando minha vida se consome tanta gente se alimentando e só eu passando fome Dá rugido, dá estalo Meu estômago faminto Vou ver se posso tapeá-lo Apertando mais o cinto

Que ironia do destino Tem sido a minha vida Me chamam de vagalino Porque já batia linha O batente eu procuro Sou capaz de dar duro Mas ninguém me dá trabalho E dizem que nada valho

Passo a pasteis de brisa E não tem mais camisa Só tenho a filosofia Que me dá consolação Com a barriga assim vazia Sei que morrerei No necrotério acabarei Mas não será de indigestão (ADONIRAN BARBOSA, PEDRO ROMANO E VERÍDICO apud MATOS, 2007, pp. 129 – 130).

Porém, Adoniran reconheceria a marchinha “Dona Boa”, vencedora do concurso da Prefeitura de São Paulo no quesito de melhor música de carnaval de 1935, como sua primeira composição (MATOS, 2007, p. 130).

fazeres referentes à manifestação popular que marcam a estrutura dos sambas.

Para este cronista [nota do autor: Adoniran Barbosa], observar a cidade implicava um exercício de caminhar a pé (de dia e de noite), aproximar-se, conversar, ouvir, atentar para as entonações, sintaxes, sonoridades e também distanciar, buscando a inspiração-reprodução concretizada nas composições. Produzir esta matéria modelar para as canções subentendia integrar-se com as experiências através do seu falar, não só presente no sotaque ítalo-paulistanocaipira, mas também nas paisagens sonoras, nas melodias e no modo de cantar específicos da cultura urbana paulista (MATOS, 2007, p. 142).

Reestruturar esses rastros em torno do samba importa como resistência à diluição da memória que caracteriza modernidade quando esta se fundamenta na destruição e reconstrução constantes de seus alicerces materiais e afetivos. Considerando que os fazeres, mesmo resistindo a esse paradigma, podem ser afetados por este, levando então ao abandono ou ao enfraquecimento de práticas, os sambas de Adoniran existem como representativos da modificação e ressignificação de determinadas tradições musicais em uma nova fase da modernidade que a metrópole adentrava. Pois se nas líricas de Adoniran Barbosa existe o antagonismo do elemento destruidor e diluidor que acompanha a modernidade, se fundamenta para si a necessidade de que se contrapor a essa estrutura tendo como referencial as relações de memória que, ao resistirem, devem ter em conta que sempre há a ameaça de desaparecer. Memória cuja maior força provém da metamemória, ou seja, a força que existe no discurso e na estrutura dos sambas de Adoniran Barbosa aparece justamente como continuadora de uma tradição que concerne à valorização da memória no cancioneiro paulista. Em particular, as tradições provindas de duas manifestações são significativas sobre o valor da memória nos fazeres populares locais: as do samba paulista e as referentes às modinhas paulistanas.

Sobre o samba de paulista, no capítulo anterior viu-se que, a partir das considerações feitas por Mario de Andrade, os participantes do samba de bumbo davam grande importância para a lírica improvisada e consideravam essencial que a poética arregimentada versasse sobre aspectos da memória. Caso essa associação não ocorresse, o jogo proposto não poderia ser caracterizado como samba. Na capital paulista, a estrutura do samba de bumbo se desenrolou para práticas como a marcha sambada dos cordões,

perdendo força, contudo, com a chegada e expansão do samba do estilo novo. Porém, a tradição memorialística continuou, fomentando entre os praticantes de samba em São Paulo a necessidade de construção da lírica em cima da memória, mais especificamente desta atrelada a acontecimentos relacionados ao lugar. Como os grupos excluídos eram geralmente os mais drasticamente atingidos pelas transformações da cidade, a associação da memória ao lugar passa a constituir forte manifestação de resistência. O trinômio que associa o momento, o território e a identidade – sendo que este se emaranha com os dois primeiros a partir da consciência do sambista de pertencer a uma determinada tradição cultural –, resulta de que o samba paulista possa ser considerado como crônica de territorialidades.

Em Adoniran deve ser considerada essa tradição memorialística residindo em uma conjuntura referente à sua experiência. Tanto no que no que diz respeito à memória de lugares quanto à fundamentação da identidade, Adoniran se volta ao peso da alteridade, da narrativa referente ao Outro. Os lugares que são revisitados em seus sambas remetem tanto à sua história dentro da urbe, como no caso do Brás, assim como também lugares por ele desconhecidos, mas idealizados no que refere ao tocante do cotidiano das pessoas, caso de Jaçanã. Da mesma forma, a identidade em Adoniran referencia a multiplicidade cultural que se formou em São Paulo. Logo existe no falar os trejeitos de um caipira de ascendência italiana a estrutura do samba que é devedora das práticas que os afro-brasileiros desenvolveram no território paulista; inclusive em certas letras de Adoniran, como será visto posteriormente, se assemelham mais ao corpo poético dos sambas de bumbo do que a bricolagem do samba do estilo novo.

Se o samba leva Adoniran a estabelecer relações de memória conforme a modificação de uma tradição, a influência das chamadas modinhas paulistanas é representativa de uma memória que se desenvolveu em resposta à modernização de São Paulo. Aparecendo logo na primeira fase de desenvolvimento urbano da capital paulistana no século XX, essas modinhas constituíram um fenômeno cultural curioso.

Compositores anônimos partiam de fatos diários que comoviam e chocavam o cidadão mais comum, criavam sobre a melodia conhecida uma nova letra,

“recriando” assim a canção. Por isso, segundo Antônio de Alcântara Machado, a modinha urbana paulista tem “letra de assunto em regra policial posta a martelo dentro do ritmo de uma música em voga, feita para explorar a sensação produzida por um fato, impressa em papel volante e vendida a tostão o exemplar (...) Assim é a modinha urbana impressa” Desta afirmação é possível retirar duas importantes características da canção popular: a impressão da suas letras e folhetos e a utilização de melodias já conhecidas e reconhecidas por boa parte da população, com texto diferente do original e comentando fato momentâneo e corriqueiro (MORAES, 2000, pp. 148 – 149). Exercício explicito de bricolagem30, as modinhas paulistanas aparecem como fazeres empreendidos pela população pobre em sua própria tentativa de compreender o fenômeno da urbanização e também de disputá-lo. Tanto a canção como a memória são vinculadas a fazeres que se desenvolviam nesse meio e encontravam apelo entre as camadas populares: a canção urbana e a notícia sensacionalista. Remete assim ao tipo de sensibilidade que começava a ser moldada no cotidiano da cidade, pois a bricolagem demonstra o apelo que o cancioneiro urbano, veiculado primeiro em partituras e depois de forma mais perspicaz no rádio, tinha no cotidiano das pessoas e como elas internalizavam essas canções ao ponto de modificá-las conforme seus próprios anseios criativos. Ao mesmo tempo, o noticiário apelativo, cuja característica se voltava ao trato da notícia para uma roupagem tida como popular, influenciava na população a forma como o cotidiano passaria a ser encarado.

Trata-se de atrelar práticas diferentes, mas que compartilham em seus motivos o fato de que são manifestações cuja lógica funciona intimamente com a fugacidade moderna que estrutura metrópoles como São Paulo; ocorrendo a

30 Sobre o encaixe, na maioria das vezes forçado, de novas letras em cima de melodias já conhecidas que marca as modinhas paulistas, Moraes afirma não se tratar de algo novo. Pelo contrário, trata-se sim de prática ocasional na história da música no Brasil.

Em primeiro lugar, é uma prática muito semelhante às adotadas no folclore. Uma mesma melodia, às vezes com pequenas alterações que não redefinem totalmente sua estrutura sonora e harmônica, serve de base a diversas letras, sejam elas parcial ou completamente alteradas. É por isso que encontramos nas diferentes regiões do país a mesma melodia com texto transformado em parte ou na íntegra. O inverso também é verdadeiro: ou seja, a letra torna-se modelo para a variação total ou parcial da melodia. Trata-se, portanto, de variações sobre a mesma base. Improvisar sobre um modelo estabelecido (musical ou poético) pela tradição e reconhecimento dos autores e instrumentistas é uma prática recorrente nas tradições culturais regionais, locais e folclóricas. O que hoje se denomina música popular brasileira, por exemplo, sempre soube utilizar muito bem essa base modelar, partindo dela para a criatividade e a improvisação (MORAES, 2000, p. 153).

canção urbana ser regida pelo fenômeno do modismo, assim como é sabido que o noticiário enfraquece a narrativa ao associar o acontecimento a um formato passivo de ser consumido de maneira veloz e saturada. Contudo, se a manipulação realizada marginalmente em cima das canções está sim ligada ao modismo destas, a relação das modinhas paulistanas com o noticiário sensacionalista subverte os estatutos de impessoalidade deste; remetendo assim a uma síntese interessante entre apelo e as temporalidades produzidas no jornalismo, mas com um retorno da narrativa que liga a informação a certo sentido afetivo, que embora possa existir nos pressupostos de noticiabilidade da imprensa, é recalcado por esta.

Logo, se na tradição dos sambas paulistanos é correto remeter ao termo crônica para referenciar a instrumentalização da memória como patrimônio que conecta tradições culturais a uma modernidade volátil, as modinhas paulistanas já apresentam o que seria uma das primeiras tentativas de adequação na canção de um discurso próximo da crônica como esta é entendida no Brasil. Ao misturar a narrativa a informação, importando desta o sensacionalismo que caracteriza a imprensa popular, a modinha paulistana fundamentou-se como discurso através da tragicomédia que permeia a vida em uma metrópole em ascensão.

As canções recolhidas por Alcântara Machado no final dos anos 20 demonstram e sintetizam essas características que, de modo contrastante, assumem na cidade de São Paulo, um tom narrativo, trágico e violento em seus temas, caracterizando uma paródia no sentido diverso e inventivo daquele utilizado mais normalmente, ou seja, a humorística. Apesar da variedade de sentidos, um dos traços mais conhecidos e usuais da paródia é o da farsa que objetiva realizar uma imitação ou adaptação cômica e burlesca de qualquer tipo de texto (peça literária, teatral ou musical). Porém, nessas modinhas paulistanas dos anos 20/30, a imitação e a farsa assumem um tom trágico e lúgubre. Por vezes, as tragédias e desgraças ganharam proporções tão gigantescas que resvalavam num tom profundamente irônico e humorístico próximo ao da tragicomédia (MORAES, 2000, p. 156).

Deve-se enfatizar nesse fator tragicômico que os causos narrados nas modinhas paulistanas têm como foco o retrato da vida dos excluídos no cotidiano da cidade. Geralmente figuras anônimas relegadas ao esquecimento, nas modinhas paulistanas essas pessoas são reatribuídas de identidade, sendo identificadas por seus nomes, endereços e, principalmente, as histórias de suas experiências na cidade – ou do fim delas, tendo em vista que o

aspecto trágico dessas modinhas casualmente culmina morte de algum dos personagens retratados (MORAES, 2000, pp.179 -180).

Antecedendo a crônica-canção, a narrativa iniciada pelas modinhas paulistanas e na conjuntura que estas apresentaram, dos aspectos tragicômicos e da identidade dos excluídos, teve no novo samba urbano em São Paulo a continuação de seus estatutos. Afinal, por se tratar de fazer concebido como forma de compreensão e, ao mesmo tempo, de reinvenção do cotidiano urbano, o samba local encontrou no discurso das modinhas paulistanas base para fundamentar sua própria poética referente à cidade. São pressupostos que na persona catalisadora de multiplicidades de Adoniran Barbosa encontram um artesão capaz de manuseá-los em um novo ciclo de desenvolvimento que já havia despedaçado a cidade deixada pelos criadores das modinhas paulistanas.

A obra de Adoniran evidencia forte presença da narração no dia-dia do paulistano, mesclando referências universais e particulares. Assim, as semelhanças temáticas e de tratamento da estrutura de suas canções são muito próximas às das modinhas da década de 1930. Elas podem ser vistas como um exercício de continuidade transformada; de uma tradição iniciada nos anos 20/30 que se consolidou na cultura popular paulistana , tornando-se parte indissociável e característica desta (MORAES, 2000, p. 194).

Continuadores de tradição memorialística fundada pelos oprimidos em uma metrópole hostil à memória, os sambas de Adoniran Barbosa devem ser entendidos como referentes a essa conjuntura conflituosa. Neles as metamemórias que emergiram das idealizações dos sambas em São Paulo e das modinhas paulistanas, cujas peculiaridades são sintetizadas em um único produto, são inseridas para que, ao jogar com a modernidade, as novidades que esta apresenta sejam subvertidas de forma que possibilitem aos fazeres o fortalecimento de suas bases memorialísticas. Assim, a captação dos pequenos momentos do cotidiano, que revelam identidades suprimidas, situações conflituosas, afetos invisíveis e tradições fragmentadas, encontra nos meios de comunicação e nos aparelhos de reprodutibilidade técnica a possibilidade de se transmutarem em relatos transcendentes, registros de temporalidades que se tornam atemporais.

Nesse ponto é que o fazer dos sambas difere do fazer radiofônico. Este, apesar da possibilidade de representação dos excluídos feita pelos textos de Moles e

pela interpretação de Adoniran, estrutura seus programas de forma que dificilmente estes perdurem como memória. Caso de Histórias das Malocas, que apesar das tentativas de registro – como as feitas no Lp homônimo ao programa, onde os poucos registros do programa mantidos compartilham a gravação com canções de Moles e do maestro Hervé Cordovil com interpretação de Estherzinha de Souza -, cairia no esquecimento do imaginário paulistano tal qual a prevalência do rádio como meio de comunicação de massas dominante. Já ao compor sambas, Adoniran Barbosa arregimentou uma arte que transforma os momentos do cotidiano em memória. Assim, a comunicação dos sambas para com o imaginário popular, ao mesmo tempo que utiliza dos meios de reprodutibilidade técnica para se sustentar como registro, diz respeito à maneira como o samba pode conceber a si mesmo como uma forma de memória que objetiva perdurar; ocorrendo dos dois fatores citados como motivo dessa construção não se sobreporem um ao outro, mas sim se complementam de forma equilibrada.

A ideia do samba da Adoniran Barbosa como crônica-canção é então resultante de tais fatores que permitiram se estruturar como receptáculo que capta a aventura moderna protagonizada por aqueles que são geralmente excluídos pelo discurso dos poderes, que ufana a destruição material e afetiva causada pelo desenvolvimento constante da cidade. Dizendo respeito ao cotidiano e a seus desmembramentos, as histórias protagonizadas por essas pessoas são reveladoras do que vem a ser a identidade da metrópole paulistana e da relação conflituosa que esta tem com suas gentes. Sendo parte das táticas arregimentadas por esses excluídos como forma de antagonizar o esquecimento estrutural da modernidade, os sambas de Adoniran revelam o valor dos momentos e da importância de como estes demonstram o que vem a ser a conjuntura urbana; pois ao se transfigurarem em memória, mostram que muitas das situações arregimentadas pelo ambiente urbano de outrora podem ainda reverberar no cotidiano de muitas pessoas presentemente.

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