7 minute read

4.3.2. Abrigo de Vagabundos

Next Article
performances

performances

que ela tem de trágico. Detalhe onde todo o sentir de apatia e desespero que aparece na narrativa ganha potência no cantar coletivo do grupo, emitindo a impressão de que o trio protagonista é quem toma voz na tragédia, fazendo do canto um relato coletivo do acontecimento – apesar da permanência do pronome “eu” referente ao narrador. Evidencia-se no que é impresso pelas interpretações de “Saudosa Maloca” tanto do compositor quanto do grupo Demônios da Garoa, que num relato marcado por oposições simbólicas, isso não é feito opondo o trágico e o cômico. Pelo contrário, nesse samba tratam-se de conceitos complementares e inseparáveis. O tragicômico em “Saudosa Maloca” existe como manifestação da experiência em sua conexão com o viver. Pois na modernidade e na violência que ela pode exprimir, a possibilidade de manifestar-se através da memória passa pelos sentires de sofrer, não excluindo, contudo, que mesmo nas desgraças existe possibilidade de riso.

4.3.2. Abrigo de vagabundos

Advertisement

Esse samba de Adoniran, incluído no álbum de 1973, apresenta uma continuação da narrativa de “Saudosa Maloca”, prosseguindo de onde a história desta canção parou.

Eu arranjei o meu dinheiro Trabalhando o ano inteiro Numa cerâmica Fabricando pote E lá no alto da Mooca Eu comprei um lindo lote Dez de frente, dez de fundos Construí minha maloca. Me disseram que sem planta não se pode Construir, mas quem trabalha Tudo pode conseguir. João Saracura Que é fiscal da prefeitura Foi um grande amigo Arranjou tudo pra mim. Por onde andará Joca e Matogrosso? Os meus dois amigos Que não quis me acompanhar. Andarão jogados Na avenida São João? Ou vendo o sol quadrado Na detenção? Minha maloca a mais linda que eu já vi

Hoje está legalizada, ninguém pode demolir. Minha maloca, a mais linda deste mundo Ofereço aos vagabundos que não tem onde dormir (ADONIRAN BARBOSA, 2003).

O esquema lírico segue a mesma formula encontrada na canção antecessora, com a apresentação de um corpo poético que deságua em um estribilho em forma de quadra. A semelhança para com o samba de bumbo é reforçada com o próprio intérprete cantando o refrão para depois levantá-lo ao coro.

As diferenças para com “Saudosa Maloca” são mais evidentes quando se trata da mensagem contida na lírica. Em “Abrigo de Vagabundos” não há a proposta metalinguística enunciada na representação do ato dialogal no tempo presente. A lírica da canção existe somente como a narrativa de pequenos eventos cotidianos que conectam os momentos representados em “Saudosa Maloca” para com um novo, e vitorioso, resultado final: a construção de uma nova maloca. O máximo de interferência sobre o andamento da narrativa é quando o narrador conjectura sobre o paradeiro dos antigos parceiros.

Se agora o narrador está sozinho em suas empreitadas, “Abrigo de Vagabundos” apresenta uma situação complexa que pode ser enganosa. Se em “Saudosa Maloca” o foco era na experiência marginal – inclusive o próprio ato memorialístico – dos vagabundos para com a sua maloca e de como um poder legitimado se opõe aos interesses dos protagonistas, “Abrigo de Vagabundos” mostra o narrador em acordo para com o Estado e a ordem que ele representa. As situações que levam ao resultado final da nova maloca são pressupostos de uma vivência regrada conforme ditames do poder. O narrador adentra o mundo do trabalho para atingir o seu objetivo em um ofício modesto (“eu arranjei o meu dinheiro/ trabalhando o ano inteiro/ numa cerâmica/ fabricando pote”) para assim economizar e realizar a compra de uma propriedade (“E lá no alto da Mooca/ eu comprei um lindo lote/ dez de frente, dez de fundos/ construí minha maloca) com ajuda de um funcionário do Estado (“João Saracura/que é fiscal da prefeitura/ foi um grande amigo/ arranjou tudo pra mim”). O modo menor presente ao longo do arranjo harmônico-melódico, que é permeado pelas inflexões de passionalidade presente ao longo da canção, passa a impressão ao ouvinte de que a submissão para com esses estatutos

da ordem vigente não inspiram boas sensações ao narrador. Aparenta “que expressa uma conquista (a tão sonhada maloca) como quem lamente algo. Não há humor, mas uma profunda consternação” (FLORES JR, p. 127). Dentro do plano narrativo qualquer possibilidade de exaltação para com o modelo de vida propagado pelo poder é cessada com o aparecimento de João Saracura. A relação que é mantida por este, o fiscal da prefeitura, e o narrador mostra que a ilusão burguesa da ascensão pelo trabalho não tem o mesmo peso para a obtenção da propriedade caso não ocorra promiscuidade entre os interesses do indivíduo para com contatos particulares no Estado. A nomeação da personagem do funcionário público, assim como sua adjetivação como “grande amigo”, é reveladora da cordialidade inerente a essa relação. Em outras palavras, é a partir do pressuposto da amizade do funcionário público que o narrador consegue expandir os seus interesses particulares para o âmbito público, legitimando-os.

É certo que o Estado ocupa posição moderadamente adversa em relação à narrativa antecessora. Antes aparecendo, indiretamente, como mote legitimador da desgraça do narrador e de seus companheiros, agora ele concede ao narrador a posse do tão sonhado território. Percebe-se que a situação diferenciada entre as duas canções demonstra um ponto em comum que é o aval do Estado para interesses particulares: o do proprietário do terreno ocupado em “Saudosa Maloca” e a legalidade da maloca do narrador em “Abrigo de Vagabundos”. Mas é a preocupação com os velhos companheiros Joca e Matogrosso que marca o distanciamento psicológico entre o narrador e a legitimidade estatal. A suposição sobre o paradeiro desses personagens e a preocupação para com estes, que se recusaram a trilhar o mesmo caminho que o narrador, é motivo de consternação memorialística; pois o mesmo Estado que agora lhe garante a maloca, também é responsável pela continuação da miséria dos ex-parceiros, considerando também a possibilidade de que as forças repressivas os tenham encarcerado. A tristeza que emana então desse samba é decorrente da memória que envolve esses laços afetivos, a origem marginal que neles

provém e a cisão presente que pesa na mentalidade de um eu lírico solitário em sua integração ao domínio do Estado.

Se no início da música, quando é revelado o novo oficio do narrador, a compra do terreno para construir a maloca e a sentença de que “me disseram que sem planta/ não se pode construir,/ mas quem trabalha/tudo pode conseguir”, aparenta levar Adoniran Barbosa ao rol dos sambistas antes rebeldes e agora cooptados pela ideologia do poder, o sambista logo desmancha esse discurso ao demonstrar a realidade ocultada pela ideologia – no caso o conluio com o funcionário público – e retoma o aspecto memorialístico que havia cultivado anteriormente. Devolver a narrativa a sua importância como memória é que marca efetivamente o distanciamento da canção a qualquer tipo de agregação oficialista. Como demonstra a história dos sambas-exaltações35, a cooptação do samba pelo Estado geralmente expurga do gênero sua qualidade como narrativa conectada à experiência cotidiana. O narrador como personagem protagonista pode ter sido integrado a certos pressupostos do poder, mas a canção, seu lamento, é algo que escapa e se estabelece como recuperação de uma experiência que não pode ser cooptada.

A memória é que o deixa triste, que o afasta da mentalidade propagada pelo poder e, finalmente, é aquilo que o leva à solidariedade para com os vagabundos; esquecidos e anônimos que ficam largados a própria sorte no desenrolar da modernidade urbana em seu desenvolvimento. Se “a maloca também era representação de refúgio e solidariedade” (MATOS, 2007, p. 144) significando em “Saudosa Maloca” a camaradagem do trio protagonista em “Abrigo de Vagabundos”, como o próprio título da canção revela, existe o débito do narrador para com o mundo dos desvalidos que ele outrora pertencera.

35 Sobre o samba-exaltação, o próprio Ari Barroso demonstra como essa modalidade esvazia o gênero de sua tradição discursiva voltada à experiência.

Senti, então, iluminar-me uma ideia: a de libertar o samba das tragédias da vida, do sensualismo das paixões incompreendidas, do cenário sensual já tão explorado. Fui sentindo toda a opulência da nossa terra, gigante pela própria natureza. (...) De dentro de minh’alma, extravasava um samba que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora de gente boa, laboriosa e pacifica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba divinizava, em uma apoteose sonora, esse Brasil glorioso (ARI BARROSO apud ROCHA, 2002, p. 53).

This article is from: