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4.5.1. Acende o Candieiro

em diferentes temáticas, contudo quando aparece na temática dos eventos musicais, proporciona a sensação de diálogo dentro da canção entre os elementos discursivos e musicais, como se um atendesse ao chamado do outro para proporcionar ao ouvinte as minúcias relacionadas à criação do fazer do samba.

4.5.1. Acende o Candieiro

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Das canções que abordam a ligação entre a ausência de um recurso cotidiano e o festejo centrado no samba “Acende o Candieiro” proporciona a leitura mais interessante devido às peculiaridades da lírica e às releituras já feitas dessa canção. Tal qual “Luz da light”, o motivo da canção é a quebra de um recurso energético, embora enverede pelo caminho oposto ao mostrar o uso da energia, e não sua ausência, como fundamental para o evento captado. A isso acrescenta-se a narrativa contida na segunda que versa sobre a trajetória singela de uma personagem que deve ir em busca dos recursos necessários.

Composta em 1972 e incorporada ao LP de 1974, Adoniran viria a gravar novamente a faixa em 1980, para o LP Adoniran Barbosa e Convidados, em parceria com o grupo carioca Nosso Samba. Da versão de 1974 à de 1980 Adoniran opera mudanças significativas na composição cuja interferência na lírica e no canto merece ser abordada.

A versão de 1974 é um samba bem tradicional, introduzido por um fraseado de saxofone que corre em paralelo à base ritmo-harmônica tradicional do samba, com o uso conhecido do cavaquinho, do tamborim e do surdo pontuando a música. Já nessa versão vê-se uma construção lírica bem tradicional seguindo o modelo de estribilho e segunda típico dos sambas que seguem o estilo novo.

Acende o candieiro, ô nega! Alumeia o terreiro, ô nega! Vai avisar o pessoal Que hoje vai ter ensaio geral. (Vai nega, vai!)

Vai depressa Maria Antes que fique tarde Daqui a pouco escurece Não dá pra avisar ninguém. Na volta não esquece De falar com Dona Irene

E passar pelo armazém. Trazendo um pacote de vela E um litro de querosene. Desta vez não pode acontecê O que aconteceu da outra vez Foi uma coisa incrível O ensaio paro porque falto combustível. (ADONIRAN BARBOSA, 2003).

Assim como outras canções de Adoniran Barbosa, a lírica se divide em dois tempos, contudo existe o diferencial de que a narrativa contida na segunda esteja ambientada num tempo futuro; com uma ligeira, porém importante, inflexão ao passado. Exercitando sua estética íntima ao cotidiano, essa canção se trata de um evento musical futuro, um ensaio, onde tanto o presente cantado no estribilho quanto a narrativa da segunda se fundamentam para o preparativo desse ensaio.

Já no estribilho é enunciada uma personagem feminina em que recai a responsabilidade de preparar o evento. Este tem como base para sua consumação a figura do candeeiro, um pequeno e modesto instrumento de iluminação movido a gás. Também no estribilho percebe-se que essa personagem é subordinada ao narrador, que a instrui a iluminar o lugar em que será realizada a reunião, categorizado como terreiro, e a chamar, de forma genérica, os demais para que o evento ocorra.

Da poética contida no estribilho, essa persona feminina é categorizada de forma leviana como “nega”. De um autor cujo cancioneiro é notório em personagens femininas que são portadoras de experiência própria, a caracterização de uma delas como “nega” é problemática, embora paradigmática em sua inserção no gênero musical do samba. O termo “nega” faz parte da estirpe com que historicamente o papel da mulher esteve presente no discurso dos sambista. Mais aberto do que o termo mulata, que aparece no samba como figura simbolicamente erótica, existe ao mesmo tempo na figura da “nega” a subjugação violentamente sexista herdada dessa simbologia37

37 André Rocha Leite Haudenschild, em análise sobre as simbologias que o compositor Dorival Caymmi coloca sobre o papel da mulher em seu cancioneiro, coloca que a “nega” aparece conforme o mesmo estatuto que a tradicional “mulata”, sendo personagem mais considerável por seus atributos do que como sujeito.

Segundo o dicionário Aurélio, o adjetivo “dengoso” é sinônimo de faceiro, jovial, manhoso e astuto, ou seja, o vocábulo “dengo” pode ser entendido polissemicamente:

como também, em contraste, um papel de interlocução cotidiana para com eu lírico38; no que considera a situação de pobreza em que ambos personagens estão inseridos. São caracterizações que estão mais ou menos envoltas nessa personagem cantada por Adoniran Barbosa, em cuja canção cumpre um papel de interlocução para com o eu lírico ao mesmo tempo em que cumpre as ordens deste, expressa em tom de apelo sensual pela interjeição “vai nega, vai!”, cantada com uma dicção que exprime malícia. Detalhe que ajuda a exprimir uma força erótica presente nesse estribilho, onde a figura do candieiro também acabaria envolta, aparecendo metaforicamente como conotativa de sensualidade, onde o ato de acender o objeto referido remeteria também a uma libido ascendente.

Contudo, na segunda a “nega” é nomeada, se chama Maria. E desse enunciado se presume um papel social mais profundo do que receptáculo de desejos e ordens masculinas. A proposta narrativa que se segue é a instrução de uma trajetória que essa personagem deve seguir para que o ensaio proposto seja realizado com sucesso. Essa instrução leva em conta uma temporalidade a considerar (“Vá depressa Maria/ Antes que fique tarde/ daqui a pouco escurece/ não dá pra avisar ninguém”). Também é contemplado o

possui a ambivalência de ser uma característica positiva (significando algo como “charme” e “bossa”) e negativa (podendo ser entendido como “manha” ou “preguiça”). Aqui podemos entendê-lo em sua positividade no sentido de que ecoa na canção uma clara exaltação ao corpo e aos gestos dessa “nega” tão desejável, retratada não tanto pelo que ela “é”, mas pelo jeito como ela “faz”: no “falar”, no “andar”, no “sorrir”, no “sambar”, no “quebrar”, no “bulir”, no “cantar” e no “olhar” (HAUDENSCHILD, 2011, p. 10).

38 Ao propor leitura da canção “Coisas do mundo, minha nega” de Paulinho da Viola, Roberto Bozzetti coloca que ao longo da lírica, a figura da “nega” é a quem o narrador se dirige para contar sobre sua trajetória cotidiana.

Chegando agora um pouco mais perto do texto da canção, vemos que ela se estrutura como uma narrativa do cotidiano: o narrador chega aonde sua “nêga” o espera, e chega desculpando-se, como de hábito: “na boca as mesmas palavras”. Serão estas, ou melhor, sua reincidência, a razão do “mesmo remorso”, atenuando o “venho quando posso”. E a viola (no Brasil, uma forma carinhosa de se tratar a guitarra, a que chamamos “violão”) com o nome da amada gravado quer servir de álibi, num expediente que acena muito sutilmente a um expediente habitual da malandragem: o agrado à companheira pelo retorno fora de hora do boêmio (BOZZETTI, 2011, p. 171).

caminho cujo objetivo já fora admitido no estribilho (“vai avisar o pessoal”) e que dá conta de um trajeto complexo quanto às relações sociais que pressupõe. Estando a ida considerada conforme a interação para com a sociedade em que convive, cuja totalidade só pode ser percebida através do anonimato coletivo, e a volta considerada nas minúcias do diálogo entre dois indivíduos, Dona Irene e Maria, para posteriormente adentrar no armazém e pegar os instrumentos (um pacote de vela/ e um litro de querosene). Interações que devem ser feitas para tornar os atos enunciados nas possibilidades presumidas no estribilho.

É da inflexão da narrativa ao passado que se percebe o porquê de tanto cuidado nas instruções que devem ser seguidas por Maria. Além do óbvio aspecto de que se deve convidar um coletivo para que o evento seja realizado, a necessidade de velas e de querosene existe devido à lição aprendida em outro evento de mesma natureza, onde “o ensaio parou porque faltou combustível”. Percebe-se que a ventura porvir de Maria é consonante ao caos destrutivo que ocasionou a narrativa contida “Quem bate sou eu”. Mas se nesta canção o senso moral de um dos personagens se coloca a proporcionar uma lição ao personagem atingido em sua responsabilidade pelo acidente, “Acende o Candieiro” já é uma narrativa da lição aprendida devido à memória cotidiana. É da experiência partilhada entre o eu lírico e Maria onde existe o papel contraditório desta como sujeito. Na segunda sua nomeação da conta de uma pessoa participativa na comunidade no qual recai a responsabilidade de auxílio nos preparativos de um evento musical local. Compartilham-se experiências entre os personagens para mostrar que, como sujeitos, eles têm interesses em comum entre si e também para com a comunidade a que pertencem. Contudo, no estribilho, o que se vê é uma mulher cuja referência como “nega” mostra o significado duplo de um não sujeito, receptáculo das ordens do eu lírico e erotizada como parte do embalo estético do samba. Posição que fica ainda mais realçada na versão de 1980 deste samba, que se não apresenta grandes modificações referentes à lírica, demonstra nesta interjeições que desconsideram mais a personagem como sujeito em encontro com seus próprios interesses. Elas pontuam o texto de forma que infantilizam a

personagem em sua relação com o locutor, que canta a todo momento sentenças como “Vai nega, faz lá o que o pai mandou!” – onde esta inclusive introduz a canção junto com o instrumental - ou “Vai fia”, demonstrando paternalismo ao dirigir-se à personagem feminina. Inclusive, a essas interrupções feitas por cima da lírica, Adoniran complementa a informação da narrativa com o seguinte discurso que ainda infantiliza a outra a quem encaminha sua mensagem.

Vai fia! Fala o que o pai mandou, viu? Vai busca... não vai trazer combustível de avião, viu nega? Fala o que o pai mando. Vai traze daquele mel... daquele mel bom que matou o vigia, viu? Só pra nois... mas não demora viu fia! Faz o que o pai mandou, pai mandou! (ADONIRAN BARBOSA, 2010).

Esse discurso posto em meio à canção é estruturado como uma conversa de onde um adulto se dirige a uma criança considerando as limitações desta; revestindo a dicção de maneios que só podem ser levados em conta devido a um receptor infantilizado. Infelizmente, esse recurso faz com que prevaleça no canto do compositor a ideia de que Maria seria só mais uma Amélia, atuando apenas em resposta ao locutor masculino, destituída de um agir próprio.

Tornando ao estribilho, percebe-se nessa canção a atribuição do território como um terreiro, figura que relaciona o samba em seus fazeres a persistência de certas raízes do passado da cidade em se manter de pé. Afinal, é conhecido que o terreiro aparece historicamente como local de reunião afro-negra, desempenhando função de espaço lúdico e religioso; o que é notório quando se considera sua influência na história do samba. Contudo, existe na figura do terreiro em toda a força simbólica que reveste de resistência cultural algo que aponta para o meio rural de onde provenha. Tal como pedaço de terra que ainda não fora preenchido pelo concreto totalizante que caracteriza a vida urbana.

Assim a escolha do terreiro como palco da reunião premeditada remete ao rastro de uma São Paulo primordial, daquela “São Paulo estudantil e provinciana” (CANDIDO, 2002, p. 142). Cidade pacata de outrora em que os negros contavam com espaço para praticar mais livremente seus fazeres e que fora esmagada pela metrópole que Adoniran Barbosa conhecera; aquela que

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