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4.3. CANÇÕES DE DESPEJO

4.3. CANÇÕES DE DESPEJO

A temática do despejo não é novidade introduzida por Adoniran Barbosa no samba urbano. Trata-se de temática que já se mostrara presente entre os sambistas das casas das tias baianas, como “A Favela vai abaixo”, de Sinhô, e “Foram-se os Malandros”, de Donga. Com a mudança de paradigmas musicais no samba, a temática encontra o estilo novo em músicas como “Praça Onze” de Herivelto Martins e Grande Otelo. Para além de Adoniran, no samba urbano paulista a temática aparece em “Vou Sambar N’Outro Lugar” de Geraldo Filme. Trata-se de temática que se inscreve na tradição do samba por versar sobre a perda de lugares que exerciam sobre os compositores, ou sobre a comunidade no qual se viam associados, algum tipo de afeto. O samba encontra no despejo a conexão com um tema caro ao gênero, a saudade, que existe conectada à modernidade. Importante perceber que dessa ligação afetiva para com o lugar nem sempre se tratava de habitação, mas sim como o impedimento ou destruição de um lugar outrora ocupado pelo sambista e pelos personagens retratados no samba.

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A associação feita ao cancioneiro de Adoniran Barbosa para com a temática do despejo é resultante dos fatores que dizem respeito à construção de sua identidade como sambista; fazendo com que essa temática, mesmo não sendo das mais abordadas pelo compositor, sirva como base às associações que são feitas sobre a relação de Adoniran para com a cidade de São Paulo. Começando pela importância já comentada da gravação de “Saudosa Maloca” pelo compositor e da regravação desta música feita pelos Demônios da Garoa, cujo sucesso para com o público leva à fase em que o compositor se define artisticamente como representativo de um samba urbano que seria tipicamente paulista. Pois a atribuição “pai do samba paulistano” remete mais à idealização do compositor pós-“Saudosa Maloca” do que a um ato de vanguarda pressuposto. Considerando que nessa canção de despejo - que é fundamental em sua consolidação como compositor - são apresentados os aspectos gerais mais chamativos de sua lírica, como o protagonismo e identificação dos excluídos, a ênfase na narrativa e o fator tragicômico.

Esses fatores gerais que dizem respeito ao seu estilo de compor sambas, por serem apresentados ao público em uma canção como “Saudosa Maloca”, se misturam na influência para com o imaginário popular através dos significados temáticos apresentados nesta canção, contribuindo para formar a mitologia que cerca Adoniran sobre um compositor representativo daqueles excluídos pelo desenvolvimento material da urbanização. Não à toa, tendo em vista que é inerente a temática do despejo a abordagem de diversas questões referentes à modernidade e à urbanização, ainda mais quando se trata de metrópoles como São Paulo que se estouram em torno de uma mutação degradante em si mesma.

Considerar o despejo como temática em uma metrópole como São Paulo significa trazer à tona no discurso todas as agruras humanas que são ocultadas no crescimento vertiginoso e constante dessa metrópole; onde a demolição abrupta de um lugar é simbólica de toda a movimentação que caracteriza a urbe paulistana em sua condição de crescimento infinito, ganhando um peso ainda maior quando este lugar era referencial de uma dimensão afetiva. Consecutivamente, a representação desse desenvolvimento febril no que ele tem de devastador se caracteriza como antagonizante do peso simbólico que existe na figura do progresso e dos signos por ele codificados como legitimadores da ordem regente.

Mais complexa, entretanto, é a figuração dos personagens, que nas narrativas apresentadas são forçados a enfrentar a violência dos poderes que atuam na ação do despejo. Nas canções que versam sobre essa temática, o contraponto feito por Adoniran para o cidadão romantizado em traje de trabalhador tão caro ao discurso progressista não é uma resposta que corresponde à outra idealização, no que seria caracterizar as classes oprimidas como batalhadoras incansáveis contrárias às forças que mantém sua condição. Os excluídos em Adoniran, o que inclui o próprio eu lírico do narrador, são figuras restituidas da humanidade que lhes é negada. Não são potenciais revolucionários, mas sim seres cuja reação à agressão vinda de cima corresponde a sensações e expressionismos referentes ao sofrimento ocasionado pela violência contra o afeto ao lugar. Gestos que remetem a algo de patético, mas que também são sublimes.

A complexidade e fragilidade desses personagens sobre como eles interagem com um ambiente no qual estão prestes a ser expurgados suscita também leituras conflitantes quanto à condição apresentada. Pode-se recorrer à dialética do reconhecimento, enunciada por Berman em suas análises da literatura russa pré-revolucionária. Trata-se de leitura que tem o mérito de considerar a inserção do indivíduo dentro da modernidade e as tensões que o desenrolar desta acarreta. Entretanto, a adoção de semelhante dialética pode ser reducionista para com os personagens em sua relação com a desventura do momento representado. Se tomarmos as leituras de Berman sobre a literatura russa como parâmetro, os personagens de Adoniran presentes em músicas como “Saudosa Maloca” e “Despejo na Favela” não seriam muito diferentes do funcionário impotente e reprimido que protagoniza o poema “Cavaleiro de Bronze”, de Alexandre Pushkin. A política peculiar contida nos personagens de Adoniran, contudo, acenam para certa potência que, embora recalcada pela condição social, é demonstrada nos movimentos e emoções expressos. E tendo em vista que a exclusão dos poderes, em especial do Estado, corresponde também à imposição de um silenciamento dos anseios, a mera capacidade de fazer-se ouvir expressada nesses gestos já configura um incômodo. Sobre a atuação desses personagens, Rocha credita que neles opera a resignação perante as adversidades que os atingem. Podendo ser confundida com impotência, “no entanto, essa resignação não é aqui sinônimo de passividade, mas uma tática para resistir ao curso inexorável dos acontecimentos” (ROCHA, 2002, p. 152). Finalmente, a temática do despejo, ao ser configurada como narrativa em Adoniran Barbosa, emana como memória simbólica de momentos cuja sina em geral remete ao esquecimento. Considerando que a figura do despejo, em toda a carga que carrega em sua significação sócio-histórica e no agir que tem sobre as modificações urbanas, é representativa da desmemória inerente às relações materiais e afetivas que envolvem o espaço metropolitano, representar esses momentos por via do fazer artístico do samba é demonstrativo da potencialidade subvertedora da memória quando o esquecimento é estrutural. E ao mesmo tempo se trata de memória pedagógica e informativa, fatores que combinados ao tom de denúncia, a linguagem

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