6 minute read

3.2. O CANTO E AS LÍRICAS DO SAMBA

emaranhados nos mecanismos legitimadores de desmemória, ocorrendo desta resultar tanto da disputa entre fazeres quanto do favorecimento de um destes fazeres por uma força maior.

3.2. O CANTO E AS LÍRICAS DO SAMBA

Advertisement

Como são múltiplos os sambas, são também múltiplas as formas com que o canto assume. O canto aparece no samba como sua característica mais importante depois da síncope, sendo portador do discurso memorialístico e ressignificador de mitos. Também se apresenta como o elo mais forte para com o rastro dos fazeres da África Central, onde a relação com o religare20 é fundamentada na oralidade passada de geração em geração. O canto aparece como portador de histórias múltiplas e fragmentadas, estabelecem um novo elo em relação ao passado diferente do linear editado e legitimado pelo saber dominante.

As “outras histórias” convergem como tendência da historiografia contemporânea que questionam a concepção de história como evolução linear e progressista e a do tempo vinculado a leis de mudança e prognósticos do futuro. Procurando acabar com a sedimentação entre passado e presente (...), levando a descobertas de temporalidades heterogenias, ritmos desconexos, tempos fragmentados e descontinuidades, descortinando o tempo imutável e repetitivo ligado aos hábitos, mas também o tempo criador e dinâmico das inovações, os tempos das memórias (MATOS, 2007, p. 21).

A força do canto no samba reside então nessa concepção de tempo em que futuro, presente e passado se conectam formando um todo, não sendo tratados separadamente. A experiência para o sambista se converte em discurso, que se volta em ler o presente a partir de sua relação com o passado,

20 Reginaldo Prandi em coletânea por ele organizada que busca converter para o escrito diversos mitos relativos aos Orixás cultuados pelos povos Iorubás e que se diversificam em variados cantos - que combinados a movimentos de desterritorialização e reterritorialização originaram as diversas religiões afro-americanas -, comenta em prólogo a importância da oralidade para a construção dessas mitologias.

Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubás, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubás não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente. Na diáspora africana, os mitos iorubás reproduziram-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás no Brasil e em Cuba (PRANDI, 2001, p. 24).

estabelecendo um elo entre o cotidiano em que os indivíduos estão inseridos e uma herança cultural que dá a ele noção de pertencimento. Mostra assim que o discurso memorialístico é vinculado a um aspecto comunicacional, pois em conformidade com os discursos da oralidade, o que é transmitido é em razão de uma experiência que deve ser veiculada como forma de estabelecer laços com a comunidade em que os indivíduos se integram.

Essas características semióticas fazem da letra do samba tradicional um discurso transitivo direto. Em outras palavras, o texto verbal da canção não se limita a falar sobre. (discurso intransitivo) a existência social. Ao contrário, fala a existência, na medida em que a linguagem aparece como meio de trabalho direto, de transformação imediata ou utópica (a utopia é também uma linguagem de transformação) do mundo – em seu plano de relações sociais (SODRÉ, 1998, pp. 44 -45).

Da importância de uma correspondência da lírica para com a sociedade, Sodré também lembra que ela cumpre uma função pedagógica, no que concerne uma educação que compreenda o ethos pertencente à base dos fazeres do qual o samba se encaixa.

E é também negra a característica aforismática ou proverbialista da letra do samba. Realmente, nas sociedades tradicionais (onde se incluem as culturas africanas), o provérbio consiste num discurso pedagógico, um meio permanente de iniciação à sabedoria dos ancestrais e da sociabilidade em grupo. Esse instrumento educativo se forja na experiência, forjada na vida real. Seu objeto de conhecimento é a própria relação social – o relacionamento do homem com seus e com a natureza (SODRÉ, 1998, p. 44).

Ao longo das diversas formações assumidas pelo samba, é licito afirmar que o rastro de temporalidade que o canto procura comunicar e a relação estabelecida com o cotidiano é parte da tática de reinventar a vida, ou melhor, de dar voz a um falar historicamente reprimido. Afinal, os poderes estabelecidos impõem uma condição subalterna ao oprimido, obrigando-o a aceitar a narrativa cristalizadora da ordem das coisas; discurso linear designador do trunfo dos vencedores. Dessa imposição combinada à repressão aos fazeres dos oprimidos – que, como colocado anteriormente, também passa pela deslegitimarão da sensibilidade relativa a estes , praticar seu próprio discurso aparece na conjuntura de resistência formada pelas práticas como divulgação de um pensar diferenciado, o pensar do Outro. Afirmar o saber contido em discurso, outra forma de conceber o fone para além daquela que se sagrou no pensamento ocidental, é se afirmar politicamente também na ágora

impositiva do discurso como forma definitiva de veiculação do pensamento. Ágora essa que também se constitui como espaço de exclusão.

Afirmar-se nessa ágora é buscar a um objetivo maior do que estabelecer rituais de iniciação a fazeres dos marginalizados em que pese uma transmissão do pensar do Outro através do pedagógico. Trata-se sim de se fazer ouvir pelo geral, pelas demais pessoas que não integram essa conjuntura de fazeres. Se o som do samba pode oferecer o choque, a lírica seria um convite a considerar esse fazer. Conforme o discurso prescreve o lugar político do indivíduo, o canto estabelece os meios da integração do samba nesse meio político, se comunicando inclusive com os demais discursos veiculados na ágora. Wisnik dá exemplo desse diálogo através da composição “Com que roupa?” de Noel Rosa que procura conversar com o Hino Nacional em uma interessante brincadeira onde a melodia deste se converteria em samba através dos aspectos musicais da canção de Noel. A lírica noeliana apresentaria então a transformação da ironia em um discurso para que todo o motivo que levou aquele samba fosse compreendido.

Não é mais a fala individual ou irônica do “cidadão precário”, o sujeito do samba, que afirma entre negaceios sincopados a sua disposição irrisória de se afirmar na vida, mas uma espécie de voz coletiva que brada com acentos épicos uma vontade de autotransformação. Vontade de transformação que tem por objeto e cenário de sua operação energética o próprio corpo submetido ao ritmo reticulado, em que os tempos métricos convergem sobre os tempos fortes do compasso de maneira inequívoca, como golpes de martelo que disciplinam o seu movimento regular de subida e descida “de maneira extrair dele o seu maior rendimento” (WISNIK, 2004, p. 202 – 203).

A lírica não apenas traduz, mas se integra ao corpo musical, denunciando que dele faz parte e que sua apreciação não será completa caso expurgada do samba. Se posicionar como canto e afirmar-se como componente da música é elaborar uma política de vitalidade. Deveras, da correspondência do samba para com a formação musical brasileira, o canto se volta mais para expressão lírica do que para uso instrumental, ocorrendo então que lírica e canto sejam indissociáveis (WISNIK, 2004, p. 223). O samba assim se faz como canção. Uma música voltada para a fala e uma fala que só existe em torno da música, o samba como canção envolve em sua relação com a linguagem toda uma dependência para com a dicção que vem a ser o fator primordial na composição do cancioneiro (TATIT, 2002, pp. 11-12). Sua característica como

This article is from: