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4.3.3. Despejo na Favela
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
A preocupação com os amigos Joca e Mato Grosso e o oferecimento da maloca aos “vagabundos que não tem onde dormir”, demonstra solidariedade, certa ingenuidade e mesmo certa concessão ao discurso oficial, mas, em sua ambivalência dolorida, revela também a particularidade e a exceção da conquista, uma vez que a maloca não será conseguida por todos os que dela necessitam, nem por todos os que trabalham por ela, pois os critérios para compra e legalização não estão postos no campo do direito, da garantia comum, imparcial e universal, mas, sim, no campo das relações pessoais, do compadrio, do favorecimento, da corrupção, e, portanto, do particular, do arbitrário, do instável, do precário e do imponderável (FLORES JR., 2011, pp. 128 -129).
O desfecho de “Abrigo de vagabundos”, representado pelo refrão, é exemplar de como se configura um saber tático e das manipulações que ele implica, pois tira proveito da legalidade que o novo território goza para compartilhá-lo com os excluídos que habitam a metrópole de forma invisível. A solidariedade é assim uma forma de tática. Fechamento apropriado. Afinal, se na canção antecessora o cotidiano era ligado ao viver a margem, o que se passa em sua continuação é a aquisição dessa experiência anterior para gerar desdobramentos favoráveis em uma vivência regrada por uma modernidade cunhada por cima.
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4.3.3. Despejo na favela
Está canção de 1969 retoma a questão do despejo em uma narrativa nova, sem relação alguma com os relatos iniciados em “Saudosa Maloca”. Como o título enuncia, não se trata mais do despejo de um lugar referente a um número limitado de pessoas, mas sim de um espaço social mais complexo, uma favela. Abordar a expulsão arbitrária de uma comunidade inteira é demonstrativo da evolução de Adoniran como artista e mostra sincronia com as mudanças que a cidade atravessava. “Nestes anos, as desapropriações eram constantes, com o despejo de centenas de residentes, a cidade em obras descaracterizava sua urbe” (MATOS, 2007, p. 145). Trata-se de período correspondente ao desenvolvimentismo desenfreado defendido pela Ditadura Militar, que em São Paulo seria representado pela figura do prefeito Faria Lima (1965 – 1969).
A versão que será analisada, contudo, é a de 1975, gravada no disco “Adoniran Barbosa e convidados”, realizada em parceria com Gonzaguinha. Logo, essa versão não interessa somente porque foi a que resistiu ao tempo, considerando que não foi possível uma audição da original, mas principalmente pela natureza
da parceria que resulta no encontro de Adoniran com um dos expoentes da MPB politicamente engajada da década de 70.
Quando o oficial de justiça chegô Lá na favela E contra seu desejo Intregó pra Seu Narciso Um aviso, uma ordem de despejo Assinada “Seu Dotô” Assim dizia a petição “Dentro de dez dias Quero a favela vazia Os barracos todos no chão.” É uma ordem superior Ôoooo,,,Meu Senhor É uma ordem superior Não tem nada não Seu Doutor, não tem nada não. Amanhã mesmo vou deixá meu barracão. Não tem nada não, Seu Doutor Vou sair daqui Pra não ouvir o ronco do trator. Pra mim não tem probrema Em qualquer canto me arrumo, Em qualquer jeito me ajeito. Depois, o que eu tenho é tão pouco, Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás. Mas essa gente ai, hein? Como é que faz? (ADONIRAN BARBOSA, 2010).
O surdo que inicia a música e anuncia o ritmo que caracteriza esse samba cujo desenho instrumental lembra o samba dos morros do Rio de Janeiro – sendo talvez o samba de Adoniran pós-1951 que mais se aproxima da matriz carioca , embalando uma rítmica lenta já mostra que se trata de um samba triste. Se em “Saudosa Maloca” havia algo de tragicômico na forma com que a narrativa era transmitida, em “Despejo na Favela” a dicção aponta para a simples melancolia, não cabendo espaço para a alegria ou qualquer tipo de sentimento eufórico. Significativo que da polirritmia apresentada, o canto é pontuado pelo som da cuíca, cuja sonoridade aparenta chorar em resposta ao evento transcorrido.
Outra diferença que se interpõe nessa canção para com a adversidade representada é sobre o papel do Estado. Anteriormente ele transparecia como figura legitimadora, cujo estatuto soberano conferia legalidade, o que faz com que seu aparecimento em “Saudosa Maloca” seja de forma indireta,
fantasmática, ao lado do proprietário no qual os interesses também eram os do Estado; e em “Abrigo de Vagabundos” ele dá aval para o narrador, integrado em seus ditames, conseguir sua moradia, ao mesmo tempo que perpetua injustiças para com os excluídos. Já em “Despejo na Favela” é o Estado, representado pelo oficial de justiça, que é o agente primário responsável pela expropriação do território ocupado pela comunidade retratada.
A presença do estado como antagonista para com uma comunidade marginalizada compõe um quadro humano rico no que se refere à narrativa. Da questão das nomeações, cara ao compositor, somente um personagem é propriamente nomeado: o “Seu Narciso” que recebe a ordem emitida. Possivelmente uma liderança para aquela comunidade, a menção de seu nome serve como representante do todo comunitário, perpassando a ideia de organização num corpo social complexo. Sinal de mudança dos tempos, pois se a maloca de outrora era um lugar de solidariedade, mas sua existência era demonstrativa de um fazer aleatório, fragmentado no espaço urbano e desorganizado como estrutura social, a favela aqui remete não só a uma maior complexidade espacial, como também a certa noção organizadora de uma multiplicidade social com o território. O aparecimento dessas organizações locais é sincrônico à ascensão de formações referentes aos interesses das camadas subalternas que, diversificadas, reúnem diferentes pessoas em torno de interesses em comum (SILVA, 2011, p. 33). Dentre esses agrupamentos surgem os movimentos locais, ou de bairro, que apareceram “da aglutinação de moradores principalmente O que se segue às áreas pobres e na periferia da cidade” (SILVA, 2011, p. 35).
Contudo, se Narciso é o único personagem que se mostra merecedor de um nome próprio considerando a sua identidade como fator aglutinador, é reveladora a denominação de “Seu Dotô” para o mandante da ordem de despejo. “Dotô” é corruptela de Doutor. Embora seu sentido remeta primeiramente à titulação do saber acadêmico, no Brasil, apontando para a formação histórica em que a conquista do bacharelado é sinal de integração para com uma cultura elitista, o sentido de Doutor foi aberto para remeter a
pessoas que se encontram em um cargo privilegiado na sociedade, em especial médicos e profissionais de direito. Então, esse “Dotô” é representativo de alguém que ocupa um cargo de poder dentro do Estado, pertencendo assim a uma elite social; no caso pertencente ao Poder Judiciário.
É significativo que o meio no qual o “Dotô” pertence é distanciado da realidade que envolve os habitantes da favela, sendo a grande ironia, e perversidade, do poder que o destino dos favelados seja tomado arbitrariamente por alguém estranho a sua realidade. Na composição de dicotomias que caracterizam as líricas de Adoniran, “Despejo na Favela” apresenta essa novidade que á oposição entre distância e proximidade. Pois a relutância emitida pelo oficial de justiça em entregar a ordem mostra que esta só é possível devido ao distanciamento gozado pelo “Dotô” para com a sociedade da favela. A impessoalidade da ordem “Dentro de dez dias/ Quero a favela vazia/ Os barracos todos no chão” se faz possível por causa da letra fria da escritura e da disponibilidade do oficial de justiça. Este é demonstrativo de que quanto mais próximo se está do local da favela, maior a consciência sobre a natureza violenta da desocupação. Depois de anunciar a ordem, a fala do oficial é seguida por um canto lamentoso, cuja extensão da vocal “o” mostra uma passionalidade quase chorosa, potencializada pela emissão do canto conjunto dos dois intérpretes, onde se explica de forma respeitosa para o representante da comunidade que se trata de “uma ordem superior”. Ao mesmo tempo em que é uma tentativa do oficial de justiça de justificar sua ação, ao mostrar que se trata de algo ordenado por cima, é significativo que a distância é principalmente um abismo entre as classes e de falta de contato entre elas.
Gonzaguinha então assume o canto servindo de interlocutor ao oficial, possivelmente assumindo a persona do líder comunitário. Seu canto enuncia o sinal de resignação. Primeiramente aliviando ao oficial da culpa para com o futuro acontecimento ao dizer que “não tem nada não, seu Dotô”; frase que ao mesmo tempo em que livra a culpa do oficial, também faz questão de mostrar que este também pertence ao mesmo meio que seu superior, partilhando assim o poder inerente aos quadros do Estado. Já os versos “amanhã mesmo/ vou deixar meu barracão” e “Vou sair daqui/ pra não ouvir o ronco do trator”
mostram que para este personagem o desapego é a melhor forma de preservar o afeto para com o lugar, prevendo assim a dor futura.
A palavra é passada para a voz de Adoniran Barbosa no que é indefinido se continua na personagem encarnada por Gonzaguinha, ou se representa outro indivíduo que também há de abandonar o território. Seu canto é mais detalhado quanto à resignação para com a decisão sofrida, colocando que a pobreza com que se apresenta (“o que eu tenho é tão pouco/minha mudança é tão pequena/que cabe no bolso de trás”) também lhe confere um caráter de nômade (“Em qualquer canto me arrumo/em qualquer jeito me ajeito”). A possibilidade de se tratar de diferentes personagens é realçada pelo cantar diferenciado dos intérpretes. É contrastante a dicção universitária de Gonzaguinha – que fala primeiramente “Doutor” ao invés da corruptela “doto” –para com as particularidades do “falar errado” de Adoniran; aparenta um encarnar mesmo um o papel de liderança e o outro o de espectador. Porém, da confusão entre as vozes e da incapacidade que dela decorre de saber se se tratam de duas personagens que se sucedem ou se um continua o canto do outro, é significativo que esses cantares, tão diferentes entre si, enveredam por uma solução que os alinha: a resignação é o caminho encontrado para responder a arbitrariedade do poder.
E é através do realinhamento dessas vozes que é demonstrada a preocupação para com o restante da comunidade. Refrão primeiramente lançado pelo canto de Adoniran que, contrastante com sua situação de possibilidade de deslocamento, questiona “Mas essa gente ai, hein?/ Como é que faz?”. Consciência de que muitas das pessoas viventes da favela estabeleceram no território laços mais aprofundados, podendo inclusive depender dele para sobreviver, o refrão é então seguido pelo canto de Gonzaguinha. O canto conjunto do questionamento, que também é lamento, demonstra uma dúvida solitária sobre o destino de uma comunidade que, encarada pelo poder apenas como um entrave, é determinante para a vida de muitas pessoas diferentes. O coro entra no refrão como se o questionamento agora fosse cantado pelo todo coletivo, curioso por saber o que será de seu destino depois da violência futura.