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samba
from Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica
canção leva o samba a ser meio permissivo a diversas manipulações do uso da língua, ocorrendo de sua integração ao corpo musical se dar ao luxo de brincar com a movência de uma língua que foi forjada – assim como o próprio cancioneiro – através do encontro de civilizações sob a constituição de um mesmo território.
A movência da língua em conjunto com as formas estéticas assumidas pelo samba a partir de sua condição como canção faz da lírica do samba fator em constante mudança. Ao se configurar como canto, a lírica sofre com variados deslocamentos que modificam frequentemente o seu ideal como mensagem, afetando assim a construção sobre o significante – pois o samba, ao mover-se, se emaranha em uma diversidade de diferentes estilos, que consequentemente leva a diversas formas que a lírica pode assumir – e sobre o significado –considerando que, além da mensagem estruturada subjetivamente através do canto de cada sambista, essa mesma mensagem recebeu influencias diversas conforme se desenrolam as histórias do samba.
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3.2.1. As transformações da lírica do samba
Se o samba, de seu inicio no ambiente rural até sua entrada na modernidade urbana brasileira, se estruturou territorialmente em correspondência às noções de fazer coletivo e de resistência a um meio opressivo, o canto surge justamente como representativo da integração do indivíduo no coletivo. Mas como a referência ao samba rural em verdade se trata de uma variedade de fazeres, pode-se afirmar que a estrutura em que se desenvolve o canto difere de um samba para outro.
A tradição dos sambas baianos, que ao mover-se para o Rio de Janeiro leva à criação dos sambas cariocas, circunscrita em torno da figura da roda – em que os participantes formavam um círculo onde ao centro dois indivíduos do sexo oposto dançavam até serem substituídos por outro par –, o canto também se integrava nessa noção do coletivo como círculo, ou seja, o indivíduo tem por obrigação estabelecer comunicação com a roda. Dependendo da forma de como o samba é veiculado, o canto poderia ser apenas solo, sendo um solista incumbido de cantar os versos para estimular a roda, ou em uma troca do solista com o coletivo em um jogo de verso-refrão. Como postula João da
Baiana, entrevistado por José Ramos Tinhorão, a lírica desses sambas, conhecidas popularmente de chulas, se estruturava da seguinte maneira.
Antes de falá samba, a gente falava chula. Chula era qualquer verso cantado. (...) Agora, tinha a antiga chula raiada, que era o samba de partido alto. Podia chamá chula raiada ou samba raiado. Era a mesma coisa. Tudo era samba de partido-alto. (...) O partido-alto era o rei dos sambas. Podia dançar uma vez só de cada vez. O acompanhamento era com palmas, cavaquinho, pandeiro e violão, e não cantava todo mundo. No samba corrido todo mundo samba e todo mundo canta. Por exemplo: no samba de partido alto eu canto...
Minha senhora Bela dona chegou na canoa. Minha senhora, Bela dona chegou na canoa. Ô remá Ô sou de lá Ô remá Taparica é beira do mar Doná. (JOÃO DA BAIANA apud TINHORÃO, 1998, p. 267 - 268).
Tomando a palavra, Tinhorão complementa as considerações de João da Baiana sobre as chulas:
João da Baiana completava a sua informação mostrando que, ao contrário desse canto a solo do partido alto, no samba corrido “cantava todo mundo” no estilo estrofe-refrão, com a resposta do coro (solo: “Pelo amor da mulata/ quase que nego me mata”. Coro: “Pelo amor da mulata/ quase que o nego me mata”. Solo: “Foi ela quem me pediu/ um segredo por favor/ quero um vestido de seda/ um sapato e um mantô [manteaux]”. Coro: “Pelo amor da mulata/ quase que nego me mata), mas o próprio exemplo por ele escolhido esclarecia algo mais: a procedência baiana dos versos (TINHORÃO, 1991, p. 268).
De fato, Tinhorão aparenta acertar quanto às características baianas dessas duas maneiras de praticar o samba. Pois para além do fato de que João da Baiana – como o nome artístico afirma – ser filho de baianos migrados para o Rio de Janeiro, sua descrição coaduna com uma visão tradicional onde a memória de um samba baiano reverberava ainda em sua transferência para a capital do país. Dando crédito a sua descrição da tradição como baiana, é importante frisar que o contato desses fazeres afro-brasileiros provindos da Bahia com a miríade cultural apresentada no Rio de Janeiro e, mais importante, o estabelecimento das casas das tias baianas como centralizadoras dessa diversidade de práticas, acabou por criar um partido alto modernamente carioca. Se na roda tradicional o samba podia ser chulado ora somente pelo solista, ora em troca entre o solo e o coro, Nei Lopes caracteriza o partido alto carioca como um desafio a se desenrolar na roda.
Espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais contendores e que se compõe uma parte coral ...e uma parte solada com versos improvisados ou de repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao assunto do refrão (LOPES apud SANDRONI, 2012, p. 106)
Mesmo considerando eventuais mudanças ocasionadas pela movência, os esquemas de estribilho mais solo obedecem a uma lógica sólida nessa tradição. Ambos correspondem a estrofes curtas que podem ser monósticos, dísticos e quadras, com raras tercetas, podendo estar em sincronia ou não no que diz respeito à conjuntura de versificação. No exemplo dado por João da Baiana, assim como em variadas gravações de sambas inspirados no partido alto, o estribilho, geralmente um dístico, seria seguido de uma quadra improvisada. Oneyda Alvarenga, porém, argumenta que o samba baiano tem seu motivo principal nessa formação do estribilho, estando à improvisação como mero acréscimo.
Diz Edson Carneiro, um dos autores que mais detalhadamente descreveram o Samba da Bahia, que nas cantigas dele frequentemente se intrometem quadras; em consequência dêste encherto (sic), o texto real do Samba, dístico ou monóstico em verso-refrão, passa a desempenhar o papel de estribilho (ALVARENGA, 1960,p. 133 -134).
Seja como for, a relação entre solo e estribilho no samba é bastante forte como manifestação e pode variar conforme a peça cantada. Alvarenga cita dois versos diferentes onde um divide tanto estribilho quanto improviso em dois dísticos, enquanto o outro, porém, resume texto e estribilho em apenas um dístico (ALVARENGA, 1960, p. 134 – 135). Outra forma muito presente nesses sambas – assim como, pela pesquisa de Mario de Andrade, no samba de bumbo – é a de resposta imediata do estribilho ao solo, ou vice-versa; em que é normal que um deles – em geral o estribilho – ou ambos correspondam a um monóstico cada.
O estribilho também se faz como motivo principal em que se centra a lírica, de maneira mais explicita até, no samba de bumbo paulista. Contudo, se o samba de bumbo difere em muito das características dos sambas baiano-cariocas, com a fórmula de versificação não é diferente. Se como afirma Mario de Andrade, o samba de bumbo é uma criação coletiva, a lírica é elemento que aparece a ser jogado através da ideia do texto-melodia: uma proposta de estribilho que é oferecida aos participantes do festejo e que pode ser democraticamente aceita ou recusada pelo coletivo.
Por trás do texto-melodia, entretanto, existe um prelúdio por parte do solista. Poemas improvisados, geralmente redondilhas maiores, chamados pelos participantes de “carreiras”, que tem por objetivo antecipar e preparar o público para o texto-melodia em que se centrará o festejo. Se o texto-melodia assume a forma fechada que corresponde geralmente a um verso curto que há de ser repetido pelo coro da festividade até que seja elaborada nova proposta, a “carreira” surge como improvisação livre por parte do solista. Ocorrendo no início da festividade e entre um samba e outro, esses improvisos se prolongarem até que o solista se sinta seguro para propor o texto-melodia ao coletivo.
Entretanto, para que o samba se faça como tal, no entendimento dos participantes, é necessário que o conteúdo da lírica versifique, da “carreira” até o “ponto” (como os participantes chamam os textos-melodia), sobre acontecimentos da vida cotidiana. Isidoro, que serviu de fonte para a equipe de Mario de Andrade sobre os costumes e jargões do samba de bumbo, é quem alerta para essa importância dada ao conteúdo. “O negro (Isidoro) se irritava afirmando que o samba que não tivesse carreira historiando algum fato que sucedeu, não era samba. Podia ser “corrimá”, jongo, batuque; samba é que não” (ANDRADE, 1991, p. 122).
Essas formas líricas que os sambas rurais criaram são importantes, pois além de solidificarem, em seus respectivos territórios e épocas, formas variadas de expressão através do canto, são formulações que apresentam poderosa influência sobre os aspectos de composição dos sambas futuros. Mesmo que esses se apresentem sobre outro estatuto musical, é visível entre diversos compositores de sambas as influências que essas formas de cantar e de construção da lírica se apresentam sobre suas canções.
No encontro dos caracteres do samba rural com a ambientação urbana, certamente a contribuição significativa do sincretismo modernizante ao samba foi na introdução das temáticas tipicamente urbanas. Dessa influência frisa-se que da formação de um cancioneiro urbano através do aparecimento das modinhas e dos lunduns, assim como da nacionalização de gêneros de canção estrangeiros, como a valsa, arregimentaram em cidades como o Rio de Janeiro
uma diversidade musical peculiar à cidade. O samba uma vez introduzido na vida urbana se embebedaria dessas influências. Talvez das mais notórias seja a correspondência entre o samba e o lundum, onde este também se estrutura a partir de uma herança afro-brasileira, mas sua característica como canção urbana levaria a certa adoção do estilo pelas camadas altas. As temáticas dos lunduns são caracterizadas principalmente pela carga erótica das líricas, onde estas estariam relacionadas a toda uma semiótica que associa símbolos a situações de sensualidade; em especial de simbologias ligadas ao personagem do afro-brasileiro, como erotização da mulata e da yaiá, a jovem ama branca (SANDRONI, 2002, p. 47), e também de figuras da culinária (SANDRONI, 2002, p. 54). A correspondência entre os estilos e a herança cultural em comum faria que o samba incorporasse a simbologia erótico-urbana do lundum em muito relacionada aos temas afro, que remeteriam posteriormente a algumas de suas figurações mais lembradas.
Se existe certa afinidade entre o samba e o lundum devido à base afro-negra em comum, é errôneo supor que das modinhas e outras canções enraizadas no cancioneiro europeu, em particular o ibérico, teria contribuído pouco para a formação do samba nas cidades. Frise-se que é de herança da modinha que o samba extrai um dos símbolos mais fortes sobre a relação para com o passado: a figura da saudade. Baseada na raiz portuguesa da “moda”, a modinha é portadora de um discurso caracterizado pela melancolia e pelo bucolismo árcade (SANDRONI, 2012, p. 48), aspectos que dão o tom nostálgico da lírica. A saudade e nostalgia surgem então como heranças propriamente portuguesas (SODRÉ, 1998, p.43) que remetem a essa melancolia voltada para o passado. No samba a incorporação da saudade – e consequentemente da melancolia – reside justamente em sua adaptação para modernidade. Como postulado anteriormente, a modernidade urbana faz da degradação material e afetiva sua principal característica. Com a tentativa do samba de estabelecer laços memorialísticos, o samba adota a saudade como forma de criar relações de memória com os signos destruídos pela vivência moderna.
Sobre as influências na estrutura, a aproximação do samba com a sociedade urbana que se formava resultou que, ao misturar seu canto ao discurso do
cancioneiro urbano, também se fizesse presente nas apresentações diversas dos teatros de revista que permeavam esse cancioneiro no início do século XX. Considerando que essas apresentações e posteriormente a gravação de “Pelo Telefone” que diziam respeito aos objetivos de Donga e outros sambistas de levar o samba a ser apresentado à grande massa urbana, o gênero sofreria influência do estilo majoritário nas apresentações públicas que correspondia à moda da canção francesa: as chansonettes. Eram canções de grande apelo à classe média baixa e que se voltavam à linguagem coloquial urbana. O cantor passava a se encontrar como algo entre o ator e o humorista interpretando uma canção. Voltada às temáticas da atualidade, essas cançonetas eram veiculadas “apenas para uma temporada, como seria norma na da música popular depois produzida para o mercado da era dos discos e do rádio” (TINHORÃO, 1998, p.212).
O samba ao ser adequado como música para as massas, adapta a forma de veicular sua lírica. Mas o surgimento do samba do estilo novo levaria a toda uma recriação do processo de composição da canção, onde a lírica, que antes era parte da conjuntura musical, passa então a ser – pelo menos no início do paradigma do Estácio – o motivo principal da composição. Também no que diz respeito à relação que cria com o espaço urbano, o samba do paradigma do Estácio cria através da lírica toda uma forma de composição pela bricolagem. Assim do espaço urbano é atirado um estribilho aos ouvidos do coletivo, geralmente uma ou duas quadras. Podendo ser de autoria conhecida ou não, é desse estribilho que se baseia a composição e se fundamenta a melodia. O verso então seria completado por outro sambista que ficaria a cargo da chamada segunda, ou seja, dos versos que por consequência do registro do samba, aparecem como diálogo poético ao estribilho.
Ela cumpre em relação aos estribilhos a mesma função de oposição que era ocupada pelos improvisos: é cantada por um solista e não pelo coro, com uma letra que varia enquanto a do estribilho é por definição constante (razão pela qual se fala frequentemente em “segundas partes”, no plural); além disso, cada segunda parte é cantada uma vez, enquanto o estribilho é sempre repetido (SANDRONI, 2002, p. 115).
Desse jogo entre estribilhos e segundas existe certo acréscimo em relação ao paradigma anterior no que diz respeito ao tamanho das estrofes. Tal como nos sambas pré-Estácio o estribilho pode variar no tamanho conforme a canção,