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4.1.3. A composição de canções em Adoniran Barbosa e as diferentes performances

O processo de composição em Adoniran Barbosa, assim como na canção brasileira em geral, existe num movimento de manipulação da melodia em conformidade com o gesto de um cantar que trabalha ao limite da fala coloquial. Algo que pressupõe uma ligação do compositor para com sua própria experiência como artista.

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E o texto vem da vida. Mais precisamente, vem dos estados da vida: estados de enunciação, estados de paixão, estados de decantação; Num, o cancionista fala; noutro, fala de si e, no último, fala de alguém ou algo. Cada estado retratado no texto tem implicações melódicas, tem uma compatibilidade em nível de modalização. Daí as melodias irregulares, as melodias com durações prolongadas e as melodias reiterativas. Cada melodia contempla o seu texto (TATIT, 2002, pp. 17-18).

Considerar a dependência do desenho melódico com a linguagem da fala permite constatar alguns aspectos peculiares do cancioneiro de Adoniran. Particularmente, interessa a percepção de que esse jogo entre canto e fala é bem marcado pelo seu conhecido “falar errado”. Essa manipulação artesanal e livre da língua é bem retratada em declaração presente no disco Documento Inédito.

Eu sempre gostei de samba. Eu sou sambista nato. Gosto de samba... não foi fácil para mim entrar como compositor. Foi difícil porque ninguém queria nada co’as minhas letras, co’as minhas letras que falavam de “nóis vai”, “nóis qué”, “nóis fumos”, “nóis peguemos”. Agora, precisa saber falar errado. Se não souber falar errado, melhor... não falar errado. Melhor ficá quieto... ganha mais, sabe? (ADONIRAN BARBOSA apud FLORES JR, p. 120)

Fator que lhe conferiu certo destaque como sambista, o uso “errático” do léxico das palavras determina o entendimento de como o corpo lírico é parte do cantar na tentativa do compositor de remeter ao que ocorre propriamente no momento narrado na canção. É expressivo de uma poética cujo alinhamento com a música faz-se necessário por construir certas tensões no signo. Essas tensividades podem ser qualificadas conforme o trato do canto para com os aspectos da linguagem. Assim, quando a dicção se volta a privilegiar a frequência e a duração das vogais, desacelera a melodia para um exercício de passionalização, ou seja, de expressão dos anseios e emoções que emergem da psique do compositor. A contrapartida da passionalização ocorre quando o cancionista investe na segmentação consonantal que se estrutura em

conformidade com ritmo da canção, permitindo que esta comunique ao ouvinte uma construção temática na formulação de personagens, ambientações e ideias (TATIT, 2002, pp.22-23). Consideradas essas formas de tensividade na dicção das canções de Adoniran, percebe-se que a manipulação do léxico das palavras existe primeiramente como parte da composição musical, acontecendo da supressão de consoantes em prol da extensão vocal fortalecer um ideal de passionalidade no canto, assim como a troca ou acréscimo de consoantes no interior das palavras potencializarem a formação de construções temáticas. Fatores que dizem no conceber do todo da canção como forma de narratividade.

E se essas tensões fundamentam a canção como narrativa, entende-se que elas não devem ser desvinculadas do suscitado pelo “falar errado” como parte do alinhamento de Adoniran Barbosa as camadas baixas da metrópole paulistana. Ao introduzir essa fala que condensa a multiplicidade vocal presente dos oprimidos, liberada das particularidades que ferem a concepção padrão da ortoépia, despe o samba de pretensões semi-eruditas que caracterizavam muitas canções do gênero, em especial o samba oriundo das escolas de samba cariocas.

Em um país em que a padronização do léxico é utilizada como afirmação de saber, Adoniran Barbosa não escapou de criticas quanto aos seus sambas e programas radiofônicos cujas manipulações nos falares escapavam a concepção de uma gramática inerte em uma concepção padrão da língua. Mais drástico, contudo, foi o apaziguamento desse falar característico na gravação de seu primeiro álbum, de 1974, por imposição da censura da época. Perda considerável tendo em vista que o “falar errado” é importante na própria concepção de samba feita por Adoniran.

Percebe-se que o canto e as líricas de Adoniran, ao fugir da formalização convencional, importam especialmente como poética na captação das vozes das ruas que na sua territorialidade e transformação como relato formam lugares da palavra, sendo estes articulados como resultantes das falas que habitam as ruas (ROCHA, 2002, pp. 115-117). Demonstrativos de como a canção pode ser criada a partir da captura de experiências, embora, essas

formulações não se limitam à função de representatividade, sendo encontrados em Adoniran também como articuladores de sátiras e, de forma mais indireta, em jogos de metalinguagem.

Do resultado dessas composições como movimentos na dicção própria de um cantar, frise-se a importância do tratamento que elas recebem pelas performances dadas por diferentes intérpretes. Fator que, como visto anteriormente, possibilita a metamorfose do samba para além de sua captura pela gravação. Tal qual um texto que lido por diferentes pessoas pode levar a sentidos diversos, uma canção quando interpretada por outros artistas apresenta atribuições diversas para além das intentadas pelo autor original, “disso resultando entendimentos diversos e significativos, que acompanham as mudanças de legitimização da canção, do seu autor e do que eles representavam” (CARMO, 2002, p. 258). O que marca a forma com que Adoniran apresenta as próprias canções, além da mecânica por ele desenvolvida na composição, é certamente sua voz rouca. Essa voz de barítono de rouquidão característica pode ter sido um entrave sobre suas tentativas de se consagrar como intérprete, ainda mais em um período onde mesmo a música popular sofria forte influência do bel canto. Por causa desse aspecto fora barrado constantemente dos programas de calouros na década de 30. Contudo, e talvez até por fugir do padrão exigido, a voz característica de Adoniran se tornou simbólica da identidade que lhe é atribuída e da conexão desta em seus sambas; sendo caracterizada por Antônio Cândido como “antivoz rouca” (CANDIDO, 2002, p. 143). Ela é essencializa no cantar uma performance característica responsável por associar Adoniran a uma representação informal das classes baixas31 e da tentativa destas de se

31 Em artigo sobre a influência da voz na política nacional recente, tomando como objeto a voz do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, Tales Ab’Saber argumenta sobre a potência da voz rouca na identificação do popular, carregando energia simbólica que a conecta com diversas representações referentes à população humilde em sua condição histórico-social.

De fato, o gutural e áspero, ao mesmo tempo belamente grave, de seu timbre, de sua inteligência pela voz, evoca algo das grandes figuras populares com suas vozes marcadas pela natureza, atravessadas pelas coisas mesmas que resistem ao humano, as coisas como matéria concreta, como vozes que carregam pedras, que cortaram cana, que lavaram roupa, que viram a violência muito de perto, e no entanto cantaram, vozes que expressam o espírito que resiste no material embranhado nele

integrar a modernidade, pois há na voz rouca a identificação para com os pobres e excluídos nas agruras que estes têm de enfrentar no cotidiano da cidade grande; sendo a voz rouca, como a própria trajetória de Adoniran demonstra, desconsiderada, excluída de qualquer idealização dominante do que se atribui como belo.

Já da reapropriação performática feita por outros intérpretes às canções de Adoniran, destaca-se notoriamente os Demônios da Garoa. Em parte responsáveis pelo sucesso do compositor ao regravar de forma bem sucedida canções como “Saudosa Maloca”, “Samba do Arnesto” e “Trem das Onze”, potencializaram alguns dos enunciados presentes nas canções de Adoniran.

Estas interpretações consagrariam o estilo do grupo, que caricaturava a batucada dos engraxates que trabalhavam no trecho entre as praças da Sé e Clóvis Bevilacqua, no centro da cidade. Além disso, o conjunto enfatizava determinados traços da linguagem utilizada por Adoniran, como por exemplo, expressões de fala acaipirada misturada a certos italianismos, presentes nas letras de suas canções. A interpretação dos Demônios, nitidamente, articula-se à ideia de focalizar nas composições de Adoniran o traço cômico, aproveitando os breques para jogar com humor gaiato e caricatural (ROCHA, 2002, pp. 138139).

As interpretações dos Demônios da Garoa convergiam em maneios próprios. Por se tratar de interpretações que remetiam a um cantar bem humorado, que consolidaria na performance manipulações sobre a canção como os staccattos “din-din-donde”, que seriam adotados posteriormente pelo próprio compositor. Radicalizando ainda mais o “falar errado” apresentado por Adoniran (CARMO, 2002, pp. 259 -260), as interpretações dos Demônios da Garoa levariam a diferentes reações quando comparadas com as gravações do próprio compositor; ocorrendo de, por enfatizarem o humor, serem abordadas por alguns como esvaziadoras do aspecto de denúncia contido em alguns causos, assim como também há quem considere que o humor contido nas interpretações dos Demônios mantém a possível denúncia implícita na composição (FLORES JR., 2011, p.132).

próprio, e que, por isso mesmo, eram, em si, especialmente sublimes, o próprio movimento do sublime, do encontro do baixo e do concreto com o altíssimo: a voz de Clementina de Jesus, a voz de Nelson Cavaquinho (AB’SABER, 2012).

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