Vozes da modernidade: A lírica de Adoniran Barbosa como ponto de encontro do samba e da crônica

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151 A preocupação com os amigos Joca e Mato Grosso e o oferecimento da maloca aos “vagabundos que não tem onde dormir”, demonstra solidariedade, certa ingenuidade e mesmo certa concessão ao discurso oficial, mas, em sua ambivalência dolorida, revela também a particularidade e a exceção da conquista, uma vez que a maloca não será conseguida por todos os que dela necessitam, nem por todos os que trabalham por ela, pois os critérios para compra e legalização não estão postos no campo do direito, da garantia comum, imparcial e universal, mas, sim, no campo das relações pessoais, do compadrio, do favorecimento, da corrupção, e, portanto, do particular, do arbitrário, do instável, do precário e do imponderável (FLORES JR., 2011, pp. 128 -129).

O desfecho de “Abrigo de vagabundos”, representado pelo refrão, é exemplar de como se configura um saber tático e das manipulações que ele implica, pois tira proveito da legalidade que o novo território goza para compartilhá-lo com os excluídos que habitam a metrópole de forma invisível. A solidariedade é assim uma forma de tática. Fechamento apropriado. Afinal, se na canção antecessora o cotidiano era ligado ao viver a margem, o que se passa em sua continuação é a aquisição dessa experiência anterior para gerar desdobramentos favoráveis em uma vivência regrada por uma modernidade cunhada por cima. 4.3.3. Despejo na favela Está canção de 1969 retoma a questão do despejo em uma narrativa nova, sem relação alguma com os relatos iniciados em “Saudosa Maloca”. Como o título enuncia, não se trata mais do despejo de um lugar referente a um número limitado de pessoas, mas sim de um espaço social mais complexo, uma favela. Abordar a expulsão arbitrária de uma comunidade inteira é demonstrativo da evolução de Adoniran como artista e mostra sincronia com as mudanças que a cidade atravessava. “Nestes anos, as desapropriações eram constantes, com o despejo de centenas de residentes, a cidade em obras descaracterizava sua urbe” (MATOS, 2007, p. 145). Trata-se de período correspondente ao desenvolvimentismo desenfreado defendido pela Ditadura Militar, que em São Paulo seria representado pela figura do prefeito Faria Lima (1965 – 1969). A versão que será analisada, contudo, é a de 1975, gravada no disco “Adoniran Barbosa e convidados”, realizada em parceria com Gonzaguinha. Logo, essa versão não interessa somente porque foi a que resistiu ao tempo, considerando que não foi possível uma audição da original, mas principalmente pela natureza


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