Devarim 47 (ano 18 - abril 2023)

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INOVAÇÃO X TRADIÇÃO

Rabino Sérgio R. Margulies

Ernesto Haikewitsch

ALICE E A HALACHÁ

Rabino Damián Caro

MARTIN BUBER

Emmanuel Taub

DO LAMENTO AO CRESCIMENTO

Um novo caminho para recordar a Shoá

Dara Horn

DIFERENTES CULTURAS E MOMENTOS

HISTÓRICOS

Marta Francisca Topel

MISSÃO DESTINADA AO FRACASSO

Entrevista com Hillel Neuer

TERRA MISTERIOSA E LONGÍNQUA, BRASIL

Entrevista com Dalit Lahav-Durst

E mais: Vittorio Corinaldi, Paulo Geiger, Dara Horn, Sonia Kramer, André Liberman, Andres B. Munoz Mosquera, André Sena, Charles Steiman, André Sztajn.

Revista da Associação Cultural – ATID Ano 18, n° 47, abril de 2023 Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI

Há dois anos visitei o Memorial de Caen, França, que comemora o desembarque dos Aliados nas praias da Normandia, no Dia D, e a subsequente batalha de Caen, vitórias militares decisivas que resultaram, onze meses depois, na capitulação total da Alemanha nazista.

O Memorial é lindo e enorme. O visitante segue uma trilha onde é submergido, sala após sala, em imagens, mapas, maquetes, filmes, painéis e objetos, que contam a história do momento em que a guerra começou a virar a favor dos Aliados.

Num certo momento, o tema da exibição muda de curso. Anunciada por um painel com uma enorme foto de Anne Frank, há uma sala com um histórico das atrocidades nazistas contra os judeus. A sala me pareceu deslocada do contexto, pois nem os Aliados invadiram as praias da Normandia para salvar os judeus nem a tenebrosa situação deles entre 1933 e 1945 foi prioridade (nem ao menos secundária) de algum dos Aliados.

Ainda mais fora de contexto estava um dos livros na loja do Memorial, cuja esmagadora maioria focava no que estava lá exibido, inclusive com algumas obras sobre as atrocidades nazistas contra os judeus. O livro abordava o conflito entre árabes e israelenses e trazia na contracapa um parágrafo contendo a surpreendente declaração que, antes do sionismo, os judeus viviam muito bem no Oriente Médio.

Com alguma boa vontade pode-se traçar uma tênue ligação entre a sorte dos judeus na Europa nazista e o Dia D. Mas, seguramente, não há ligação alguma entre o Dia

D e a vida (nada cor-de-rosa) dos judeus no mundo árabe pré-sionista. Por que o Memorial selecionou vender justamente aquele livro em sua loja?

Este tema ficou revirando na minha cabeça até que, dois dias depois da visita, comecei a ler o próximo livro da minha lista no Kindle: o recém-lançado People Love Dead Jews , uma coletânea de textos brilhantemente escritos por Dara Horn, em que ela “nos desafia a confrontar as razões pelas quais pode haver tanto fascínio pelas mortes de judeus e tão pouco respeito pelas vidas judaicas que se desenrolam no presente”.1

Percebi que foi exatamente isso que me incomodou no Memorial. A veneração pela adolescente judia assassinada colocada lado a lado com o opróbrio aos sionistas de hoje, num Memorial que se destina a contar uma história não relacionada com a opressão nazista aos judeus e, muitíssimo menos, com a saga sionista.

Naquele memorial, o judeu é usado como exemplo. O judeu morto representa a vítima do mal causado por humanos contra humanos, enquanto que o judeu vivo representa o perpetrador destes males.

A frase acima parece exagerada, mas dois artigos nesta Devarim parecem provar sua adequação: a entrevista com Hillel Neuer (página 69), que mostra o tratamento infamante que a ONU dispensa ao Estado de Israel, numa clara difamação aos judeus vivos; e o texto da mesma Dara Horn (página 60), que mostra a tentativa nada sutil de igualar o tormento dos judeus assassinados na

ATID | ARI 1 editorial
1 Extraído do site do livro, editado pela editora W. W. Norton. Um livro cuja leitura recomendo vivamente. National Archives and Records Administration,
Public domain, via Wikimedia Commons
Praia de Omaha, no Dia D, 6 de junho de 1944

Shoá aos tormentos sofridos por todos os oprimidos da humanidade.

Parece-me evidente que neste binômio está presente o antissemitismo histórico, algo que A. B. Yehoshua identifica já estar caracterizado, com assombrosa precisão, na Meguilat Ester, escrita no século 3 ou 4 aec.2 Contudo, há algo além, que também merece ser destacado.

O uso dos judeus como exemplo, tanto de oprimidos no passado como de opressores no presente, nos desumaniza, pois deixamos de ser gente para sermos modelo. Deixamos de ser reais e específicos para sermos imaginários paradigmas universais.

Uma reação natural às tentativas de desumanização é afirmar de forma enfática o pertencimento à humanidade. “Somos de carne e osso, não somos um cartaz na parede!”, todos exclamamos indignados. E, para não deixar dúvida quanto a isso, alguns se engajam de corpo e alma na transformação das nossas manifestações culturais e religiosas de particulares em universais.

Porém, essa tentativa também nos destrói. Pois abdicar das particularidades da nossa riquíssima cultura obscurece a revolucionária visão social e espiritual, que nos formou e nos distinguiu como grupo, e enfraquece a motivação em fazer parte do grupo.

2 “An Attempt to Identify the Root Cause of Antisemitism”, publicado na azure.org.il número 32, primavera de 5768 / 2008. Igualmente, recomendo vivamente a leitura deste profundo ensaio.

Faço um pedido a você que prestigia a Devarim com a sua leitura: vamos valorizar o hábito de comemorar a particularidade judaica em nossas cerimônias, sem nos sentirmos embaraçados em celebrar a nossa cultura singular e a nossa identidade única.

Num exemplo escolhido unicamente pela proximidade da festa, conclamo que em nossas celebrações de Pessach, foquemos nas mensagens da Hagadá, da Torá, da literatura rabínica e dos nossos sábios mais recentes. Há muito o que aprender e refletir tanto a partir das mensagens quanto do formato da celebração, composta como um simpósio em que todos podem/devem contribuir com perguntas, reflexões e respostas.

Os uigures, os yanomanis, os ucranianos, os sírios, as mulheres do Afeganistão e do Irã, as crianças das minas de cobalto do Congo e tantos, tantos, outros estão sendo submetidos nesse exato momento à intensa e aflitiva opressão. E não estou propondo, de forma alguma, esquecê-los. Mas se eles tomarem o lugar que o Seder reserva ao estudo, debate e vivência das nossas fontes, estaremos transformando o judaísmo em mais uma ONG pelos Direitos Humanos, e, ao abdicar de nossa particularidade, estaremos falhando ao prover uma resposta satisfatória à pergunta “para que ser judeu?”.

Queridos leitores e leitoras, יח

A revista Devarim está mudando de cara. A partir desta edição e ao longo de 2023, vamos introduzir um novo projeto gráfico para que sua leitura seja ainda mais agradável. O projeto gráfico inclui atualizações na tipografia e no tratamento das imagens, bem como a inserção de novidades editoriais nos artigos.

O que não vai mudar é o conteúdo. Você continuará a encontrar na revista textos da mesma linha editorial dos números anteriores. Eis que chegamos em 2023, ao ano 18 da revista, inspirados pelo mesmo compromisso do primeiro número impresso em 2006: trazer ao público brasileiro uma visão moderna do judaísmo e suas eternas tensões e dilemas; do Estado de Israel e a valentia e

elegância com que enfrenta seus desafios; e das alegrias e complexidades da vida dos judeus nos diversos países do mundo.

Agradecemos o apoio que recebemos de vocês todos ao longo dos anos. Ouvir as vozes dos leitores é de extrema importância, pelo que agradecemos especialmente aos que se dirigem a nós pelo mail devarim@aririo.org.br com sugestões e críticas. Pedimos a todos que não se inibam, escrevam para nós!

Chegamos aos 18 anos, um número que a guematria judaica associa à vida – יח – chai. Nada melhor que uma reforma de formato para celebrá-la!

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devarim [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coisas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então milim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos.

3 O quinto e último livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coisas. 4 Revista da Atid e do judaísmo liberal, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

Revista Devarim

Associação Cultural – ATID Ano 18, nº 47, abril de 2023

PRESIDENTE DA ARI Eduardo Rabinovitch

PRESIDENTE DA ATID Gilberto Lamm

RABINO CONSULTOR Sérgio Roberto Margulies

DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb

CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Moacir Amancio, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies

DIREÇÃO DE ARTE Charles Steiman

EDIÇÃO DE ARTE Daniela Knorr

REVISÃO DE TEXTOS Raquel Correa

TRADUÇÃO Michel e Sheila Ventura, Kelita Cohen, Raul Cesar Gottlieb

FOTOGRAFIA DE CAPA “Amendoeiras em flor no Golan”, no Norte de Israel, fevereiro de 2023. Foto: Raul Cesar Gottlieb

FOTOGRAFIAS iStockphoto.com

COLABORARAM NESTE NÚMERO Rabino Sérgio R. Margulies, Ernesto Haikewitsch, Rabino Damian Caro, Emmanuel Taub, Marta Francesca Topel, Vittorio Corinaldi, André Sztajn, Sonia Kramer, Dara Horn, André Liberman, Charles Steiman, André Sena, Raul Cesar Gottlieb

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ATID ou da ARI.

Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, ao invés de de le-dor, e beiachad, ao invés de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista Devarim é editada pela

Associação Cultural – ATID

Rua General Severiano 170 – Botafogo

22290-040 – Rio de Janeiro-RJ

CNPJ 33.388.059/0001-71

www.devarimonline.com | devarim@aririo.org.br

A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

ATID | ARI 3 SUMÁRIO
MINISTÉRIO DA CULTURA APRESENTA: INOVAÇÃO X TRADIÇÃO ............................................................................... 4 Rabino Sérgio R. Margulies Ernesto Haikewitsch ALICE E A HALACHÁ ................................................................................... 13 Rabino Damián Caro A FLUIDEZ DA HALACHÁ .............................................................................21 Andres B. Munoz Mosquera MARTIN BUBER ......................................................................................... 27 Emmanuel Taub DIFERENTES CULTURAS E MOMENTOS HISTÓRICOS ................................... 30 Marta Francisca Topel MEIA-VOLTA, VOLVER! ................................................................................ 36 Vittorio Corinaldi TRABALHEI NO CATAR ................................................................................ 41 André Sztajn HÁ VIDA JUDAICA NA ÁUSTRIA.................................................................. 46 Entrevista com Martin Engelberg e Danielle Spera MEMÓRIA, AFETOS, RESISTÊNCIA .............................................................. 55 Sonia Kramer DO LAMENTO AO CRESCIMENTO ................................................................60 Dara Horn MISSÃO DESTINADA AO FRACASSO ............................................................ 69 Entrevista com Hillel Neuer BEIT MIDRASH ZEHUT .............................................................................. 76 André Liberman LAZMAN HAZÊ ........................................................................................... 83 Charles Steiman O NEORREALISMO BUREKA ....................................................................... 86 André Sena TERRA MISTERIOSA E LONGÍNQUA, BRASIL 92 Entrevista com Dalit Lahav-Durst cócegas no raciocínio Paulo Geiger pág. 101 em poucas palavras pág. 98 curiosidades do hebraico pág. 95

INOVAÇÃO X TRADIÇÃO

Uma das alternativas geradas por intelegência artificial a partir do mesmo texto/instrução:

“Moisés fala aos israelitas aos pés do Monte Sinai”

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Rabino Sérgio R. Margulies Ernesto Haikewitsch

“Faça para ti um mestre; adquira para ti um amigo, e julgue todos favoravelmente”, ensina o Capítulo da Ética dos Pais, texto milenar judaico que resgatei. Busquei no amigo da Congregação e mestre em inovação uma luz para avaliar (julgar?!) um dos desafios de nosso tempo.

inteligência artificial inteligência artificial

A inovação desafiando nossa tradição Ernesto Haikewitsch

No início deste século, exatamente em 2001, Steven Spielberg nos brindou com o filme “A.I. – Inteligência Artificial”, em um futuro distante, no qual, após catástrofes ecológicas causadas pelo degelo das calotas glaciais, a tecnologia humana evolui consideravelmente no campo da robótica e da inteligência artificial. A humanidade desenvolve robôs androides, que replicam a aparência de seres humanos com o objetivo de servir incondicionalmente a seus desejos, atuando como “escravos”. David, interpretado por Haley Joel Osment, é um menino-robô programado para amar sua dona, expressando sentimentos de afeto, cujo filho está em coma, congelado até que a medicina encontre uma cura para sua doença. Em algum momento, ele se recupera, volta para casa e se estabelece um conflito entre o filho orgânico e o robô-Pinóquio. Spielberg, um genial mestre em provocar emoções, sabe como conduzir esta sombria história de amor, através de uma profunda empatia pelo sofrimento e súplica de um androide. Muitos anos antes, em 1968, Stanley Kubrick – um dos idealizadores do filme de Spielberg – entregava uma obra-prima cinematográfica chamada “2001: Uma Odisseia no Espaço”, quando os computadores ainda eram denominados de “cérebro eletrônico” e o conceito de “inteligência artificial” sequer existia. Neste filme, Kubrick mostrava que o computador HAL 9000 controlava a nave especial Discovery One em sua missão a Júpiter e manipulava, com requinte, os seres humanos representados pelos astronautas Dave Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood). Na antológica cena final, após matar a tripulação, HAL percebe que será desligado por Dave e começa a agir como um ser humano: tenta convencer seu algoz a não “matá-lo” e se desespera ante o inevitável destino, revelando suas mais profundas emoções. “Pare, Dave, pare, sim?

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judaismo contemporâneo

Pare, Dave. Tenho medo. Estou com medo. Dave. Dave... minha consciência está se esvaindo. Estou sentindo. Estou sentindo. Minha consciência está se esvaindo. Tenho certeza absoluta. Estou sentindo. Estou sentindo. Estou sentindo. Estou... com medo.”

Em ambos os casos, se demonstra como a inteligência artificial trouxe angústias e sentimentos inerentes aos seres humanos muito antes da tecnologia propriamente dita começar a estar disponível. O termo “inteligência artificial” foi cunhado em 1956 pelo matemático e pesquisador da área de ciências da computação John McCarthy, que sempre afirmou que a I.A. deveria interagir com o ser humano.

Desde que foi lançada, em 30 de novembro de 2022, a ferramenta de inteligência artificial ChatGPT (Chat Generative Pretrained Transformer ou Transformador Generativo Pré-treinado), que tem a capacidade de lidar com um volume infinito de dados e, consequentemente, de forma criativa, gerar (daí o conceito de “generativo”) respostas para perguntas de qualquer grau de complexidade, superou mais de 100 milhões de usuários e quase 15 milhões de visitantes diários, ganhando a posição de “aplicativo de consumo com crescimento mais rápido da história”. Apenas para compararmos com outros lança mentos recentes, o chinês Tik Tok levou nove meses para

da área de tecnologia: o atual CEO, Sam Altman, e o bilionário Elon Musk, que saiu em 2018. Seu objetivo original estava focado em jogos eletrônicos, mas somente no final de 2022 ele chegou ao grande público mostrando todo seu poder computacional, respondendo perguntas complexas, redigindo textos personalizados e até criando poemas para os usuários, originalmente sem custo. Agora começa a introduzir novas funcionalidades, como APIs, ou seja, interfaces amigáveis e que podem ser oferecidas por qualquer outra empresa. Imagine poder interagir com uma central de atendimento livrando-se daquelas irritantes restrições de diálogo, passando a “conversar” de forma natural, seja por aplicativos de mensagens como WhatsApp ou mesmo por voz!

René Descartes, o fundador da moderna filosofia, criou uma frase icônica: “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum). Buscando obter o “conhecimento absoluto”, duvidou de tudo, inclusive de sua própria existência, mas encontrou algo do qual não duvidava: a existência da dúvida. Em seu pensamento, ao duvidar de algo, estaria pensando. E pensando, elaborando perguntas.

Há profundas questões éticas que precisam começar a ser avaliadas, desde já. A magia da interface por meio de um diálogo simples induz o usuário ao equívoco de considerar suas respostas precisas e verdadeiras. O seu uso na educação levou a uma forte reação negativa refletindo o conservadorismo do setor e os gaps ainda existentes sobre o uso de novas tecnologias digitais. Estas tecnologias continuam em fase experimental, mas em função de seu poder disruptivo faz-se necessário a criação de propostas regulatórias com diretrizes básicas de conduta e ética em I.A., bem como de mecanismos que consigam, de alguma forma, detectar a origem de textos produzidos exclusivamente por essas ferramentas.

Em fevereiro deste ano, Isaac Herzog, presidente do Estado de Israel, chocou profissionais em uma conferência de cibersegurança, ao afirmar que a abertura de sue discurso havia sido redigida pelo ChatGPT. Mas tranquilizou a audiência ao dizer que aquele parágrafo inicial fora apenas a inspiração para o resto do conteúdo, redigido por ele mesmo. Um rabino norte-americano, em sua prédica semanal de Shabat, comentou que todo o texto havia sido elaborado pela ferramenta de I.A. Ao final, “confessou” à sua congregação que o texto não era originalmente dele. E ainda questionou se as palavras proferidas teria a empatia necessária que somente o rabino poderia oferecer, concluindo: a I.A. é extremamente inteligente. Mas ainda não desenvolveu compaixão, amor e empatia, sendo incapaz de construir comunidades e relacionamentos.

Ou seja, como a I.A. irá verdadeiramente impactar o que se considera “espiritual”? Como a espiritualidade irá funcionar em um mundo repleto de dados e informações? Será que, ao invés do “bezerro de ouro”, passaremos a idolatrar a “máquina”? Máquina essa que tanto interfere em nosso cotidiano, principalmente em momentos que deveriam ser de introspecção e reflexão, como quando vamos na sinagoga e somos constantemente distraídos pelos sons dos celulares em nossos bolsos?

Alguns dizem que a tecnologia de inteligência artificial, o que quer que ela possa fazer, será sempre artificial. Não importa o que possa acontecer, nada substitui a alma humana e a sabedoria que leva as pessoas às discussões judaicas. O rabino Greg Wall da sinagoga Beit Chaverim, em Westport, Connecticut, conhecido como “The Jazz Rabbi”, acredita que o que os rabinos transmitem não pode ser ameaçado por algo que não possui linhagem. “É sobre messorá, tradições judaicas passadas de geração em geração. Quando você ouve um rabino falar, eles aprendem de um rabino, que aprendeu de outro antes dele. Saber de onde vem, traz uma autenticidade que eu acho que nenhum sistema ou máquina pode ter.”, disse Wall.

Em tempo de um RabbiGPT, o grande desafio passa a ser como permanecer fiel ao nosso passado e à riqueza de nosso conhecimento milenar e nossa tradição, aproveitando positivamente os benefícios da inovação.

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Uma das alternativas geradas por intelegência artificial a partir do mesmo texto/instrução: “Moisés fala aos israelitas aos pés do Monte Sinai”

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“Faça para ti um mestre; adquira para ti um amigo, e julgue todos favoravelmente”, ensina o Capítulo da Ética dos Pais. Então solicitei ao amigo da Congregação e mestre em espiritualidade, Rabino Sérgio, para completar meu texto e avaliar, sob luzes novas ou similares, as ideias expostas.

inteligência espiritual inteligência espiritual

A tradição desafiando a inovação Sérgio R. Margulies Davar acher – ‘outra palavra’, assim muitas vezes começa um debate rabínico no Talmud. As ideias expostas por um rabino, ou por um grupo de rabinos, são argumentadas por outro rabino ou grupo de rabinos. Este argumento, por sua vez, gera novo davar acher, novas palavras, novos argumentos e contra-argumentos. Estes rabinos dialogam transcendentalmente, pois podem estar localizados tanto em lugares diferentes quanto em épocas distintas, séculos à parte. O relevante é pensar de modo argumentativo. No entanto, as extensas discussões talmúdicas requerem em dado momento de uma síntese para que regras e normas sejam estabelecidas. Este foi, por exemplo, o trabalho executado por Maimônides através do código de leis Mishnê Torá no século 12. Após esta codificação, os debates argumentativos e contra-argumentativos prosseguiram gerando coletâneas complementares ao Talmud. No entanto, novamente, no intuito de prover orientação sobre os procedimentos éticos, rituais, entre outros, um novo código surge no século 16: Shulchan Aruch. A dinâmica dos debates prossegue até hoje – inclusive porque situações novas aparecem, e, quiçá, de modo contínuo de hoje em diante continuarão a surgir. A fim de que instruções sejam dadas do que fazer ou não, os movimentos institucionais rabínicos criam as ‘Responsa’ (respostas às diversas questões que suscitam um posicionamento judaico). Então chegamos ao ChatGPT. O ChatGPT é a Mishnê Torá, o Shulchan Aruch e eventualmente as Responsa ao organizar as ideias e elaborar conceitos a partir de informações de seu vasto banco de dados. Porém – davar acher – o ChatGPT carece do processo de ebulição de argumentos e contra-argumentos talmúdico. Assim, é útil e válido, mas não completo. Se o

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ChatGPT tivesse sido criado há dez séculos seria como a Mishnê Torá, poderia formatar as ideias e preparar os conceitos existentes até aquele período desde que seu banco de informações tivesse sido alimentado pelas informações existentes. Para se tornar um Shulchan Aruch teria que se alimentar de novas informações. Ou seja, a amplitude do rápido e eficiente processamento de dados – que o cérebro humano é incapaz de realizar (por ora?!) – se depara com a temporalidade dos dados, “pois o output depende do input”, adverte o rabino Geoffrey Mitelman.

Como é feito este ‘input’? Quais são os critérios? E dentre o manancial de informações que o Chat dispõe, sob quais princípios seleciona os dados na criação, por exemplo, de um texto? Se para o ‘input’ – isto é, o que é ingerido pelo corpo há regras, denominadas kashrut, também deve haver determinações éticas para o que e como é são alimentadas as informações que a inteligência artificial utiliza. Isto é o que podemos denominar –a partir da ferramenta matemática do algoritmo Inteligência Artificial – de ‘Algo-Kashrut’, ou de modo amplo: uma ética do algoritmo.

De acordo com a professora de Ciências dos Dados da Universidade de Nova Iorque, Julia Stoyanovich, “os algoritmos são criações do espírito humano, são o que nós fazemos deles, depende de nós escolhermos o mundo no qual eles são utilizados”. Assim, a necessida de de parâmetros éticos e morais são cruciais, pois,

importante pontuar que um sistema ético também é carregado de seus próprios vieses e tendências. Entendendo isto, na determinação dos parâmetros, o judaísmo cita a fonte que abaliza determinado posicionamento. Ao citar a fonte, abre espaço para que, com o passar do tempo, haja davar acher – outras palavras que se fundamentam em diferentes fontes – numa prática de apurar os critérios utilizados no estabelecimento dos paradigmas. Este é um processo eminentemente humano que preserva a autonomia diante do receio do absolutismo dos autômatos sistemas.

Ainda que amplas e plurais, as fontes do conhecimento judaico não são únicas, nem se aplicam a todos –como, aliás, de nenhum sistema religioso ou filosófico. Por outro lado, as consequências da Inteligência Artificial são universais, gerando a questão de como estabelecer um sistema ético definindo o que é bom e mal de modo abrangente? A busca desta resposta tem fomentado o diálogo interreligioso exemplificado pelo recente encontro (10/01/2023) com representantes mulçumanos, católicos e judeus no Vaticano, entre outros debates que incluem crenças não circunscritas às fés abraâmicas. É o desafio humano no resgate da ética pelo bem de todos.

O real medo de ver a Inteligência Artificial substi-

Esta intersubjetividade é nutrida pelas faces humanas. Tanto das inúmeras faces de vários seres humanos quanto das faces que emergem de cada ser humano em suas trocas. A ética, sugere o filósofo Emmanuel Levinas (1906-1995), deriva da alteridade que se expõe e está exposta a outras faces. Assim, em vez de apontarmos o apocalipse da subjugação do ser humano através da Inteligência Artificial, nos deparamos com o desafio de reforçarmos a construção da inteligência ‘Arte-facial’. A arte com seu infinito potencial subjetivo e criativo de ver, perceber, sentir e sensibilizar as infinitas faces humanas.

Davar acher – o medo talvez não seja somente causado pela previsibilidade determinística das fórmulas algorítmicas e sim também oriundo da dificuldade de enfrentar a imprevisibilidade do livre-arbítrio humano com suas reações imprecisas. O medo de não conseguirmos reorganizar os modelos da sociedade a fim de

aproveitarmos a chance de nos libertarmos de certas tarefas que as ferramentas da I.A. permitem que possamos ser ainda mais criativos e imaginativos, sobretudo sensíveis. No fundo, humanos.

Que possamos lidar com o medo da Inteligência Artificial e do ChatGPT, que ganha contornos de humanização, evitando a desumanização do humano que corrói a alteridade e a intersubjetividade.

P.S.: Ao ser indagado se praticava um determinado preceito religioso, o filósofo Franz Rosenzweig (1886-1929) respondeu: ‘ainda não’. Ernesto, em seu texto, citou um rabino: “I.A. é extremamente inteligente. Mas ainda não desenvolveu compaixão, amor e empatia.” Então, pergunto: haverá um tempo em que o ainda não será substituído pelo agora sim? Seja como for, esta inquietação surge porque há troca. Trocas entre amigos que fazemos e mestres que estabelecemos.

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Sérgio R. Margulies, rabino, serve na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro. Ernesto Haikewitsch, engenheiro de produção, apaixonado por inovação e por inteligência criativa (seja espiritual ou artificial) e sócio da ARI.

A halachá de cada geração é fruto de uma caminhada intensa. Para se manter nos costumes e normas práticas da vida judaica, é preciso correr muito.

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ALICE E A HALACHÁ

A teoria da Rainha de Copas e a halachá saudável

As palavras do rabino Abraham Geiger “inspire-se no passado, viva no presente, trabalhe para o futuro” apontam para um modo judaico de viver. O passado apenas nos inspira e de forma alguma determina o que devemos fazer. O presente exige de nós plena participação e nos desafia a tomar consciência do legado que deixamos para as futuras gerações. Damos a isso o nome de viver a halachá saudável, cujo fundamento pode ser encontrado na “teoria da Rainha de Copas”.

Em Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá (Lewis Carroll, 1871), a Rainha de Copas explica a Alice que no mundo dela “é preciso correr muito para ficar no mesmo lugar”. Este conceito é conhecido como a “Teoria da Rainha de Copas”, bem como o “Efeito Rainha Vermelha”, “Corrida da Rainha de Copas” ou “Hipótese da Rainha Vermelha” e tem sido usado tanto nas ciências naturais quanto na sociologia, na filosofia ou na literatura.

Na biologia, essa teoria é utilizada para explicar, por exemplo, a necessária adaptação contínua das espécies, unicamente com o objetivo de manter seu status quo com o seu ambiente.

A afirmação da teoria da Rainha de Copas deriva da passagem em que Alice corre sem parar enquanto é arrastada pela mão da Rainha de Copas, que grita a ela: “Mais rápido! Mais rápido!” Nesse momento, Alice se pergunta se as coisas estão se movendo com elas. A Rainha, que adivinha seus pensamentos, insiste: “Mais rápido, não tente falar!” A certa altura, elas pararam e Alice, surpresa, exclamou enquanto olhava ao seu redor:

– “Ora, eu diria que ficamos sob esta árvore o tempo todo! Tudo está exatamente como era!”

– “Claro que está!”, a Rainha concordou. “E como não seria assim?”

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judaísmo filosofia e teologia

– “Bem, na nossa terra”, disse Alice, ainda arfando um pouco, “geralmente você chegaria a algum outro lugar... se corresse muito rápido por um longo tempo, como fizemos.”

– “Que terra mais pachorrenta!”, comentou a Rainha. “Pois aqui, como vê, você tem de correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar. Se quiser ir a alguma outra parte, tem de correr no mínimo duas vezes mais rápido!”

Essa expressão se assemelha à maneira como podemos entender halachá. A Enciclopédia Talmúdica, citando o Sefer Aruch e Dorot HaRishonim, explica: “O termo halachá tem a raiz כ–ל–ה (halach significa andou) e se refere a algo que vem e vai, que vem antes de nós e continua depois de nós. Ou seja, algo aceito na comunidade de Israel que vem do Sinai até os dias atuais, ou algo sobre o que a comunidade de Israel se orienta, avança. Sendo este o caminho, a caminhada, aceito na comunidade de Israel. Como está escrito: ‘…e faça com que conheçam o caminho que irão percorrer e as práticas que irão seguir’ (Êxodo 18:20)”.

O ambiente, “o país” no qual a pessoa vive – diria Carroll –, muda e nos estimula a transformar nossas práticas para permanecer no mesmo lugar. A halachá é o andar, ou “o correr”. Como Alice que corria no mesmo lugar, praticamente pulando, nós também saltamos tentando alcançar o eterno e o divino, e isso nos permite estar no mesmo lugar. O mundo se move rapidamente. Essa noção da transformação contextual da tradição judaica não é nova. A adaptação dos costumes herdados do passado, ao tempo de cada comunidade, é o modo judaico de ser. Podemos entender essa ideia, por exemplo, a partir da explicação dada pelo rabino Joshua Falk (1555–1614) em sua obra Drishá , sobre esse ensinamento do Talmud: “Todo aquele que julga com um julgamento absolutamente verdadeiro é considerado parceiro de Deus na criação” (Shabat 10a).

O rabino Falk se dedica à compreensão do conceito de “absolutamente verdadeiro”, que ele descreve com estas palavras: “Refere-se a alguém que julga de acordo com o tempo e o lugar, para que seja absolutamente verdadeiro, para que não venha necessariamente julgar

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exatamente como diz a Torá. Pois às vezes o juiz deve deliberar fora da norma, de acordo com a época e com a matéria em questão. Quando essa pessoa não procede dessa maneira, mesmo que a opinião seja verdadeira, não é absolutamente verdadeira” (Choshen Mishpat 1:2).

A Torá nos inspira, mas não é, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto de chegada. Às vezes, o “verdadeiro” requer ultrapassar o limite da norma. Deve adequar-se ao tempo e ao lugar para ser “absolutamente verdadeiro”. A Torá, como fonte de inspiração, deve ser expandida. Seu “leitor” deve correr muito rápido, como no país da Rainha de Copas, para permanecer nela.

O rabino Yosef Albo (1380–1444), em sua obra Halkarim escreve: “Já que é impossível que a Torá de Deus seja completa, de tal forma que abarque todos os tempos, uma vez que os detalhes práticos são sempre renovados nos assuntos humanos. E como as normas e as questões práticas são muito numerosas para serem contidas em um livro, é por essa razão que Moshé no Sinai recebeu, de forma oral, as questões gerais cujos indícios são brevemente encontrados na Torá, de modo que, através dela, os sábios de cada geração possam deduzir os detalhes que se renovam.” O rabino Albo sustenta que os detalhes práticos são sempre renovados nos assuntos humanos que são afetados por mudanças contextuais. Assim, se o que se busca é que um manual de comportamentos permaneça sempre vigente, os detalhes práticos, bem como as regras que os regem, devem mudar.

Sinai, oralmente, as questões gerais cujo indício se apresenta brevemente na Torá. A Torá, de acordo com essa visão, é um texto fonte. Um lugar onde os sábios de cada geração vão em busca de pistas e interpretam, com base nelas, os detalhes que se atualizam.

Para alguns, a halachá que ultrapassa a norma bíblica foi elaborada por meio da interpretação do texto da Bíblia … já outros argumentam exatamente o contrário.

Para esses, somente a posteriori foi buscada uma justificativa bíblica para as normas há muito consagradas na práxis.

De acordo com Günter Stemberger, em O judaísmo clássico: “Com o tempo, o desenvolvimento da halachá excedeu em muito os parâmetros da lei bíblica, completou-a e até mesmo, em parte, entrou em contradição com ela. Há muito tempo vem sendo discutida a controvérsia sobre como a halachá, que é posterior, se conecta com a Bíblia, que lhe é anterior, se relaciona com a Bíblia. Para alguns aquela halachá que ultrapassa a norma bíblica foi elaborada por meio da interpretação do texto da Bíblia e, só mais tarde, passou por uma formulação que já dispensa essa norma. Já outros argumentam exatamente o contrário: somente a posteriori foi buscada uma justificativa bíblica para as normas há muito consagradas na prática.”

Os textos que sucedem a Torá são as produções discursivas de cada geração subsequente para adequar aquela leitura inicial às necessidades de seu tempo.

Seria inviável explicar todas as variantes possíveis de determinadas regras, para todas as situações em um único livro. Por isso, podemos afirmar que é impossível que a Torá seja suficiente, de forma a chegar em todos os tempos com uma mensagem eficaz. Como diz o rabino Falk, se sempre fizéssemos o que a Torá diz, independentemente do tempo e do lugar, isso seria uma verdade, mas não absolutamente verdadeiro. Por esta razão, como expressa o rabino Albo, foram entregues a Moshé no

O versículo da Bíblia hebraica, “…para quem sai ou entra não há paz…” (Zacarias 8:10), desencadeia uma discussão que é retratada no Talmud. “Disse Rav: ‘Assim que uma pessoa passa das palavras da halachá para as palavras da Bíblia, ela não tem mais paz.’ E Shmuel disse: ‘Isso se refere a alguém que deixa o estudo [o Talmud] e vai em direção à Mishná’” (Chaguigá 10a). O sábio francês Rashi explica as palavras de Rav, “já que não há ensinamento prático que deriva das palavras da Bíblia, uma vez que a Mishná explica o incompreensível da Torá”. Sobre as palavras de Shmuel, ele diz: “Se a pessoa se relaciona com os sábios que interpretam os sentidos da Mishná e explicam as normas que se contradizem, e buscam explicações práticas a partir delas, quer para permitir, quer para proibir, a isto dão o nome de estudo; ao abandoná-los para se dedicar ao estudo literal da Mishná, tal pessoa não terá paz em

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assuntos práticos. Uma vez que não há ensinamento prático claro nas palavras da Mishná…”.

Com sua explicação sobre essa passagem do Talmud, Rashi nos ensina que as normas práticas (os costumes que regem a vida de uma comunidade, sua halachá, em um determinado momento) não podem ser aprendidas dos textos precedentes sem antes atentar às interpretações correntes em cada geração. Os sábios da Mishná estavam obrigados a interpretar a Torá, e os sábios da era talmúdica foram chamados a fazer o mesmo com a Mishná. E assim geração após geração. Caso contrário, quem estuda o anterior sem o atual “não tem paz”. A nova interpretação é aquela que valida e atualiza a vigência dos textos anteriores. Essa é uma interpretação saudável.

A tradição judaica tem sua própria maneira de introduzir mudanças, de produzir novos textos, novos julgamentos que são “absolutamente verdadeiros”, que “trazem paz”. O método judaico de produzir mudanças é a interpretação que, nessa tradição, é conhecida como “drash”.

estabelece uma relação doentia com o seu mundo. Mas as mudanças não são feitas a qualquer custo. A tradição judaica tem sua própria maneira de introduzir mudanças, de produzir novos textos, novos julgamentos que são “absolutamente verdadeiros”, que “trazem paz”. O método judaico de produzir mudanças é a interpretação que, nessa tradição, é conhecida como drash.

Quem decide não andar, ou fazer como fizeram no passado, é incapaz de permanecer no mundo. Sua verdade não seria absolutamente verdadeira. A Torá seria insuficiente. “Que terra mais pachorrenta!”, a Rainha de Copas repreende Alice que, se ela se mantivesse nas regras do seu país naquele espaço, sequer conseguiria se manter no mesmo lugar.

O rabino Moshe Zemer (1932-2011), em sua obra Halachá Shefuiá (1993) propõe uma relação entre halachá e shafui, que pode ser traduzido como saudável, livre de doenças, perfeito ou reparado. Ele toma emprestada a ideia de shafui da forma como se usa para chamar a pessoa quando ela é coerente, transparente ou sã intelectualmente. A pessoa shefuiá é sã de corpo e espírito e tem um relacionamento saudável com o passado. Não está submetida a ele. Não está desconectada da realidade que a cerca. Interage com a sua realidade diária, que está em constante mudança. É por isso que é preciso flexibilidade e firmeza ao mesmo tempo: está enraizada no caminho de seus ancestrais e acrescenta seu caminho particular.

Como a pessoa “sã”, a halachá deve ser assim, ou seja, flexível e firme ao mesmo tempo. Deve se inspirar num passado distante e permitir um diálogo saudável e coerente com o presente. É necessário, saudável, caminhar para se manter no mesmo lugar. Quem não o faz,

A palavra drash é central na Torá. Literalmente central. Como diz o Talmud (Kidushin 30a), a expressão darosh darash (Levítico 10:16) seria a metade da Torá se todas as palavras do Pentateuco fossem contadas e divididas em duas. É interessante notar a metáfora dos sábios do Talmud, que propõem que o centro, o coração da Torá, é o encontro entre duas drishot.

Não dissemos até agora o que significam essas palavras, que derivam da raiz hebraica ש–ר–ד. Tentar traduzir esse termo com uma única palavra seria insuficiente e, portanto, errado. No Tanach encontramos múltiplas acepções. Alguns exemplos:

• Questionar (lidrosh): “As crianças pressionavam uma à outra dentro dela.” Ela pensou: “Se é assim, por que eu existo?” E foi questionar o “Eterno” (Gênesis 25:22).

• Indagar (darosh darash): “Então Moisés indagou sobre o bode da oferta de purificação, e este já havia sido queimado…” (Levítico 10:16).

• Procurar (darsha): “Ela procura lã e linho, e trabalha com prazer com as mãos” (Provérbios 31:13).

• Inquirir (darashta): “Investigue, inquira e interrogue cuidadosamente. Se for verdade, o fato estabelecido – de que algo abominável foi perpetrado em seu meio” (Deuteronômio 13:15).

• Investigar (darshu): “E os magistrados farão uma investigação minuciosa. Se aquele que depor for uma falsa testemunha, havendo testemunhado falsamente contra um irmão” (Deuteronômio 19:18).

• Cuidar (doresh): “É uma terra que o Eterno seu Deus cuida, sobre a qual o Eterno seu Deus sempre mantém um olho, do início do ano ao fim do ano” (Deuteronômio 11:12).

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No hebraico moderno, a raiz ש–ר–ד é usada para os verbos exigir, solicitar, requerer, reivindicar. Os sábios judeus, desde o primeiro século, usam esse termo para se referir a uma “interpretação”. O midrash halachá é o método de interpretação que atualiza o passado do texto para cada presente e o torna atual, saudável e absolutamente verdadeiro. Esse “interpretar” questiona, indaga, procura, inquire, investiga, cuida, exige e até reivindica ao texto.

Esta investigação profunda é a tentativa de nos aproximar do divino, do eterno, daquilo que excede a nós mesmos.

Vejamos um exemplo de como a interpretação produz, em cada geração, novas regras práticas. Na Torá, a frase “Quando um homem pega uma mulher...” (Deuteronômio 24:1) refere-se a que essa mulher se torna sua esposa. O ritual do casamento judaico que conhecemos hoje não existe na Bíblia. Os sábios do Talmud, no tratado Kidushin, se dedicam a interpretar essa expressão bíblica para estabelecer um ritual para seu tempo. Mas, por exemplo, o Talmud nada diz sobre a troca de alianças ou sobre a quebra do copo, símbolos que atualmente ocupam um lugar central na cerimônia de casamento judaico.

O judaísmo que vivemos é rabínico, e não mosaico. Ou seja, resultado das interpretações e atualizações que os sábios e os mestres vão fazendo em cada tempo e lugar. Inspiramo-nos no passado, na Torá e na biblioteca que nos foi legada. Vivemos no presente, pois para que seja vigente, a biblioteca deve ser atualizada a cada momento e em cada lugar de acordo com o contexto. Trabalhamos para o futuro, pois a forma judaica de fazê-lo é através do midrash, a interpretação que nós passamos para as próximas gerações.

A halachá de cada geração é fruto de uma caminhada intensa. Para se manter nos costumes e normas práticas da vida judaica, é preciso correr muito.

Nós não lemos a Torá. Nós estudamos a Torá, nós a interpretamos. Interpretar nossos textos significa que estamos procurando algo importante neles. Essa investigação profunda é a tentativa de nos aproximarmos do divino, do eterno, daquilo que excede a nós mesmos. Revela nossa obstinação em reivindicar significado de acordo com

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nossos contextos e valores. A interpretação mostra que mantemos a pergunta viva, que exigimos novos significados da Torá.

Diz a Mishná: “A dispensa de juramentos está no ar e não há nada em que você possa se apoiar. As halachot de Shabat, das festas e das transgressões são como montanhas que ficam suspensas por um fio de cabelo, pois há poucos versículos e muitas halachot. As normas civis, as das oferendas no Templo, as de pureza e impureza e as relativas ao incesto têm onde se apoiar. E estas, estas são o corpo da Torá” (Mishná Chaguigá 1:8).

A halachá é o andar judaico. São os usos e costumes de cada comunidade, em cada época e lugar, de acordo com suas circunstâncias.

A halachá é mutável e múltipla e, portanto, significativa e eterna.

com suas circunstâncias. A halachá é mutável e múltipla e, portanto, significativa e eterna. Até o século 19, ela foi versátil e dinâmica nas diferentes comunidades judaicas. O termo halachá é singular apenas quando se refere ao corpo que contém a multiplicidade de halachot (plural de halachá). Halachá é a experiência que vivemos e a escritura que compartilhamos e deixamos como legado. As experiências judaicas permanecem significativas porque nós as transformamos para manter alguns sentidos intactos.

A Gemará pergunta a respeito desta Mishná: “E estas, estas são o corpo da Torá: Estas sim e as outras não? Se não, o que devemos dizer: ‘Estas, e estas são o corpo da Torá’.” (Chaguigá 11b)

Os sábios do Talmud interpretam que o corpo da Torá é composto tanto pelos costumes que “ficam suspensos por um fio de cabelo” quanto por aquelas que “têm em que se apoiar”. Pouco é dito na Torá sobre os costumes do Shabat ou sobre as festividades, mas inúmeras bibliotecas de interpretações legais e implicações práticas foram escritas sobre elas. Por outro lado, é certo que há mais detalhes na Bíblia hebraica sobre as regras de pureza e impureza ritual. E para os mestres do Talmud, umas e outras constituem o “corpo da Torá”.

A halachá é o andar judaico. São os usos e costumes de cada comunidade, em cada época e lugar, de acordo

Nossa halachá, desde os tempos do Talmud, foi integrada não apenas com as normas que constam na Torá, mas – e principalmente – com as interpretações da nova geração, mesmo que pouco ou nada disso esteja explicitado na Torá. Os textos do passado nos inspiram. No presente, vivemos comprometidos com o nosso entorno. Trabalhamos para continuar ensinando e aportar ao futuro a nossa forma de caminhar, para que esta, por sua vez, sirva de inspiração. Somos flexíveis para nos mantermos firmes. Nós nos adaptamos para sermos saudáveis. Parafraseando Carroll, é para permanecer no mesmo lugar que tanto corremos.

Notas da tradutora:

As citações do livro “Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho” são da versão de Maria Luiza X. de A. Borges, que é a publicação clássica em português da obra de Lewis Carroll.

As citações da Bíblia são da versão em português do chumash do Rabino Gunther Plaut, A Torá – um comentário moderno.

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Ilustração restaurada digitalmente de Louise Seymour Houghton, Nova York, 1890, intitulada: “Escribas e fariseus judeus sentam-se no tribunal de Moisés no Templo de Jerusalém”

A FLUIDEZ DA HALACHÁ Nos tempos talmúdicos e sempre

Muitas vezes, nós, judeus reformistas, nos perguntamos qual é a halachá para um ou outro evento ou situação. Isso não é novidade, mas no judaísmo progressista devemos nos perguntar antes se existe ou não realmente uma halachá. O rabino e professor Mark Washofsky1 se perguntou em 1991 se era possível falar de uma “halachá liberal” ou se isso era um contradictio terminis, e se a halachá era capaz de crescer e evoluir para responder positivamente às mudanças nas circunstâncias socioculturais e aos desenvolvimentos éticos.2 Os reformistas sustentam que os critérios de legitimidade intrínsecos à halachá contêm os princípios latentes para a evolução da mesma, e que estes são encontrados na Torá. Por esse motivo, é necessário identificar os princípios que inspiram a natureza dinâmica, fluida e criativa que têm formado a halachá por mais de dois milênios.3 Alguns propõem que o argumento ut supra é baseado numa série de casos esparsos, e que esses são a exceção, e não a regra.

1 N. do E.: o professor Washofsky colaborou com a Devarim 32 de maio de 2017.

2 Washofsky, M., ´The Search for Liberal Halakhah´, em W. Jacob e M. Zemmer (eds.). Dynamic Jewish Law (Pittsburgh, USA, 1991), página 26

3 A raiz de “halachá” significa “andar”, “ir”, o que sugere que a halachá é um processo. Um exemplo que pode ilustrar essa questão encontra-se no Talmud, em que propõe que o Beit Din (tribunal rabínico) ou o rabino sigam a conduta da comunidade nas situações em que a halachá é incerta ou foi esquecida (Pessachim 66a, Berachot 45a, Eruvin 14b, Pessachim 56a, Menachot 35b e Berachot 23a).

Esse artigo pretende trazer à luz a natureza liberal intrínseca da halachá, ou seja, seu caráter geral evolutivo desde a existência do cânon bíblico judaico; e isso observando os procedimentos usados para compilar halachá nos tempos talmúdicos. Por isso, também ajudará saber, como suporte argumentativo, que esse caráter geral ocorreu em tempos pré-talmúdicos,4 bem como em tempos pós-talmúdicos.5 Isso nos mostra a relevância do aspecto processual rabínico da halachá, que desempenha um papel significativo nesse caráter evolutivo e serve para demonstrar que tal caráter evolutivo da halachá não se baseia em casos dispersos.

Os rabinos talmúdicos, amoraim, desenvolveram critérios de legitimidade para garantir que a vida e a religião pudessem sempre coexistir. Esses rabinos, fervorosos defensores da natureza divina da lei, esforçaram-se para identificar a autoridade bíblica que permitiria que leis conflitantes fossem alteradas ou revogadas, e desenvolveram ferramentas intelectuais para fazê-lo. Com

4 Por exemplo, a idade que habilitava aos levitas entrar no serviço do Kodesh Hakodesh era de trinta anos de acordo com Bamidbar 4:3, que Zorubabel e Yoshua, o Sumo Sacerdote, modificaram para vinte e cinco em Bamidbar 8:24 e para vinte em Esdras 3:8 e Crônicas I, 23: 24. Outro exemplo é a a mudança de toda a lei penal judaica após a destruição do Templo.

5 Maimônides, em uma responsa, permitiu ao dono de uma escrava, suspeito de ter tido relações sexuais com el,a de libertá-la para se casar com ela, algo que Yevamot 24b proibia.

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judaísmo filosofia e teologia

isso, a imutabilidade da lei bíblica foi mantida, as necessidades de cada época foram reconhecidas e a vida e a religião foram reconciliadas.

No Talmud Yerushalmi, Sanhedrin 4, Rabi Yanai diz que, na hipótese de a Torá ter sido dada sem margem para debates [cortada],6 não haveria espaço para sentenças de nenhum tribunal. Moisés exclamou: “Ó, Senhor do Universo, por favor, diga-me o que é a halachá.” A isso Deus respondeu: “[Não há lei estabelecida, apenas] ela é governada pelo princípio da maioria.”7 Portanto, a lei será explicada de maneiras diferentes, dependendo da maioria. E o sevilhano Ritva (séculos 13-14), em seu comentário sobre Eruvin 13b, diz que “apesar do fato de que numerosas perspectivas rabínicas diferem umas das outras, todas elas continuam a ser motivadas pelo Deus vivo”. Deus dá a Moisés argumentos a favor e contra, mas deixa a decisão final para os sábios de Israel, que, em cada geração, tomarão uma decisão como as de Moisés e seus sucessores.

Façam uma cerca ao redor da Torá8

Ao explicar o passuk “Não acrescentem nada àquilo que lhes ordeno e nada lhe retirem” (Devarim 4:2 e 13:1), os rabinos afirmaram que sua aplicação era limitada ao que foi dito explicitamente na Torá e confrontaram o passuk com “Vocês manterão a minha ordem” (Vaikrá 18:30).9

Assim, eles interpretaram que tinham autoridade para

6 ךתח “cortar”, nesse sentido, é uma tradução literal de “decidir”. R. Yanai vê como uma vantagem que a Torá seja formulada como um conjunto potencialmente ambíguo de princípios, em vez de uma coleção de decisões judiciais que representariam precedentes imutáveis.

7 Veja também Baba Metzia 59b, o forno de Aknai ou Berachot 25b, Yoma 30a, Kidushim 54a e Meilá 14b: “A Torá não foi dada para atender às necessidades dos anjos.”

8 Pirkei Avot, capítulo 1, mishná 1.

9 Jacobs propõe Devarim 17:11: “Você não deve se desviar do veredito que eles lhe anunciarem nem para a direita nem para a esquerda” e também em Devarim 21:10-14 sobre a mulher cativa, em Jacobs L., A Tree of Life. Diversity, Flexibility and Creativity in Jewish Law (Portland, Oregon, USA, 2000) 2nd edition, páginas 40 e 35 respectivamente.

cercar10 a Torá e, como prova de sua autoridade para acrescentar ou diminuir leis, citaram: “É hora de trabalhar para o Senhor; eles invalidaram a Tua Torá” (Salmos 129:126),11 com o objetivo de fortalecer a religião em geral. Yehuda Halevi, no Kuzari, justifica esse versículo como dirigido às massas e afirma que os rabinos têm ajuda divina e nunca concordariam em nada que contradiz a Torá.12

10 Nachmânides comenta sobre Devarim 4:1: “Quaisquer [leis] que os sábios estabeleceram na categoria de ‘uma cerca [ao redor da Torá]’ – tal como os graus secundários de casamentos proibidos (Yevamot 21a e b) – que a atividade de [estabelecer cercas] é em si um requisito da Torá, desde que se perceba que essas [leis] são o resultado de uma cerca particular e não são [expressamente] da boca do Santo, abençoado seja Ele, na Torá.” Em outras palavras, o dever incumbido aos sábios, chachamim, de estabelecer “cercas” [isto é, salvaguardas contra a transgressão da lei da Torá] é especificamente declarado na Torá, mas os termos precisos dessas “cercas” não estão escritos. O dever de estabelecer leis rabínicas preventivas é baseado no verso ushmartem et mishmarti (e vocês deverão manter Meu comando, Vaykra 18:30), a tradição interpreta no sentido de: “Faça um mishmeret (uma proteção, uma cerca, uma cerca como proteção) lemishmarti (por Meu mandamento)” (Yevamot 21b).

11 Talmud Bavli Berachot 54a, Guitin 60a, Tamid 27b, Temurá 14b e Yoma 69a, bem como Talmud Yerushalmi Berachot 9:5:1 e Tratado Soferim 17:1. Rashi: “Nossos rabinos, no entanto, deduziram [deste versículo] que podemos transgredir as palavras da Torá para fazer uma cerca e um muro [uma salvaguarda] para Israel, por exemplo Guideon e Elias no Monte Carmel, que sacrificaram em lugares altos (Berachot 63a). Eu vi isso mais exposto na Agadá (Yerushalmi Berrachot 9:4, Mid. Sam 1:1) no sentido de: Uma pessoa que está ociosa, que dedica [apenas ocasionalmente] tempo à sua Torá, anula o pacto, porque uma pessoa ociosa deve trabalhar na Torá todas as horas do dia.”

12 Yehuda Halevi sobre Devarim 1:31 em Kuzari 3:41: “Rabino: Isso foi dito apenas às massas, que eles não deveriam conjeturar e teorizar, nem inventar leis de acordo com sua própria concepção, como fazem os caraítas. Eles foram aconselhados a ouvir os profetas, sacerdotes e juízes pós-mosaicos, conforme está escrito: ‘Eu erguerei um … que dirá a eles tudo o que eu lhe ordenar’ (Devarim 18:18). Com relação aos sacerdotes e juízes, diz-se que suas decisões são obrigatórias. As palavras ‘Não acrescentarás’ etc. referem-se a ‘o que Eu te ordenei por meio de Moisés’ e a todo ‘profeta dentre seus irmãos’ que atende às condições de um profeta. Referem-se também a normas estabelecidas em comum por sacerdotes e juízes ‘do lugar que o teu Senhor escolher’. Porque eles têm ajuda divina, e por causa de seu grande número, eles nunca concordam em nada que contrarie a Lei.”

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Nesse sentido, os rabinos não hesitaram em fortalecer a observância da lei bíblica, seja acrescentando ou revogando as leis bíblicas em geral, e em ajudar os desafortunados em particular. Da mesma forma, eles o fizeram para harmonizar as leis bíblicas com novas ideias e concepções do que é certo e errado, incluindo a boa gestão da economia.13 Também é verdade que os rabinos tentaram, sempre que possível, não abolir as leis bíblicas introduzindo ficções legais.14

É hora de trabalhar para o Senhor; invalidaram Sua Torá

Evitar maiores danos à Torá. Os rabinos disseram ao povo para se cumprimentarem com o nome de Deus, o que violava: “Não tomareis o nome de Deus em vão” (Shemot 20:7). Eles argumentaram que era necessário neutralizar a má influência dos epicuristas que negavam a existência de Deus (Berachot 54a). Eles também proibiram tocar o shofar em Rosh Hashaná ou pegar o lulav em Sukot, se esses dias caíssem no Shabat, apesar do fato de que, de acordo com Rava e Yohanan ben Zakai, a Torá não o proíbe. O motivo dos rabinos era impedir a possibilidade de levar o shofar ou o lulav da rua para a sinagoga no Shabat, ato que implicaria entrar no reshut harabim, de domínio público, que ensejava a pena de morte por apedrejamento (Rosh Hashaná 29b).

Salvar os desafortunados de um destino trágico. O exemplo clássico é o da mulher cujo marido sai em viagem ou para a guerra e não regressa, e que precisa de duas testemunhas para se casar novamente: “Um caso só poderá ser válido pelo depoimento de duas testemunhas ou mais” (Devarim 19:15). A aplicação dessa lei bíblica, nesses casos, trazia sofrimento para muitas mulheres, pois era muito difícil obter testemunhas devido às condições e meios de comunicação da época, deixando as mulheres em um limbo jurídico e na pobreza. Raban Gamliel, o velho, estabeleceu que, em tais circunstâncias, a mulher poderia se casar novamente com base na evidência de uma única testemunha ou em seu próprio testemunho de que seu marido havia morrido (Yevamot 122a).

13 Enquanto, em geral, as duas primeiras se faziam por meio de guezerot, as últimas se faziam por meio de takanot.

14 Ficção jurídica é o nome dado ao procedimento de técnica jurídica pelo qual algo que não existe ou poderia existir, mas que se desconhece, é tomado como verdadeiro, a fim de fundar sobre ele um direito, que deixa de ser ficção para se tornar uma realidade legal. O exemplo clássico, mas há muitos outros, é o de Prozbul, introduzido por Hilel (Guitin 36b), que tentou mitigar o efeito financeiro negativo de Devarim 15, onde as dívidas não podiam ser cobradas em anos sabáticos (shmitá).

As novas concepções de certo e errado. Os exemplos a seguir não são exaustivos e mostram normas toleradas pela Torá, mas anômalas do ponto de vista da justiça moral nos tempos talmúdicos. Os rabinos aboliram leis, mas o fizeram ponderando e explicando o motivo de sua revogação ou as novas condições de sua aplicação,15 o que, em muitos casos, inviabilizou sua execução do ponto de vista prático.

Devarim 21:3-4 . Os rabinos explicam que a lei de “quebrar o pescoço de uma novilha” (eglá arufá) foi pensada para os tempos bíblicos, quando o assassinato era raro (Sotá 47b). No entanto, os rabinos nos dizem que, em seu tempo, proliferaram assassinos que agiam abertamente e, por isso, o ritual fora anulado, porque era aplicado a casos de incerteza quanto à identidade do assassino.

Bamidbar 5:12 . Os rabinos reduziram drasticamente o número de casos em que um homem poderia submeter sua esposa, acusada de infidelidade, ao teste das águas amargas (maim hamarim). Os rabinos instituíram que a única circunstância na qual um marido tinha o direito de obrigar sua esposa a esse ritual seria quando ele a tivesse previamente avisado, na presença de duas testemunhas, para não ter nenhum contato com um homem específico e, depois da advertência, essas duas testemunhas ou apenas uma testemunha ou o próprio marido tenham visto a mulher trancar-se com aquele homem, por tempo suficiente para ter tido relações sexuais. A determinação desse período de tempo não é pacífica (Sotá 4a e Tosefta Sotá 1:2), mas mesmo a opinião mais tolerante não permitiria mais do que alguns minutos.

Shemot 21:24 . A lei do “olho por olho” (ain tachat ain), que os rabinos transformaram em compensação (Bava Kama 83b). Essa interpretação era contrária ao significado literal e à declaração explícita na Torá “o que foi feito [lhe] será feito de volta” (Vaikrá 24:19).

15 Em questões econômicas: Os rabinos revogaram as leis bíblicas que impediam a equidade e traziam injustiça na esfera econômica. Baba Kama 114b e 115a, e a recuperação pelo proprietário original de produtos roubados vendidos por terceiros num mercado público. Os rabinos obrigaram o proprietário original a pagar um preço a terceiros. Guitin 59b, e que a Torá não considera um menor um súdito com direito de posse, portanto qualquer lucro encontrado foi retirado dele por um adulto. Os rabinos marcavam como ladrão qualquer um que se valesse dessa lei bíblica. Guitin, 55b, e o caso de uma pessoa que construiu sua casa com uma viga roubada. Os rabinos determinaram que o dono da trave não poderia exigir sua restituição, mas deveria se contentar com um pagamento em dinheiro, mesmo que sua exigência fosse legal de acordo com a Torá.

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Intelectualidade, razão e estudo

Para o judeu não erudito, é óbvio que nossa sociedade está mudando e que as leis religiosas têm o potencial de influenciar ou de ser influenciadas por correntes teológicas internas ou externas, por novas descobertas arqueológicas e científico-tecnológicas, por novos padrões éticos, filosóficos e psicológicos, bem como os diferentes costumes regionais. Assim, parece lógico afirmar que a halachá não pode ficar alheia a essa norma universal, o que se observa nas “cicatrizes” que a história judaica carrega em sua busca contínua pelo encontro do humano com a divindade.

Tomando emprestada a estrutura proposta pelo rabino Moshe Zemer,16 podemos trazer à luz os princípios latentes da halachá que intuímos nos parágrafos anteriores: dinamismo, pluralidade e ética, que se inspiram nos critérios haláchicos universais de legitimidade sobre os quais indagamos e que parecem ser: a) as mitsvot são uma fonte de inspiração para a santidade; b) cada indivíduo deve internalizar as mitsvot para poder escolher entre “estou obrigado” e “estou preparado”; c) a halachá tem uma abordagem crítica de cada realidade sociotemporal que enfrenta; d) a tradição deve ser compreendida como um impulso ou momento contínuo, que materializa a ideia oculta no mito do navio de Teseu; e) a consciência individual é necessária para despertar a responsabilidade de uns para com os outros; e f) a busca pela razão última – a essência – da existência das mitsvot Com relação à sua pergunta em 1991, Washofsky conclui que a halachá é baseada no consenso e que isso é difícil de “quebrar”. A tarefa de entender a “halachá liberal” é aquela de levantar o véu sobre as inconsistências intelectuais ou caprichosas de alguns de nossos sábios. O caminho nada mais é do que expor suas decisões consensuais à razão e ao bom senso, o que as faz perder sua força jurídica e pode mostrar sua arbitrariedade e, portanto, desvendar uma série de alternativas haláchicas. Um exemplo é a ideia predominante de que as mulheres não podem usar

tefilin 17 No entanto, o próprio Talmud dá alternativas, registrando que a filha do rei Saul, Michal, usou tefilin e não recebeu nenhuma repreensão rabínica (Ritva Eruvin 96a).

O rabino Moses de Coucy e outros listam especificamente os tefilin entre os mandamentos opcionais que as mulheres podem cumprir (Hagahot Maimoniot Tsitsit 3:9).

Há também uma lenda famosa sobre as filhas piedosas e eruditas do renomado comentarista Rabi Shlomo Ytzchaki (Rashi), que argumenta que elas costumavam usar tefilin. Em relação às filhas de Rashi, pode-se argumentar que a ausência de evidência não é evidência de ausência. Assim, mostrando argumentos favoráveis de outros estudiosos e que os preconceitos de “limpeza” ou intelectualidade feminina desapareceram das sociedades modernas e democráticas, o consenso de proibir que se use tefilin é hoje desmedido – é baseado em outras épocas e está quebrado.18

Tudo isso serve para que os atuais batei din e seus rabinos se coloquem sobre os ombros de seus predecessores, para “fazer” a tradição, e não apenas receber o bastão como se fosse uma corrida de revezamento, para “quebrar” consensos preconceituosos por meio de ferramentas forjadas em intelectualidade, razão e estudo de alternativas haláchicas. Assim, poderão abordar os problemas com meios suficientes em quantidade e qualidade e dar soluções modernas às suas comunidades e ao judaísmo, com base nas essências do passado, complementando-o a partir dos saberes e necessidades do presente, num quadro de liderança e intelectualidade. Tudo isso com autoridade dentro do judaísmo. Nós judeus precisamos que nossos professores, nossos rabinos reformistas, não se desviem de sua missão de conciliar religião e vida, porque eles são os construtores de pontes, bonei gesherim.

17 O Talmud deriva este princípio de ser “limitado no tempo”, uma vez que os tefilin não são usados no Shabat ou feriados (Shabat 33b). Outros sustentam que as mulheres têm uma biná (sabedoria) espiritual inerentemente superior e não requerem imperativos religiosos oportunos (Rabino S.R. Hirsch, Levítico 23:43). Outros argumentos para proibir o uso de tefilin por mulheres (Piskei Riaz RH 4:3) é a necessidade de manter um “corpo limpo” para usar tefilin e a “impureza” do sangue menstrual das mulheres (Rabino Meir de Rothenburg).

18 Mosquera, Andres B., “Tallit, Tefillin and Women” (2022) https://www.ijc. be/post/tallit-tefillin-and-women.

Andres B. Munoz Mosquera é advogado na Bélgica e professor de direito em várias universidades da Europa e dos Estados Unidos. Andres estuda no Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista (IIFRR), credenciado pela World Union Progressive Judaism (WUPJ).

Traduzido do espanhol por Raul Cesar Gottlieb.

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16 M. Zemer, Evolving Halakhah (Woodstock, USA, Jewish Light Publishing), páginas 44-57.

Foto com legenda manuscrita pelo Rabino Dr. Henrique Lemle (1909–1978): “os dois últimos de um grande legado: BUBER, BAECK”, em referência aos rabinos Martin Buber e Leo Baeck.

Essa foto ficava pendurada em seu gabinete na Associação Religiosa Israelita no Rio.

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MARTIN BUBER

100 anos de O Princípio Dialógico

Martin Buber (1878–1965) é um dos maiores pensadores judeus do século 20. A dimensão do ensino e a construção do saber fizeram com que Buber compreendesse prontamente que as perguntas filosóficas e a tarefa do pensador depois das duas Guerras Mundiais não poderiam ser iguais às do tempo precedente e que, por outro lado, como pensador judeu, tinha a responsabilidade de dar conta das mudanças radicais daquele momento histórico. Um modelo de mundo que, sobre as bases de seus próprios ideais, tais como a burocracia, a institucionalidade, a secularização e o espírito nacional, no seu auge de sua radicalização, transformou-se numa máquina assassina que declarava o culminar e o novo início do seu projeto político. Do mesmo modo, aquele tempo trouxe consigo a Solução Final a um dos problemas cujas maiores contradições históricas foram trazidas à Europa: a questão judaica. Se existia um vislumbre de esperança na humanidade que tinha destruído os valores da sua própria história, essa devia ser construída como um novo humanismo diante das ruínas do Estado-nação.

Esse foi o mundo de Buber, que atravessou aquele século como um pensador empenhado em dar respostas à crise da Modernidade, mas fazendo-o já não só como o judeu que devia viver o seu judaísmo no âmbito da sua vida privada, enquanto se vestia de cidadão nacional na sua vida pública. Para Buber, o pensamento judaico não tinha limites territoriais nem metodológicos: atravessou e pensou seu tempo como judeu, como sobrevivente, como ser humano, como cidadão e como pensador crítico. Participante destacado da filosofia judaica desde o final do século 19, pertenceu à constelação de pensadores judeus como Hermann Cohen, Guershom Scholem e, especialmente, seu amigo Franz Rosenzweig; e foi também um estudioso da mística chassídica e de

Para Buber, a Torá é ensino e não somente lei, por isso as leis inscritas na Torá têm por função ensinar, devem ensinar. E o que é ensinar? Mostrar o caminho, propor um caminho dirigido para uma vida melhor.

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Emmanuel Taub
judaísmo filosofia e teologia

suas implicações sociais, de onde Buber construiu uma filosofia do diálogo, renovando as reflexões sobre a ética judaica e sua vinculação entre o mundano e o divino. Assim, deixou as bases para as obras de pensadores como Hans Jonas, Emmanuel Levinas ou Jacob Taubes, assim como para a atualidade de nosso tempo.

Completam-se 100 anos da aparição de seu Princípio Dialógico, ou mais conhecido como o Eu e Tu, uma obra transformadora tanto para a filosofia como para as demais ciências sociais, na qual Buber nos ensina que a relação do homem com Deus e com o outro homem ocorre no mundo porque “Deus fala ao homem nas coisas e nos seres que Ele lhe envia na vida e o homem responde através de sua ação”. Nesse sentido, devemos começar entendendo que, para Buber, a Torá é ensino e não somente lei, por isso as leis inscritas na Torá têm por função ensinar, devem ensinar. E o que é ensinar? Mostrar o caminho, propor um caminho dirigido para uma vida melhor.

Essa visão de um diálogo entre o topo e a base leva Buber a construir o próprio fundamento de sua filosofia dialógica. O coração do pensamento buberiano se baseia no pensamento dialógico: nas relações intersubjetivas Eu-Tu, “não existe o eu em si, mas somente o eu da palavra básica eu-Tu e o eu da palavra básica eu-Ele”. Essa relação torna-se possível graças à relação Eu-Tu eterno, ou seja, a relação do homem com Deus.

O Pensador é uma das esculturas mais importantes de Auguste Rodin e retrata um homem em meditação.

Enquanto que ao transformar-se numa relação objetiva institucionalizada, esse Eu-Tu torna-se um Eu-Ele. E aqui reside o problema: o problema é que a instituição religiosa, segundo Buber, tende a esquecer as relações dialógicas que lhe deram origem (o Eu-Tu e o Eu-Tu eterno) e dessa maneira se tornam opressoras. Esse é o maior perigo: perder a relação com o outro como um Eu-Tu nas mãos da relação institucionalizada pela religião ou pelo Estado, tornando-se um Eu-Ele. Buber afirma que a estrutura de todo pensamento (e da vida) se dá a partir desses dois pares, o Eu-Tu e o Eu-Ele. O primeiro representa as relações intersubjetivas recíprocas, simétricas e efêmeras, enquanto o segundo são relações sujeito-objeto, relações de dominação que se caracterizam pela não reciprocidade, a assimetria, e que, por isso, podem perdurar no tempo, como fazem as instituições.

Por isso, Buber nos adverte que o “pior perigo” que seduz o homem é que um aspecto do humano saia desta “comunhão” entre o Eu e o Tu, ganhando autonomia e tornando-se “autorreferencial”. E ainda que essa parte independente finja ser o que faltava para completar “a reciprocidade vincular” entre Deus e o humano, “na realidade coloca-se a si mesma no lugar que lhe corresponde à comunhão” entre o resto das dimensões que conformam a possibilidade de diálogo com o outro: isto é, no lugar do mundo e a linguagem. Desta forma, transforma o outro, o Tu, num Ele. E isso se instala como a mediação da relação dialógica e, portanto, retira o mundo e Deus do diálogo. Ou seja, o pior perigo se produz quando o próprio ser humano toma o lugar central em uma relação de iguais institucionalizando-se, e retira a dimensão de Deus e do mundo do lugar onde se deveria dar a comunhão entre Deus e o ser humano. É assim que esse Ele para Buber é caracterizado pela religião como instituição e como institucionalidade, e por isso mesmo é para ele “o principal perigo para o homem”.

É importante dizer que isso é consequência de processos históricos, especialmente no mundo judeu, na relação entre religião e Modernidade, e na maneira em que a instituição religiosa se formou como parte da lógica secular e racional, para levar a espiritualidade ao foro interno e privado da vida dos seres humanos, mas fundamentalmente pondo o foco no Ele sobre o Tu, na lei sobre a responsabilidade e o diálogo com o outro, e na exclusão sobre a comunidade. Nesse sentido, e aqui observamos a atualidade do pensamento buberiano, já que

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Valentin B. Kreme / Unsplash.com

podemos pensar esta lógica também sobre qualquer forma de institucionalidade, e com isso se entende especialmente a política e o Estado moderno. Pensado desde aqui, como a cisão também entre ética e política, transformando a política na forma de vida no mundo que não só se independe numa “suposta racionalidade” da ética como serviço ao mundo e ao outro homem, mas que faz da instituição uma divindade encoberta que acaba legitimando ocultamente o Estado.

Buber nunca deixa de compreender que não se pode estabelecer uma filosofia dialógica sobre o éter da abstração, mas na realidade material do mundo que habitamos. É assim que o conceito de redenção para Buber coloca o humano como parte de uma tarefa no mundo e, justamente, com o mundo. A redenção não fica entregue à vontade de Deus, mas à relação ativa do homem entre as dimensões do divino e do mundano. Para Buber, o ser humano coopera na redenção do mundo já que Deus “deseja necessitá-lo” para realizar esta tarefa: não é que não pode fazê-lo quem tudo faz, mas prefere precisar do outro, do ser humano. Como escreve Buber: “Deus quer precisar do homem para Sua tarefa de completar Sua obra. [... ] Que Deus queira isso significa que esse ‘precisar’ se torna realidade ativa, um trabalho: na história, tal como tem lugar, Deus espera o homem.” Essa é a tarefa do homem na história segundo Buber, que tanto se vincula também com a tradição mística que coloca o ser humano no objetivo da Criação divina, aquela que o situa como parte necessária da redenção. Mas entenda-se, ao colocar a equação do processo de redenção no trabalho humano na Terra, também está se comprometendo o homem “responsavelmente” com a história: a redenção é um processo de responsabilidade com o mundo do criado e de suas criaturas – o Você. Porque só o homem pode

ser responsável pelo outro homem e pelo seu mundo. Somente o ser humano pode ser responsável pelo criado, pelo Tu, que contém a unidade do Eu e do mundo.

Todo ensinamento, para Buber, é a tarefa impossível de dar uma única resposta, a impossibilidade de construir uma verdade. O ensino é sempre um caminho que se abre para a construção de saber, uma relação em forma dialógica e, especialmente, uma pergunta que se apresenta (se faz existente) para romper a harmonia do silêncio, a paisagem da conformidade e a aceitação cega; é o diálogo sobre um impossível que nos constitui e nos empurra para a próxima pergunta. Para Buber, a construção de saber, que é também a filosofia, se poderia imaginar como a saída do Egito e o fim da escravidão. A liberdade é a possibilidade de construir um diálogo, de percorrer os caminhos do saber através das perguntas e das respostas, das vozes que se encontram. Porque a opressão, na realidade, é a aceitação da voz do outro, do monólogo, mas também a impossibilidade do diálogo, da união de si mesmo com o mundo que representa o criado primeiro, e com o outro Eu, o Tu, depois.

O interessante e atual do olhar de Buber é que nos apresenta uma visão que vai além da moral como sentido da revelação e, por isso, o que ocorre é um “-Eu- e -Tudespojado do Eu e Tu”. Essa nova relação instala uma distância entre um e o outro em forma de institucionalidade e como um semblante que vem substituir a relação dialógica e que deixa à vista a necessidade da sociedade de transformar a Voz divina em uma obrigação de ser ouvida e não na liberdade de ser ouvida. Como diz Buber, a sociedade quer uma “moral sem voz” e uma “lei sem rosto” como verdade da Palavra.

Emmanuel Taub é pesquisador adjunto do CONICET (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da República Argentina). Suas áreas de trabalho são a filosofia e a mística judaica. Seu último livro é «La palabra y la errancia. Para una filosofía de la in-existencia“ (Editora Paidós). Texto gentilmente traduzido do espanhol por Sheila e Michel Ventura.

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DIFERENTES CULTURAS E MOMENTOS HISTÓRICOS

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doutrina do Daat Torá e as mudanças na ortodoxia contemporânea
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Detalhe com as Tábuas da Lei da escultura Moisés (1513-15) de Michelangelo em Roma

Defender a ideia de um único judaísmo autêntico não faz jus à verdade histórica, além de deslegitimar expressões judaicas.

Embora a ortodoxia judaica se apresente como uma religião que salvaguarda o único e verdadeiro judaísmo – o judaísmo dos antepassados, desde os mais longínquos no tempo até avós e bisavós–, a realidade é muito diferente e as mudanças no judaísmo rabínico sempre existiram. Pensemos nas grandes transformações ocorridas depois da Emancipação dos judeus na Europa e o surgimento das correntes liberais (Movimento Reformista e Movimento Massorti), da criação da Neo-ortodoxia na Alemanha do século 19 e, posteriormente, do surgimento do judaísmo ortodoxo sionista no século 20, principalmente em Israel. Mudanças e inovações menores e maiores aconteceram no judaísmo desde tempos remotos, desde a transformação da religião bíblica, ancorada na Terra de Israel e num tipo específico de estrutura socioeconômica agrária, para o judaísmo rabínico, religião eminentemente diaspórica, ligada a uma estrutura socioeconômica completamente diversa. Judaísmo racionalista e judaísmo místico, judaísmo ashkenazita e judaísmo sefardita, todas essas expressões da religião e cultura judaicas conviveram no decorrer da História, constituindo um indicador expressivo da multivocalidade e da heterogeneidade do judaísmo, da sua riqueza, do fato de ele ter existido em contextos muitas vezes hostis, mas sempre com a potencialidade de se aggiornar a diferentes culturas e momentos históricos.

Defender a ideia de um único judaísmo autêntico não faz jus à verdade histórica, além de deslegitimar expressões judaicas que, segundo a ortodoxia, constituem desvios daquela religião considerada a única e verdadeira, o judaísmo dos nossos ancestrais, cuja continuação está encarnada na ortodoxia contemporânea.

E aqui talvez seja relevante salientar que a ortodoxia judaica não está

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Marta Francisca Topel
judaísmo contemporâneo

sozinha no ensaio de recuperar um passado prístino e imaculado; os fundamentalismos religiosos como um todo apresentam essa característica e, abstendo-se de analisar o percurso da própria religião a partir de uma abordagem histórica, fazem uma análise cosmológica que lhes permite chegar a conclusões que nada tem a ver com os acontecimentos ocorridos no curso dos eventos históricos.

No que diz respeito a mudanças ocorridas no seio do judaísmo rabínico, do judaísmo que, segundo suas lideranças, se mantém idêntico a como sempre existiu no passado, gostaria de mencionar o estabelecimento da doutrina do Daat Torá,1 que constitui a diretriz que rege a visão de mundo ortodoxa contemporânea. O Daat Torá está inextricavelmente ligado às mudanças ocorridas nas comunidades judaicas após a Emancipação dos judeus na Europa nos séculos 18 e 19, e diz respeito à implantação de um novo mecanismo de autoridade rabínica nessas comunidades. Outra inovação diretamente relacionada aos tópicos mencionados é a expansão do alcance da Halachá ou Lei judaica, que nesse mesmo período deixou de estar restrita às questões religiosas stricto sensu, que preocuparam os judeus durante séculos, para abranger questões políticas, econômicas, profissionais, laborais, entre outras.

Para compreender melhor estas mudanças, é necessário mencionar que embora os judeus observantes sempre obedeceram os preceitos ou mitsvot que compõe a halachá, nunca houve uma padronização de como

1 Do hebraico: conhecimento da Torá, em referência à erudição dos grandes rabinos.

levar à prática esses preceitos para ser um bom judeu. Diferenças entre as comunidades das diversas regiões nas quais residiam os judeus originaram os Sifrei Minhag (livros de costumes), nos quais os grandes rabinos dessas comunidades explicavam o melhor modo de obedecer as mitsvot nesses contextos singulares. Os Sifrei Minhag exprimem a riqueza de um judaísmo que teve a plasticidade de se ajustar às necessidades particulares de cada situação e períodos específicos. Assim, nem sempre celebrar um jejum ou cumprir as estritas regras de pureza familiar eram seguidos do mesmo modo por todos os judeus nos quatro cantos do mundo. Cantores litúrgicos, livros de rezas,

refeições rituais e regras para cobrar juros podiam mudar substantivamente de comunidade para comunidade, sem por isso violar as leis haláchicas.

O próprio sistema do estudo religioso encorajava longos debates, cujas conclusões nem sempre eram aceitas por todos os grandes sábios, promovendo aquilo que se designou como a polissemia característica dos textos judaicos, principalmente do Talmud.

Entretanto, as transformações de fundo decorrentes da Emancipação dos judeus na Europa exerceram grande influência na estrutura das comunidades judaicas que escolheram o judaísmo rabínico, corrente

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Moisés, do escultor croata Ivan Mestrovic (1883–1962), exposta na Galeria Ivan Mestrovic em Split, Croácia Charles Steiman

que, a partir desse momento, ficou conhecida com o nome de ortodoxia. Entre as transformações mais importantes destacam-se a separação de tudo aquilo considerado alheio, isto é, a separação não só dos gentios, mas, também, dos judeus reformistas, sionistas e seculares. Paralelamente, e com o objetivo de evitar formas lenientes de cumprir a halachá, sob quaisquer influências possíveis das correntes judaicas liberais consideradas apóstatas, as lideranças rabínicas da época, entre as quais sobressai o nome do rabino Chatam Sofer, reestruturam o judaísmo ortodoxo húngaro (e como consequência, segmentos importantes do judaísmo europeu) transformando-o em uma religião mais severa, na qual se deixou cada vez menos espaço para discussões e debates, uma religião que começou a exigir de seus membros o cumprimento dos preceitos da forma mais severa possível.

Esse processo, seguir à risca e do modo mais estrito os preceitos haláchicos, é conhecido como chumratização,2 processo que tem se enraizado nas comunidades ortodoxas israelenses a partir da década de 1950, sob a liderança do rabino Chazon Ish, e que continua vigente nesse país e na diáspora como um todo.

Assim, iniciado na Hungria do século 19 e cristalizado no Israel do século 20, o processo de chumratiza-

ção levou à criação de uma padronização nas diferentes comunidades ortodoxas, por um lado, e a uma radicalização da ortodoxia, por outro.

Ao mesmo tempo e como fora mencionado, a autoridade dos rabinos

2 N. do E.: derivada da palavra hebraica “chumrá”, que significa “estrito”, “severo”.

ganhou protagonismo com a instauração da doutrina do Daat Torá.

O Daat Torá é uma nova forma de abordar a autoridade nas comunidades ortodoxas, que outorga aos grandes rabinos o direito de decidir questões da vida privada e pública de seus fiéis em dimensões que no passado não estavam incluídas no escopo da halachá. Isso significa que as lideranças rabínicas contemporâneas têm poder para guiar seu rebanho muito além do estritamente religioso. Esse fenômeno se observa

O Daat Torá expressa as suas conclusões num modo similar ao de uma sentença, sem quaisquer justificativas encontradas nos textos sagrados.

muito claramente em Israel, por exemplo, na falta de autonomia dos judeus ortodoxos para escolher o partido político e os candidatos nas eleições do país. Mas muitas outras facetas da vida privada e social dos judeus ortodoxos se tornaram tópicos da competência dos rabinos, a exemplo do direito a trabalhar ou a seguir uma carreira universitária, a possibilidade de servir no Exército de Defesa israelense e o bairro no qual fincarão residência jovens casais.

Benjamin Brown, proeminente pesquisador da ortodoxia, num interessante artigo no qual analisa em

detalhe a doutrina do Daat Torá,3 afirma que foram três os estágios na sua implantação. Assim, de um conceito que enfatizava a magnitude e grandeza da Torá, transformou-se em um modelo que destaca a grandeza dos rabinos eruditos que interpretam a Torá para desembocar numa conclusão inapelável: a necessidade de obedecer incondicionalmente aos grandes rabinos.

A figura que instaurou e solidificou a doutrina do Daat Torá em Israel foi o rabino Elazar Menahem Mann Schach, talvez a liderança rabínica mais importante na configuração da ultraortodoxia israelense contemporânea. Os estudiosos do judaísmo ortodoxo atual destacam que a doutrina do Daat Torá já não se exprime através de conselhos, mas por meio de prescrições e proscrições obrigatórias que devem ser seguidas à risca pelos judeus que se identificam como ortodoxos. Finalmente, em contraste com a abordagem consagrada ao longo dos séculos nas responsas rabínicas ou nos Sifrei Minhag, o Daat Torá expressa as suas conclusões num modo similar ao de uma sentença, sem quaisquer justificativas encontradas nos textos sagrados, sejam haláchicas ou de outra fonte, em franca oposição ao modo através do qual o judaísmo rabínico se expressou e legislou ao longo dos séculos.

A partir dessas constatações –apesar de existirem muitas outras modificações e inovações ocorridas no seio da ortodoxia contemporânea, filha da ultraortodoxia criada na Hungria no final do século 19 –,

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3 “Jewish Political Theology: The Doctrine of Daat Torah as a Case Study”, Harvard Theological Review, 107(3)m 2014.
O extraordinário de cada um.

é possível afirmar, sem qualquer espaço para dúvidas, que a ortodoxia contemporânea é uma religião nova, fruto da Modernidade europeia, embora se apresente como o judaísmo assim como ele foi praticado antes da Emancipação política dos judeus na Europa, nas cidades e nos shteitls da Europa Oriental.

Relevante e atual

O novo governo israelense, liderado pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, formou uma coalizão governante com a participação, poderíamos dizer protagonista, de vários partidos ortodoxos. Não é o caso de fazer eco aqui aos reiterados alertas no sentido do perigo para a democracia israelense, das reformas jurídicas que começaram a ser votadas no parlamento israelense em fevereiro deste ano. A sociedade civil israelense, através de suas instituições e organizações, está se manifestando em várias frentes para bloquear um processo que ataca os fundamentos democráticos e liberais sobre os quais foi estabelecido o Estado de Israel.

O que me interessa destacar são dois fenômenos. O primeiro deles é que apesar de existirem pontos de encontro entre os diversos partidos religiosos que compõem a coalizão governante, as divergências entre

A sociedade civil israelense, através de suas instituições e organizações, está se manifestando em várias frentes para bloquear um processo que ataca os fundamentos democráticos e liberais sobre os quais foi estabelecido o Estado de Israel.

elas são muitas e profundas. O que, irremediavelmente, nos leva, mais uma vez, à conclusão de que não existe um único judaísmo rabínico autêntico e verdadeiro, impoluto, e a ortodoxia tem tantas facetas como outras correntes judaicas. Segundo, diante do extremismo das lideranças ortodoxas que guiam doutrinariamente os políticos que representam esses partidos, têm aumentado, nos últimos anos, as vozes contrárias ao que é definido como os interesses pessoais das lideranças ortodoxas e sua aspiração em exercer um controle totalizador do público ortodoxo. Com certeza, o “Congresso do Judaísmo Religioso de Esquerda”, realizado em Jerusalém no final de

janeiro deste ano, constitui o exemplo mais revelador de certo esgotamento de segmentos expressivos dentro da ortodoxia israelense em relação ao poder decisório dos grandes rabinos em questões que ultrapassam, em muito, questões propriamente haláchicas ou religiosas. Mas o questionamento à autoridade das lideranças rabínicas tem outras expressões, talvez menos radicais, mas não por isso, desprovidas de importância no que diz respeito ao futuro das comunidades ortodoxas israelenses. Estou me referindo à reivindicação de segmentos importantes entre os jovens ortodoxos de se alistar no exército do país, ao questionamento da necessidade de os homens ortodoxos se dedicarem em tempo integral ao estudo dos textos religiosos, e aos reclamos no sentido de ter a possibilidade de estudar em universidades e exercer uma profissão para ganhar o próprio sustento, e não depender de subsídios estatais e doações públicas.

É difícil prever qual será o impacto destas reivindicações, que questionam em cheio a doutrina do Daat Torá, e como ele se plasmará na estrutura das comunidades ortodoxas israelenses. Mas o certo é que essas reivindicações – e muitas outras–existem, estão se difundindo ao redor do país e começando a mostrar os primeiros frutos.

Profª Drª Marta Francisca Topel é graduada pela Facultad de Sociología da Universidad de Buenos Aires (1985), com mestrado em Sociologia e Antropologia Social na The Hebrew University Of Jerusalem (1990), doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1996) e pós-doutorado no The Hebrew University in Jerusalem (2004-5). Atualmente é MS-5 da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Cultura Judaica, atuando principalmente nos seguintes temas: judaísmo, antropologia, religião, identidade étnica e etnicidade.

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MEIA-VOLTA, VOLVER!

A autonomia do poder judiciário e o equilíbrio entre os três poderes é elemento fundamental das democracias.

O que Levin propõe não é uma democracia, mas a ditadura de uma pequena maioria parlamentar.

No número 46 (Dezembro de 2022) de Devarim, Paulo Geiger intitula “Direita volver” um seu escrito, no qual analisa e interpreta as tendências de direita que vêm crescendo no eleitorado israelense.

O conhecido chamado de ordem, usado em marchas e desfiles para conduzir o andamento dos participantes, reflete bem a natureza do atual momento político. Estava eu propenso a usá-lo em ulteriores comentários sobre o mesmo assunto que continua na ordem do dia 2023 adentro.

Mas a realidade tornou-se entrementes muito preocupante e carregada de ruidoso confronto com potencial de violência entre as partes contrastantes: tanto que o “Direita, volver” (que na verdade sintetiza uma situação “de facto” existente) requer ser substituído por “Meia-volta, volver”, mais apropriado para conclamar os litigantes a uma suspensão na polêmica amarga e intransigente e a uma volta a diálogo ponderado e reciprocamente tolerante.

Não é que haja uma simetria de posicionamento. A semântica da discussão classifica as opiniões como “Direita” e “Esquerda” – não segundo a clássica definição das diferentes visões da sociedade, mas de acordo com a identificação política com o governo e seu programa.

Este programa, apresentado como “Reforma” a ser legislada com impaciente urgência, revela-se dia a dia com novas disposições que em seu conjunto constituem um ataque destrutivo contra o poder Judiciário, contra a autonomia dos tribunais, contra a defesa de direitos da minoria diante da arbitrariedade da maioria: requisitos inerentes da democracia. Reformas e melhorias são aceitáveis e até desejáveis em qualquer organismo ou sistema, desde que se destinem a um desenvolvimento positivo de sua

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israel política
Não para um insano sufocamento da verdade, da liberdade e da moral

função, e desde que não alvejem a um abalo no equilíbrio essencial entre os vários poderes da estrutura civil. Evidentemente esta finalidade só pode ser atingida com um debate bem-intencionado e uma pesagem objetiva de motivos e consequências – coisa que não está no projeto do atual ministro da Justiça Iariv Levin, fervoroso partidário da predominância dos políticos no mecanismo de nomeação de juízes e promotores, que ele aspira a transformar em submissos subscritores de fachada das decisões do executivo. Nesta ordem de considerações, ele procura introduzir uma regulamentação tendenciosa do funcionamento dos tribunais, com inegável sentido de legalização de medidas manchadas de corrupção, e com o camuflado desejo de abolir os processos que pesam sobre Netanyahu.

Levin sustenta que a atual autonomia do poder judiciário é contrária à essência do regime democrático, que segundo ele se expressa exclusivamente na maioria aritmética obtida pelos partidos de governo. Com isso, ficaria a defesa de direitos do cidadão à mercê politiqueira de partidos, deputados e grupos de pressão.

Ora, esta afirmação de Levin é insana. A autonomia do poder judiciário e o equilíbrio entre os três poderes (judiciário, legislativo e executivo) é elemento fundamental das democracias. Nenhum regime que não inclua este equilíbrio pode ser intitulado de “democracia”. O que Levin propõe não é uma democracia, mas a ditadura de uma pequena maioria parlamentar.

A ofensiva contra o Judiciário é sem dúvida o aspecto mais preocupante do endereço fascista ao qual o governo vem obstinadamente conduzindo, recusando-se a admitir uma troca de opiniões que assumiria para ambos os lados o simbólico lema de “Meia-volta, volver”. E movido pela euforia de poder que uma pequena maioria (as eleições na verdade registraram um empate) lhe dá na Knesset, vem pressionando – em sintonia com grosseiros parlamentares da ala “Bibista” – também outras reformas antidemocráticas igualmente limitadoras de direitos e liberdades: contra a livre expressão na imprensa, televisão e rádio; na injeção de um retrógrado coeficiente religioso no currículo escolar; na subscrição da

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IMAGO
Judeus ultraortodoxos gritam com mulheres judias liberais do grupo religioso ‘Women Of The Wall’ durante o serviço de oração matinal no Kotel (Muro das Lamentações). O controle do Kotel por judeus ultraortodoxos tornou-se um ponto de conflito acirrado.

política segregacionista e discriminatória do ministro da Segurança Interna Itamar Ben Gvir, cujo partido ideologicamente racista e intolerante, herdeiro das ideias do defunto Rav Kahana, conseguiu entrar no parlamento graças à manipulação interesseira de Bibi e à votação de um público fanático e mal esclarecido, milícia gritante e demagógica, revestida de um superficial falso judaísmo e de um nacionalismo oco e vingativo.

O termo “vingativo” se aplica também ao espírito que orienta os partidos ortodoxos no acordo que os trouxe para o governo: sua conhecida retórica sempre lamenta uma pretensa limitação no apoio a suas instituições (a despeito da cínica repetição de “slogans” de aparente piedosa humildade com que se apresentam na busca do dinheiro público do qual se sentem merecedores).

Logo do início de sua presença no executivo, os representantes ortodoxos de vários tipos de vestimenta e “kipá” se lançaram então a um assalto às fontes de financiamento público de que sempre foram hábeis usuários. Daí a cessão da pasta das Finanças ao militante messiânico da

colonização judaica na Cisjordânia Betsalel Smotrich, complementada por sua estranha anexação em caráter de “ministro adjunto” também ao Ministério da Defesa – o que é um perigoso precedente de intromissão na política de segurança e na orientação do exército, e um transparente esforço de garantir medidas e recursos para as metas e os interesses daquela colonização, e justificativa para sua constante agressão à população palestina.

Na outra extremidade da ala não sionista da bancada religiosa, o partido “Iahadut Hatorá” (o judaísmo da Torá) recebeu o controle da influente Comissão de Finanças da Knesset, de há muito um baluarte da liderança “charedi” (ultraortodoxa).

Vice-ministros religiosos foram nomeados para pastas de largo alcance para a população, como a da educação ou da cultura, onde já deram voz a suas ambições eleitorais de coerção religiosa, visando abolir estabelecidos costumes de abertura intelectual nos programas didáticos, e mesmo revogar resoluções nesse sentido adotadas pelo governo precedente.

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No início de março de 2023, chegou às ruas das cidades israelenses uma campanha publicitária contra a proposta de reforma do sistema judicial apresentada pelo governo de Byniamin Netanyahu. O cartaz do ponto de ônibus diz: “Opor-se à ditadura é uma obrigação.” O do painel eletrônico do maior shopping mall do centro de Tel Aviv diz: “Opor-se à opressão das mulheres é uma obrigação.” Os opositores à reforma afirmam que ela abre a porta para a retirada de direitos da população. Fotos: Raul Cesar Gottlieb, Tel Aviv, 6 de março de 2023. Fotos Raul Cesar Gottlieb

Esta jornada por um estado autoritário de ditadura disfarçada desencadeou uma grande corrente de protesto, que não se enquadra na classificação de esquerda ou direita. Atingindo um público generalizado preocupado com o rumo que o país vem tomando, ela se mostra em grandes comícios semanais de ampla participação, e em pronunciamentos críticos vindos de representantes vários da opinião pública: do ambiente acadêmico e cultural; de oficiais do exército na ativa ou na reserva; da central sindical e de corporações profissionais; de círculos econômicos locais e internacionais, que acentuando a interdependência entre economia, confiabilidade jurídica e estabilidade democrática, advertem sobre o perigo de colapso da economia do país se a anunciada reforma for aprovada.

A administração norte-americana e os governos europeus já condenaram a tendência com linguagem clara e com dúvidas quanto à continuação de apoio em campo econômico ou diplomático, e não é compreensível que Netanyahu ignore um fator de tal peso para a existência de Israel.

Provavelmente, a mais grave reação partiu da jovem geração de empreendedores da indústria “high-tech”, incontestada propulsora da prosperidade da economia local. Vários deles anunciaram sua decisão de transferir negócios e capital para o estrangeiro, e deixar pessoalmente o país, suspendendo o pagamento dos impostos, que eles veem desperdiçados em fantasiosas esotéricas plataformas partidárias.

Ao redor da problemática descrita criou-se um discurso carregado de emoções e ameaças. Estas últimas partem quase que somente da direita, de há muito

versada na linguagem de incitamento e na proposital confusão entre verdade e mentira. É parte de sua propaganda, apreendida (caiam os céus!) na famigerada escola de Joseph Goebbels: fomentar uma ruptura na solidariedade nacional e dela acusar “a Esquerda” com violência verbal e mesmo física, dirigida em grande parte contra legítimos membros da atual autoridade jurídica.

Mas o impasse na situação e o esforço de pouca probabilidade de sucesso do Presidente Herzog de trazer os lados contendores a um diálogo, exerce pressão para que ambos sejam vistos como igualmente responsáveis pela radicalização das posições (Levin já rejeitou com convicção belicosa; a presidente do Supremo Tribunal já havia divulgado uma cristalina argumentada negação ao projeto).

E o dístico “Meia-volta, volver!” é posto em campo para neutralizar as tensões embutidas no “Direita, volver” de Levin e seus seguidores. Mas todos sabem que a verdadeira causa da cruzada não é uma honesta iniciativa de revisão estrutural dos tribunais, e sim um enfraquecimento destes até a auspiciada abolição das acusações de corrupção e do processo de Netanyahu. No caminho ainda se fará aprovar vergonhosas “leis pessoais” que modifiquem veredictos pendentes sobre outros ministros e políticos do serviçal séquito do “líder-monarca”, pelos quais eles estariam impedidos de prosseguir suas tortuosas carreiras por semelhantes culpas.

“Meia-volta, volver!” Para um diálogo sadio, SIM! Para um insano sufocamento da verdade, da liberdade e da moral, NÃO e NÃO!

Vittorio Corinaldi é engenheiro formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do kibuts Bror Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutsiano.

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Reformas e melhorias são aceitáveis e até desejáveis em qualquer organismo ou sistema, desde que não alvejem a um abalo no equilíbrio essencial entre os vários poderes da estrutura civil.

TRABALHEI NO CATAR

Em julho do ano passado fui contratado pela FIFA para umas das oito vagas de Coordenador de Broadcast na Copa do Mundo do Catar, a primeira Copa do Mundo de Futebol da FIFA no mundo árabe. Independentemente da descrição do cargo e do trabalho em si, o projeto começou no dia 4 de agosto e foi até o dia 20 de dezembro de 2022.

Durante todo o processo de contratação, que começou em maio, fiquei calado. Quando tudo foi confirmado e assinado, comentei com algumas pessoas do meu círculo judaico. Além da alegria pelo novo desafio, sempre vinha a pergunta com espanto: No Catar?! Um judeu no Catar?! Cinco meses?!

Óbvio que por trás desse espanto estava a questão de um judeu ir trabalhar no Catar, um país que apoia abertamente o Hamas e hostiliza Israel. Esse pequeno Emirado tem a metade do tamanho do menor estado brasileiro, Alagoas. Em algum momento da história, foi determinado pelas potências colonizadoras que a família Al Thani seria a proprietária daquele imenso deserto que vivia prioritariamente da pesca de pérolas no Golfo Pérsico. Com o desenvolvimento da humanidade e das tecnologias, descobriram em 1970 que o pequeno território, juntamente com o Irã, estava assentado sobre a maior reserva de gás do planeta, algo como 10% de toda a reserva da (sub)face da Terra. Com isso, o Catar é hoje um dos países mais ricos do mundo. Ainda que a riqueza, graças à política da Grã-Bretanha para o Oriente Médio dos séculos 19 e 20, pertença apenas a uma única dinastia.

Em nenhum momento eu tive qualquer preocupação em relação a essa viagem a trabalho para um país islâmico. Naturalmente estamos falando de uma janela de exceção, um momento em que o Emirado se abre e se

O Catar é hoje um dos países mais ricos do mundo. Ainda que a riqueza pertença apenas a uma única dinastia.

ATID | ARI 41
André Sztajn
judeus do brasil

expõe para o mundo como uma oportunidade de bons negócios, uma forma de olhar para o futuro e diversificar a economia através do esporte e do turismo, ainda que isso tenha um viés de sportswashing, uma maneira de um país ou mesmo um produto melhorar sua imagem através do esporte. Tal como foram as Olimpíadas de Berlim na Alemanha, em 1936, e a Copa do Mundo de 1978, em plena ditadura Argentina. Durante o processo de contratação e viagem, nunca perguntaram a minha religião. E foi assim durante todo o tempo em que estive por lá.

4 de agosto de 2022. Chego em Doha, capital do Catar. O vai e vem dos homens de Dishdasha (a túnica branca) e Guthras (o ornamento na cabeça) e de mulheres de Abaya e Hijab (respectivamente, o vestido e o véu pretos que deixam apenas as mãos e o rosto aparentes) já me causou uma sensação estranha. Quando vemos isso por imagens pela internet e televisão, há um certo distanciamento. Mas quando esse monte de gente está passando de um lado para o outro na sua frente, afloram quase que naturalmente uma série de sentimentos. Pelo menos em mim. Jamais imaginei estar tão próximo e no cotidiano dos muçulmanos. A primeira reação poderia ser de repulsa, mas a verdade é que o dia a dia é de certa forma anestesiante. Nossos olhos vão se acostumando, mas, mesmo depois de cinco meses, não consegui aceitar de forma alguma essa condição imposta pelos hábitos religiosos.

Alguns dias depois da minha chegada, ligo para um amigo da ARI: “Você sabe se existe na Torá ou no Alcorão algum texto oficialmente religioso que determina que as

mulheres devem ‘esconder’ o corpo e os cabelos?” “Não existe, pelo menos na Torá”, respondeu rapidamente o meu amigo. E a conversa seguiu pela grande possibilidade desses costumes terem sido agregados ao comportamento religioso por conta de um viés machista exacerbado ao longo do tempo. Apenas para posicionar a mulher como inferior, subserviente e impossibilitada de se apresentar de forma natural ao mundo

internet por judeus, comunidades ou eventuais sinagogas ou clubes naquele país. Queria apenas confirmar o que já imaginava: não encontrei qualquer registro, resquício, história, nada que conectasse judeus ou judaísmo com o Catar. Muito bem, então como dividir nesse espaço uma experiência judaica no Catar? Penso que isso só pode acontecer através do compartilhamento das reflexões que lá tive.

Sportswashing é a maneira de um país ou de um produto melhorar sua imagem através do esporte. Tal como as Olimpíadas de Berlim, em 1936 na Alemanha Nazista, ou a Copa do Mundo de 1978, em plena ditadura Argentina.

exterior. Aqui vale uma curiosidade. Por conta das obrigações e dos hábitos religiosos, homens e mulheres não se misturam nas praias. Homens de sunga e mulheres de biquíni são algo muitíssimo raro de se ver. O país é todo banhado pelas águas do Golfo, mas em muitas praias o acesso é simplesmente proibido. Em alguns casos, as praias são fracionadas em espaços para famílias (pai, mãe e filhos) e espaços apenas para homens. Não tem a menor chance de uma “azaração”.

Um pouco antes de partir para o Catar, comecei uma busca na

O calor de agosto no Catar é tão intenso que parece que vai queimar sua pele ao ar livre. Por isso, o cotidiano é casa-carro-escritório-shopping, o mínimo de rua e o máximo de ar condicionado. Em uma das minhas primeiras caminhadas no shopping, vi pela primeira vez uma família “devidamente vestida”: pai, mães e filhos (meninos e meninas), todos com suas Dishdasha e Abayas. Em que momento da vida uma criança começa a usar essas roupas? Elas decidem vestir-se assim ou são obrigadas pelos pais? O que acontece se uma menina decide que não quer esconder os cabelos?

Confesso que não tive muita intimidade com os cataris para fazer essa pergunta ou ter esse tipo de conversa. Mas essa reflexão me levou a Shemot, a primeira parashá de Êxodo, o segundo livro da Torá. Entre os diversos temas tratados em Shemot, temos o faraó assustado com um povo judeu muito numeroso no Egito a ponto de decidir que todo israelita recém-nascido deveria ser morto. Observando Êxodo 2:1-10 com mais atenção, a Torá relata o nascimento de um menino sem mencionar o nome da mãe. Diz apenas que “certo homem da casa de Levi casou-se com uma mulher de Levi, que teve um filho”. Numa das

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histórias mais conhecidas de Pessach, sabemos que esse menino foi colocado numa cesta no rio Nilo e encontrado pela filha do faraó, que imaginou ser uma criança judia. Ela pagou uma de suas criadas para cuidar da criança que, depois de crescida, foi criada pela filha do faraó. Essa criança era Moisés. A narrativa dá um salto e já passa para Moisés crescido, indo até seu “povo” para acompanhar seus trabalhos (escravos). Ele viu um egípcio batendo num hebreu e matou o egípcio.

Não precisamos discutir aqui a importância de Moisés na história do povo judeu. Mas traçando um paralelo com a reflexão sobre a família caminhando no shopping em Doha,

eu fico me perguntando: se Moisés foi abandonado no rio aos três meses de idade e foi encontrado e criado no meio dos egípcios, em que momento ele se entende como judeu?

Falando em primeira Copa do Mundo de Futebol da FIFA nos países árabes, vale a pena compartilhar uma curiosidade sobre a participação de Israel nessa competição. É uma história que acompanha os conflitos no Oriente Médio nos últimos 70 anos. Devido à sua localização geográfica, Israel deveria estar ligado à Confederação Asiática de Futebol (AFC). E esteve durante um longo período. Foi justamente no tempo em que participava da AFC que Israel teve seus melhores

resultados, vencendo uma Copa da Ásia em 1964 e se classificando para sua única Copa do Mundo até hoje, em 1970 no México. Mas os conflitos na região sempre colocaram em xeque a presença da seleção de Israel na Confederação Asiática, que também inclui os países árabes. E a seleção de Israel chegou a participar das eliminatórias pela Confederação da Oceania até o país ser aceito (eu diria acomodado) na União Europeia de Futebol em 1991. Como a UEFA inclui os poderosos times e seleções da Europa, ainda vai levar um tempinho para Israel conseguir evoluir seu jogo a ponto de conseguir conquistar sua segunda participação em Copas do Mundo.

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Um bazar no deserto. Ilustração digital de KateJoanna/iStockPhoto

Um episódio que não me parece ter repercutido muito por aqui foi o regime de exceção provocado pelo futebol na relação entre Israel e Catar. Sabemos que os dois países não têm relações diplomáticas desde 2009 e que, em certos momentos, os israelenses não tiveram sequer acesso à compra de ingressos para a Copa do Mundo. Mas às vésperas do Mundial, no dia 20 de novembro, o primeiro dos 12 voos comerciais operados pela principal companhia aérea do Chipre teve autorização e decolou levando torcedores palestinos e israelenses juntos para curtir, aproveitar e torcer na Copa do Mundo do Catar. Ainda que

Às vésperas do Mundial, o primeiro de 12 voos comerciais operados pela companhia aérea do Chipre decolou levando torcedores palestinos e israelenses juntos para curtir, aproveitar e torcer na Copa do Mundo do Catar.

seja um passo tímido em regime de exceção, não obstante os filminhos que correram a internet mostrando cataris recuando horrorizados ao perceber que estavam sendo entrevistados pela televisão ou por amadores israelenses, não podemos perder de vista a esperança de um dia a paz ser estabelecida no seu aspecto mais amplo. E para terminar, o torcedor brasileiro ficou novamente com o gostinho amargo de não chegar a uma final de Copa do Mundo. Talvez seja o caso da nossa CBF experimentar uma travessia do deserto e contratar um técnico chamado Moisés. Melhor ainda se for Moshé

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Vista do mercado Souq Waqif em Doha, Catar à noite André Stajn é profissional de audiovisual, sócio da ARI e produtor executivo do documentário Novos Lares, que conta a história da comunidade judaica em Nilópolis, município da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro.
Um projeto da CIP para a comunidade judaica brasileira Conteúdos inovadores e excelência metodológica com o melhor da educação judaica continuada.
Cursos interativos de curta duração
Comunidades de aprendizagem
Eventos, rodas de conversa e aulas abertas academiajudaica.org | @academiajudaica academia@cip.org.br | �� ��������� �ramal ������

HÁ VIDA JUDAICA NA ÁUSTRIA

Plena, crescente e presente na sociedade maior

As pessoas na Áustria, ao pensar em “judeus”, conectam especialmente com a Shoá, o que reduz a nossa história aos anos entre 1933 e 1945, o que é muito injusto, porque há uma história muito mais longa do passado e também um presente relevante a ser conhecido.

Fosse apenas por ser a região de origem de nomes como Herzl, Freud, Buber e Mahler, para nos restringirmos a alguns dos nomes icônicos oriundos da comunidade judaica austríaca, a Áustria já seria suficientemente interessante para Devarim. Além disso, entretanto, os mais de mil anos de comunidades judaicas estabelecidas na região, não obstante sua relevância como “parceira-irmã” da Alemanha nos terríveis eventos que produziram a Shoá, interessa-nos especialmente de que forma essa comunidade reagiu e persistiu em sua reconstrução, a ponto de ter, apenas 14 anos após o fim da guerra, um Ministro do Exterior judeu, Bruno Kreisky, o mesmo que viria a ser o mais longevo Primeiro-Ministro (cujo cargo é, na Áustria, denominado Chanceler) da Áustria democrática, liderando o país por mais de 13 anos.

Devarim teve a oportunidade de conversar recentemente com o casal Martin Engelberg1 e Danielle Spera,2 que estiveram conosco no Kabalat Shabat na ARI, no último Chanká. Ele é deputado do parlamento austríaco, ao qual chegou a partir de seu ativismo comunitário; ela é editora da revista Nu3 (de certa forma uma parente próxima da nossa Devarim) e foi, por mais de dez anos, diretora do Museu Judaico de Viena,4 além de ser uma personalidade muito conhecida no país por seu trabalho na TV nacional.

Nossa conversa passeou por inúmeros aspectos da história da comunidade judaica austríaca e da história pessoal de cada um deles, bem como sobre a relação da Áustria com Israel, das questões relativas à memória e abordagem da Shoá, a composição atual da comunidade e seu futuro. Tendo correspondido a 10% da população de Viena há 100 anos atrás, hoje a comunidade judaica é muito menor em termos percentuais. “Temos cerca de oito mil membros na comunidade, e estimamos outros oito mil não

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Entrevista com Martin Engelberg e Danielle Spera judeus do mundo
Leyre/Unsplash.com
Uma rua movimentada em Viena.

conectados com a comunidade, em toda a Áustria, ou seja, algo entre 15 e 20 mil judeus”, afirma Danielle. Martin nos ajuda a entender melhor essa diferença: “antes da Guerra havia 200 mil judeus, apenas em Viena, que na época tinha dois milhões de habitantes, ou seja, 10% da população eram judeus. Destes 200 mil, entre 120 e 130 mil conseguiram escapar antes da anexação pela Alemanha, em março de 1938. E até o início da Segunda Guerra, em setembro de 1939, dois terços da comunidade judaica pôde fugir para os Estados Unidos, o Mandato Britânico para a Palestina, China, em especial para Shangai, e para a América do Sul, entre outros. Mesmo assim, 65 mil judeus austríacos foram assassinados, o que ainda é um percentual ‘melhor’, ‘apenas’ um terço, do que o de outros países, como a Polônia”.

Após a guerra, a comunidade estava muito reduzida. A maioria dos judeus austríacos que emigraram antes da guerra não voltaram dos países que os tinham acolhido. Houve, entretanto, uma migração para a Áustria de judeus oriundos da Europa Oriental (Polônia, Hungria, Romênia), muitos destes como displaced persons (pessoas “deslocadas”), ou seja, refugiados. Alguns

Hoje a Áustria é um dos países mais próximos de Israel na União Européia. Há um ano e meio, quando houve uma crise com Gaza, com bombardeios, o primeiro ministro ordenou que se hasteasse a bandeira de Israel no parlamento em sinal de solidariedade.

aguardavam vistos para emigrar para os Estados Unidos, enquanto outros queriam permanecer na Áustria. Assim, a comunidade foi se reconstruindo. Mais tarde, no final dos anos 1970 e 1980, de acordo com Martin, houve um fluxo de judeus da ex-União Soviética, como da República da Geórgia, que hoje correspondem a um terço da comunidade judaica local. Finalmente, alguns israelenses adotaram Viena e a Áustria para morar. “E, claro, tivemos recentemente cerca de mil judeus da Ucrânia, que a comunidade está hospedando e integrando, e, acredito, que em sua maioria vai

permanecer na Áustria”, afirma Martin. Como se pode perceber, agregando judeus de diversas origens, a comunidade judaica austríaca é ainda pequena, mas crescente, ano a ano.

Perguntados sobre o seu engajamento na comunidade judaica e se suas famílias já tinham proximidade e interesse pelos assuntos judaicos, Danielle afirmou ter sido para ela um processo bem pessoal e independente, quando participou da fundação da revista Nu [Nu em iídiche é uma interjeição que tem diversos significados, o mais comum deles a indagação: e então?]. Segundo ela, foi uma iniciativa entre amigos, divertida e ao mesmo tempo séria, tanto que segue sendo editada (Danielle é a editora) desde o ano 2000. Conforme o grupo de leitores se ampliou, passou a incluir também pessoas interessadas em temas judaicos de fora da comunidade. A motivação para liderar o Museu Judaico de Viena veio também dessa vontade de ampliar seu alcance para os não judeus. Danielle ocupou o cargo de diretora do museu por 12 anos, tendo se desconectado há pouco para, com uma equipe menor e mais ágil (no museu eram 50 profissionais!), ter um grau maior de liberdade para dedicar-se a projetos de curadoria,

Martin Engelberg: “Antes da Guerra, 10% da população de Viena eram judeus. Destes 200 mil, entre 120 e 130 mil conseguiram escapar antes da anexação pela Alemanha, em março de 1938. E até o início da Segunda Guerra, em setembro de 1939, dois terços da comunidade judaica pôde fugir para os Estados Unidos, o Mandato Britânico para a Palestina, China, em especial para Shangai, e para a América do Sul, entro outros. Mesmo assim, 65 mil judeus austríacos foram assassinados.”

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palestras e livros. Ela via o museu como uma oportunidade, porque “em nenhuma outra instituição na Áustria podíamos aprender sobre a história judaica, e essa história na Áustria é ímpar, importantíssima. Os judeus contribuíram enormemente para o sucesso da Áustria, em todos os sentidos da palavra, não apenas econômico: na ciência, cultura, mídia e, também, na infraestrutura. Imagine que algumas das mais importantes ruas em Viena foram criadas por judeus! Tantas coisas que não são ditas, porque as pessoas na Áustria, ao pensar em judeus, conectam especialmente com a Shoá, o que reduz a nossa história aos anos entre 1933 e 1945, o que é muito injusto, porque há uma história muito mais longa do passado e também um presente relevante a ser conhecido”.

Martin já teve uma história de vivência judaica desde cedo, participou de grupos jovens e depois de grupos de estudantes, chegando a ser membro do Conselho Judaico da comunidade, no qual permaneceu por muitos anos. “Ou seja, sempre fui um membro muito ativo da comunidade judaica”, afirma. Se afastou do conselho quando entrou para a política nacional, porque, para ele, não faria sentido misturar a liderança da comunidade judaica com uma

atuação partidária no âmbito político. No entanto, está longe de ter se desconectado de suas vivências judaicas, uma vez que “somos membros da principal sinagoga em Viena, que é de linha ortodoxa moderna”. Indagado se o fato de a Áustria ter tido Kreisky à frente do governo e se o fato de ele, Martin, ser judeu foi relevante na definição de seu caminho para a política, Martin responde: “Bruno Kreisky de fato teve um impacto, porém negativo! Eu cresci com ele (no governo) e era um tremendo desafio para nossa comunidade conviver com ele e sua identidade judaica problemática e sua ainda mais problemática relação com Israel e com os políticos israelenses, fosse com Golda Meir ou

Menachem Begin. Lembro quando íamos a protestos em frente do gabinete do Primeiro-Ministro, porque ele tinha se encontrado com Arafat, e assim por diante. Então a verdade é que os jovens judeus da nossa geração preferiam não entrar na política austríaca. Eu provavelmente fui o primeiro ativista da comunidade judaica a se tornar membro do parlamento. E a razão para isso tem sim um fundo judaico. Há alguns anos, um jovem político austríaco, Sebastian Kurz, ganhou proeminência e tornou-se Chanceler. Nas eleições de 2017, ele convidou várias pessoas com atuações em amplo espectro da vida pública para aderirem e participarem da lista do partido às eleições, um grupo realmente bem diversificado, e eu tive o privilégio de ser convidado a concorrer nesta lista. Foi assim que cheguei ao parlamento. Kurz mudou em 180 graus a política austríaca em relação a Israel! A Áustria sempre havia mantido uma relação distante com Israel, talvez por uma sombra do passado que nunca foi efetiva e honestamente avaliada, mantendo-se sempre mais próxima do lado palestino, dos países árabes de forma geral. Ele modificou isso completamente. Hoje, a Áustria é um dos países mais próximos de Israel na União Europeia, e

Danielle Spera: “Os judeus contribuíram enormemente para o sucesso da Áustria, em todos os sentidos da palavra, não apenas econômico: na ciência, cultura, mídia e, também, na infraestrutura. Imagine que algumas das mais importantes ruas em Viena foram criadas por judeus! Tantas coisas que não são ditas, porque as pessoas na Áustria, ao pensar em judeus, conectam especialmente com a Shoá, o que reduz a nossa história aos anos entre 1933 e 1945…”

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www.vienna.at/danielle-spera-wurde-goldenes-ehrenzeichen-wiens-verliehen/7522525

eu fico muito contente de ter podido ser parte desta evolução, me faz feliz de verdade. E a cereja do bolo foi há um ano e meio, quando de uma crise com Gaza com bombardeios, o Chanceler ordenou que se hasteasse a bandeira de Israel no Parlamento, em sinal de solidariedade. E isso fechou para mim um ciclo, que se iniciou lá atrás, quando participei das demonstrações e protestos contra o encontro de Kreisky e Arafat. Hoje, posso me orgulhar de ter visto a bandeira de Israel ser usada em solidariedade sobre o Parlamento Austríaco.”

Avançando em nossa conversa, comentamos sobre os paralelos feitos entre a situação de Israel e a da Ucrânia. Alguns comparam a posição da Rússia, que afirma ser a Ucrânia parte de seu país, negando-lhe portanto o direito de existência independente, com a posição de uma parcela do mundo, em especial no universo árabe e muçulmano, que igualmente nega a Israel o direito de existir como país independente. Mas há também quem compare Israel com a Rússia, com acusações de ocuparem áreas pertencentes a outro país.

Martin descarta essa comparação de imediato. Para ele, são questões bem diferentes. E ainda que Israel conviva com essa situação desde sempre, com guerras, terror, ameaças do Hizbolá e do Hamas, com uma situação instável na margem oriental, ele não vê Israel sob risco real que ameace sua existência. E acrescenta de imediato: “Graças a Deus!”

Ele se mantém otimista quanto a Israel, seu tremendo desenvolvimento e sua posição como potência

Apesar do Partido da Liberdade ter uma história complicada de inspiração nazista, eles evoluíram na direção correta: condenando de forma veemente o período nazista, bem como todo tipo de antissemitismo.

regional. Segundo ele, para isso contribuem a autossuficiência quanto a fontes de energia, a obtenção de água potável via dessalinização, os avanços na tecnologia da informação e na agricultura, entre tantas outras coisas positivas.

Um novo impulso foi dado também pelos Acordos de Abraão, os tratados de paz com mais países árabes, recentemente implantados e que ainda podem ser estendidos. Ele também se pronuncia de forma clara contra o regime iraniano, que chama de criminoso, e mantém a esperança de que aquele governo caia, em futuro não muito distante, reduzindo com isso ainda mais as ameaças que pairam sobre Israel.

Um momento em que Martin, como parlamentar e judeu, foi bastante questionado ocorreu quando seu partido, o Partido Conservador do Povo (ÖVP), decidiu incluir em sua coalizão o Partido da Liberdade, cujo histórico de inspiração nazista era bem conhecido por todos. Nós o questionamos sobre essa decisão, inclusive se hoje, anos depois, sua

opinião permanecia a mesma, favorável a este acordo.5 Ele comenta: “Tendo nascido na Áustria e lá vivido toda a minha vida, conheço bem os partidos e sua evolução. Apesar do Partido da Liberdade ter uma história complicada, evoluíram na direção correta quando fizemos a coalizão com ele: condenaram de forma veemente o período nazista, bem como todo tipo de antissemitismo. Seu líder, Stracher, fez discursos muito claros, com o partido se distanciando de seu passado. A coalizão acabou se desfazendo por questões de corrupção, mas não houve qualquer manifestação antissemita ou posição contra Israel, bem pelo contrário.”

Sobre o novo governo em Israel, Martin tem uma posição clara e avalia que as eleições em Israel são 100% democráticas, sendo essa a premissa básica para qualquer análise. Ou seja, os israelenses votaram em Netanyahu sabendo quem ele é, que há casos pendentes na justiça contra ele e com quem ele faria coalizão. Para Martin, há hoje em Israel uma clara maioria da direita. Ele elogia, porém, os líderes do centro e centro-direita como Beny Gants e Yair Lapid, com os quais se encontrou e conversou em diversas oportunidades e de quem teve impressão muito positiva. Porém, não concorda com a posição deles de não fazer coalizão com Netanyahu [Martin nunca o mencionou como Bibi durante nossa conversa], uma vez que acredita que estaria nas mãos deles evitar acordos com a extrema-direita, não cabendo protestar quanto a isso posteriormente se não estiverem dispostos a construir uma opção que represente a maioria democraticamente

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eleita. Por outro lado, Martin faz uma observação curiosa. Acredita que pessoas consideradas extremistas na história do Estado de Israel, como Begin ou Sharon, acabaram por se mostrar estadistas quando lideraram o governo. “Lembro bem”, disse ele, “quando, em 1977, Begin ganhou as eleições pela primeira vez. As pessoas se revoltaram: ‘ele é um terrorista, foi do Irgun6 e tudo o que se sabia a respeito’. E veio a paz com o Egito e a devolução do Sinai! Hoje os progressistas em Israel o admiram, então a história de Israel mostra que é melhor esperar e ver o que eles de fato farão. Teremos que julgá-los por seus atos. Quando conversamos no parlamento e no gabinete sobre esse tema, ‘será que devemos fazer algo’, a conclusão foi ‘não, vamos aguardar os fatos’. E isso me parece sábio também no âmbito da União Europeia. Não vejo a Áustria tendo um movimento independente da

União Europeia no que tange a Israel. Vamos ver o que o governo fará, o que os políticos farão. Vamos manter um olhar aguçado sobre isso, mas confio muito na democracia israelense”.

Comentamos sobre um artigo7 escrito por ele a respeito da possibilidade de a União Europeia se tornar mediadora para a região do Oriente Médio. Mas, apesar de seguir interessado em que isso aconteça, ele não vê como uma realidade viável atualmente. Para ele, seria necessário quebrar paradigmas da abordagem padrão que a UE tem em relação a Israel e aos palestinos e ter uma visão mais abrangente e profunda da posição desafiadora enfrentada por Israel. Ainda que a Áustria, entre outros países, tenha mudado sua posição, outros relacionam Israel à ocupação, à opressão e se apegam à necessidade de formação do Estado Palestino em toda a margem

ocidental e Gaza, o que, para Martin, não é mais algo possível.

Sobre as questões que envolvem a imigração para a Europa e, em particular, para a Áustria, de países árabes, em sua maioria de muçulmanos, e como isso preocupa a comunidade judaica, Danielle demonstra que se envolve com o tema com paixão.

O primeiro passo, diz Danielle, é se dirigir a esses imigrantes e olhá-los de frente, o que ela fez quando esteve à frente do Museu Judaico, especialmente a partir de 2016. Sob sua liderança, criaram ali programas educacionais para esses imigrantes sobre a comunidade judaica, porque eles cresceram em regiões sob forte visão antissemita. “É como se judeu fosse igual a Israel, e Israel é igual a inimigo”, lamenta ela. “Então a primeira coisa a fazer foi oferecer uma abordagem distinta, indicando que agora eles vivem na Áustria, onde há uma comunidade judaica que não é sua

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Sinagoga em Viena, construída em 1825-1826

inimiga!”. Ao trazê-los ao Museu Judaico, Danielle e sua equipe conduziram um processo de mudança gradual de perspectiva, explicitando as semelhanças das suas histórias de vida com aquelas enfrentadas no passado pela comunidade judaica e que eles enfrentam agora: o desafio de se realocar e se adaptar. Segundo Danielle, “eles não tinham qualquer informação sobre o que significava ter sido judeu na Áustria no período nazista: correr risco de vida diário, perder sua identidade com a pátria, sua família, sua casa, seus bens!”. Para ela, foi possivelmente a primeira vez que eles tiveram a oportunidade de perceber uma conexão com o destino judaico. Foram muitas as vivências com os imigrantes, e todas muito positivas, ela assegura. Houve grupos que vieram diversas vezes, permitindo um diálogo mais contínuo e amplo. Fica claro o quanto Danielle se empenha, a partir de iniciativas dentro da comunidade judaica, como o Museu Judaico e a revista Nu , em acessar também um público não

Os imigrantes islâmicos não tinham qualquer informação sobre o que significava ter sido judeu na Áustria no período nazista: correr risco de vida diário, perder sua identidade com a pátria, sua família, sua casa, seus bens.

judeu. Ela entende que, ainda que seu papel de difusor de conhecimento e motivação interna para a comunidade seja importante, essas iniciativas são ainda mais relevantes para a sociedade mais ampla, que não tem o mesmo acesso à informação. Ela acredita firmemente na educação e aquisição de conhecimento como principal caminho para combater o antissemitismo; em permitir que, de

alguma forma, vivenciem o judaísmo e aprendam nossas tradições e história; em oferecer elementos que permitam identificar pontos em comum. Ela recebeu, por exemplo, grupos de mulheres muçulmanas, que ficaram surpresas ao perceber que o respeito e relacionamento familiar são similares no judaísmo e no islamismo, que se originam de culturas que se tangenciam, o que ocorre também quando falam sobre a comida, kasher e halal Uma curiosidade que Danielle nos traz é o hábito austríaco de manter louças separadas para carne e leite, não apenas em lares judaicos que guardam kashrut! O que ela gosta de provocar é a exclamação “Uau, não sabia que tínhamos isso em comum!”. Mesmo no grupo de profissionais que atuava com ela no Museu Judaico, havia pessoas com ótima formação e que questionavam: “mas afinal, de onde vem a religião judaica?”. De acordo com ela, “a falta de conhecimento é uma questão essencial e, por isso, precisamos ter esse

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amplo espectro de pessoas interagindo conosco e, é claro, a comunidade precisa estar aberta a isso”.8

Voltamos por um momento à relação da Áustria com a Shoá, tendo em perspectiva um movimento oficial hoje, na Polônia, que nega que o povo polonês teve alguma conexão com a Shoá. Ficamos curiosos acerca do que ocorreu e ainda ocorre na Áustria, levando em consideração a instalação, em 1995, de um fundo austríaco para a reparação das vítimas da Shoá e o caso da difícil restituição do quadro que Klimt pintou de Adele Bloch-Bauer, a sua sobrinha e herdeira, que se tornou um filme de bastante sucesso (A Dama Dourada, 2015). Danielle imediatamente se antecipa para responder.

De acordo com ela, apenas com a presidência de Kurt Waldheim, de 1986 a 1992, e sob a liderança do Chanceler Franz Vranitzky, de 1986 a 1997, iniciou-se de fato uma discussão sobre a Shoá que se espalhou do parlamento às “ruas” de Viena. Segundo ela, a legislação atual, no que tange à restituição das obras de arte roubadas/confiscadas no período nazista, está entre as melhores do mundo, muito respeitada em todos os lugares. Ela se ressente, porém, do tempo que passou até que a Áustria assumisse sua responsabilidade no tema. Martin concorda. Segundo ele, ainda que muitos austríacos tenham estado envolvidos em crimes de guerra (lembrando que o próprio Kurt Waldheim teve seu passado nazista revelado), até 1986 reinava o silêncio. Hoje, segundo ele, ao contrário, a Áustria possui consciência plena sobre o tema, a nova geração não restringe as discussões sobre a participação de austríacos na perpetração

dos crimes nazistas. Martin ainda acrescenta: “Você comentou sobre a Polônia e, recentemente numa conversa com o embaixador polonês, disse a ele que a Polônia me dá a impressão de estar hoje, no tema Shoá, no lugar em que a Áustria estava há 40 anos. Não reconhecendo, não sendo honesta com a responsabilidade que os poloneses têm na Shoá. E ainda pior, fizeram leis que proíbem mencionar isso. Não sou nem um pouco a favor da postura assumida pela Polônia, mas tenho esperança de que em algum momento a Polônia vai rever essa posição negacionista.” Quando estávamos encerrando, Martin comentou sobre a emoção de ter estado no Brasil e encontrado com uma parte da família que não via há muitos anos. E isso o fez pensar em como seria bom se pudessem trabalhar por uma maior proximidade entre os países da América do Sul e Europa, fora, é claro, Portugal e Espanha, que se mantêm próximos em função de uma história compartilhada. Apesar de a Áustria ser um país distante do Brasil, ele menciona que esse é um trabalho que ainda gostaria de fazer. Ele comenta sobre a oportunidade que existe agora de

avanço do acordo entre União Europeia e o Mercosul, acordo do qual ele foi um dos fomentadores pela Áustria. E finaliza: “Quem sabe nossas comunidades judaicas, daqui e de lá, podem apoiar a construção desse relacionamento…”

Notas

1 https://de.wikipedia.org/wiki/ Martin_Engelberg

2 https://en.wikipedia.org/wiki/Danielle_Spera

3 https://nunu.at/uber-uns/

4 https://www.jmw.at/en

5 Veja artigos de Martin Engelberg justificando a posição de seu partido e a crítica feita por uma das lideranças da juventude da comunidade judaica austríaca: https://www.haaretz. com/opinion/2017-12-19/ty-article/.premium/ in-austria-muslims-not-nazis-are-the-real-anti-semitic-threat/0000017f-f41d-dc28-a17f-fc3f9e640000; https://www.haaretz.com/opinion/2017-12-20/ty-article/.premium/ we-austrian-jews-must-not-normalize-nazis/ 0000017f-f45e-d5bd-a17f-f67e06ca0000

6 Irgun significa literalmente “Organização” e referencia a “Irgun haTsvai haLeumi”, ou seja, “Organização Militar Nacional”, o grupo paramilitar de direita que operou durante o Mandato Britânico na Palestina. 7 https://blogs.timesofisrael.com/ how-europe-can-become-a-player-in-the-middle-east/

8 Após o Kabalat Shabat, em que o casal esteve na ARI, houve um evento interreligioso com a presença, na sinagoga, de um grande número de visitantes de diversas religiões (cristãos, muçulmanos, de matriz africana), o que deixou Danielle especialmente muito bem impressionada pela oportunidade que se oferecia ali de convivência com o diferente.

ATID | ARI 53
Franz Johann Morgenbesser from Vienna, Austria, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons
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MEMÓRIA, AFETOS, RESISTÊNCIA

A beleza e o vigor da língua e da cultura Yiddish

Alíngua e a cultura Yiddish1 voltaram à cena nos últimos anos, com livros publicados, cursos, filmes, festivais de música, jornais online, peças teatrais, materiais de ensino, jogos, concursos de música e vídeos, apoio a estudantes, encontros de falantes, bolsas de estudo.

Músicos e atores cantam e atuam em Yiddish; professores, sociólogos, linguistas e escritores se dedicam ao ensino, à tradução e à pesquisa nas áreas da música, literatura, folclore, sabedoria; publicações das literaturas infantis e juvenis são escritas em Yiddish e clássicos da literatura universal são traduzidos para o Yiddish; universidades procuram preservar a memória, ensinar a língua e promover a criação literária, musical e teatral. Depois de quase extinta no século 20, a língua permanece, resiste, vive!

Vive nas lembranças e nos afetos que temos dos nossos pais e avós – a gute nacht ou a guite nacht (boa noite); shlof gezunterheit ou shluf gezinterhait (dorme bem); zai gezunt ou zai gezint (fica com saúde). Essas como outras palavras e expressões trazem votos de dormir bem, aproveitar bem, ter bom sono, bons sonhos, ficar com saúde, ditas no dialeto litvish, poilish ou volini, da Lituânia ou da Polônia. Como todas as línguas, o Yiddish tem dialetos.

O Yiddish vive em projetos de ensino, pesquisa e produção cultural para crianças, jovens e adultos. Persiste em ações que, além de resgatar o passado, têm o compromisso de atuar, no melhor sentido dado a esse verbo por Martin Buber: agir hoje, na atualidade, tornar atual. A internet passou a desempenhar um papel inesperado. Nos Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra, Alemanha, Suécia, Polônia, Lituânia, Israel, Argentina, Brasil, entre outros, observa-se a revalorização da língua Yiddish por jovens em 1 N. do E.: em português, iídiche. A opção pela grafia “Yiddish” pela autora deve-se ao fato de ser usada em artigos, publicações e pesquisas internacionais.

A dimensão cultural da língua Yiddish sempre circulou na vida cotidiana e no ensino: a presença da Yiddishkeit – a cultura Yiddish – marca canções, poemas, contos, romances, o folclore expresso em provérbios, ditos populares, anedotas.

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judaísmo cultura

instituições que viabilizam acesso digital gratuito a milhares de livros em Yiddish, a shows e conferências, a cursos presenciais e online, oferecidos ainda antes da pandemia. Essa presença da língua Yiddish no mundo e no Brasil de hoje nos provoca, convida à reflexão e à ação.

Mas em que contexto nasceu a língua Yiddish? Qual a sua história?

Hoje, a resistência da língua Yiddish acontece no ensino e difusão da língua e da cultura, com acesso à produção literária em muitos gêneros

Que instituições trabalham na resistência para que a língua não desapareça, criando espaços, tempos e materiais para que a cultura Yiddish seja conhecida e a língua não seja mais silenciada?

Para começar, vale registrar que há várias formas de transliterar a palavra שידִיי no alfabeto latino: Yiddish, ídiche, iídiche, ídish, yidish, jdish. A opção pela forma “Yiddish” se deve a essa ser a grafia usada em artigos, publicações e pesquisas internacionais. Vale lembrar ainda que a palavra שידִיי significa, em שידִיי, o nome da língua e da cultura, e também judeu, judia ou judaica. Ou seja, שידִיי é parte integrante e relevante da história e da identidade judaica.

Um pouco da história do Yiddish

Todas as línguas são marcadas pela pluralidade, de dialetos, registros, sotaques. Porém, mais que diversa, o Yiddish é língua amálgama ou língua de fusão. Fusão porque ela se formou do hebraico, alemão e línguas eslavas. Essa combinação originou seu léxico e vocabulário. O hebraico lhe deu também o alfabeto; a língua alemã, a estrutura, a sintaxe; e as línguas eslavas (russo, polonês, entre outras), além do vocabulário, fornece incontáveis expressões enfáticas e interjeições.

A origem da língua Yiddish data do século 10, em áreas de fronteira entre as atuais França e Alemanha. Naquela região, judeus vindos da Itália e de outros países românicos começam a falar o alto-alemão, misturando-o com elementos judaicos do francês e do italiano com o hebraico, a língua sagrada (loshn koidesh), e com palavras hebraico-aramaicas, ligadas a atividades diárias e comerciais. Nascia o jüdish-deutsch, “judeu-alemão”, nome que se alterou para iídisch-taitsch, de onde derivou o vocábulo “iídiche” (Guinsburg, 1996, p. 17). Os judeus dessa região eram chamados de ashkenazim (de Ashkenaz, a Alemanha) e falavam Yiddish.

Ora, os judeus sempre falaram muitos idiomas: nos tempos bíblicos, hebraico (loshn koidesh, língua sagrada reservada aos textos religiosos) e aramaico (usado na conversação cotidiana). Na era moderna, o Yiddish nasceu e se constituiu, segundo Benjamin Harshav (1994), num contexto de polilinguismo interno (os judeus falavam várias línguas) e externo. No shtetl (vilarejo) do Leste Europeu, a rua judaica (di yidishe gass), como a ela se referiam poetas, escritores, músicos, era ruidosa; nela se ouvia russo, polonês, romeno, húngaro. Nos grandes centros, porém, aprendia-se alemão, francês e, mais tarde, inglês.

Jargão, dialeto ou língua?

Inicialmente considerada um jargão e dialeto das línguas germânicas, o Yiddish deve a uma densa produção literária nos séculos 18 e 19 seu reconhecimento como língua. Essa diversa e rica produção literária em Yiddish é encontrada também na esfera da produção musical: muitas letras de canções são poemas musicados. Além disso, o Yiddish está longe de ser um dialeto do alemão, pois não existe língua Yiddish sem hebraico!

A dimensão cultural da língua Yiddish sempre circulou na vida cotidiana e no ensino: a presença da Yiddishkeit – a cultura Yiddish – marca canções, poemas, contos, romances, o folclore expresso em provérbios, ditos populares, anedotas. O humor judaico sempre foi humor em Yiddish. Rua barulhenta, praça onde convivem alegria e tristeza, trabalho e festas religiosas, expulsões e migrações, essa língua-passaporte (Guinsburg, 1996) se deslocou por tempos e espaços, nunca teve território, se fez e se refez nas comunidades, e seguiu, se espalhou, carregada na bagagem como o violino, as histórias, lendas, tradições. Mas além de falar, os judeus liam. Liam e leem livros e jornais que publicavam resenhas literárias, contos e capítulos de obras de escritores que faziam rir, chorar e pensar. Autores como Mendel Sforim, Scholem Aleichem, I. L. Peretz, Abraham Reisen, Itzik Manger, Abraham Sutskever, I. B. Singer eram e são lidos mundo afora. Sim, o Yiddish nunca teve território nem nacionalidade. Nos anos 1930, havia cerca de quinze milhões de judeus, dos quais nove milhões na Europa. Provavelmente,

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a maioria dos seis milhões de judeus assassinados falavam Yiddish. A Shoá (Churbn, em Yiddish: destruição) dilacerou a língua. Também o totalitarismo stalinista perseguiu, calou, matou escritores que escreviam em Yiddish, muitos executados na Noite dos Poetas Assassinados em 12 de agosto de 1952 – uma das tentativas de aniquilar a língua e a cultura.

Quase extinta pelo nazismo e pelo stalinismo, a língua Yiddish se espalhou pelo mundo, mas deixou de ser falada em comunidade. Apenas grupos de judeus ortodoxos falam Yiddish na esfera doméstica, sem reconhecer, porém, a produção literária, musical e teatral. Voltar-se hoje para a língua e a cultura Yiddish é movimento de resistência contra o silenciamento da língua, o apagamento da cultura e o esquecimento da história.

A língua resiste e se renova

O revival se deu nos anos 1970 com a música klezmer. A palavra klezmer, que significa “músico” em Yiddish, passou a se referir ao gênero, em que os instrumentos parecem falar Yiddish. Milhares de bandas foram criadas principalmente, mas não só, nos Estados Unidos e na Alemanha, misturando nigunim e tons contemporâneos, clássicos e modernos.

A partir dos anos 1990, e mais recentemente nos anos 2000, o ensino e a pesquisa se tornam intensos e se mostram em cursos, livros, jornais, seminários, em centros de pesquisa e universidades. Chamado de Academic Yiddish, sem a ilusão de que é possível recuperar o que foi destruído pela

barbárie, seu objetivo é favorecer que a língua e a cultura Yiddish sejam conhecidas, e devolvidas a crianças, jovens e adultos, ashkenazim e sefaradim, judeus e não judeus. É impedir que se cale a língua, que seja esquecida.

A resistência da língua Yiddish durante a Shoá se deu na escrita em diários, textos literários, músicas, versões de letras sobre a vida no gueto e nos campos de concentração, como também na luta de poetas e escritores que salvaram livros em Yiddish de bibliotecas, enterrando-os e voltando depois da guerra para resgatá-los (Fishman, 2018).

Hoje, a resistência da língua Yiddish acontece no ensino e difusão da língua e da cultura, com acesso à produção literária em muitos gêneros, com traduções e adaptações, com pesquisa na área da linguística, história, sociologia. Em diversos países, e também no Brasil, o que foi registrado em livros, músicas e peças teatrais, e ficou guardado na memória, em diários, cartas e arquivos, vem sendo resgatado, se torna acervo e é partilhado em cursos, encontros, seminários, festivais, publicações. Devolvemos assim às gerações mais jovens o que foi usurpado de nossos pais, avós e bisavós.

A internet já favorecia o acesso a vídeos, livros, filmes, músicas, peças; aproximava falantes e estudiosos. Com a pandemia, esse processo intensificou a experiência com a música, a literatura, a sabedoria, com as histórias de diferentes tempos e espaços, ouvidas, repetidas, contadas em romances, contos, poemas, peças teatrais, jornais, autobiografias.

Isaak Asknaziy, Public domain, via Wikimedia Commons ATID | ARI 57
Casamento judaico no shtetl

Contos autobiográficos escritos por mulheres é um tesouro recém-descoberto (Forman et al, 1994). Sua leitura revela histórias de vida de jovens judias que sofriam discriminação por serem mulheres, por serem escritoras e por escreverem em Yiddish. Retratam contextos diversos e adversos de mulheres que imigraram do Leste Europeu para a América, Inglaterra ou Israel. Muitas pesquisas se voltam para a tradução de Anna Margolin, Bella Chagall, Celia Dropkin, Chava Rosenfarb, Esther Kreitman, Kadja Molodowski, Katie Brown, entre muitas outras.

O universo do Yiddish hoje

Nu, es vet zain a farguenign oib ir vet kenen zen oder leienen oif iidish oder vegn iidish haint! (Nu, será um prazer se vocês puderem ver ou ler em Yiddish ou sobre Yiddish hoje!) “Nu”, assim como “oi vei”, não tem tradução.

Como uma pessoa que mergulhou de volta no Yiddish, permito-me compartilhar aqui algumas poucas sugestões. As leitoras e os leitores vão encontrar um universo infinito – ir kent glaibn (podem acreditar) – de publicações, músicas e pesquisas. Esses conteúdos podem

ser acessados na internet através das mídias as mais variadas ou em endereços que constam no rodapé deste artigo.

O YIVO/ Institute of Jewish Research2 é um grande centro de pesquisa e ensino. Criado em Vilna em 1925, onde na época já realizava pesquisas linguísticas e literárias, estudos e publicações, foi transferido para Nova Iorque em 1940. Até hoje oferece espaço e apoio para estudantes, pesquisadores e intelectuais. Mantém um imenso arquivo de fotos, diários, jornais, verbetes, uma verdadeira enciclopédia digital, bem como gravações de conferências, cursos, apresentações em Yiddish e inglês de variados temas.

O Yiddish Book Center3 resulta do trabalho de jovens estudantes de Yiddish que, há mais de 40 anos, se tornaram pakn-tregers (carregadores de pacotes). Liderados por Aaron Lansky, esses jovens reuniram mais de um milhão de livros de Yiddish que seriam jogados fora por pessoas, escolas, sinagogas, bibliotecas. Hoje, além de permitir

2 https://www.yivo.org

3 https://www.yiddishbookcenter.org/

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www.jewisheastend.com/yiddishtheatre.html

download gratuito dos livros digitalizados, o Yiddish Book Center oferece cursos de língua e tradução para/de Yiddish. O site é belo, como também a sede situada no College de Amherst, Massachusetts, EUA.4

O Workers Circle,5 Di Arbeter Ring (Círculo de Trabalhadores/as), foi criado pelo Bund, Partido Socialista Polonês Judaico. Voltado para a justiça social, a educação e a cultura Yiddish, o Arbeter Ring faz programas, encontros e cursos de Yiddish online há anos, ainda antes da pandemia. Hoje, há dezenas de turmas de ensino de Yiddish presenciais e remotas. Seus cursos dão a conhecer quem escreve em Yiddish hoje: Boris Sandler, Gitl Shaechter, Sholem Berger nos Estados Unidos; Emil Kalin, Dov Ber-Kerler, Velvl Tsernin em Israel; Evgeny Kissin, Yoel Matveyev na Rússia; Khayke Wiegand na Inglaterra.

O Congress for Jewish Culture6 (Der Yiddisher Kultur Kongres, Congresso para a Cultura Yiddish) dedica-se em especial às artes, música, teatro, literatura. O ator Shane Baker, que o preside, é incansável na defesa e atuação do Kongres e no apoio a projetos.

A League for Yiddish (Yidish Lig), jornais Forverts7 e In geveb8 nos Estados Unidos; Biblioteca MEDEM na França; Yung Yidish Library and Cultural Center e o jornal Yidishland em Israel; podcasts, periódicos e editoras de universidades em vários países – oi vei, es iz nisht meglech tsu redn vegn ale (oi vei, não é possível falar de todas).

Publicações recentes bilíngues e livros infantis belíssimos, como os da editora sueca Olniansky, mostram a criatividade gráfica desse campo.

Na América Latina, alguns destaques: o IWO de Buenos Aires realiza seminários e cursos de Yiddish. Em São Paulo, o teatro Yiddish, entre outras iniciativas da Casa do Povo,9 pioneira no Brasil na militância pelo

4 Nota do editor: a Devarim 12 (julho de 2010) publicou um texto sobre o Yiddish Book Center.

5 https://www.circle.org/yiddish

6 https://www.facebook.com/Kultur.kongres

7 https://forward.com/yiddish

8 https://ingeveb.org

9 https://catracalivre.com.br/agenda/casa-do-povo-sp/

Yiddish; exibições e encontros no Museu Judaico,10 Kleztival e Bubba Awards, concursos de música Yiddish, promovidos pelo Instituto de Música Judaica.11 De São Paulo, há também importantes publicações recentes.12

No Rio de Janeiro, a ASA (Associação Scholem Aleichem), uma das mais antigas na valorização da cultura Yiddish, o programa Ot Azoy: dos iz Yiddish (É isso aí, isso é Yiddish), interrompido com a pandemia, e o Núcleo Viver com Yiddish da PUC-Rio.13 Como tenho vivido em Yiddish, permito-me fazer um convite às leitoras e aos leitores para conhecer os projetos do Núcleo: os cursos de Yiddish;14 o grupo musical; as oficinas com crianças; a pesquisa “Mulheres que escreviam em Yiddish: memória, superação e resistência”, entre outras produções.15

E termino mit grois farguenign (com grande prazer) ao perceber que as muitas ações de, com e para o Yiddish hoje não cabem em um artigo.

Referências Bibliográficas

BUBER, Martin. O caminho do homem segundo o ensinamento chassídico. São Paulo, Realizações Ed., 2011.

CYTRYNOWICZ, H; GENHA, M. (Orgs). O conto Ídiche no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2007.

FALBEL, N. Literatura Ídiche no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2009.

FISHMAN, D. Os homens que salvavam livros: a luta para proteger os tesouros judeus das mãos dos nazistas. São Paulo, Vestígio, 2018.

FORMAN, F. et al. Found treasures: stories of Yiddish women writers, Second Story Press, Toronto, 1994.

GUINSBURG, J. Aventuras de uma língua errante. Campinas, Perspectiva, 1996.

HARSHAV, B. O significado do Yiddish. Ed. Perspectiva. SP. 1994.

KRAMER, S., SILVEIRA, A., RIAN, B. (orgs.). Likhtik (iluminado). Rio de Janeiro, 2018.

KRAMER, S.; ANTABI, M.; MILLER, I. Ensinar e aprender Yiddish hoje? Rio de Janeiro, Numa Editora, 2022.

LANSKY, A. Outwitting History: the amazing adventures of a man who rescued a million Yiddish books. USA, Algonquin Books of Chapter Hill, 2005.

10 https://museujudaicosp.org.br/

11 http://www.imjbrasil.com.br/

12 Cytrynowicz e Genha, 2007; Falbel, 2009.

13 www.vivercomyiddish.com.br

14 https://linktr.ee/cursos_yiddish_PUCRio

15 Kramer, Silveira, Rian (2018); Kramer, Antabi, Miiler (2022).

ATID | ARI 59
Sonia Kramer é Professora Emérita da PUC-Rio, onde coordena o Grupo de Pesquisa “Infância, Cultura e Formação”, o Curso de “Especialização em Educação Infantil”, o Curso Trajetórias Judaicas (Convênio da PUC-Rio com o Museu de Arte do Rio/MAR) e o “Núcleo Viver com Yiddish: pesquisas, cursos e projetos culturais”. Publicou livros e artigos inclusive sobre a língua e a cultura Yiddish.

DO LAMENTO AO CRESCIMENTO

Criando uma nova liturgia profundamente judaica para Iom Hashoá, com base na Hagadá de Pessach

Este texto foi publicado originalmente em 3 de fevereiro de 2023 na revista Tablet, em tabletmag.com, com o título A More Meaningful Way to Remember the Holocaust (Uma maneira mais significativa de lembrar a Shoá), e está sendo reimpresso por gentil permissão.

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Na semana passada, um editorial do jornal Courier-Journal de Kentucky viralizou por seu absurdo ridículo. Nele, um grupo de nobres servidores públicos explicava a idiotas primitivos como eu que o Dia Internacional da Memória do Holocausto1 não é, de fato, um dia para lembrar o Holocausto. Em vez disso, é um dia em que devemos “lembrar todo o discurso de ódio e toda a violência que é perpretada contra religiões, raças e gêneros, todos os atos cometidos no passado e que continuam sendo cometidos até hoje”. Isso porque “quando um grupo (ou uma pessoa) alega que o ódio e a violência contra si é mais importante do que contra outro grupo, ele acaba encorajando atos de violência contra terceiros”. Acima de tudo, como os autores colocam numa frase digna de redação do ensino médio, “os judeus não têm o monopólio da perseguição e das atrocidades”.

Não preciso me dar ao trabalho de desconstruir essa posição profundamente antissemita, porque pessoas boas na internet já o fizeram por mim, apontando, por exemplo, que “já existe o Dia Internacional de Comemoração e Dignidade das Vítimas de Genocídio e de Prevenção desse Crime”2 ou que “com o Mês da História Negra3 chegando, é bom lembrar que existem mais

1 N. do E.: Instituído pela ONU em novembro de 2005, com o nome oficial “Dia Internacional de comemoração em memória das vítimas do Holocausto”. No texto, Dara Horn usa o nome “Dia Internacional de Memória do Holocausto”, que parece desfocar a intenção original da ONU em lembrar as vítimas da tragédia. Contudo, o nome usado pela autora, além de ser o nome usado no artigo que ela cita, é o nome adotado para a data pela grande maioria de pessoas e instituições que observam ou comentam sobre o dia. Assim que, não obstante a intenção da ONU, o contexto usado pela autora está perfeitamente alinhado com o uso cultural da criação da ONU.

2 N. do E.: Instituído pela ONU em 2015 e comemorado anualmente em 9 de dezembro.

3 N. do E.: Criado nos Estados Unidos em 1970 e observado nos Estados Unidos e no Canadá em fevereiro e na Europa em outubro.

ATID | ARI 61
Dara Horn
judaismo contemporâneo
Não há “lição” a ser aprendida na lembrança da Shoá, apenas um profundo e doloroso luto pelos mortos e um profundo e antigo temor diante da presença do Eterno.

raças do que a negra” ou “neste 11 de setembro, também devemos nos lembrar de todos os outros desastres aéreos ao longo dos anos”.

Esse espetáculo barato é parte de um gênero de estupidez que tende a aparecer invariavelmente a cada 27 de janeiro. Ele me relembrou como o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto sempre me pega desprevenida. Por que esse dia existe, eu me pergunto todos os anos, quando a comunidade judaica tem seu próprio Dia da Lembrança do Holocausto, o Iom Hashoá?

Contudo, a diferença entre essas duas comemorações expõe um problema mais profundo, que é a forma como o mundo não judaico lembra o Holocausto, e a ideologia por trás da hipocrisia de artigos como aquele.

O Dia Internacional da Memória do Holocausto comemora a data em que as forças aliadas (neste caso, soviéticas) libertaram Auschwitz.4 As revelações da

4 N. do E.: O texto da resolução da ONU não menciona diretamente que a data foi escolhida por coincidir com o dia em que as tropas soviéticas entraram em Auschwitz. Contudo o texto refere explicitamente que a instituição da data foi realizada em comemoração ao sexagésimo aniversário da

magnitude do Holocausto e os subsequentes julgamentos dos criminosos de guerra nazistas deram início a uma estrutura internacional de Direitos Humanos que, em teoria, empodera instituições internacionais a prevenir e punir tais abusos.

A ideia de que cooperação e comprometimento internacional são necessários para proteger os Direitos Humanos foi uma “lição central do Holocausto” para grande parte do mundo não judaico. Muitos judeus são céticos em relação a essa ideia, por inúmeras razões. Para eles, o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto é mais profundo do que isso. Em sua raíz, o dia instituído pela ONU celebra não judeus “libertando” judeus, ao mesmo tempo em que honra os judeus precisamente por serem vítimas passivas e sem iniciativa – uma condição que torna impossível a dignidade humana. O mundo muitas vezes parece preferir seus judeus dessa maneira.

O Iom Hashoá é exatamente o oposto. O nome hebraico completo do dia é Iom Hashoá Vehagvurá (Dia do Holocausto e do Heroísmo). Sua data, na primavera, não comemora os judeus sendo “libertados” por outros, mas sim a heroica e fracassada revolta do Gueto de Varsóvia, que começou na primeira noite de Pessach em 1943. Ele não foi colocado no calendário judaico logo após Pessach apenas para evitar conflitos com o feriado bíblico, mas também para conectá-lo com as modernas observâncias israelenses de Iom Hazikaron (dia em lembrança dos caídos em defesa do moderno Estado de Israel e das vítimas do terrorismo perpetrado contra sua população) e Iom Haatsmaut (dia da independência de Israel), cada uma destas datas também comemorando os judeus como atores

“liberação dos campos de concentração nazistas” e ainda “honra a dedicação e a coragem mostrada pelos soldados que liberaram os campos de concentração” (apesar de que os Aliados não se opuseram militarmente à Alemanha nazista com o intuito de liberar os prisioneiros dos campos e evitar seu assassinato).

Dara Horn: “Os momentos que me abalaram foram inesperados. Uma leitura, intitulada “O centésimo milésimo livro”, descreveu uma celebração realizada no gueto de Vilna em homenagem ao centésimo milésimo livro retirado da biblioteca do gueto. Como autora, fiquei encantada em incluir essa passagem, que também apareceu no texto israelense. Mas ouvi-la lida em voz alta nessa reunião de judeus americanos, em meio a uma cultura americana mais ampla, em que a leitura continuada simplesmente não é um valor, me atingiu com força.”

//cjs.cas.lehigh.edu/content/april-27-2018-dara-horn-lecture 62

que moldam seu próprio destino coletivo. Essa abordagem gera alguns grandes problemas, é claro. Mas pelo menos esses problemas não envolvem desumanizar os mortos removendo deles toda e qualquer iniciativa.

Nos últimos anos, educadores americanos em pânico com a idade avançada dos últimos sobreviventes adotaram táticas cada vez mais desesperadas para reimaginar a educação da Shoá para o futuro. A mais famosa delas foi a criação de hologramas ativados por inteligência artificial a partir de sobreviventes agora falecidos. O mesmo problema paira em Israel, onde os sobreviventes também têm participado da educação e comemoração da Shoá. Mas lá, os líderes culturais escolheram um caminho diferente. E desde a semana passada, os judeus americanos também têm uma maneira de partilhar este caminho.

A cerimônia israelense foi projetada para ampliar o foco para além das histórias de resistência física e incluir experiências espirituais e emocionais, e também para incluir histórias de vítimas e sobreviventes sefarditas e norte-africanos.

com um diversificado grupo de artistas, rabinos, estudiosos, psicólogos e educadores, está hoje bem estabelecido na vida pública israelense, onde é usado como cerimônia de Iom Hashoá em ambientes institucionais como escolas, bases de exército e hospitais.

No ano passado, por meio do Instituto Shalom Hartman dos Estados Unidos, tive o privilégio de fazer parte de uma equipe que adaptou essa liturgia e ritual para as comunidades judaicas dos Estados Unidos. O produto final já está disponível ao público e ele é exatamente o oposto da visão edulcorada e genérica que entulha o Dia Internacional da Memória do Holocausto. O Hitkansut é profundamente judaico. E para minha surpresa, é comovente a um grau que eu pensei não ser possível alcançar.

Há dez anos, a aclamada romancista, poeta e diretora de teatro israelense Michal Govrin previu o problema ocasionado pela morte dos sobreviventes. Mas, ao contrário dos educadores nos Estados Unidos, ela não sonhou com hologramas ou turnês de realidade virtual em Auschwitz. Em vez disso, ela se baseou nos milhares de anos de experiência judaica ao lidar com a questão da Memória e fez o que os judeus sempre fizeram: reuniu mentes criativas e construiu uma liturgia e um ritual para o futuro que ela chamou de Hitkansut (encontro, em hebraico). O Hitkansut, que Govrin desenvolveu junto

O Hitkansut evita o problema da passividade judaica do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, escolhendo Pessach como seu modelo, ao invés do padrão “Tishá Beav” de luto comunal judaico. Sua liturgia assume a forma de uma Hagadá, com um texto central complementado por muitas e variadas leituras adicionais, além de pontos explícitos para participação coletiva e discussão. Tal como um Seder de Pessach, cada grupo, família ou instituição pode conduzir esse roteiro por diferentes direções conforme a visão dos participantes. Ainda mais importante, a liturgia do Hitkansut também

ATID | ARI 63
Institute Shalom Hartman Hitkansut, 2015

segue a estrutura da Hagadá de Pessach em seu caminho que parte do desespero e chega ao empoderamento. Govrin e seus colegas chamaram essa progressão de mikiná lekimá (המיקל הניקמ, do lamento ao crescimento). Os tradutores e adaptadores do Hitkansut experimentaram frases semelhantes em inglês e chegaram à formulação “da responsabilidade de lembrar para a lembrança responsável”.5

Como um Seder de Pessach, o Hitkansut inclui etapas fixas: começa com um convite (que ecoa o convite do tradicional Birkat Hamazon – as bênçãos após a refeição), segue com uma exploração da vida judaica pré-guerra por meio de memórias e músicas das diversas comunidades, e chega a um lamento (numa homenagem às Lamentações bíblicas, enfatizando testemunhos individuais e coletivos), que usa textos que estimulam a discussão sobre o confronto contra o mal.

O Hitkansut conclui com os entrelaçados conceitos judaicos de zachor e shamor (lembrar e preservar) e com apelos tradicionais à sacralidade da vida, tanto individual quanto coletiva. Sua última linha é a bênção tradicional sobre a criação divina do ser humano.6

Seus muitos componentes, repletos de visões sionistas e humanistas, fontes religiosas e seculares, textos tradicionais e inesperados, são projetados para serem flexíveis da mesma forma que uma Hagadá de Pessach o é.

5 Original em inglês: “From the responsibility to remember to remembering responsibly”.

6 םָדָאָה־תֶא רַצָי

Comunidades diferentes encontrarão nele diferentes ressonâncias e enfatizarão diferentes aspectos. Citações do Tanach, do Talmud e do Sidur, junto com três rezas tradicionais nas orações em lembrança dos falecidos: El Malê Rachamim, Izkor e Kadish, fazem parte do ritual central e também são entretecidas no texto.

Adaptar o Hitkansut para o público norte-americano envolveu muito mais do que apenas traduzí-lo. A cerimônia israelense foi projetada para ampliar o foco para além das histórias de resistência física e incluir experiências espirituais e emocionais, bem como para incluir histórias de vítimas e sobreviventes sefarditas e norte-africanos para seu público, principalmente o não ashkenazi

No caso dos judeus norte-americanos, enfrentamos um conjunto diferente de expectativas e necessidades. Nossa equipe descobriu, por exemplo, que as fontes em iídiche ressoavam de maneira muito diferente entre os judeus norte-americanos e israelenses, e que textos tradicionais que eram muito familiares a uns não eram tanto assim a outros. Também adicionamos material voltado para os americanos, como depoimentos de soldados judeus que participaram da Segunda Guerra Mundial. Mas a maior parte do trabalho de adaptação envolveu uma questão mais profunda do que a adaptação dos textos. Uma questão que os israelenses, que não vivem imersos em sociedades não judaicas, mal conseguem entender: o desafio levantado pelo velado antissemitismo de um mundo que chama os judeus de egoístas por quererem chorar seus próprios mortos. Precisávamos

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רֶשֲׁא םָלוֹעָה ְךֶלֶמ וּניֵהֹלֱא הָוֹהְי הָתַּא ְךוּרָבּ
(Baruch
Atá
Adonai Eloheinu Melech haolam asher iotser et haadam).
O desafio levantado pelo velado antissemitismo de um mundo que chama os judeus de egoístas por quererem chorar seus próprios mortos.
Institute Shalom Hartman Hitkansut, 2015

responder, pelo menos para nós mesmos, às vozes dos “filhos perversos” que escrevem coisas como o citado editorial patético, aqueles que perguntam, essencialmente: “O que tudo isso significa para você?”

Nós lutamos incessantemente com essa questão. Muitas vezes discordamos. A Hagadá do Hitkansut, como a Hagadá de Pessach, reflete essas divergências, cada uma com sua própria machloket leshem shamaim (argumento em nome dos céus). Ela compartilha a óbvia característica da Hagadá da Pessach escrita por um comitê, um encontro de contradições irreconciliáveis. Como a Hagadá de Pessach, que de fato não funciona como um livro, a simples leitura da liturgia do Hitkansut é a maneira inadequada de experimentá-la. Seu poder, como todas as práticas judaicas, provém de ser vivenciado em comunidade. E esse poder me pegou de surpresa.

Os tradutores e adaptadores do Hitkansut experimentaram frases semelhantes em inglês e chegaram à formulação “da responsabilidade de lembrar para a lembrança responsável”.

nervosas, embora todos nós fôssemos oradores públicos experientes.

“Eu sinto o hirá (אריה)”, disse um participante, usando uma palavra bíblica que, literalmente, significa temor; que, entretanto, se refere a um dos objetivos da vida espiritual judaica: o medo dos céus, o tremor reverencial diante do Divino, a consciência de Sua presença. Fiquei surpresa ao perceber que eu também o sentia. Momentos antes de começarmos, o organizador nos lembrou que, apesar da equipe de filmagem e das centenas reunidas online, “isso não é uma performance. Este é o nosso Hitkansut. Precisamos estar presentes!”.

Na primavera passada, no Iom Hashoá, eu, outros colaboradores e um um pequeno grupo de educadores e sobreviventes idosos nos reunimos para a pré-publicação do Hitkansut norte-americano no Instituto Hartman em Nova York. Junto conosco estavam centenas de participantes online.

Enquanto nos preparávamos para entrar ao vivo, várias pessoas da equipe expressaram como estavam

E presentes estivemos. Durante o ensaio reprimi as lágrimas, mas durante o próprio Hitkansut todos nós choramos abertamente atrás da câmera, mal nos segurando enquanto nos revezamos no microfone. Eu não havia considerado anteriormente as pessoas assistindo online, que me pareciam ser um público passivo. Quando a liturgia os levou pela primeira vez a compartilhar uma memória ou pensamento sobre a vida antes da Shoá, houve uma pausa, longa o suficiente para nos preocuparmos que ninguém tivesse algo a dizer. Então, a conversa online explodiu repentinamente, despejando centenas e centenas de nomes, imagens e ideias – coisas tão gerais quanto “toda a cidade de Baranovitch” e tão específicas

ATID | ARI 65

quanto “o casamento de meus pais em Salônica em 1939”, junto com os nomes de escolas e sinagogas e livros e peças de teatro e filmes e dinastias chassídicas e grupos de jovens socialistas e times de futebol sionistas. Quando a cerimônia levou as pessoas a compartilhar os nomes daqueles que foram assassinados, a lista de nomes continuou a aparecer durante todo o encontro, variando de pessoas famosas a artistas obscuros e inúmeras pessoas não identificadas como “o primeiro bebê da minha avó” – um poço sem fundo de almas. Mais tarde, as pessoas se recusaram a sair do Zoom, permanecendo online e compartilhando pensamentos muito depois do término do próprio evento. Não tivemos coragem de desligá-lo. Os momentos que me abalaram foram inesperados. Uma leitura, intitulada “O centésimo milésimo livro”, descreveu uma celebração realizada no gueto de Vilna em homenagem ao centésimo milésimo livro retirado da biblioteca do gueto. Como autora, fiquei encantada em incluir essa passagem, que também apareceu no texto israelense. Mas ouvi-la lida em voz alta nesta reunião de judeus americanos, em meio a uma cultura americana mais ampla, em que a leitura continuada simplesmente não é um valor, me atingiu com força. Ninguém num evento do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto incluiria um fato assim, eu me dei conta, porque judeus celebrando livros é tão contracultural agora quanto sempre o foi. Eu desabei completamente durante o canto de Eli, Eli, um poema de Hannah Senesh, a sionista húngara assassinada pelos nazistas em missão do exército britânico. Há muito eu havia descartado a música, um elemento básico da vida judaica institucional, como algo dolorosamente sentimental. Mas ela foi cantada pela rabina Angela Warnick Buchdahl.7 Três meses antes, a rabina Buchdahl havia respondido com calma e eficácia a telefonemas de um antissemita violento que mantinha judeus sob a mira de uma arma em uma sinagoga do Texas, um ataque que terminou quando os

reféns, judeus americanos, reagiram e se autolibertaram. Ninguém falou dessa história extremamente recente, mas ela simplesmente estava lá, como a antiga liturgia hebraica estava lá, e nós estávamos vivos dentro dela.

Perto do final do Hitkansut, o rabino Justin Pines,8 com palavras de improviso (porque, como um Seder, o Hitkansut não pretende ser um script estático), falou sobre seus ancestrais sobreviventes, assim como contou a história bíblica das parteiras hebreias Shifra e Puá, que desafiaram o decreto genocida egípcio de assassinar os recém-nascidos judeus, porque “as parteiras temiam a Deus” – elas sentiam o hirá. Ele citou o versículo da Torá dizendo que Deus recompensou essas parteiras estabelecendo casas para elas. “Eu sou da casa de Shifra e Puá”, disse ele.

Todos os judeus são da “casa” citada pelo rabino Pines, porque as comunidades judaicas só existem graças à bravura e à devoção, nos bons e nos maus momentos, daqueles que vieram antes de nós. Não há “lição” a ser aprendida na lembrança da Shoá, apenas um profundo e doloroso luto pelos mortos e um profundo e antigo temor diante da presença do Eterno. Por trás de toda lembrança internacional do Holocausto e de toda arrogante tentativa de aniquilação da experiência judaica, existem milhões de judeus mortos, pelos quais devemos lamentar, junto com judeus vivos que estão novamente sentindo o hirá de seus ancestrais. O exaustivo esforço de defesa contra esse ataque hipócrita deixou pouco espaço para o luto e menos ainda para sentimentos sublimes. O mundo pode ter seu Dia Internacional da Lembrança do Holocausto e celebrá-lo lembrando que todas as vidas importam. Mas no Iom Hashoá podemos nos reunir entre nós, tal como aquelas dedicadas parteiras, prontas para o futuro.

Dara Horn é autora premiada de cinco romances e da coletânea de artigos “People Love Dead Jews”, editado por W. W. Norton & Company em 2021. Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb. Todas as notas são do tradutor.

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7 Rabina Sênior da Central Synagogue de Nova York. 8 Diretor dos programas para liderança laica do Shalom Hartman Institute para a América do Norte.
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MISSÃO DESTINADA AO FRACASSO

Olhos vigilantes nas resoluções da ONU

Nascido em Montreal, Canadá, Hillel C. Neuer é advogado internacional, escritor e diretor executivo da UN Watch, ONG para os Direitos Humanos e de vigilância da ONU com sede em Genebra, Suíça. Neuer é o presidente fundador da Cúpula de Genebra para Direitos Humanos e Democracia, uma coalizão de 25 ONGs de todo o mundo.

A UN Watch foi criada em 1993 pelo advogado norte-americano e ativista pelos Direitos Humanos, o líder judaico Morris Abraham. Abraham trabalhou muito próximo a Martin Luther King e, nos anos 1960, foi uma figura de destaque no Movimento pelos Direitos Civis dos cidadãos afro-americanos, talvez a pessoa branca de maior destaque naquele movimento. Foi também ativo na ONU representando os Estados Unidos na Comissão de Direitos Humanos e, em 1989, foi nomeado embaixador norte-americano junto à ONU, em Genebra. Ele serviu em Genebra por quatro anos e, em seguida, teve a ideia de criar uma instituição independente para observar a ONU, com foco em duas áreas: uma universal, verificando se a ONU se mantém aderente aos princípios de sua carta fundacional, que é um documento muito nobre, idealizado por Eleanor Roosevelt e outros ativistas internacionais nos anos 1940; e uma particular, lutando contra a discriminação dos judeus e do Estado de Israel.

Hillel, qual sua motivação para trabalhar nesta arena tão complicada?

Eu entrei na UN Watch 11 anos depois de sua criação. Sempre fui muito entusiasmado por Israel e pelas causas judaicas. Quando eu era criança, surgiu o movimento em apoio aos judeus da União Soviética, que eram proibidos de emigrar para Israel. O inverno de Toronto é muito severo, os

Em 2022, houve uma única resolução contra o Irã, uma única contra a Coreia do Norte, uma única contra a Síria, mas 15 contra Israel. Em média, há de 15 a 20 resoluções por ano que condenam Israel, contra uma única a um daqueles países mais conhecidos pelo seu desprezo pelos Direitos Humanos.

ATID | ARI 69
Entrevista com Hillel Neuer
israel diplomacia

termômetros marcam -200, -300 C. Mesmo assim, os alunos da minha escola, a Hebrew Academy, marchavam semana após semana para a frente do consulado soviético no centro da cidade gritando One two three four, open up the iron door; five six seven eigth, let our people emigrate: Um, dois, três, quatro – abra a porta de ferro; cinco, seis, sete, oito –deixe meu povo emigrar. Quem organizava essas manifestações, a partir de um pequeno pódio com seu megafone em frente ao consulado, era o advogado hoje aposentado Irwin Cotler. Cotler foi um dos mais relevantes advogados pelos Direitos Humanos de todos os tempos. Ele defendeu Natan Sharansky e Nelson Mandela, entre outros. Mais tarde, quando eu entrei na faculdade de Direito McGill, Cotler foi meu professor e ali me dei conta de que queria fazer o que ele fazia. Ele é a minha principal inspiração, advogando pelos Direitos Humanos Universais, advogando pelos direitos do povo judeu e para que Israel tenha tratamento igualitário nos foros do mundo.

Uma outra fonte importante de inspiração é a minha família, que é profundamente sionista. Muitos familiares fizeram aliá, inclusive meus avós. A minha escola também teve um papel muito importante na minha formação judaica e sionista. Em resumo, eu cresci num ambiente

A ONU existe e não vai deixar de existir. Nosso objetivo não é nos preocupar com a sua existência, mas sim pensar como fazer com que ela funcione melhor. Nós acreditamos nos princípios da ONU, estamos felizes que exista um foro para as nações se encontrarem. Sem dúvida, precisamos de um lugar de encontro e coordenação.

muito comprometido com o povo judeu e com o Estado de Israel.

Quais são os grandes sucessos da UN Watch e também seus maiores fracassos?

Vou começar pelos fracassos. Nós estamos num lugar destinado ao fracasso! Há na ONU uma maioria automática contra Israel e, em muitos casos, também contra os Direitos Humanos.

Há 193 países na Assembleia Geral das Nações Unidas. Cerca de 150 deles votam sistematicamente e de maneira muito tendenciosa

contra Israel, em resoluções que não estão minimamente interessadas em trazer a paz e sim exclusivamente em demonizar Israel.

Em 2022, houve uma única resolução contra o Irã, uma única contra a Coreia do Norte, uma única contra a Síria, mas 15 contra Israel. Houve também seis resoluções contra a Rússia, pela invasão da Ucrânia e o bombardeio indiscriminado de população civil, mas esse foi um caso isolado. Em média, há de 15 a 20 resoluções por ano que condenam Israel, contra uma única a um daqueles países mais conhecidos pelo seu desprezo pelos Direitos Humanos.

As resoluções contra Israel nunca mencionam o Hamas, nunca mencionam a Jihad Islâmica, nunca mencionam o Fatah. São todas muito tendenciosas e, em grande parte, são votadas com uma maioria muito grande. Em alguns casos, os Estados Unidos e alguns países europeus se abstêm, mas a maioria é sempre muito significativa. O Brasil sob Bolsonaro foi um pouco mais equilibrado.

Então, esse é o contexto. Estamos destinados a fracassar. A luta política na ONU é diferente do embate num parlamento, onde você confronta argumentos. Na ONU, se você luta por tratamento igual para Israel ou por Direitos Humanos, na maioria dos casos, você vai falhar.

Mas é claro que fazemos todo o

Irwin

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Hillel Neuer: “Ali me dei conta de que queria fazer o que ele fazia. O advogado
UN Watch/Flick.com
Cotler é a minha principal inspiração, advogando pelos Direitos Humanos Universais, advogando pelos direitos do povo judeu e para que Israel tenha tratamento igualitário nos foros do mundo.”

possível para expor o que acontece para que as pessoas tenham ciência.

Temos uma nova ferramenta, um banco de dados: unwatch.org/database.

Ali, você pode ver exatamente como seu país votou nas resoluções sobre Israel e comparar com os votos de outros países. Você também pode mandar uma mensagem para o Ministro do Exterior do seu país, pedindo para ele ter uma posição mais equilibrada. Instamos os países a mudar seus votos automáticos.

Na lista de nossos sucessos está a liderança na campanha para expulsar o regime do Irã da Comissão de Direitos da Mulher. Iniciamos a campanha quando o regime foi instaurado há um ano e meio e, em 14 de dezembro de 2022, obtivemos uma votação positiva, o que foi um grande sucesso.

Também lideramos a campanha para expulsar a Rússia do Conselho de Direitos Humanos e tivemos sucesso em abril deste ano.

Um outro sucesso foi o bloqueio da representante do Catar para presidência do Fórum de Direitos

Humanos. Nós revelamos o fato de que ela odeia gays, já tendo expressado publicamente mais de uma vez que “Deus os amaldiçoe”. Também revelamos que ela odeia judeus, uma vez que declarou que foi educada desde criança a ver os judeus como inimigos e que considera isso algo positivo. Nós expusemos tweets dela advogando pelo assassinato dos judeus e outras dezenas de manifestações odiosas semelhantes. Sua conta do Twitter em árabe tinha dezenas de milhares de seguidores. Depois das nossas revelações, ela cancelou a conta.

Por tudo isso, ela não foi eleita para o cargo, que foi ocupado pelo representante das Bahamas. Diferente de Genebra, onde ela foi humilhada, no Catar houve uma forte reação a seu favor, afirmando que ela perdeu o posto, mas é uma heroína, pois defende os princípios e valores do país. Eu me pergunto, que valores seriam esses? Odiar judeus e gays? O Catar é um país muito rico que, normalmente, consegue o que quer. Nesse caso, entretanto, eles foram derrotados.

Também expusemos a incitação ao ódio, antissemitismo e terrorismo perpretado pelos professores da UNRWA [a agência de socorro e trabalho para os palestinos]. A agência reconheceu que tem problemas no recrutamento de seu pessoal e uma boa quantidade desses professores foi suspensa.

A ONU está cumprindo o seu papel? Se não está, ela tem razão de existir?

A ONU existe e não vai deixar de existir. Nosso objetivo não é nos preocupar com a sua existência, mas sim pensar como fazer com que ela funcione melhor. Nós acreditamos nos princípios da ONU, estamos felizes que exista um foro para as nações se encontrarem. Sem dúvida, precisamos de um lugar de encontro e coordenação, como vimos agora com a questão da pandemia. Eu não sei dizer se a Organização Mundial da Saúde fez um bom trabalho ou não, mas é óbvio que precisamos de cooperação e coordenação.

Quando a Rússia invade a Ucrânia e quando o Irã mata mulheres que protestam, nós mobilizamos o mundo para que ele expresse sua opinião e, nesses casos, a ONU sim fez coisas boas. No caso do Irã ainda não foi o suficiente, mas algo está acontecendo. Foi criada uma comissão de inquérito, o que é apenas o começo, mas já é bom.

Contudo, há casos em que a ONU faz coisas terríveis. Por exemplo, com relação a Israel, a ONU dá força aos terroristas. Aqui na frente do meu escritório em Genebra, no Comitê de Direitos Humanos, eles criaram uma comissão de inquérito que incentiva o terrorismo. O

ATID | ARI 71
Posto de observação da ONU em território israelense ao sul do planalto do Golan. O posto tem visão tanto da fronteira entre Israel e Jordânia como da linha de armistício entre Israel e Síria. Foto: Raul Cesar Gottlieb em fevereiro de 2023.

Hamas sabe que se disparar milhares de foguetes contra Tel Aviv, Sderot e outras cidades, Israel vai retaliar alvejando os locais de onde esses foguetes são lançados, que são próximos de áreas civis palestinas. O Hamas sabe que, no momento em que isso acontecer, a mídia vai se voltar para Israel e que grupos como a Anistia Internacional e o Humans

Right Watch, que foram sequestrados, vão reagir de forma equivocada. Isso vai parar na ONU, que por sua vez vai dizer que a culpa é de Israel.

E também em casos não relacionados com Israel, a ONU não é boa. 70% do Conselho dos Direitos Humanos é composto por ditaduras.

Algumas terríveis, outras menos terríveis, mas mesmo assim são 70%!

Temos a China, que é uma ditadura terrível, Cuba que é um Estado policial, Eritreia, Líbia, Catar, Cazaquistão, Paquistão. Isso não é nada bom, mas na minha opinião temos que lutar para que nossos países [ele se refere a países democráticos] façam a coisa certa.

Por exemplo, acerca da votação para expulsar o Irã do Conselho de Direito das Mulheres, alguns países europeus estão indecisos sobre como votar. Esses países afirmam não gostar de expulsões. O Ministro do Exterior holandês, por exemplo, diz que não sabe se expulsar é uma boa solução. Nós temos então que trabalhar com esses países, como a Holanda, com os Estados Unidos, com o Brasil, com a França, para que façam a coisa certa.

A resposta é bloquear os representantes das ditaduras, fazendo com que nossos países não fiquem passivos.

Como votam os países

Uma seleção dos votos de alguns países

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Gráficos e informações do site www.unwatch.org/database/ Brasil 74% contra Israel 18% abstenções 8% pró Israel Argentina 91% contra Israel 9% abstenções 0% pró Israel Uruguai 78% contra Israel 22% abstenções 0% pró Israel Estados Unidos 0% contra Israel 6% abstenções 94% pró Israel Canadá 3% contra Israel 13% abstenções 84% pró Israel Austrália 20% contra Israel 40% abstenções 41% pró Israel Reino Unido 71% contra Israel 22% abstenções 7% pró Israel França 72% contra Israel 28% abstenções 0% pró Israel Alemanha 71% contra Israel 25% abstenções 4% por Israel China 100% contra Israel 0% abstenções 0% por Israel Índia 91% contra Israel 9% abstenções 0% pró Israel Japão 78% contra Israel 22% abstenções 0% pró Israel

Qual é o argumento para a não expulsão das ditaduras dos comitês?

Argumenta-se apenas, como você disse anteriormente, que “a expulsão não é uma boa solução”, ou há algo mais consistente?

Por exemplo, o Ministro do Exterior da Holanda fez um discurso no parlamento dizendo três coisas. Em primeiro lugar, ele afirmou que o Comitê do Status da Mulher (CSW, em inglês) é um organismo que tem como objetivo conseguir um acordo com os “menos conscientes”. Ele não chama de ditadura um país que mata manifestantes, mas sim de “país menos consciente”. Esse é o argumento da “grande tenda” [big tent], onde todos tem que estar dentro. Eu não aceito esse argumento, porque nem todos precisam ser membros do comitê, apenas 45 países. Os demais podem funcionar como observadores. Mas eles

A carta da ONU diz mais ou menos isso, ela diz que o país-membro tem que ser “um país que ama a paz”. Contudo, a prática nunca foi de reunir apenas as democracias. Desde o princípio, a Rússia sob Stalin teve um assento não apenas na ONU, como também no Conselho de Segurança.

procuram consenso e assim todos têm que estar dentro, o que produz resoluções que não atingem o problema.

A desproporcionalidade anti-Israel

O segundo argumento foi pior. Ele disse “eu não sei o que a expulsão vai fazer de bom”, o que é ridículo, porque para a população que está sofrendo no Irã a expulsão foi muito importante. E o terceiro argumento foi [e Hillel começa a rir] “temos que ser consistentes: se vamos expulsar o Irã, temos que expulsar muitos outros”. Ele está certo nisso, é claro, mas a questão não é essa, mas sim fazer a coisa certa. Agora expulsamos o Irã que está promovendo uma repressão terrível, depois pensamos nos outros. É a primeira vez que temos os votos para expulsar um membro de um comitê, não vamos deixar o ótimo ser o inimigo do bom.

Quando a Arábia Saudita foi eleita há cinco anos, a Ministra do Exterior da Suécia, Margot Wallström, disse: “você não pode querer que apenas a Suécia e a

ATID | ARI 73 Resoluções condenatórias do Conselho de Direitos Humanos 2006 - presente Paquistão 99 12 0 41 1 0 15 3 0 13 0 0 0 4 0 Israel Síria Coreia do Norte Irã Cuba Eritreia Sudão Venezuela China Rússia Qatar Arábia Saudita Turquia Zimbábue
Líbia
Gráficos e informações do site www.unwatch.org/database/ Resoluções condenatórias da Assembleia Geral 2005 - presente 140 22 0 7 9 0 8 0 0 10 0 0 7 0 0 Israel Irã Coreia do Norte Síria Mianmar Rússia Estados Unidos China Cuba Qatar Turquia Paquistão Venezuela Zimbábue Jordânia 8 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Israel Irã Arábia Saudita Yemen Paquistão Síria Qatar Turquia Mauritãnia Egito Marrocos Líbano Mali Chade Resoluções
-
condenatórias da Organização Mundial da Saúde 2015
presente

Como vota o Brasil numa seleção de três dos 23 tópicos listados no UNWATCH/database

Finlândia estejam no comitê, precisamos dos outros países para que eles possam aprender e aprimorar” [Hillel ri de novo]. Como se Venezuela, China ou Rússia fossem aprender e se aprimorar apenas por estar no Comitê de Direitos Humanos! – Ah sim, é claro! Esses países são ditaduras porque não sabem como construir uma democracia. Eles almejam ser democráticos, mas apenas não sabem como chegar lá…

A propósito, isso é apenas o que eles falam em público. O Ministro do Exterior da Bélgica declarou “precisamos construir uma big tent [ou seja, incluir todos]”. Entrementes, ficamos sabendo que a mensagem que o representante da Bélgica recebeu de Bruxelas dizia “vote na Arábia Saudita para o Comitê do Status da Mulher e, ao mesmo tempo, diga expressamente

aos sauditas que nós votamos neles”.

Ou seja, talvez o voto não se baseia apenas em questões de direito e justiça, e sim em outros interesses.

Isto não derrota o propósito original da ONU que era o de reunir apenas as democracias?

A carta da ONU diz mais ou menos isso, ela diz que o país-membro tem que ser “um país que ama a paz”. Contudo, a prática nunca foi de reunir apenas as democracias. Desde o princípio, a Rússia sob Stalin teve um assento não apenas na ONU, como também no Conselho de Segurança. Ou seja, sempre houve um ajuste entre os ideais e a “Realpolitik” [política ou diplomacia baseada principalmente em considerações práticas, em detrimento de noções ideológicas].

Então a ONU vai ser assim para sempre. Ela não vai mudar?

Ela reflete o mundo como ele é. Claro que eu espero que Putin desapareça do cenário, que o atual regime do Irã caia. As coisas podem mudar. Mas a ONU reflete o mundo que temos hoje. Não há responsabilidade democrática. E é por isso que a UN Watch é tão importante, pois promove a responsabilidade democrática. Exige, pelo menos, um pouco de responsabilidade democrática.

Não há a menor dúvida que o trabalho da UN Watch é muito importante. Muito obrigado pelo seu tempo, pelo lindo banco de dados unwatch.org/database e pela entrevista inspiradora. Precisamos de mais pessoas como você no mundo. Muito obrigado a vocês.

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Setor pelo Direito dos Palestinos 2022 No 2021 N/A 2020 No 2019 No 2018 Abstain 2017 Yes 2016 Yes 2015 Yes UNRWA (Agência de
Palestinos) Resolução Pacífica da Questão da Palestina 2022 Yes 2021 Yes 2020 Yes 2019 Yes 2018 Yes 2017 Yes 2016 Yes 2015 Yes 2022 Abstain 2021 Abstain 2020 Abstain 2019 Abstain 2018 Yes 2017 Yes 2016 Yes 2015 Yes
Socorro e Trabalho para os
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BEIT MIDRASH ZEHUT

Engajando a identidade judaica em jovens adultos pelo estudo da Torá com lentes progressistas

Ao subir as escadarias da sinagoga mais antiga das Américas, localizada em uma linda rua do século 17, é possível ouvir vozes vibrantes recitando e cantando rezas com entusiasmo, seguidas de discussões acaloradas sobre textos da tradição judaica. E não, não falo de espíritos dos judeus holandeses que chegaram no Recife há 400 anos, mas de um grupo de jovens da contemporânea comunidade judaica da cidade. Semanalmente, em um espaço onde o tempo some, um grupo formado por mais de quarenta jovens se reúne para imergir na tradição judaica e ter um momento de comunidade e reflexão em grupo, fortalecendo suas identidades e laços com a religião.

Esse espaço se chama Beit Midrash Zehut, uma iniciativa feita por e para os jovens da comunidade judaica recifense que periodicamente se encontram para ter um momento de tefilá com música, discussões, aulas de conteúdo judaico e o principal, o estudo da Torá, utilizando o chumash Plaut, traduzido pela União do Judaísmo Reformista na América Latina (UJRAmLat). O projeto é formado pelo Zehut , grupo judaico de jovens adultos do Recife vinculado ao Tamar, a frente de juventude pós-tnuá do movimento reformista, e o Gaavah , coletivo judaico LGBTQIA+ brasileiro.

A questão que surge ao observar jovens adultos, com suas rotinas tão ocupadas, mas tirando um tempo da semana para se envolverem com uma atividade tão tradicional, é: o que há naquele espaço que os faz quererem estar ali?

A resposta é que o Beit Midrash é onde não só a identidade e conhecimento judaico são desenvolvidos, mas as reflexões e experiências de vida de seus integrantes são trazidas e costuradas a essa imersão na tradição. Naquele espaço, toda a diversidade de vivências é contemplada como uma forma de

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judeus do brasil
ATID | ARI 77
Interior e fachada da Sinagoga Zahal Zur Israel, em Recife. Wilfredo Rafael Rodriguez Hernandez, CC0, via Wikimedia Commons Ricardo André Frantz, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

enriquecer o judaísmo de todos, ao mesmo tempo que compartilham de uma única identidade ali fomentada e exercida. No Beit Midrash, aprendemos a viver um judaísmo coletivo, mas que respeita o fato de que para viver uma vida judaica, precisamos ter uma forma autêntica de enxergar nossa tradição.

O aforismo que guia nosso Beit Midrash está na Amidá. No fim dela, recitamos ten chelkêinu betoratêcha, pedindo que Deus nos mostre nossa parte em Sua Torá. O que isso quer dizer?

Semanalmente, em um espaço onde o tempo some, um grupo formado por mais de quarenta jovens se reúne para imergir na tradição judaica e ter um momento de comunidade e reflexão em grupo, fortalecendo suas identidades e laços com a religião.

Os rabinos em Bamidbar Rabá (19:7), uma obra midráshica sobre o livro de Números, exploram o momento em que Moshé subiu ao Monte Sinai, tentando imaginar o que pode ter acontecido quando chegaram lá. O rabino Chanina conta uma versão da história:

“Rav Acha disse em nome de Rav Chanina: Quando Moshé ascendeu ao céu, ele ouviu a voz do Sagrado, bendito seja Deus, enquanto Deus está sentado, imerso no estudo da seção da Torá que trata da ‘vaca vermelha’, e citando a lei em nome de seu autor – assim Rav Eliezer diz [na Mishná Parágrafo 1:1]: o bezerro de pescoço quebrado deve ter um ano de idade e a vaca vermelha deve ter dois anos de idade.”

Bamidbar Rabá 19:7

Quando Moshé chega ao topo da montanha, ele ouve Deus, que parece estar estudando. E conforme ele se aproxima, fica claro o que Ele está estudando: Deus está ioshev veossek (sentado e imerso – ambos os verbos no tempo presente), estudando e citando uma mishná de autoria do Rav Eliezer. Conforme Deus aprende, Ele credita ao Rav Eliezer este ensinamento: “Rav Eliezer diz: o bezerro de pescoço quebrado deve ter um ano e a vaca vermelha deve ter dois anos” (Mishná Pará 1:1).

Por que Deus estaria aprendendo a Mishná no Monte Sinai? Por que Deus precisaria aprender os ensinamentos do Rav Eliezer para entender a Torá (que Ele mesmo teria escrito) com mais precisão? Esse é um momento particularmente ultrajante da imaginação rabínica, no qual nossos sábios sonham com sua própria habilidade

de ensinar a Deus a Sua Torá. Aqueles familiarizados com o gênero do midrash, no qual os textos existem em constelações atemporais de criação de significado que se movem para a frente e para trás, sabem que isso é típico dos sábios; eles fazem isso o tempo todo enquanto leem a si mesmos e suas realidades nas histórias que herdaram. Aqui, o rabino Chanina mostra como é ser um leitor da Torá, que lê sua própria história na narrativa onde ela não existia anteriormente. Mas esse não é o fim e não basta ler nossas histórias dentro do passado e descobrir onde podemos ter existido durante todo esse tempo.

O Maharal de Praga, sábio do século 16, comenta sobre essa estranha subversão do tempo e da autoridade:

“E há o que perguntar sobre essa ideia de que Deus estaria citando a halachá em nome de uma pessoa. Mas essa leitura é ensinada em nome do Rav Eliezer porque a ideia da ‘vaca vermelha’ é tão complexa que só poderia ser entendida por alguém com tal capacidade de aprender e entender a complexa Torá como Rav Eliezer, que é notoriamente brilhante entre os sábios.

E Deus afixou a Torá de forma que houvesse dentro dela ensinamentos a serem descobertos, e deu a cada pessoa uma sabedoria única para entender e trazer esses ensinamentos de acordo com o que seria adequado para eles, e isso é, de fato, a origem da liminar para ensinar a Torá em nome Daquele que a ensinou.”

Parafraseando o Maharal em Derech Chaim 6:6.

Em outras palavras, Rav Eliezer foi capaz de descobrir essa parte essencial da Torá e ensiná-la a Deus, por causa de sua perspectiva, experiência e sabedoria únicas – que são apenas dele. O Maharal diz que a razão pela qual Deus está citando a Mishná em nome do Rav Eliezer é porque somente Rav Eliezer poderia ter revelado essa Torá; Deus nomear isso como ensinamento do Rav

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Eliezer, dizendo seu nome, é parte de visibilizar e honrar a maneira pela qual somente Ele poderia ter trazido essa Torá ao mundo.

Isso é o que se sente profundamente quando nos reunimos no Beit Midrash Zehut. Em sua essência, este projeto é sobre passar o tempo ioshvim veossekim batorá, sentados e imersos na Torá que somente nós podemos trazer ao mundo e nomeá-la da maneira que Deus a nomeia, em nossos nomes através de nossas experiências. Conforme a vontade de Deus, ensinamos uns aos outros e revelamos a Torá que nosso povo tem a oferecer. A interpretação que uma pessoa desenvolve sobre a tradição pode ajudar na construção do meu judaísmo e vice-versa.

Cada vez que aprendemos a Torá, somos transformados pelo texto e o texto é transformado por nós. Cada vez que estudamos, estamos lançando uma nova luz sobre o texto, revelando partes da Torá que podem ter permanecido ocultas se não as tivéssemos encontrado.

está acontecendo no mundo, o que está acontecendo em nossas vidas, é um componente crítico para nosso aprendizado.

Esse ambiente envolvente traz as sensações de pertencimento, comunidade e lugar seguro, que na sociedade contemporânea, com tantas demandas que nos obrigam a sobreviver e focar nessa sobrevivência, nos é tirada a possibilidade de vivenciá-las. Sensações essas tão necessárias para nossa vivência humana, principalmente em uma fase da vida em que estamos transformando nossas relações, construindo nossos lares e criando nossas raízes.

Cada vez que aprendemos a Torá, somos transformados pelo texto e o texto é transformado por nós. Cada vez que estudamos, estamos lançando uma nova luz sobre o texto, revelando partes da Torá que podem ter permanecido ocultas se não as tivéssemos encontrado. Quando dedicamos nosso aprendizado, estamos convidando nossos entes queridos, nossos ancestrais, nossas causas, nossos sonhos, para se sentar à mesa conosco em chavrutá (método de estudo em dupla) e transformar a Torá. O que estamos trazendo para o Beit Midrash, o que

Um dos motivos de o Beit Midrash Zehut existir é mostrar que esse apreço por um ambiente diverso e inclusivo é radicalmente judaico, na qual muitas vezes não é apresentado como uma possibilidade em várias comunidades, o que acaba afastando as pessoas. É possível criar um ambiente judaico em que não seja necessário que alguém deixe suas características pessoais e sua integridade do lado de fora da sinagoga para apenas deixar entrar sua identidade judaica. Muito pelo contrário, elas podem enriquecer aquele lugar. Se vemos as pessoas não como consumidoras de judaísmo, mas cocriadoras de judaísmo, tudo se transforma.

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Beit Midrash Zehut

Sendo o Beit Midrash Zehut criado a partir da colaboração do Gaavah , coletivo judaico LGBTQIA+ brasileiro, há uma grande ênfase na criação de um espaço em que abrace pessoas de todos os backgrounds, principalmente aqueles que, por muito tempo, se sentiram sem a possibilidade de exercer sua identidade judaica por ideias conservadoras vindas da própria comunidade. Por esse realce, muitas pessoas que não são LGBTQIA+ viram esse espaço de prática judaica como um lugar seguro até mesmo para começar do zero sua construção pessoal do que significa o judaísmo.

Se eu acredito em uma Torat Emet, em uma Torá verdadeira e uma Torat Chaim, uma Torá viva e vivificante, mas não me vejo refletido no texto, sou realmente um receptor dessa tradição?

chidushim, ou tantas novas interpretações da Torá que enriquecem imensamente a conversa. E o mais incrível sobre isso é que tantos desses chidushim vêm das margens, de judias e judeus que fizeram a pergunta: “Se eu acredito em uma Torat Emet, em uma Torá verdadeira, e uma Torat Chaim, uma Torá viva e vivificante, mas não me vejo refletido no texto, sou realmente um receptor dessa tradição?”

Há um ensinamento chassídico que diz que, como indivíduos, cada um segue seu próprio caminho na vida. Seu caminho não é o meu caminho. Meu caminho não é o seu, mas juntos criamos uma bela tapeçaria diversificada que é o povo judeu. Portanto, se todas as nossas partes na Torá, se todas as nossas interpretações não estiverem juntas, não revelaremos a Torá em sua plenitude ao mundo. Vivemos numa época em que temos o privilégio de receber tantos novos

Assim, esse Beit Midrash aberto a todas as pessoas se torna um espaço efetivamente comunitário. Aqui, todo jovem judeu tem seu espaço para contribuir e desenvolver seu judaísmo autêntico de forma coletiva, fortemente progressista e radicalmente judaica. Desejamos que mais espaços como esse possam surgir em nossas comunidades, onde possamos estar ioshevim veossekim, habitando e imergindo nessa linda e complexa tradição, fazendo como Rav Eliezer, desenvolvendo e mostrando uma nova Torá que sempre existiu, mas ainda não havia sido revelada. Garantindo o futuro de nossa tradição com lentes que visam novos, grandes e diferentes horizontes de interpretação.

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Fotos Beit
Zehut
ANDRÉ LIBERMAN é gestor de projetos educacionais na UJR-AmLat, coordenador do Gaavah, coletivo judaico LGBTQIA+ vinculado ao Instituto Brasil-Israel, e cofundador do Beit Midrash Zehut, grupo de estudos judaicos progressista para jovens adultos no Recife.
Midrash

Liessin 2023 Liessin 2023

Nosso futuro nós construímos hoje.

O novo Infantil do Liessin está pronto para os nossos pequenos, trazendo o que há de mais moderno para as próximas gerações.

Bolsa para talit

Argélia, segunda metade do séc. 19. Utilizada há quatro gerações em uma mesma família por ocasião da Bar Mitzvá, quando o menino recebe seu primeiro talit.

Foto: Guilherme Rozembaum, Acervo Projeto Heranças e Lembranças, imigrantes judeus para o Rio de Janeiro, Museu da Pessoa/SP.

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LAZMAN HAZÊ

O drama dos museus

Oaspecto espiritual de nossa existência está fundamentado em uma conexão ancestral, através de um passado compartilhado e um presente imaterial, invocado e outorgado por um ser sobrenatural. A expressão “nosso Deus e Deus de nossos patriarcas e de nossas matriarcas” revela essa conexão atemporal e contínua, com origem e sem fim.

A espiritualidade, como conhecida ou almejada pelo ser humano, independe de nossa engenhosidade. O mundo material, entretanto, é a manifestação elementar da habilidade humana de criar e experimentar, de expressar-se e relacionar-se com seu entorno e seus semelhantes. A produção de um parafuso ou uma pintura é decorrência de nossa capacidade particular de observar, compreender e interagir.

Os objetos de uso cerimonial ou ritual encontram-se na tangente desses dois mundos, o espiritual e o material. Eles são nossos lembretes de uma camada intocável da existência.

No Judaísmo, esses objetos não são intrinsecamente sagrados. Definitivamente, não são sagrados. Até mesmo as Tábuas da Lei, objetos advindos diretamente de Deus, foram quebradas por Moisés ao descer do Monte Sinai pela primeira vez e ver o povo adorando o bezerro de ouro. O relato bíblico, mesmo perante esse momento dramático e ameaçador, não preserva as Tábuas, e derrete o bezerro!

O texto bíblico está repleto de minúcias descritivas acerca de construções, utensílios, comportamentos, pureza de coisas e pessoas. Nada disso é condição ou manifestação de Deus, mas coloca o homem/a mulher na sintonia exata para reconhecer, honrar e se inserir na Criação Divina.

ATID | ARI 83
Charles Steiman
judaísmo contemporâneo
Guilherme Rozenbaum

Tempo x espaço

O calendário judaico é mais do que uma organização cronológica de festas e eventos. Ele foi concebido como uma estrutura de interação com o mundo. O tempo no judaísmo é sagrado: santificamos o Shabat, o sétimo dia, um período e não um lugar.

E o tempo é santificado pelo verbo, que exprime ou provoca uma ação num determinado momento. Pela palavra é executada a Criação Divina. O verbo — invocação da espiritualidade — diferencia os tempos. E os tempos marcam espaços.

Shehechêianu

VekiêmanuVehiguianu

Lazman Haze

Que nos mantiveste em existência plena, nos amparaste e nos permitiste chegar a este momento.

É irrefutável a centralidade de Tsion e Jerusalém para o povo israelita, mesmo que associada a um lugar específico. Érets Israel não é um veículo para alcançar a dimensão espiritual, mas o elemento espiritual em si, indicado por Deus e fundamental para a existência do judaísmo. Assim como corpo e alma são inseparáveis, assim o são Israel e seu povo. Através dos séculos de diáspora, não houve coletivamente um abandono de Israel nem desassociação daquele lugar histórico, tanto na liturgia quanto no cotidiano do israelita.

Aqui também é enfatizado o tempo: encerramos o Seder de Pessach com leshaná habaá birushaláim (no ano que vem em Jerusalém) — somos específicos com o ano vindouro, um desejo-promessa renovado. Ao tempo nos agarramos e escalamos os acontecimentos. E nisso nos auxiliam os objetos que nos cercam.

Ação x intenção

Nem o cálice nem o vinho são sagrados. São veículos usados pelo ser humano para reconhecer e exaltar em verbo (brachá) a Criação Divina.

O tabernáculo do deserto só é sagrado quando usado com o propósito santo, num tempo específico, que deve ser capturado pela ação humana de, naquele exato segundo, religar-se à Criação. Uma construção ou objeto só serão rituais se inseridos num contexto de santificação da Criação pelo verbo.

A materialidade serve ao ser humano na mesma medida em que o ser humano deve servir à espiritualidade.

O cálice de material nobre distingue o homem. A qualidade do vinho e das uvas distingue o homem. A benção do Kidush santifica, naquele instante, a Criação. O caminho inverso não se confirma: a Criação existe independente da nobreza ou mesmo da existência do cálice ou do vinho.

O candelabro de oito braços que usamos na festa de Chanuká (chanukiá) não é santo nos oito dias de festa nem na vitrine ou prateleira onde o guardamos durante o ano. Nem o são as velas, o óleo, ou a luz que produzem. Mas unidos e acionados com o verbo das brachot, são ferramentas poderosas que nos assombram e encantam, que nos transportam. Assim devemos encarar a beleza estética, a nobreza dos materiais e a habilidade e criatividade das mãos que conceberam tais objetos: são lembretes no nosso mundo material de uma ligação espiritual com a Criação. São meios e não fim. São nossa forma humana e única de valorizar um momento com os elementos que nos são disponíveis no mundo.

O próprio rolo de pergaminho que suporta a Lei Divina (Sefer Torá) perde sua função no uso ritual quando o verbo é maculado, quando as letras que transportam o códex máximo são corrompidas. O rolo se torna impróprio (passul) e não serve mais ao seu propósito santo. A mácula é material, mas o dano é de caráter espiritual.

O drama dos museus Museus vivem há algumas décadas sua puberdade, tomados por uma intensa e quase incontrolável força transformadora de abandonar sua forma anterior de acumular, empilhar, exibir, para abraçar sua missão catalisadora de fomentar transformações no pensamento e, assim, na sociedade.

Museus são espaços de mobilização. A materialidade de suas coleções, além de impressionar, informar e educar, deve despertar e provocar a alma humana à ação.

A devolução aos seus países de origem de peças desapropriadas do mundo islâmico ou da África por colecionadores, na sua maioria europeus, não é apenas uma

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וּנָיֱחֶהֶׁש וּנָעיִּגִהְו
וּנָמְּיִקְו
הֶּזַה ןַמְּזַל

De prata prensada, repuxada e cinzelada com motivos florais, a peça é provavelmente de meados do século XX e remete a um estilo estético usado desde o século XIX pela Escola de Artes Bezalel, em Jerusalém. O porta-etrog traz inscrições em hebraico (Levítico 23:40: “Vocês colherão os frutos da cidreira amarela.”) e em português (No quadragésimo jubileu rabínico do Dr. Lemle. Dos cariocas em Israel à ARI 1-4-1973), que explicitam seu uso e a ocasião em que foi dedicado na Sinagoga.

tentativa de quitar uma conta com o passado colonizador e extrativista. Essas peças perderam seu sentido para o visitante de um museu em uma capital europeia. A mera observação, tomada de conhecimento ou interesse pessoal por determinada civilização ou arte não constituem a Memória daquele país. São certamente parte de sua história, mas não são (ou não querem ser) componentes de sua identidade coletiva.

É fato que a mobilidade e o mais fácil acesso a viagens contribuíram para a multiplicação de visitas aos países distantes. Também persiste o desejo de “consertar” a narrativa da História e, através desse processo, reestruturar a Memória. Não modificá-la ou apagá-la.

Museus vão continuar reunindo objetos. E devem fazê-lo. O discurso de sua materialidade, entretanto, evoluiu. Mais do que nunca os museus devem ser estruturas permeáveis na sociedade. Até mesmo sua arquitetura, em sua maioria hoje arejada, transparente e “apalpável”, em contraponto a prédios neoclássicos, herméticos, distantes e impositivos na paisagem urbana, é reflexo dessa transformação, e não apenas moda ou estilo.

Em 2022, o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro (MHN) incluiu em sua coleção uma peça inédita: um porta-etrog doado pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro (ARI). Essa peça insere a imigração e a presença dos judeus na História do Brasil por

Dr. Lemle assumiu seu primeiro cargo como rabino na sinagoga liberal de Mannheim no dia 1º de abril de 1933, dia do boicote a estabelecimentos comerciais e consultórios médicos de judeus na Alemanha. Naquela ocasião, sua investidura ocorreu de forma discreta e sem a devida celebração. Ao completar 40 anos de atuação rabínica em 1973, a ARI, congregação da qual foi cofundador, rendeu-lhe honrosas homenagens com serviços religiosos festivos de Kabalat Shabat (sexta-feira à noite) e Shabat (sábado) e com a publicação de um boletim especial.

intermédio da instituição responsável pela narrativa da constituição da nação brasileira.

Os processos de formação da Memória instrumentalizam um povo com elementos constituintes de sua identidade. A Memória transforma a identidade em algo flexível e permeável, porém robusto e indissolúvel.

Não é possível ou desejável dissociar nossos rituais de nossos objetos. E é também uma aspiração que invistamos recursos e esforços para que sejam esteticamente belos e em concordância com o estilo, tempo e lugar onde foram e são manufaturados. Esses objetos também devem estimular nossos sentidos, nos alegrar, emocionar. Eles são testemunhas de nossa história — por onde passamos, em que época vivemos, o quanto prósperos fomos, como nos dedicamos ao serviço da Torá e e ao cumprimento de nossas mitsvot

A destruição do Templo pelos babilônios e posteriormente pelos romanos, a tomada dos objetos do Templo de Jerusalém para Roma, como esculpida no Arco de Tito, a incineração de nossos livros e de nossas sinagogas no século 20, e muitas vezes antes na Idade Média, o roubo de nossas chanukiot, candelabros, copos de Kidush, objetos de uso na sinagoga e no lar — nada disso abalou o verbo. E toda vez que judeus se reerguem no rio da História, somos Memória e, pelo verbo, invocamos a santificação desse momento, com novos e reluzentes objetos.

Charles Steiman é associado da ARI, ativista da Comissão de Identidade e Memória da ARI e diretor de Heritage & History. Com sede em Zurique, H&H é uma instituição de pesquisa histórica e produção editorial especializada no registro de eventos pessoais e comunitários das diferentes populações judias europeias de língua alemã, que emigraram para o Brasil durante o século 20, em decorrência da perseguição do regime nacional-socialista. Uma tarefa fundamental de H&H é ressaltar a contribuição cultural, científica e econômica desses imigrantes na sociedade que os acolheu.

ATID | ARI 85
Jaime Acioli / Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro

O NEORREALISMO BUREKA

Martin Scorsese aplicado ao cinema israelense: dos filmes históricos ao neorrealismo Bureka

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Sala de cinema Teatro Moghrabi, na avenida Allenby, em Tel Aviv, prov. 1964.

O Cinema Bureka apresenta a questão da imigração judaica do norte da África e suas dificuldades de ajuste em um Estado que se moderniza e se ocidentaliza em velocidade galopante.

Océlebre cineasta americano Martin Scorsese certa vez teria comentado acerca do potencial subjetivo do cinema, a partir daquilo que nós, enquanto espectadores, não somos capazes de ver na tela imediatamente. Mais do que simplesmente uma arte em torno de imagens em movimento, com planos, ângulos, luzes e fotografia, o cinema produz uma arte fundamentalmente discursiva, algo que escapa muitas vezes daqueles que buscam experimentá-lo como um entretenimento de primeira ordem. O criador de grandes sucessos como Taxi Driver (1976) ou do recente Os Infiltrados (2006) deixou claro seu argumento, ao dizer que “o cinema é uma questão do que está enquadrado na tela, mas também do que não está”.

Quando buscamos nos familiarizar com a riquíssima produção cinematográfica israelense, esse argumento de Scorsese não apenas cai como uma luva, como se aplica aos mais diversos movimentos cinematográficos que floresceram em Israel, desde o surgimento do Estado, em 1948, ou até mesmo antes disso.

É possível verificar a ideia defendida por ele a respeito da existência de uma “mensagem” ou até mesmo de uma “linguagem” para além do que a tela projeta, tanto nos primeiros contornos de um cinema-manifesto, mergulhado em todas as metáforas políticas e culturais do Sionismo, entre as décadas de 1930 e 1950, quanto no melancólico, abstrato e pungente movimento Nova Sensibilidade, entre o final da década de 1960 e 1970, onde uma certa reflexão estética do cinema em Israel esteve sob forte influência da Nouvelle Vague francesa, com filmes de grande complexidade semiótica como Ele caminhou pelos campos (1967), de Yosef Milo, ou Todo bastardo é um rei (1970), de Uri Zohar.

ATID | ARI 87
André Sena
israel cultura IMAGO IMAGO

Até mesmo em obras hoje consideradas pioneiras e históricas do cinema israelense, a tese de Scorsese se sustenta de forma quase que incontornável. Em filmes geniais como Oded, o caminhante (Oded Hanoded), lançado em 1933, por exemplo, podemos verificar um verdadeiro transbordamento de intenções de seu criador, Chaim Halachmi. Oded transita por uma terra que um dia será Israel, um país independente. Sua caminhada tem como missão conhecer visualmente a terra (ou quem sabe reconhecê-la?), para ensinar às gerações presentes e futuras sobre ela. Filme mudo e ao mesmo tempo radicalmente eloquente, ele pode ser considerado a primeira de muitas obras cinematográficas israelenses que transfiguram para fora da tela aquilo que a obviedade das imagens pode, quando muito, apenas sinalizar.

o neorrealismo Bureka se mostra como uma poderosa alavanca de reflexão e análise do mundo em que vivemos, seja por aquilo que ele busca efetiva e literalmente retratar, apelando aos nossos sentidos imediatos, como a partir do que ele carrega de essencialmente subjetivo e criativo, mas não necessariamente perceptível nos limites da tela.

O mesmo ocorre com outra obra-prima daqueles primeiros anos: A Colina 24 não responde (1955), produzido ainda antes de Israel completar seus primeiros dez anos enquanto Estado independente. A Guerra de Independência, que vemos narrada em primeiro plano, é frequentemente atravessada por uma pletora de elementos simbólicos, que se transformam ao longo do filme em uma poderosa e didática mensagem, típica dos primeiros anos de formação da cultura nacional de toda uma sociedade. Neste filme, o diretor britânico residente em Israel, Thorold Dickinson, nos coloca diante de uma essencial alegoria histórica e política: a cidade de Jerusalém, ainda partida e recortada na sua geografia urbana por arames farpados e muros apinhados de snipers. Mas o diretor também nos apresenta binômios narrativos que sempre farão parte da dinâmica histórica do Israel contemporâneo, como ameaça/defesa, ou sobrevivência/permanência.

Naturalmente, se desejarmos, podemos assistir A Colina 24 não responde como apenas mais um filme de guerra, mas dificilmente esta obra pode ser classificada de forma tão reducionista.

Outras obras destacam-se ainda a partir daquilo que Martin Scorsese observou com relação ao poder discursivo do cinema enquanto veículo de arte e debate. Sallah Shabati (1964), por exemplo, consiste inquestionavelmente em um deles. Ainda hoje considerado um marco na história do cinema em Israel, Sallah Shabati teve como efeito imediato divertir o público, ao mesmo tempo que provocava nele seríssimos dilemas de consciência. Efraim Kishon não poupou seus espectadores ao lhes apresentar dilemas importantes para a sociedade israelense, ao mesmo tempo em que conferia fama internacional à sétima arte de seu país. Utilizando recursos corrosivamente satíricos, Kishon traz à tona os desafios de uma sociedade multicultural, multiétnica, com todos os dramas que vem no pacote da geléia geral de um país de formação recente.

Sallah Shabati , que traz como ator principal Chaim Topol, o nosso Tevye de O Violinista no Telhado , apresenta pela primeira vez a questão da imigração judaica do norte da África e de outros países do Oriente Médio, e suas dificuldades de ajuste em um Estado que se moderniza e se ocidentaliza em velocidade galopante. Ao mesmo tempo, lançando mão de um expressionismo radical que chega a tangenciar o patético, Efraim Kishon também expõe toda uma sociedade que olha com estranhamento para outras camadas migratórias que não aquelas com as quais outrora estava habituada. E tudo isso ambientado a partir de um roteiro que narra os esforços de um judeu oriental iletrado em sua luta contra a burocracia estatal de sua velha-nova terra.

Ao criar Sallah Shabati , Kishon poderá, talvez sem saber, ter prenunciado a chegada na década seguinte ao seu lançamento, daquilo que historiadores e críticos do cinema israelense, a exemplo de Nachman Ingber, convencionaram chamar de Neorrealismo Israelense. Surgia a necessidade de lidar com aspectos de uma sociedade, que na década de 1970 já apresentava novos

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sinais de modulação e comportamento, que começavam a reconfigurar o tecido social israelense para além de uma “idade de ouro”, alicerçada na revolução sionista e no heroísmo kibutziano, em direção a uma dinâmica mais orientada para os estratos médios urbanos e para uma cultura de consumo. Isto produziu no cinema israelense pontos de inflexão no mínimo intrigantes, dos quais o neorrealismo é apenas uma de suas facetas, com grande destaque para uma gama de filmes que foram registrados na historiografia cinematográfica israelense como parte de algo conhecido como Cinema Bureka.

O adjetivo nos apresenta aqui um signo tão imaginativo como curioso: a bureka, iguaria imemorial da gastronomia judaica de origem sefaradita, surge como elemento evocativo da possibilidade da descoberta de uma cultura popular alternativa a uma ashkenormatividade israelense, insistente em projetar uma imagem mais uniforme e menos colorida do que o possível. Nesse sentido, o cinema israelense constituiu-se a partir da década de 1970 como uma ferramenta importante na busca de novos desafios para a compreensão de um país e de uma sociedade tão nova quanto complexa e internacionalmente ameaçada, seja no âmbito regional imediato, com a Guerra dos Seis Dias em 1967, a Guerra de Desgaste que se prolongou entre 1967 e 1970 e a Guerra do Iom Kipur de 1973.

A cultura urbana e popular foi o elemento estético agregador e fundador do Cinema Bureka. Há um processo de revelação cinematográfica que se desenrola em Israel durante aqueles anos, cujo objetivo é, apesar de toda uma situação internacional desafiadora e angustiante, apostar em uma certa arqueologia do presente (em contraste direto com Oded, o caminhante, por

exemplo), que só a lente do cinema pode efetivamente engendrar, com tudo o que a tela tem direito de expor e com o que ela poderá escolher ou decidir não expor, abrindo espaço para os discursos subjetivos que fazem da arte comentada por Scorsese algo de mágico e ao mesmo tempo denso.

A aposta que grandes diretores da época, como Boaz Davidson, fizeram no Cinema Bureka pode ser bem menos ingênua do que podemos imaginar, se optarmos por considerar este gênero popular da sétima arte em Israel apenas como algo voltado para uma cultura de massa, amparada em uma indústria exclusivamente voltada para o entretenimento. O neorrealismo israelense, que acabou gerando os filmes de tipo Bureka, pode ter sido na verdade um exercício de real descoberta da diversidade cultural urbana e popular em Israel, com a intencionalidade da resistência à permanente ameaça de aniquilamento pelos países vizinhos, especialmente após o que a Guerra dos Seis Dias deixou como lição, a ser confirmada em 1973 com o desdobramento de outro conflito.

Como arte produtora de imagens, mas também de linguagem, o cinema neorrealista injetou na onda bureka a equação da coesão social pela descoberta ou revelação das idiossincrasias de homens, mulheres e crianças comuns, vivendo no ordinário cotidiano das cidades, todos cheios de qualidades e defeitos capazes de fazer o público rir, chorar e se reconhecer nos personagens. Se o enfrentamento do inimigo no plano externo é um fait accompli no Israel daqueles anos, é imperativo que a sociedade israelense se conheça ainda melhor enquanto um mosaico paradoxalmente coeso e ao mesmo tempo diverso de comunidades, a partir das quais os pactos nacionais de autodeterminação e de defesa nacional

ATID | ARI 89
Cartaz do filme Sallah Shabati de 1964, estrelando o famoso ator Chaim Topol, recentemente falecido.

pudessem ser acordados. O cinema em Israel, na década de 1970, pode ter servido a esse propósito, mais do que qualquer outra expressão artística e estética no país.

Há nos filmes bureka uma dose propositalmente exagerada dos aspectos psicológicos imediatos de seus personagens, em uma rapidez frenética, denunciando e ao mesmo tempo exaltando elementos como intrepidez, esperteza, sagacidade e a capacidade de tomada de decisão do indivíduo, projetando na tela um certo Sein israelense que se consolida como narrativa social. Se tomamos como exemplo um filme como Charlie e a metade, dirigido por Boaz e lançado no ano de 1974, este mecanismo subjetivo vem à tona escancaradamente. Charlie nos lembra muito o pesonagem buarquiano de A Ópera do Malandro, peça escrita por Chico Buarque em 1978, imortalizada no fraseado “eis o malandro na praça outra vez, caminhando na ponta dos pés, como quem pisa nos corações”.

A diferença é que o compositor brasileiro ambienta sua obra na década de quarenta, enquanto Boaz Davidson apresenta o malandro israelense como uma síntese do agora, do imediato, do dia a dia de seu país. A relação entre Charlie e o garoto de rua Miko enuncia a chegada de um Israel de tipo novo, cujo povo comum precisa

potencializar sua criatividade cotidiana para sobreviver nas selvas urbanas. Miko, prefere a rua com Charlie e suas aventuras à rotina chata das escolas. É na trama urbana que a vida realmente pulsa e não necessariamente nos bancos entediantes das salas de aula. É preciso viver, e viver rápido. E tudo isso recheado por uma poética romântica singular, com a chegada, já no início do filme, da sensualíssima Gila, uma jovem moça rica que Charlie deseja a qualquer custo conquistar, superando diferenças econômicas, em um país que na década de 1970 começava a apresentar novos matizes em termos de classes sociais. Boaz nos presenteia com uma genuína versão israelense para cinema de A Dama e o Vagabundo, com o benefício de servir ao mesmo tempo de fotografia social de um país que seus cineastas entendiam ser essencial mostrar nos bancos de cinema. E para isso, a interpretação do genial e ainda jovem Yehuda Barkan, grande estrela do Cinema Bureka ao longo de toda a década de 1970, no papel de Charlie, parece mais do que perfeita.

O imenso caldeirão de sentidos que estão para além da tela, tal como Scorsese insiste em argumentar, aparecem na perspectiva neorrealista liderada por Boaz Davidson em Israel de forma muito consistente. O diretor de cinema e pesquisador Rami Kimchi discute a

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Rua de Ben Yehuda em Jerusalem na noite

importância de seu legado em uma importante obra, Israeli Bourekas Films. Their origins and legacy , apontando para dois importantes fatores: o primeiro deles refere-se a chegada de personagens de origem Mizrahi e Sefaradita na boca de cena cinematográfica israelense, conferindo visibilidade e representatividade a comunidades importantes do mosaico nacional. Em seguida, o pesquisador aponta para a existência de um diálogo entre essas comunidades com a cultura popular íidiche, tipicamente europeia, a partir das perspectivas pelas quais personagens semelhantes a Charlie, Miko e Gila eram retratados nos filmes. O argumento das pontes entre as culturas em direção a uma coesão cultural de tipo nacional que Rami Kinchi sustenta, pode ser um interessante aspecto trazido pelo Cinema Bureka como debate e reflexão cultural coletiva em Israel durante a década de 1970, e possivelmente nos anos posteriores a ela.

Em A Festa na Sinuca (רקונסב הגיגח), lançado em 1975, Boaz Davidson deixa essa equação estética ainda mais evidente, especialmente na construção de uma outra modalidade de ponte. Desta vez, mais do que buscar uma conexão entre os mundos ashkenazi, sefaradi e mizrahi, Davidson tenta de forma profundamente criativa e lúdica estabelecer uma ponte entre o mundo religioso e o secular em seu país, metaforizado em dois personagens radicalmente diferentes, Gavriel e Azriel, irmãos gêmeos, interpretados pelo mesmo autor, novamente o gênio da comédia israelense Yehuda Barkan. Enquanto Azriel é construído como um personagem piedoso e dedicado ao trabalho em Yaffo, homem ligado à Torá e a um estilo de vida fundamentado na fórmula ora et labora, Gavriel e seu melhor amigo Hanuka dirigem juntos um salão de jogos de sinuca, onde a honestidade está longe de prevalecer.

A trama se torna ainda mais apimentada quando os irmãos gêmeos, que não se falam e vivem em mundos inteiramente diferentes, precisam se encontrar, a fim de juntos confeccionarem um inventário para a venda de bens de família, dos quais ambos são simultaneamente proprietários. Ao apostar em uma dialética que enreda mundos diferentes, mas destino comum, Boaz Davidson aqui deixa tanto o que está na tela quando o que nela não está incontrolavelmente escancarado, confirmando a percepção de Scorsese de que tanto o visível objetivo, quando o sutil e subjetivo constituem-se como cinema, como arte e como debate.

O Cinema Bureka, como parte do movimento estético neorrealista da década de 1970, constituiu-se portanto como uma ferramenta de comunicação e arte na direção de um interessante projeto cultural: o de superar barreiras entre mundos aparentemente fechados em si mesmos, em nome da formação de uma sociedade mais coesa, que se reconhecesse coletivamente como um tecido nacional, como um povo dotado de um destino comum, que ao mesmo tempo soubesse comportar em seu seio diferenças e particularidades. Charlie, Gila, Azriel e Gavriel são poderosas metáforas criadas pelo fenômeno Bureka nas telas israeleses. Metáforas que apontavam para a necessidade do encontro das diversas clivagens sociais israelenses debaixo do mesmo teto nacional e, ao mesmo tempo, intercultural. Talvez o cinema tenha ocupado um lugar especial nesta operação, comparado a outras artes no país.

Nesse sentido, o neorrealismo Bureka se mostra como uma poderosa alavanca de reflexão e análise do mundo em que vivemos, seja por aquilo que ele busca efetiva e literalmente retratar, apelando aos nossos sentidos imediatos, como a partir do que ele carrega de essencialmente subjetivo e criativo, mas não necessariamente perceptível nos limites da tela. O cinema israelense, em toda a sua riqueza, parece dimensionar isso como poucos, e isso pode explicar a razão de seu sucesso doméstico e de sua visibilidade internacional.

Referências

KIMCHI, Rami. Israeli Bourekas Films. Their origins and legacy. Indiana University Press, 2023.

_______________ A Shtetl in Disguise: Israeli Bourekas Films and their Origins in Classical Yiddish Literature. Tese de doutorado apresentada na Universidade do Michigan, 2008.

In: (PDF) A Shtetl in Disguise: Israeli Bourekas Films and their Origins in Classical Yiddish Literature. (researchgate.net)

TALMON, Miri & PELEG, Yaron. Israeli Cinema. Identities in Motion. University of Texas Press, 2011.

NADJARI, Raphael (dir.). Israeli Cinema. Kino Lobers Film (DVD). 2013.

ATID | ARI 91
André Sena é doutor em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde 2009 e professor de Relações Internacionais.

TERRA MISTERIOSA E LONGÍNQUA, BRASIL

Cultura e literatura brasileiras em Israel

Entrevista com Dalit Lahav-Durst

Aminha relação com a literatura brasileira começou em 1968, quando cheguei com os meus pais a São Paulo”, afirma a israelense entusiasmada pela cultura brasileira, Dalit Lahav-Durst, na entrevista que deu por escrito à Revista Devarim. Uma parte de sua família, do lado materno, saiu da Ucrânia em meados da década de 1920: uma tia foi para o Rio e outra para São Paulo. A avó, que era sionista, foi para a Palestina que, naquela época, estava sob o Mandato Britânico.

Fale um pouco sobre você e seu interesse pelo Brasil

Durante muito tempo O meu p é de laranja lima de José Mauro de Vasconcelos foi o meu livro de cabeceira. Depois li O mist é rio do coelho pensante de Clarice Lispector, e O Saci de Monteiro Lobato. Foi assim que começou a minha história de amor com a literatura brasileira.

Depois disso, descobri o romantismo e o parnasianismo brasileiro: A mão e a luva de Machado de Assis; adorei ler Memórias póstumas de Br á s Cubas, entre outras obras do grande escritor; O guarani de José de Alencar e Os escravos de Castro Alves, cujo poema O Navio Negreiro impressionou-me, porque fiz um paralelo entre o sofrimento dos escravos africanos e o suplício dos judeus na Shoá. Aqui vai o canto fúnebre do

albatroz: “Desce do espaço imenso,/ó águia do oceano!/ Desce mais… inda mais… não pode olhar humano/Como o teu mergulhar no brigue voador!/Mas que vejo eu aí…/ Que quadro d’amarguras!/É canto funeral!.../Que tétricas figuras!.../Que cena infame e vil…/Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

Mera coincidência, justamente acabei de ler na edição 44 (abril 2022) de Devarim, o artigo do rabino Joseph A. Edelheit Uma Releitura Crítica da Escravidão na Torá.

Mais tarde, descobri o Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, Macunaíma , o formidável poema épico brasileiro, de Mário de Andrade, Mar morto de Jorge Amado, entre outros livros dele que, aliás, sempre tiveram muito sucesso em Israel, e a formidável Clarice Lispector, cuja história pessoal e estilo tão único me marcaram para sempre.

Sou tradutora literária, especializada em literatura sul-americana. Considero o trabalho do tradutor similar ao lavor do construtor de pontes. Eu traduzo especialmente obras de autores brasileiros e portugueses, porém, na maioria dos casos, as minhas traduções são o resultado de minhas próprias escolhas e iniciativas. Além disso, trato da escolha da capa e do texto da contracapa. O meu objetivo é introduzir ao leitor israelense obras que julgo interessantes e que considero de qualidade.

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israel cultura

Traduzir livros que aprecio, do português para o hebraico, me dá um enorme prazer porque, dos sete anos que vivi em São Paulo, guardei belas recordações, mesmo estando consciente do período difícil que o país atravessou naqueles tempos (ditadura militar, desaparecimentos de ativistas políticos etc.). Eu posso afirmar que essa época da minha vida me inspirou para o futuro. O Brasil, terra amada, ocupa um canto muito especial no meu coração. Com o tempo, estabeleci contatos pessoais com alguns autores e também com as suas famílias, como Manuel Pope, em Portugal, e Jacques Fux e Paulo Rosenbaum, no Brasil – pessoas que se tornaram amigos, o que dá ao meu trabalho de tradutora uma dimensão mais humana.

Aqui vai uma lista de algumas das minhas traduções:

Dom Casmurro de Machado de Assis, Manifesto

Pau-Brasil e Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, Aprendendo a viver de Clarice Lispector,

Antiterapias e O Nobel de Jacques Fux. Atualmente, estou traduzindo Navalhas Pendentes de Paulo Rosenbaum, um livro cheio de suspense, ironia, ilusão e farsa, que trata de um tema de atualidade: inteligência artificial. Espero que o leitor israelense vá apreciar.

O primeiro livro que traduzi do português para o hebraico foi Dom Casmurro . Sei que Clarice Lispector tinha grande admiração por Machado de Assis. Além de ambos serem grandes escritores, eram também tradutores. A mãe de Machado de Assis era imigrante dos Açores e o pai era descendente de escravos da África. Clarice era filha de imigrantes judeus da Ucrânia. Ambos carregaram, por toda a vida, o peso da sua herança. Os caracteres e atitudes dos personagens de ambos os autores refletem as relações e o comportamento da sociedade brasileira. Nos escritos de Machado de Assis, o leitor pode aprender sobre a condição humana na sociedade brasileira. Em suas novelas, Clarice Lispector fala

Dalit Lahav-Durst: “Trabalhei, inclusive, com artistas sobreviventes da Shoá, cujas obras são dedicadas à memória das vítimas do Holocausto. Atualmente moro em Tel Aviv e trabalho com pintores, escultores e fotógrafos em Israel e na Europa.”

MT LD photographs, CC BY 3, via Wikimedia Commons ATID | ARI 93
Coelho
Mariano

muito sobre a condição da mulher e dos seus problemas existenciais, tema universal mas também relevante para a sociedade brasileira.

De escritores portugueses eu traduzi a novela O Barão de Branquinho da Fonseca, considerada uma das obras-primas da literatura portuguesa, e também Rio Turvo do mesmo autor. Sombras em Telavive e A Mulher Nua de Manuel Pope, bem como uma coletânea de contos e peças de teatro da sua autoria; e A Noiva Judia de Pedro Paixão, entre outros.

Também sou curadora e crítica de arte, especializada no Expressionismo alemão. Durante muitos anos trabalhei no Centro de Documentação Judaica do Museu da Shoá, em Paris, França. Lá organizei exposições de obras que foram realizadas nos guetos, nos campos de concentração e nos campos de extermínio. Trabalhei, inclusive, com artistas sobreviventes da Shoá, cujas obras são dedicadas à memória das vítimas do Holocausto. Atualmente moro em Tel Aviv e trabalho com pintores, escultores e fotógrafos em Israel e na Europa.

Qual o interesse do público israelense pela literatura (cultura) brasileira?

O público israelense se interessa especialmente pelo futebol brasileiro. Também se interessa pela música (samba, bossa-nova) e pela dança.

No fim dos anos 1970, a música brasileira conquistou o país inteiro. A canção País Tropical de Jorge Ben Jor foi traduzida em hebraico por Ehud Manor e cantada por Yehudit Ravitz, hoje uma das grandes figuras da música popular israelense. Posteriormente, foram produzidos um espetáculo e um programa de televisão, ambos dedicados à música popular brasileira.

Hoje em Tel Aviv, toda quinta-feira no calçadão Lahat na praia de Bograshov, reúne-se um grupo de amadores de MPB, entre eles muitos brasileiros que fizeram aliá, que vem para matar saudades, cantar e dançar ao ritmo da música.

Em matéria de cinema, os israelenses devem muito a um dos seus membros fundadores, David Perlov.1 Nascido no Rio de Janeiro em 1930, David fez aliá em 1958, viveu durante um certo tempo no kibutz Bror Chail, e depois se mudou para Tel Aviv. Considerado o pai fundador do cinema israelense, amigo do grande poeta Natan Zach, ele formou uma geração de realizadores e cineastas especializados no filme documentário.

O cinema brasileiro tem tido certo sucesso aqui, especialmente com os filmes de Fernando Meirelles, Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira , baseado no livro de José Saramago, e Central do Brasil de Walter Salles.

A respeito do interesse do público pela literatura brasileira, infelizmente, hoje em dia, o mundo literário encontra-se em crise; já não se lê como antes. Muitos leitores preferem livros de entretenimento a obras consideradas clássicas. Porém, os que se interessam pela literatura sul-americana em geral, e a brasileira em particular, conhecem várias obras (e filmes baseados nos livros), entre eles Macunaíma de Mário de Andrade e Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado. O ex-Primeiro Ministro de Israel Yair Lapid foi tão inspirado pelo Mar Morto, que até escreveu uma canção Eshet Hassapan (A mulher do marinheiro), cantada por Rita, uma cantora muito famosa em Israel. Poucos israelenses leram Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, que foi lançado aqui numa bela tradução. Mas, na realidade, eu também não conheço muitos brasileiros que o leram. Poucos leram a excelente Clarice Lispector, apesar de muitos dos seus livros terem sido traduzidos para o hebraico. Mas ela não é fácil de digerir. Muitos leram os livros de Paulo Coelho, cujas teorias no estilo New

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1 N. da R.: a obra de David Perlov foi abordada por Ilana Feldman em artigo na edição nº 15 de Devarim (setembro de 2011). Edições originais e traduzidas por Dalit Lahat-Durst

Age se vendem bem aqui em Israel. Alguns leram Barba Ensopada de Sangue de Daniel Galera, um livro que adorei traduzir, especialmente por causa das suas belas descrições da fauna, da flora e das forças da natureza. Infelizmente, seu livro Mãos de Cavalo , que traduzi por encomenda de uma editora local, nunca foi publicado, porque a editora chegou à conclusão que o livro não se venderia bem no país. Alguns leram De Gado e Homens de Ana Paula Maia, Galileia de Ronaldo Correia de Brito, e outros de autores brasileiros que foram traduzidos.

Israel é um país pequeno, com uma população de aproximadamente 9 milhões de habitantes. Porém, como eu já havia dito, o “Povo do Livro” não lê mais como antes. Uma tiragem média de um livro em Israel é entre 500 e 1.000 exemplares.

Para dar ao leitor de Devarim uma ideia: o livro best seller O amante do escritor israelense A. B. Yehoshua, publicado em 1977, teve até hoje (2023) uma tiragem de 100.000 exemplares.

A respeito de tiragem normal de um livro brasileiro em Israel, aqui vão três exemplos:

• Aprendendo a viver de Clarice Lispector: 800 exemplares.

• Antiterapias de Jacques Fux: 500 exemplares.

• O Nobel de Jacques Fux: 500 exemplares.

E pode-se falar em sucesso da literatura brasileira em Israel?

O interesse do público israelense pode estar centrado em temas brasileiro-judaicos, em autores como Ronaldo

Wrobel com o livro Traduzindo Hannah , em que ele

relata a trágica história (quase desconhecida aqui em Israel) das polacas, jovens judias trazidas do Leste europeu no início do século 20 e obrigadas a trabalhar como prostitutas por conta da organização mafiosa judia Zvi Migdal, na América do Sul; Jacques Fux com Antiterapias , que recebeu ótimas críticas aqui, que “relata a história de todos os judeuzinhos de alma torturada, de todos os jovens melancólicos, mas também de todos os adultos querendo cicatrizações”.2 Ambos os livros suscitaram o interesse dos críticos literários e dos leitores.

Contudo, muito pouca gente leu o Centauro no Jardim de Moacyr Scliar. O livro trata da condição judaica, do imigrante e do indivíduo que se sente invadido pelo coletivo. Há pouco tempo, li no Facebook um triste comentário de uma pessoa que encontrou numa rua de Tel Aviv um exemplar do livro em hebraico, em perfeito estado, novinho – parece que nunca foi nem aberto!

Recentemente, traduzi uma joia de livro: As Coisas de que não me lembro, sou de Jacques Fux, um livro de apenas 50 páginas, acompanhado das belas ilustrações de Raquel Matsushita. Ele trata de temas universais e existenciais, e espero que o público vá apreciá-lo.

Mas os leitores podem se interessar também por temas regionais ou gerais, que possam elucidar o Brasil, país tropical, terra misteriosa e longínqua, que continua a exercer uma magia e fascinar a imaginação.

Atualmente, em Israel, existe um pequeno grupo de tradutores do português para o hebraico. O mais conhecido entre eles é Rami Saari, o tradutor de Fernando Pessoa.

DALIT LAHAV-DURST é mestre em literatura comparada pela Sorbonne Paris III e diplomada em história da arte e curadoria pela mesma universidade. É autora, tradutora, curadora e historiadora. Foi curadora chefe na M.T. Abraham Foundation e chefe do departamento acadêmico e de intercâmbio cultural da Hermitage Foundation. Tem cidadania israelense e francesa e mora em Tel Aviv.

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2 Conforme a contracapa do livro, por Ronaldo Guimarães.

Em homenagem ao “Ano Ben Yehuda” que celebra o centenário do falecimento da pessoa de maior relevância no processo de renascimento do hebraico como idioma usado para todas as atividades dos judeus, a Devarim vai publicar nos seus três números de 2023 esta coluna com curiosidades a respeito da origem de palavras do hebraico pós-bíblico.

O DILEMA DA VACINA

Este texto não nega a relevância da vacinação, nem contesta as políticas públicas com relação ao COVID.

O dilema aqui abordado aconteceu muito antes das mazelas do nosso tempo, mais precisamente em 1896, quando o doutor Ytschak ben Yossef Tovim, que vivia em São Petersburgo, na Rússia Imperial, resolveu escrever uma coluna de jornal sobre medicina.

Os artigos dele foram publicados no histórico jornal ץיִלֵּמַה (HaMelits –O Intérprete), a primeira publicação em hebraico da Rússia e, por este motivo, um ícone do iluminismo judaico.

Naquela época, escrever artigos médicos em hebraico não era tarefa para qualquer um! Além dos indispensáveis conhecimentos profissionais, era necessário ser criativo com o hebraico, idioma que dava os primeiros passos em seu renascimento e que, portanto, era extremamente carente de palavras científicas.

Conhecimentos médicos não faltavam ao dr. Tovim. O jornal o anunciava como “O Doutor em Sapiência Médica de São Petersburgo”. Assim que, muito provavelmente, ele tirou de letra a tarefa de descrever a difteria, comparando os métodos de tratamento do passado com as novas formas de cura da doença. Mas inventar termos em hebraico para “bacilos”, “micro-organismos” e “vacina” deve ter sido uma dureza. Era preciso ter imaginação fértil e um sólido conhecimento do hebraico bíblico, pois a primeira regra da criação de novas

palavras em hebraico moderno obriga a busca por termos das Escrituras que tenham significado aproximadamente conexo com o da nova palavra.

Além disso, mesmo depois de você ter suado horas e horas, esquadrinhando tanto a memória como textos antigos à busca de um significado adequado, poderia acontecer que outra pessoa achasse um termo diferente do teu que caísse melhor no agrado do público. Quando isto acontecia todo o teu esforço ia parar na lata do lixo.

E isto aconteceu com “bacilo” e “micro-organismo”. O hebraico moderno não usa os termos que o dr. Tovim elaborou, talvez tiritando de frio ao lado de uma insuficiente lareira à lenha em pleno inverno báltico de 1896.

Contudo, ele foi vingado pela criação da palavra para “vacina”. Ela é usada até hoje, sendo que nos anos da COVID ela foi uma das campeãs de audiência. Cada vez que alguém em Israel perguntou “Você já se vacinou?”, prestou uma involuntária homenagem ao médico russo.

5783 2022/2023

Numa nota de rodapé ao seu artigo, o dr. Tovim explica que procurou na Bíblia uma palavra que contivesse tanto o conceito de “força” como de “coragem”, pois a vacina fortalece o sistema imunológico do organismo dando a ele as armas (a coragem) para lutar contra o micro-organismo invasor.

E ele achou em Amós 2:9 o adjetivo que buscava: ןֹסָח (chasson), que é usado no verso de Amós para qualificar um carvalho, uma árvore forte e imponente, cuja estatura afugenta seus inimigos.

Assim, vacina no hebraico moderno é ןוּסִּח (chissun), estar imunizado é ןֵּסַחְתִהְל (lehitchassen) e nos últimos dois anos, ninguém convidou alguém para um jantar em casa se recebeu uma resposta negativa à pergunta “הָנוֹרוֹק דֶגֶנ םֶּתְנַּסַחְתִה?” (itchassantem negued Corona – vocês se vacinaram contra o Corona?).

O dr. Ytschak ben Yossef Tovim deve estar feliz. Ele solucionou com sucesso o dilema da vacina.

curiosidades do hebraico ATID | ARI 97
100 Anos de Nascimento ELIEZER BEN-YEHUDA הדוּהי־ןבּ רזעילא

O TOMATE E A LUXÚRIA

O tomate é originário do nosso continente. Hoje ele está espalhado pelo mundo, mas até as grandes navegações ibéricas do século 16 apenas os habitantes das Américas o conheciam.

Portanto, os hebreus da época da Torá não sabiam que ele existia e quando seus descendentes do Israel atual decidiram compatibilizar o hebraico com o mundo moderno foi necessário inventar uma palavra para o alimento.

Duas alternativas se abriram à frente deles. A primeira era a de chamar a planta a partir de seu nome original asteca “tomatl”, conforme foi feito por grande parte dos idiomas falados no mundo, tais como o português, o inglês, o alemão, o holandês, o turco e tantos outros.

A segunda alternativa era a de adaptar o nome usado pelos italianos, que nomearam o tomate como “pomodoro”, uma palavra que significa “maçã dourada” e remete à beleza da fruta. Efetivamente, ao ser introduzido na Europa o tomate não foi imediatamente usado como alimento e sim como planta decorativa. Muitos outros idiomas, tais como o russo, o árabe e o iídiche adaptaram “pomodoro” para a sua pronúncia.

Contudo, obedecendo a uma das mais persistentes regras informais do

judaísmo – “para que simplificar se é possível complicar” – o gosto dos primeiros israelenses acabou pendendo para uma palavra inédita, derivada do hebraico bíblico: הָּיִנָבְגַע (agvaniá).

A adoção deste nome é surpreendente, pois a raiz ב-ג-ע denota o que chamamos em português de “luxúria”, ou seja, o intenso desejo sexual; a lascívia; o sexo sem o componente espiritual do amor. O capítulo 23 do livro do profeta Yechezkel (Ezequiel) usa esta raiz de forma abundante ao descrever a ação de duas irmãs que representam metaforicamente os reinos de Israel e de Yehudá (Judá) e suas amorais (e desastrosas) alianças políticas.

Por seu forte subtexto amoral, o uso desta palavra foi combatido por alguns dos expoentes da criação do hebraico moderno, tais como Eliezer Ben-Yehuda (mais sobre ele na Devarim 46) e o Rabino Avraham Isaac Kook (o rabino chefe de Israel nomeado pelos dirigentes do Mandato Britânico).

Sempre preocupado por situar Israel dentro do Oriente Médio, Ben-Yehuda sugeriu o nome “badura” que deriva da adaptação para o árabe do italiano “pomodoro”. Já Kook sugeriu o inventivo “edemonia”.

Mas o gosto popular caiu em agvaniá e, portanto, vale a pena desvendar

o misterioso caminho que liga a luxúria ao tomate.

Durante um breve intervalo de tempo, nos séculos 16 e 17, o tomate foi chamado na França de “pomme d’amour” (maçã do amor), pois acreditava-se que tivesse características afrodisíacas. Uma vez comprovada a insensatez desta crença, o nome foi abandonado, contudo o rabino Yechiel Pines (outro líder dos primeiros sionistas e uma pessoa com uma sólida educação secular e religiosa) achou por bem reavivar esta ligação e sugeriu o nome que finalmente ganhou a aprovação dos primeiros falantes do hebraico moderno.

Não se pode fechar um texto que versa sobre o tomate e sobre o hebraico sem mencionar que a mais recente derivação do “tomatl” asteca, o popular e delicioso tomate-cereja é um produto israelense: foi desenvolvido no campus de Rechovot da Universidade Hebraica.

Aprendemos três lições principais com a “saga do tomate no hebraico”. A primeira é que algumas tradições que nos parecem muito antigas (tais como a presença do tomate na dieta dos italianos) não tem mais que algumas centenas de anos. A segunda é que o fator de maior peso na adoção de um novo costume (seja ele uma palavra, um costume ou um ritual) é o gosto popular. Por mais que os especialistas se esforcem em impor sua escolha, ela só tem sobrevida se o povo gostar dela.

E, finalmente, que nenhuma cultura é fechada em si mesmo. Cada uma delas sofre a inevitável influência do entorno com o qual interage. Não existe uma “cultura pura” ou totalmente “original”. Todas são o resultado fascinante de milhares de adaptações.

curiosidades do hebraico 98
Robert Owen-Wahl/Pixabay

Residencial para a Terceira Idade desde 1937

Na ética judaica, ajudar os outros é um dever essencial e nossa tradição nos ensina que somos responsáveis uns pelos outros. O Lar União tem sido esteio de nossa comunidade desde sua fundação, em 1937.

A atual sede, inaugurada em 1953, foi concebida para oferecer aos moradores do Lar instalações adequadas e confortáveis. Ao longo dos anos, essa sede foi ampliada e ganhou áreas especiais para atividades como fisioterapia,

restaurante, sala de TV. E as instalações vêm sendo modernizadas constantemente, tanto para proporcionar saúde, alegria e bemestar aos residentes, como para tornálas mais econômicas e sustentáveis.

Em Rosh Hashaná 5783, inauguramos nossa nova sinagoga Beit União, revitalizando elementos da antiga sinagoga, com espaço mais moderno e amplo, reforçando assim nosso compromisso com a vida judaica de nossa instituição.

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APOSTANDO NO HISTÓRICO DO PROFETA

Em 4 de novembro de 2022, o colunista do New York Times Thomas Friedman lamentou que “o Israel que conhecíamos se foi”. Ele comentava sobre o resultado das mais recentes eleições de Israel e a construção de uma coalizão de governo com forte e inegável tendência antidemocrática.

Aproximadamente três meses depois, confirmadas as intenções do governo, a sociedade israelense começou a reagir. Manifestações com dezenas de milhares de pessoas passaram a ser parte regular do final do Shabat em Tel Aviv e em muitos outros locais.

Em 13 de fevereiro, aproximadamente cem mil pessoas (o equivalente a mais de dois milhões no Brasil) se deslocaram de todas as cidades do país para Jerusalém com o intuito de manifestar o seu desagrado pela apresentação do primeiro projeto de lei que periga eliminar a independência do poder judiciário em Israel.

Nas primeiras manifestações a

maioria das pessoas era de uma faixa etária mais madura. Gradativamente se percebeu uma evidente queda na idade média das pessoas, com muitos jovens tomando a frente dos protestos mais recentes.

Ao mesmo tempo, o governo deu sinais de ter “piscado”. Uma proposta de um partido ultraortodoxo que implantaria um regime anti-igualitário nas visitas e nas orações no Kotel haMaaravi (chamado de Muro das Lamentações no Brasil) foi rechaçada pelo primeiro-ministro e dois dias depois o ministro da Justiça disse estar disposto a negociar com a oposição – com a mediação do presidente Herzog – projetos de lei que aprimorem o sistema democrático em Israel sem destruí-lo.

Claro que a atitude do governo ainda não tranquilizou nem um pouco a oposição, pois tudo está ocorrendo até agora apenas no fugidio nível de declarações para a imprensa. Mas o governo parece ter se sensibilizado

com as manifestações. É desconhecido neste momento (meados de fevereiro de 2023) se a intensidade das manifestações vai aumentar ou diminuir-desaparecer, se o governo vai negociar e se a negociação vai ocasionar uma significativa mudança de postura.

Em 1993 Thomas Friedman aclamou Arafat como um estadista em busca de paz. Em 2000 ele se encantou com o histórico de Bashar Assad e previu que ele iria liberalizar a Síria e encerrar o envolvimento do Irã no Líbano. Os acordos de normalização das relações de 2020 com os Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão desafiaram a visão de Friedman, eis que foram firmados sem analisar a questão palestina que ele considerava central na aproximação entre Israel e os países árabes.

Assim que seu desastroso histórico como profeta (a lista acima é apenas parcial) nos permite ter alguma esperança.

em poucas palavras 100
Raul Cesar Gottlieb

CATÁSTROFE E CATÁSTROFE

Os judeus denominam “Shoá” o extermínio de 6 milhões de correligionários na Europa entre os anos 1939 e 1945. O significado literal da palavra é “catástrofe” e ela foi adotada pelos judeus em torno de 1940, quando o extermínio ainda dava seus primeiros passos.

A palavra tem origem bíblica, ela é encontrada pela primeira vez no livro do profeta Yeshayahu (Isaías), quando ele prevê a destruição que acontecerá ao reino do norte pela mão dos Assírios.

Os árabes denominam “Nakba” o exílio – tanto o forçado como o voluntário – de 700 mil árabes por conta da derrota na guerra que provocaram contra o nascente Estado de Israel em 1948-1949. O significado da palavra é “catástrofe” e ela só foi adotada como rótulo do acontecimento por todos os palestinos em 1998, quando o estabelecimento de Israel se mostrou definitivo e não havia mais esperança de reverter o resultado da guerra.

Shoá e Nakba, duas catástrofes. O que elas têm em comum?

Em 30 de janeiro de 1939, discursando no Parlamento Alemão (Reichstag) o Chanceler Adolf Hitler declarou que caso a Alemanha fosse “obrigada” a entrar numa guerra, ela acarretaria o final do judaísmo na Europa, conforme suas palavras: “a aniquilação da raça judaica na Europa”. A profecia de Hitler foi autocumprida. Ele iniciou a guerra e a Alemanha tentou aniquilar os judeus nos territórios que conquistou.

A Shoá lamenta a consequência do sucesso da tentativa de genocídio nazista.

Em 11 de outubro de 1947, em entrevista a um jornal egípcio, o Secretário-Geral da Liga Árabe Azam Pashá declarou “eu espero que os judeus não nos forcem a ir para a guerra porque ela será uma guerra de extermínio e um massacre perigoso que a história vai registrar como sendo similar ao massacre dos Mongóis ou da guerra contra os Cruzados”. A Liga Árabe iniciou uma guerra onde tentou sem sucesso exterminar os judeus.

A Nakba lamenta a consequência do fracasso da tentativa de extermínio árabe.

No que elas diferem?

A Shoá foi imposta aos judeus. Eles não a procuraram e não a provocaram. Não tendo meios para enfrentá-la, tudo o que puderam fazer foi tentar fugir dela.

O rótulo Shoá foi adotado naturalmente. Nada mais natural do que chamar uma catástrofe de catástrofe.

A Shoá não criou o Estado de Israel, eis que ele estava em gestação pragmática desde o final do século 19 e espiritual desde sempre.

A Shoá tampouco criou a identidade judaica. Os judeus se percebem como povo há milênios.

A Nakba foi provocada pela Liga Árabe. Ela a procurou e a provocou. Tendo os recursos para promover a guerra ela assim o fez, esperando sair vitoriosa.

Muito provavelmente o rótulo Nakba foi adotado em oposição ao rótulo adotado pelos judeus.

A tragédia dos palestinos é fruto da Nakba. Sem a guerra promovida pela Liga Árabe em 1948-1949 ela não teria

acontecido.

A Nakba criou a identidade palestina. Antes do Estado de Israel os árabes da região não se percebiam como palestinos.

Shoá e Nakba. Palavras com o mesmo significado. Que rotulam eventos diametralmente opostos.

em poucas palavras ATID | ARI 101

O LUTO NO PLACAR 1

Minutos finais de um jogo da Euroliga de basquete na arena Menora Mivtachim em Tel Aviv no dia 29 de dezembro de 2022. O time da casa acaba de virar um jogo que vinha perdendo desde o início e a torcida que lota completamente o estádio reage da mesma forma estrondosa como qualquer torcida brasileira nas mesmas circunstâncias.

Neste momento o placar central da arena mostra uma foto de Pelé, ao lado de seu nome com a inscrição 1940-2022 abaixo. Imediatamente a intensidade do ruído dos torcedores cai drasticamente enquanto a voz nos alto-falantes anuncia “O maior jogador de futebol de todos os tempos, Pelé, acabou de falecer.” Seguindo o costume local de homenagem aos falecidos, o público se levanta e bate palmas por alguns minutos.

Que outro brasileiro é imediatamente reconhecido e homenageado em todas as partes do mundo e é capaz de provocar um parênteses de respeito e consternação no meio de uma celebração de intensa alegria?

O LUTO NO PLACAR 2

Seis semanas depois, em 9 de fevereiro de 2023, o público mais uma vez lota completamente a arena Menora Mivtachim em Tel Aviv esperando o começo de mais um jogo de basquete da Euroliga. São 21:05, o momento exato programado para o começo da partida, mas em vez de se agruparem no círculo central para o alçamento da bola pelo árbitro, os dois times perfilam-se lado a lado enquanto que o placar mostra as palavras “Together with Türkiye & Syria” e o alto-falante pede um minuto de silêncio em lembrança das vítimas

do terremoto ocorrido dias antes que deixou dezenas de milhares de mortos.

Todos se levantam e guardam um minuto inteiro de silêncio total. Não se escuta um sussurro. O respeito é absoluto. A Síria não reconhece Israel desde a sua fundação e se considera em permanente estado de guerra contra o país. Não há a menor dúvida que muitos naquela arena perderam familiares próximos em guerras contra a Síria. Mas todos eles sabem distinguir as questões políticas das tragédias pessoais.

cócegas no raciocínio em poucas palavras 102
Raul Cesar Gottlieb Raul Cesar Gottlieb

UMA DISTOPIA NEOSSIONISTA

Este é o segundo artigo movido pelos acontecimentos recentes em Israel [a nova linha de políticas legislativas/

nacionais/religiosas) , que têm o potencial (espero que acabe sendo um potencial frustrado) de modificar a

estrutura e a imagem da democracia isralense e de demolir uma construção de 75 anos. Construção feita por

cócegas no raciocínio ATID | ARI 103
/
Daniel Rachamim
rachamimdaniel.com
Maniefstantes levam às ruas a Declaração de Independência do moderno Estado de Israel impressa em uma lona gigante

uma sociedade, governos, pessoas, de direita, centro e esquerda, mas unidos pela visão unificadora que orientou o sionismo e ditou os termos da Declaração de Independência de Israel: um país judaico E democrático, pátria do povo judeu em todos os seus segmentos culturais e religiosos, e de todos os seus cidadãos.

Correndo o risco de ser repetitivo, e já o sendo, faço isso porque a recente reação de multidões em Israel à mais perigosa (não a única) ameaça dessa destruição – a entrega das decisões judiciais finais a políticos, e não juízes – suscita a esperança de que, apesar dessa guinada à extrema-direita autoritária, centrada em Bibi/BenGvir/ Smotrich, Israel continuará, pela vontade de seu povo. a ser um estado plural, democrático e inserido nas verdadeiras democracias do mundo.

O que há de pior nessa tentativa de subverter a prevalência da justiça nas mãos de juízes é a percepção dos motivos que a inspiram: não um aperfeiçoamento da ordem democrática, mas os interesses pessoais de políticos e governantes, e em nome deles a imposição da tirania da maioria (sim, mesmo nas democracias nominais, maiorias podem ser tirânicas) ao próprio caráter da nação e de seu destino. Neste caso, Israel passaria a ser um estado com um único poder (o Executivo já se submete ao Legislativo e vice-versa,

e o Legislativo passaria a controlar o Judiciário também), ou seja, seria o fim do sistema de pesos e contrapesos que caratecteriza e garante as democracias modernas. Na história, isso teve um nome: fascismo.

A pergunta que me faço é simples: 64 deputados têm o direito de mudar o caráter de um país e de uma nação, abalar a relação simbiótica entre o povo judeu onde quer que esteja e seu estado-nação, determinar a vertente religiosa como se fosse um fato decorrente de uma verdade divina e imutável e não uma escolha calcada em princípios e éticas tão válidos e tão fiéis ao judaísmo quanto quaisquer outros?

Amigos que vivem há 70 anos em Israel passaram por todas as suas crises e suas conquistas, regaram-na com seu suor, arriscaram suas vidas em guerras e operações, são parte intrínseca de sua sociedade, escrevem que nunca se sentiram tão para baixo e deprimidos. Não são ativistas políticos, adversários de Bibi ou de seu governo. São simplesmente judeus/sionistas/israelenses/democratas que acreditam estar vivendo num país (ainda) modelar, apesar de todos os seus problemas, que tem seu humanismo e sua democracia como expressão de seu judaísmo.

Como este é um artigo muito pessoal (a que acho ter direito após tantos artigos e tantos anos), confesso

que também me senti deprimido até me ocorrer uma ideia: se tudo isso realmente vier a acontecer (o que será o fim do sionismo, o fim de Israel como o lugar-comum de TODOS os judeus e de todos os ideais judaicos), ainda haveria uma solução: Israel 2.0. Sugeri a Raul, nosso editor, caso isso aconteça. a criação de um novo movimento sionista: pedir ao Canadá, à Austrália ou à Nova Zelândia (Raul descartou a Austrália e seu deserto cheio de coelhos e cangurus, e o Canadá, frio demais, restando a linda Nova Zelândia, com o acordo dos maoris para evitar a recriação de um conflito também) um pequeno território de 30.000 km2 (pouco mais que a Israel de maio de 1967) e começar tudo de novo: sionismo e chalutzianismo, moshavim e kibutzim, estradas, cidades, judaísmo, cultura, desta vez com o beneplácito de tecnologias que não existiam no início do século 20. Restaurar o sonho sionista transformado em realidade. Seria um estado judaico integrado com as populações originárias, sem lugares bíblicos mas com a Bíblia no coração, com liberdade inter e intrarreligiosa, inter e intracultural. Tudo que Israel 1.0 prometeu ser e chegou a ser. Dessa distopia semidepressiva, desperto com a ideia de que, se seria possível na Nova Zelândia, por que não seria em Israel ainda hoje? Só depende de nós.

cócegas no raciocínio 104
Daniel Rachamim / rachamimdaniel.com

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Devarim 47 (ano 18 - abril 2023) by ARI - Associação Religiosa Israelita - Issuu