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ALICE E A HALACHÁ
A teoria da Rainha de Copas e a halachá saudável
Rabino Damián Caro
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As palavras do rabino Abraham Geiger “inspire-se no passado, viva no presente, trabalhe para o futuro” apontam para um modo judaico de viver. O passado apenas nos inspira e de forma alguma determina o que devemos fazer. O presente exige de nós plena participação e nos desafia a tomar consciência do legado que deixamos para as futuras gerações. Damos a isso o nome de viver a halachá saudável, cujo fundamento pode ser encontrado na “teoria da Rainha de Copas”.
Em Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá (Lewis Carroll, 1871), a Rainha de Copas explica a Alice que no mundo dela “é preciso correr muito para ficar no mesmo lugar”. Este conceito é conhecido como a “Teoria da Rainha de Copas”, bem como o “Efeito Rainha Vermelha”, “Corrida da Rainha de Copas” ou “Hipótese da Rainha Vermelha” e tem sido usado tanto nas ciências naturais quanto na sociologia, na filosofia ou na literatura.
Na biologia, essa teoria é utilizada para explicar, por exemplo, a necessária adaptação contínua das espécies, unicamente com o objetivo de manter seu status quo com o seu ambiente.

A afirmação da teoria da Rainha de Copas deriva da passagem em que Alice corre sem parar enquanto é arrastada pela mão da Rainha de Copas, que grita a ela: “Mais rápido! Mais rápido!” Nesse momento, Alice se pergunta se as coisas estão se movendo com elas. A Rainha, que adivinha seus pensamentos, insiste: “Mais rápido, não tente falar!” A certa altura, elas pararam e Alice, surpresa, exclamou enquanto olhava ao seu redor:
– “Ora, eu diria que ficamos sob esta árvore o tempo todo! Tudo está exatamente como era!”
– “Claro que está!”, a Rainha concordou. “E como não seria assim?”
– “Bem, na nossa terra”, disse Alice, ainda arfando um pouco, “geralmente você chegaria a algum outro lugar... se corresse muito rápido por um longo tempo, como fizemos.”
– “Que terra mais pachorrenta!”, comentou a Rainha. “Pois aqui, como vê, você tem de correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar. Se quiser ir a alguma outra parte, tem de correr no mínimo duas vezes mais rápido!”
Essa expressão se assemelha à maneira como podemos entender halachá. A Enciclopédia Talmúdica, citando o Sefer Aruch e Dorot HaRishonim, explica: “O termo halachá tem a raiz כ–ל–ה (halach significa andou) e se refere a algo que vem e vai, que vem antes de nós e continua depois de nós. Ou seja, algo aceito na comunidade de Israel que vem do Sinai até os dias atuais, ou algo sobre o que a comunidade de Israel se orienta, avança. Sendo este o caminho, a caminhada, aceito na comunidade de Israel. Como está escrito: ‘…e faça com que conheçam o caminho que irão percorrer e as práticas que irão seguir’ (Êxodo 18:20)”.
O ambiente, “o país” no qual a pessoa vive – diria Carroll –, muda e nos estimula a transformar nossas práticas para permanecer no mesmo lugar. A halachá é o andar, ou “o correr”. Como Alice que corria no mesmo lugar, praticamente pulando, nós também saltamos tentando alcançar o eterno e o divino, e isso nos permite estar no mesmo lugar. O mundo se move rapidamente. Essa noção da transformação contextual da tradição judaica não é nova. A adaptação dos costumes herdados do passado, ao tempo de cada comunidade, é o modo judaico de ser. Podemos entender essa ideia, por exemplo, a partir da explicação dada pelo rabino Joshua Falk (1555–1614) em sua obra Drishá , sobre esse ensinamento do Talmud: “Todo aquele que julga com um julgamento absolutamente verdadeiro é considerado parceiro de Deus na criação” (Shabat 10a).
O rabino Falk se dedica à compreensão do conceito de “absolutamente verdadeiro”, que ele descreve com estas palavras: “Refere-se a alguém que julga de acordo com o tempo e o lugar, para que seja absolutamente verdadeiro, para que não venha necessariamente julgar exatamente como diz a Torá. Pois às vezes o juiz deve deliberar fora da norma, de acordo com a época e com a matéria em questão. Quando essa pessoa não procede dessa maneira, mesmo que a opinião seja verdadeira, não é absolutamente verdadeira” (Choshen Mishpat 1:2).
A Torá nos inspira, mas não é, ao mesmo tempo, o ponto de partida e o ponto de chegada. Às vezes, o “verdadeiro” requer ultrapassar o limite da norma. Deve adequar-se ao tempo e ao lugar para ser “absolutamente verdadeiro”. A Torá, como fonte de inspiração, deve ser expandida. Seu “leitor” deve correr muito rápido, como no país da Rainha de Copas, para permanecer nela.
O rabino Yosef Albo (1380–1444), em sua obra Halkarim escreve: “Já que é impossível que a Torá de Deus seja completa, de tal forma que abarque todos os tempos, uma vez que os detalhes práticos são sempre renovados nos assuntos humanos. E como as normas e as questões práticas são muito numerosas para serem contidas em um livro, é por essa razão que Moshé no Sinai recebeu, de forma oral, as questões gerais cujos indícios são brevemente encontrados na Torá, de modo que, através dela, os sábios de cada geração possam deduzir os detalhes que se renovam.” O rabino Albo sustenta que os detalhes práticos são sempre renovados nos assuntos humanos que são afetados por mudanças contextuais. Assim, se o que se busca é que um manual de comportamentos permaneça sempre vigente, os detalhes práticos, bem como as regras que os regem, devem mudar.
Sinai, oralmente, as questões gerais cujo indício se apresenta brevemente na Torá. A Torá, de acordo com essa visão, é um texto fonte. Um lugar onde os sábios de cada geração vão em busca de pistas e interpretam, com base nelas, os detalhes que se atualizam.
Para alguns, a halachá que ultrapassa a norma bíblica foi elaborada por meio da interpretação do texto da Bíblia … já outros argumentam exatamente o contrário.
Para esses, somente a posteriori foi buscada uma justificativa bíblica para as normas há muito consagradas na práxis.
De acordo com Günter Stemberger, em O judaísmo clássico: “Com o tempo, o desenvolvimento da halachá excedeu em muito os parâmetros da lei bíblica, completou-a e até mesmo, em parte, entrou em contradição com ela. Há muito tempo vem sendo discutida a controvérsia sobre como a halachá, que é posterior, se conecta com a Bíblia, que lhe é anterior, se relaciona com a Bíblia. Para alguns aquela halachá que ultrapassa a norma bíblica foi elaborada por meio da interpretação do texto da Bíblia e, só mais tarde, passou por uma formulação que já dispensa essa norma. Já outros argumentam exatamente o contrário: somente a posteriori foi buscada uma justificativa bíblica para as normas há muito consagradas na prática.”
Os textos que sucedem a Torá são as produções discursivas de cada geração subsequente para adequar aquela leitura inicial às necessidades de seu tempo.
Seria inviável explicar todas as variantes possíveis de determinadas regras, para todas as situações em um único livro. Por isso, podemos afirmar que é impossível que a Torá seja suficiente, de forma a chegar em todos os tempos com uma mensagem eficaz. Como diz o rabino Falk, se sempre fizéssemos o que a Torá diz, independentemente do tempo e do lugar, isso seria uma verdade, mas não absolutamente verdadeiro. Por esta razão, como expressa o rabino Albo, foram entregues a Moshé no
O versículo da Bíblia hebraica, “…para quem sai ou entra não há paz…” (Zacarias 8:10), desencadeia uma discussão que é retratada no Talmud. “Disse Rav: ‘Assim que uma pessoa passa das palavras da halachá para as palavras da Bíblia, ela não tem mais paz.’ E Shmuel disse: ‘Isso se refere a alguém que deixa o estudo [o Talmud] e vai em direção à Mishná’” (Chaguigá 10a). O sábio francês Rashi explica as palavras de Rav, “já que não há ensinamento prático que deriva das palavras da Bíblia, uma vez que a Mishná explica o incompreensível da Torá”. Sobre as palavras de Shmuel, ele diz: “Se a pessoa se relaciona com os sábios que interpretam os sentidos da Mishná e explicam as normas que se contradizem, e buscam explicações práticas a partir delas, quer para permitir, quer para proibir, a isto dão o nome de estudo; ao abandoná-los para se dedicar ao estudo literal da Mishná, tal pessoa não terá paz em assuntos práticos. Uma vez que não há ensinamento prático claro nas palavras da Mishná…”. estabelece uma relação doentia com o seu mundo. Mas as mudanças não são feitas a qualquer custo. A tradição judaica tem sua própria maneira de introduzir mudanças, de produzir novos textos, novos julgamentos que são “absolutamente verdadeiros”, que “trazem paz”. O método judaico de produzir mudanças é a interpretação que, nessa tradição, é conhecida como drash.
Com sua explicação sobre essa passagem do Talmud, Rashi nos ensina que as normas práticas (os costumes que regem a vida de uma comunidade, sua halachá, em um determinado momento) não podem ser aprendidas dos textos precedentes sem antes atentar às interpretações correntes em cada geração. Os sábios da Mishná estavam obrigados a interpretar a Torá, e os sábios da era talmúdica foram chamados a fazer o mesmo com a Mishná. E assim geração após geração. Caso contrário, quem estuda o anterior sem o atual “não tem paz”. A nova interpretação é aquela que valida e atualiza a vigência dos textos anteriores. Essa é uma interpretação saudável.
A tradição judaica tem sua própria maneira de introduzir mudanças, de produzir novos textos, novos julgamentos que são “absolutamente verdadeiros”, que “trazem paz”. O método judaico de produzir mudanças é a interpretação que, nessa tradição, é conhecida como “drash”.
Quem decide não andar, ou fazer como fizeram no passado, é incapaz de permanecer no mundo. Sua verdade não seria absolutamente verdadeira. A Torá seria insuficiente. “Que terra mais pachorrenta!”, a Rainha de Copas repreende Alice que, se ela se mantivesse nas regras do seu país naquele espaço, sequer conseguiria se manter no mesmo lugar.
O rabino Moshe Zemer (1932-2011), em sua obra Halachá Shefuiá (1993) propõe uma relação entre halachá e shafui, que pode ser traduzido como saudável, livre de doenças, perfeito ou reparado. Ele toma emprestada a ideia de shafui da forma como se usa para chamar a pessoa quando ela é coerente, transparente ou sã intelectualmente. A pessoa shefuiá é sã de corpo e espírito e tem um relacionamento saudável com o passado. Não está submetida a ele. Não está desconectada da realidade que a cerca. Interage com a sua realidade diária, que está em constante mudança. É por isso que é preciso flexibilidade e firmeza ao mesmo tempo: está enraizada no caminho de seus ancestrais e acrescenta seu caminho particular.
Como a pessoa “sã”, a halachá deve ser assim, ou seja, flexível e firme ao mesmo tempo. Deve se inspirar num passado distante e permitir um diálogo saudável e coerente com o presente. É necessário, saudável, caminhar para se manter no mesmo lugar. Quem não o faz,
A palavra drash é central na Torá. Literalmente central. Como diz o Talmud (Kidushin 30a), a expressão darosh darash (Levítico 10:16) seria a metade da Torá se todas as palavras do Pentateuco fossem contadas e divididas em duas. É interessante notar a metáfora dos sábios do Talmud, que propõem que o centro, o coração da Torá, é o encontro entre duas drishot.
Não dissemos até agora o que significam essas palavras, que derivam da raiz hebraica ש–ר–ד. Tentar traduzir esse termo com uma única palavra seria insuficiente e, portanto, errado. No Tanach encontramos múltiplas acepções. Alguns exemplos:
• Questionar (lidrosh): “As crianças pressionavam uma à outra dentro dela.” Ela pensou: “Se é assim, por que eu existo?” E foi questionar o “Eterno” (Gênesis 25:22).
• Indagar (darosh darash): “Então Moisés indagou sobre o bode da oferta de purificação, e este já havia sido queimado…” (Levítico 10:16).
• Procurar (darsha): “Ela procura lã e linho, e trabalha com prazer com as mãos” (Provérbios 31:13).
• Inquirir (darashta): “Investigue, inquira e interrogue cuidadosamente. Se for verdade, o fato estabelecido – de que algo abominável foi perpetrado em seu meio” (Deuteronômio 13:15).
• Investigar (darshu): “E os magistrados farão uma investigação minuciosa. Se aquele que depor for uma falsa testemunha, havendo testemunhado falsamente contra um irmão” (Deuteronômio 19:18).
• Cuidar (doresh): “É uma terra que o Eterno seu Deus cuida, sobre a qual o Eterno seu Deus sempre mantém um olho, do início do ano ao fim do ano” (Deuteronômio 11:12).
No hebraico moderno, a raiz ש–ר–ד é usada para os verbos exigir, solicitar, requerer, reivindicar. Os sábios judeus, desde o primeiro século, usam esse termo para se referir a uma “interpretação”. O midrash halachá é o método de interpretação que atualiza o passado do texto para cada presente e o torna atual, saudável e absolutamente verdadeiro. Esse “interpretar” questiona, indaga, procura, inquire, investiga, cuida, exige e até reivindica ao texto.

Esta investigação profunda é a tentativa de nos aproximar do divino, do eterno, daquilo que excede a nós mesmos.
Vejamos um exemplo de como a interpretação produz, em cada geração, novas regras práticas. Na Torá, a frase “Quando um homem pega uma mulher...” (Deuteronômio 24:1) refere-se a que essa mulher se torna sua esposa. O ritual do casamento judaico que conhecemos hoje não existe na Bíblia. Os sábios do Talmud, no tratado Kidushin, se dedicam a interpretar essa expressão bíblica para estabelecer um ritual para seu tempo. Mas, por exemplo, o Talmud nada diz sobre a troca de alianças ou sobre a quebra do copo, símbolos que atualmente ocupam um lugar central na cerimônia de casamento judaico.
O judaísmo que vivemos é rabínico, e não mosaico. Ou seja, resultado das interpretações e atualizações que os sábios e os mestres vão fazendo em cada tempo e lugar. Inspiramo-nos no passado, na Torá e na biblioteca que nos foi legada. Vivemos no presente, pois para que seja vigente, a biblioteca deve ser atualizada a cada momento e em cada lugar de acordo com o contexto. Trabalhamos para o futuro, pois a forma judaica de fazê-lo é através do midrash, a interpretação que nós passamos para as próximas gerações.
A halachá de cada geração é fruto de uma caminhada intensa. Para se manter nos costumes e normas práticas da vida judaica, é preciso correr muito.
Nós não lemos a Torá. Nós estudamos a Torá, nós a interpretamos. Interpretar nossos textos significa que estamos procurando algo importante neles. Essa investigação profunda é a tentativa de nos aproximarmos do divino, do eterno, daquilo que excede a nós mesmos. Revela nossa obstinação em reivindicar significado de acordo com nossos contextos e valores. A interpretação mostra que mantemos a pergunta viva, que exigimos novos significados da Torá. com suas circunstâncias. A halachá é mutável e múltipla e, portanto, significativa e eterna. Até o século 19, ela foi versátil e dinâmica nas diferentes comunidades judaicas. O termo halachá é singular apenas quando se refere ao corpo que contém a multiplicidade de halachot (plural de halachá). Halachá é a experiência que vivemos e a escritura que compartilhamos e deixamos como legado. As experiências judaicas permanecem significativas porque nós as transformamos para manter alguns sentidos intactos.
Diz a Mishná: “A dispensa de juramentos está no ar e não há nada em que você possa se apoiar. As halachot de Shabat, das festas e das transgressões são como montanhas que ficam suspensas por um fio de cabelo, pois há poucos versículos e muitas halachot. As normas civis, as das oferendas no Templo, as de pureza e impureza e as relativas ao incesto têm onde se apoiar. E estas, estas são o corpo da Torá” (Mishná Chaguigá 1:8).

A halachá é o andar judaico. São os usos e costumes de cada comunidade, em cada época e lugar, de acordo com suas circunstâncias.
A halachá é mutável e múltipla e, portanto, significativa e eterna.
A Gemará pergunta a respeito desta Mishná: “E estas, estas são o corpo da Torá: Estas sim e as outras não? Se não, o que devemos dizer: ‘Estas, e estas são o corpo da Torá’.” (Chaguigá 11b)
Os sábios do Talmud interpretam que o corpo da Torá é composto tanto pelos costumes que “ficam suspensos por um fio de cabelo” quanto por aquelas que “têm em que se apoiar”. Pouco é dito na Torá sobre os costumes do Shabat ou sobre as festividades, mas inúmeras bibliotecas de interpretações legais e implicações práticas foram escritas sobre elas. Por outro lado, é certo que há mais detalhes na Bíblia hebraica sobre as regras de pureza e impureza ritual. E para os mestres do Talmud, umas e outras constituem o “corpo da Torá”.
A halachá é o andar judaico. São os usos e costumes de cada comunidade, em cada época e lugar, de acordo
Nossa halachá, desde os tempos do Talmud, foi integrada não apenas com as normas que constam na Torá, mas – e principalmente – com as interpretações da nova geração, mesmo que pouco ou nada disso esteja explicitado na Torá. Os textos do passado nos inspiram. No presente, vivemos comprometidos com o nosso entorno. Trabalhamos para continuar ensinando e aportar ao futuro a nossa forma de caminhar, para que esta, por sua vez, sirva de inspiração. Somos flexíveis para nos mantermos firmes. Nós nos adaptamos para sermos saudáveis. Parafraseando Carroll, é para permanecer no mesmo lugar que tanto corremos.

Notas da tradutora:
As citações do livro “Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho” são da versão de Maria Luiza X. de A. Borges, que é a publicação clássica em português da obra de Lewis Carroll.
As citações da Bíblia são da versão em português do chumash do Rabino Gunther Plaut, A Torá – um comentário moderno.
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