TERRA À VISTA!
Rabino Sérgio R. Margulies
VÍCIOS DE LINGUAGEM
Vittorio Corinaldi


TERRA EM TRANSE
Henry Galsky
TERRA À VISTA!
Rabino Sérgio R. Margulies
VÍCIOS DE LINGUAGEM
Vittorio Corinaldi
TERRA EM TRANSE
Henry Galsky
IDENTIDADE JUDAICA E AUTODETERMINAÇÃO
Yohanan Grau
A FÉ NO STREAMING
Alessandra Sauberman
O PODER DO PEQUENO
Ethel Scliar Cabral
E mais: Chazanit Carla Knijnik, Henrique Rzezinski, Rabino Joseph Edelheit, Juliano Klevanskis Candido, Paulo Geiger
André Sena Revista da Associação Cultural – ATID Ano 18, n° 48, agosto de 2023 Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARIJovens reunidos em congregação na histórica sinagoga Kahal Zur Israel, em Recife, a primeira sinagoga do Hemisfério Sul e das Américas
Mais de 1.200 congregações filiadas à WUPJ. 50 países em seis continentes, sendo sete países da América Latina e 13 congregações no Brasil.
Nossa corrente religiosa se baseia em:
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Um fato extraordinário aconteceu nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1958, aquela em que o Brasil conquistou o seu primeiro triunfo: um país se classificou para a fase final do torneio sem ter feito um gol sequer e também sem ter perdido ou empatado um único jogo.
Isto porque a seleção do Estado de Israel conquistou uma das vagas destinadas à Ásia e África sem ter entrado em campo, tendo em vista a recusa de Turquia, Indonésia e Senegal de enfrentá-la (importante lembrar que o regulamento de 1958 não é igual ao de hoje, quando todos os países filiados à FIFA disputam as eliminatórias).
Ao perceber que as finais da Copa do Mundo contariam com uma seleção com mérito futebolístico zerado, a FIFA “virou a mesa” e inventou um torneio de repescagem entre Israel e o País de Gales, a seleção que havia ficado mais próxima da zona de classificação entre as seleções europeias. O País de Gales ganhou o torneio por um duplo 2 x 0 e, assim, Israel ficou fora da Copa (nas quartas de final, o Brasil “vingou Israel” e ganhou do País de Gales por 1 x 0, com um antológico gol de Pelé).
Seis anos mais tarde, Israel sediou e venceu a Copa da AFC (a região asiática e africana da FIFA) de 1964, numa conquista indiscutivelmente prejudicada pela desistência antes do torneio de 11 dos 16 países classificados para aquela Copa.
Depois de se classificar para sua primeira e única Copa do Mundo em 1970, Israel amargou um período de limbo futebolístico, pois foi excluído dos torneios da AFC em 1974. Em 1982, a FIFA se condoeu com a situação e incluiu o país nas dificílimas eliminatórias europeias. Já em 1986 e 1990, a seleção azul e branca disputou a fase de qualificação da Oceania. Israel não foi classificado para nenhuma dessas três Copas.
Assim que, nos 20 anos, de 1970 a 1990, o país viveu uma fase de “judeu errante”, sendo jogado de uma região para outra. Contudo, em 1991, a situação começou a se estabilizar e Israel passou a participar das competições europeias. Em 1994, foi oficialmente incluído na UEFA, a poderosíssima organização europeia, que abriga a nata do futebol mundial.
Como todos os brasileiros sabem muito bem, classificar-se nas chaves da UEFA não é tarefa para times fracos ou medianos. Tem que jogar muita bola para tal!
A seleção israelense que se classificou para as finais do mundial sub-20, disputado em junho passado na Argentina, ficou em segundo lugar no torneio classificatório, deixando para trás os times da França, Áustria e Sérvia, perdendo apenas para a Inglaterra.
E a seleção israelense continuou a fazer bonito nas finais. Ganhou do Brasil e chegou ao terceiro lugar do torneio, marcando bonitos gols e mostrando ótima coordenação entre suas linhas.
Tudo leva a crer, então, que Israel está criando uma geração de futebolistas com o potencial de acumular conquistas mais proeminentes do que os magros resultados que apresentou até agora.
Caso isto aconteça, estaremos mais uma vez diante de uma situação que se repete há milênios no povo judeu: a capacidade de fazer limonadas a partir dos limões que a vida nos apresenta. Israel foi obrigado a jogar na UEFA, logo, tem que desenvolver times de primeira linha.
O exemplo do futebol é frívolo diante da imensa quantidade de situações em que fizemos limonadas a
Judaísmo rico e plural, nos múltiplos aspectos em que ele se expressa e em cada aspecto particular que lhe seja especialmente caro:
» na comunhão religiosa e espiritual em todos os momentos do ciclo da vida, nos grandes marcos de passagem, individuais e coletivos, no culto diário, no Shabat, nas datas de júbilo e de introspecção;
partir de limões amargos – muito mais vezes que o razoável, extremadamente amargos.
Israel é obrigado a manter um enorme exército em prontidão constante. A consequência disso é a forte coesão social de sua população e a formidável capacidade de desenvolvimento de tecnologias criativas.
Os judeus foram assassinados em massa na Europa. Uma das consequências disso foi o renascimento da soberania judaica.
O Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos da Antiguidade. A consequência disso foi a emergência de uma forma indestrutível de cultura, não baseada em edifícios e soberania nacional e sim em estudo e espiritualidade.
Gostamos de nos chamar, e somos assim chamados por muitos, de “o povo do livro”, mas me parece que poderíamos nos chamar também de “o povo das limonadas”. Um povo que não se cansa de assombrar o mundo com sua capacidade de superar obstáculos.
Raul Cesar Gottlieb Diretor da Devarim» no estudo do judaísmo e do povo judeu, sua história, suas fontes, sua interação com o meio ambiente e com a civilização, em aulas e cursos para todas as idades;
» na participação solidária em projetos sociais, prática viva das grandes mitsvot, de tsedaká e de justiça social – alma e núcleo da concepção judaica do mundo traduzida em responsabilidade e ação;
» na aprendizagem dos valores judaicos, nos campos da história, das artes, da filosofia, do pensamento, da ciência, em uma programação cultural permanente, para todas as idades;
» na convivência comunitária, de estreitamento de laços de amizade e de parceria, de fortalecimento individual e coletivo da identidade e da solidariedade.
devarim [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coisas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então milim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos.
3 O quinto e último livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coisas. 4 Revista da Atid e do judaísmo liberal, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
Revista Devarim
Associação Cultural – ATID
Ano 18, nº 48, agosto de 2023
PRESIDENTE DA ARI Eduardo Rabinovitch
PRESIDENTE DA ATID Gilberto Lamm
RABINO CONSULTOR Sérgio Roberto Margulies
DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb
CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Moacir Amancio, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies
DIREÇÃO DE ARTE Charles Steiman
EDIÇÃO DE ARTE Daniela Knorr
REVISÃO DE TEX TOS Raquel Correa
TRADUÇÃO Michel e Sheila Ventura, Kelita Cohen, Raul Cesar Gottlieb
FOTOGRAFIA DE CAPA IMAGO
FOTOGRAFIAS iStockphoto.com
COLABORARAM NESTE NÚMERO Alessandra Sauberman, André Sena, Chazanit Carla Knijnik, Ethel Scliar Cabral, Henrique Rzezinski, Henry Galsky, Jacques Fux, Rabino Joseph Edelheit, Juliano Klevanskis Candido, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Sérgio Alberto Feldman, Rabino Sérgio R. Margulies, Vittorio Corinaldi e Yohanan Grau.
Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ATID ou da ARI.
Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, ao invés de de le-dor, e beiachad, ao invés de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
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Rabino J. Gordon, 1897-1954
Nos idos do século 12, um rabino conhecido como Benjamim de Tudela partiu de viagem. Desbravou e descreveu a estrutura de comunidades judaicas e a organização social de diversas cidades espalhadas em parte da Europa, África e Ásia. O mundo por ele conhecido era geograficamente menor do que podemos desbravar atualmente, além de que hoje a empreitada pode ser realizada de modo bem mais fácil. Um convite: vamos imaginar que somos impulsionados pelo anseio de Benjamim de Tudela e também queiramos explorar os cantos do mundo. Os continentes a serem explorados se ampliaram, então fica a pergunta: será que também a apreciação da riqueza cultural e da diversidade das expressões sociais se expandiu? Aqui um possível e imaginário relato das viagens neste século 21.
Tracei coordenadas, ah!, que diferença da minha primeira viagem, agora tudo é previamente planejável e até os lugares a serem visitados podem ser conhecidos mesmo antes de lá estarmos. Fiquei entusiasmado. Teria mais informação e, portanto, mais substância no que iria descobrir com a chance de visitar um número maior de lugares. E assim fui, para lá e para cá. De uma região a outra. Ouvi e conversei, vi e registrei. Em dado momento, ainda que seguisse por novos caminhos, tudo parecia igual. Era como se conhecesse somente um lugar. Bem, insisti em minhas jornadas e, no final, minha impressão é de que há somente dois lugares nesse vasto mundo. Dois lugares, não pelos limites da vastidão de terra, mas sim porque o pensar criativo é espoliado. Dois lugares distintos, mas que se assemelham.
“Viajar pode ser uma experiência que vamos sempre lembrar ou uma experiência que, ai, nunca vamos esquecer.”
Enquanto na Terra do Nunca nada é bom, na Terra do Sempre tudo é insuficiente.
O primeiro lugar é Terra do Nunca. Os habitantes da Terra do Nunca repetem constantemente um provérbio: “nada será como antes”. Se alguém – e isto é raro – vier com alguma ideia, logo escutará: ‘não dará certo!’. E se alguém tentar contribuir com sua experiência e conhecimento também vai escutar um constrangedor: ‘melhor deixar como era antes’. Às vezes o ‘não dará certo!’ pode ser justificado: ‘já tentei e não funcionou’ (somente é ocultado o fato de que nunca tentou). Para coibir estas – repito – raras novas tentativas de contribuições, foi decretado que qualquer inovação arriscaria a estabilidade e quem ousasse trazê-la seria enviado ou para o calabouço ou para o manicômio. (Acho que isto nos remete ao conto O Alienista de Machado de Assis.)
A maneira como as pessoas andavam nessa Terra do Nunca era estranha: quase todos prostrados. Os passos eram lentos e as cabeças baixas. Entendi que glorificavam o passado a tal ponto que tudo que acontecia no presente era inadequado. Assim, não havia alegria e senso de realização. As conversas eram escassas e, mais do que palavras, ouvi muito grunhido de insatisfação e lamentação sob a alegação de que a época deles destoava da outrora era dourada. Sobre isso, meu conterrâneo, intérprete da Torá, Nachmânides, que nasceria algumas décadas depois, comentou: muitos do povo de Israel em sua jornada pelo deserto tinham percepção errônea do passado e viviam na nostalgia. Essa nostalgia, além de distorcer o passado, compromete o presente e o futuro. Bem, se é errada, por que a distorção não é corrigida? Porque a distorção permite acomodar as convicções. Ao invés de aprender com as experiências, os fatos são remodelados para justificar as convicções. A convicção não surge como consequência do aprendizado e das informações, ao contrário, ajustam os fatos aos seus interesses. Para disfarçar e deixar tudo embelezado, esses fatos manipulados são chamados de notícias e caracterizados como dados científicos. Assim é na Terra do Nunca.
Continuando a viagem fui para a terra vizinha, a Terra do Sempre. Os habitantes de uma região não vão para a outra em função do antagonismo: Nunca x Sempre. Logo ao chegar à Terra do Sempre, notei um relógio localizado no alto de uma torre que ficava no centro de todos os trajetos. Este relógio indicava um tempo
futuro e a cada nova hora o relógio adiantava duas horas, distanciando a cada vez o tempo registrado do momento vivenciado. Tudo que se falava é como o futuro será promissor, no entanto, cada vez que esse futuro se aproximava simultaneamente se distanciava. Assim, sempre haverá um futuro que nunca chega, o que compromete as realizações do presente. Cada conquista era negligenciada, pois estava muito aquém do que o futuro prometia.
Os habitantes da Terra do Sempre andam saltitando, mal encostando os pés no chão, afastados que estão da realidade. De algum modo, nutrem-se do ufanismo e se iludem com o amanhã que é sempre adiado. Os habitantes da Terra do Sempre são entorpecidos pelo delírio de que tudo sempre será como a ilusão determina, porque essa é a vontade. Se alguém apontar que os imperativos do desejo devem ser mediados pelo reconhecimento das evidências, torna-se larápio do otimismo e condenado ao crime de alertar para a realidade. (Mais alienistas para Machado de Assis?!).
O presente, ao invés de ser esteio para construir contínuas melhorias, é sistematicamente desmantelado a fim de que o futuro seja vangloriado. Tampouco as lições do passado servem de alavanca. Na Terra do Sempre se permanece no compasso da espera do que será, sem que venha a ser. Não por acaso, os saltitantes caminhantes volta e meia tropeçam combalidos pela frustração, sem que disso nada se aprenda, pois na Terra do Sempre tudo é sempre sabido por antecedência. Na sequência, sem que perguntas de reflexão sejam feitas, um novo ciclo de entusiasmo manipulativo inicia ‘agora ao futuro’ numa eterna ficção que nada tem de científica. Recordo-me
das palavras de estudiosos da Torá de que a incerteza de um amanhã que não chega gera ansiedade. Por trás do otimismo escatológico há muita ansiedade. Assim é na Terra do Sempre.
Uma só Terra
Gostaria de dar as coordenadas geográficas das Terras do Nunca e do Sempre, mas não é simples, pois há muitas terras similares: desde os microcosmos das organizações até as macroestruturas sociais. Em acréscimo, ainda que diferentes, a Terra do Nunca e a Terra do Sempre são, como já mencionei, parecidas. Ambas se sustentam sob os pilares da inversão, manipulação e acomodação. Através da inversão, em que os interesses se voltam contra a razão, inverte-se a razão para que os interesses sejam acomodados. Deste modo, enquanto o tempo inexoravelmente passa, os ponteiros do relógio da Terra do Nunca giram para o passado, ainda que nada encontrem, e, na Terra do Sempre, os ponteiros giram para o futuro, impedindo que o amanhã venha a se tornar hoje. Enquanto na Terra do Nunca nada é bom, na Terra do Sempre tudo é insuficiente. Para atenuar a frustração que, eventualmente, irrompe nas almas humanas sedentas por esperança, aparecem promessas de salvação como se fossem o mágico pó de pirlimpimpim. Estas Terras não são, entretanto, contos de fadas. Elas existem e talvez você nem saiba, mas esteja nela.
Quando visito os lugares, gosto de admirar as paisagens, atrações e encontrar pessoas para aprender
diferentes costumes e visões. Isso não aconteceu nas Terras do Nunca e do Sempre, pois todos são induzidos a se acomodarem. Curiosamente todos se tornam ninguém, com existências pasteurizadas pelo conformismo, ou são alvos da cultura de cancelamento.
Diante do relato destas crônicas de viagem, você pode concluir que estas terras não devem ser visitadas. Faz sentido, mas faço duas observações. A primeira, enfatizo, é que talvez você já esteve ou até esteja numa destas Terras; elas existem em lugares próximos, no fundo em qualquer lugar, pois são localizadas nas mentes humanas. Então, a segunda observação é: as crônicas de uma viagem – e aqui me refiro às jornadas da vida – descrevem menos os lugares de destino e ensinam mais sobre os próprios viajantes, sobre cada um de nós. Esse aprendizado nos ajuda a refletir sobre o que (e quem) autorizamos que molde nossas vidas e qual o nosso nível de complacência para com os parâmetros do ‘Nunca será’ e ‘do Sempre foi’. Essas reflexões – entre tantas outras possíveis – constroem novas terras até mesmo nos lugares que já estamos.
PS.: Esta é a minha crônica. Tal como Benjamim de Tudela fez a dele, fiz a minha (inspirado por ele). Que você faça a sua para juntos ampliarmos os limites espirituais das terras de nossas vidas, a fim de que não fiquem confinadas entre o Nunca e o Sempre. Que não percamos esta perspectiva de vista: Terra (nova) à vista!
Neste começo de século, no qual a autoidentidade é um conceito que se aproxima do sagrado, muitas pessoas não estão dispostas a colocar sua identidade sob o poder de alguma autoridade.
Na primeira semana de junho, foi realizada, em Nova York, a conferência “Re-Charging Reform Judaism”, que abordou as questões-chave do movimento reformista, incluindo a relação com Israel e o sionismo, o fortalecimento da identidade judaica e, de acordo com o artigo em Jpost sobre a conferência1, a queda no número de conversões dentro do movimento nos Estados Unidos. O artigo observa que: “As conversões se tornaram um problema menor no movimento reformista, já que muitos dos rabinos realizam cerimônias de casamento mesmo que um dos cônjuges não seja judeu. Além disso, uma pessoa pode ingressar em uma congregação reformista simplesmente chamando a si mesma de judia. […] o processo de conversão gradualmente desapareceu completamente nas congregações judaicas americanas.”
Se dermos veracidade a esta informação, quem, como eu, habituado ao notável afluxo de candidatos ao processo de conversão nas comunidades reformistas da Ibero-América fica muito surpreso. Eis que, por vezes (como acontece frequentemente no Brasil), o número de candidatos é superior ao que a comunidade pode lidar.
No entanto, parece que a tendência nos Estados Unidos é diferente, e que há muitas pessoas que não acreditam que precisam de qualquer tipo de processo oficial para consolidar sua identidade judaica. Que sua autopercepção ou pertencimento a uma família judia, por meio de seu cônjuge, é o suficiente.
1 https://www.jpost.com/diaspora/article-744757
Neste começo de século, no qual a autoidentidade é um conceito que se aproxima do sagrado, muitas pessoas não estão dispostas a colocar sua identidade sob o poder de alguma autoridade.
E este é um ponto-chave onde o pensamento judaico tradicional e o pensamento moderno colidem, especialmente dentro da cultura americana. O pensamento americano tradicionalmente atribui um valor supremo à liberdade individual. Liberdade de religião, liberdade de expressão, liberdade de autodeterminação... são quase sagradas para qualquer pessoa criada nos Estados Unidos.
Se uma pessoa se sente judia, afirma acreditar no judaísmo ou escolhe se identificar como judia... que autoridade tem o direito de negá-la?
Isso não iria contra o direito individual fundamental à liberdade religiosa? Por que os rabinos (que frequentemente não concordam uns com os outros) devem ter a palavra final sobre o que eu acredito e sinto?
como judeu e nenhuma prova adicional será exigida.”.
Porém, em 1960, o setor religioso sionista assumiu o controle do Ministério do Interior e mudou os critérios para a definição que, com poucas variações de detalhes, foi mantida desde então: judeu seria “uma pessoa nascida de mãe judia e que não pertence a outra religião, ou que se converteu de acordo com a halachá”.
Passando para a diáspora e entrando na esfera dos movimentos liberais, podemos encontrar outras abordagens a este conceito de autodeterminação. O rabino David J. Goldberg, da Sinagoga Judaica Liberal de Londres, escreveu em seu livro de 2012 This is not the way: Jews, Judaism and Israel:
Nossa religião não pode ser vivida na solidão, e um grupo de iguais é necessário para se reconhecer e estabelecer aquele vínculo comum que nos une como judeus reformistas.
Afinal, as estatísticas religiosas do país são configuradas de acordo com as respostas das pessoas sobre suas crenças. Se eu disser que sou judeu, o próprio Estado me refletirá como tal. Por que se submeter a uma autoridade no assunto?
E da mesma forma, o que acontece se todos pensarem em mim como judeu, mas eu deixar de me identificar com esse rótulo? O pensamento judaico tradicional sustenta que é impossível deixar de ser judeu, mas se eu rejeitar essa identidade e me distanciar de toda filiação religiosa e comunitária, o que resta do judeu em mim? Quem pode me forçar a ser judeu se eu não me sinto como um?
Poucas vozes lidaram com esta questão. O próprio Estado de Israel, durante sua primeira década de existência, exigia daqueles que desejavam imigrar para a nação judaica, apenas uma declaração pessoal de que eram judeus.
Mesmo diante das demandas do setor religioso sionista para mudar a definição e adequá-la à halachá tradicional em 1957, houve uma resposta negativa do setor secular. O ministro do Interior, Israel Bar-Yehuda, publicou uma diretiva oficial estipulando que “Um indivíduo que de boa-fé declarar que é judeu será registrado
“Em Nova York, Londres, Sydney... você verá um grupo diverso e multifacetado de pessoas compartilhando alegremente sua identidade judaica, memórias e cultura comuns, independentemente de seus avós maternos marcarem todas as corretas caixas de pedigree. Hoje o grande significador de ser judeu é a identificação voluntária, o desejo de se considerar parte do Am Israel, o povo judeu, ao invés de satisfazer critérios genéticos que desde Hitler sempre terão um eco incômodo das leis raciais nazistas [.. .] Portanto, a definição mais simples, mais compreensível e amplamente aceita [...] é afirmar que, em última análise, um judeu é aquele que diz que é. O que pode ser mais reveladoramente verdadeiro do que como uma pessoa escolhe se definir?”
Essa mesma ideia é considerada e desenvolvida por Robert Mnookin em seu livro de 2018, The Jewish American Paradox: Embracing choice in a changing world Nele, Mnookin defende o que chama de “Definição da Grande Tenda”, uma definição ampliada de quem é judeu na sociedade americana e que é contrastada no livro com a estreita definição oficial que o Estado de Israel usa desde 1960, que só aceita pessoas nascidas de mãe judia ou aquelas que se converteram ao judaísmo sob autoridade rabínica e comunitária aceitável pelos padrões do Ministério do Interior de Israel.
Na “Grande Tenda” de Mnookin estão incluídos,
além destes: pessoas com pai judeu; os cônjuges de judeus que estão criando filhos judeus e que participam da comunidade; pessoas com avô ou avó judia; pessoas de ascendência judaica remota (como os Bnei Anussim); e até judeus de nascimento que se consideram etnicamente judeus, embora pratiquem outra religião.
O que une todas essas pessoas e lhes garante seu lugar sob a “Grande Tenda” do judaísmo americano é a autoidentificação pública. Em suas próprias palavras: “Para a comunidade judaica norte-americana como um todo, o padrão deve ser a autoidentificação pública. Você está disposto a se identificar publicamente como membro do povo judeu? Se assim for, você é bem-vindo na Grande Tenda da comunidade judaica americana. Aqui você encontrará uma grande variedade de organizações e grupos. Alguns são religiosos. Outros se concentram na justiça social ou nas necessidades de Israel. Existem programas educacionais, centros comunitários, museus e festivais de cinema. Venha explorar.
É intrigante a ideia de que não precisamos da permissão, bênção ou aprovação de ninguém para sermos judeus. Que não reconhecemos nenhuma autoridade a esse respeito além da nossa.
Mas será isso possível?
Como mencionei antes, essas ideias se chocam com
as noções que vemos no pensamento judaico tradicional. Quando olhamos para nossos textos haláchicos clássicos, ser judeu parece ser tudo menos uma questão pessoal. Não há como deixar de ser se você já o é, e tornar-se requer um processo supervisionado por um tribunal rabínico em que o que importa é o compromisso com um estilo de vida baseado em ações concretas e no cumprimento das normas estabelecidas. Sentimentos e identidade não estão envolvidos nisso em nenhum momento.
Carece, então, de importância a própria identidade judaica? De forma alguma! Dentro do Movimento Reformista, a identidade judaica é um valor primordial, uma característica inestimável que devemos sempre estimular e despertar nos outros e em nós mesmos.
Mas, da mesma forma que a pessoa tem direito a seus próprios critérios na hora de se definir, a comunidade também tem direito a seus próprios critérios na hora de aceitar essa identidade, e o judaísmo nunca foi uma religião individualista.
Nossa religião não pode ser vivida na solidão, e um grupo de iguais é necessário para se reconhecer e estabelecer aquele vínculo comum que nos une como judeus reformistas. O próprio Mnookin defende em seu livro, acima citado, que diante dessa definição ampla e abrangente existe também o que ele chama de “faculdade local”,
pela qual cada comunidade cria e preserva seus próprios critérios de aceitação de pessoas que desejam pertencer a ela. Tais critérios são exclusivos de cada comunidade e não devem ser impostos a outras.
No âmbito Ibero-Americano, a identidade judaica ainda está muito mais ligada ao pertencimento comunitário do que nos Estados Unidos. Os judeus não ortodoxos dos Estados Unidos, geralmente têm uma noção de identidade judaica que gira mais em torno de referências culturais, comida, vocabulário e até afiliações políticas do que qualquer crença (os judeus norte-americanos são mais propensos a se declarar ateus do que praticamente qualquer outra minoria nos Estados Unidos) ou associação comunitária.
É imprevisível saber a tendência que esse fenômeno evoluirá nos próximos anos, nos diferentes lugares do planeta. No entanto, quero transmitir sobre essa ideia que, dentro da minha visão como judeu reformista e estudante rabínico, a identidade judaica não é monolítica ou unitária, mas é necessária.
Em nosso século, é preciso se sentir judeu para ser judeu, e apelar para noções genéticas e nacionais para forçar uma identidade indesejada nas pessoas, com base na culpa geracional ou em argumentos antropológicos com
reivindicações científicas, não favorece nem o judaísmo nem o povo judeu.
Mas, assim como a identidade pessoal como judeu é necessária, ela também não é suficiente se você deseja viver uma vida judaica compartilhada com a comunidade. A congregação tem o dever e a necessidade de estabelecer critérios que lhe permitam desenvolver os ideais comuns dos seus membros, devendo, por vezes, rejeitar pessoas que, por exemplo, embora tenham uma identidade judaica, sejam depositárias de crenças e ideologias que são incompatíveis ou prejudiciais para o judaísmo que a comunidade pratica.
É necessário que os membros da comunidade se reconheçam como judeus para festejarem juntos, estabelecerem laços que criem novas famílias e cimentem valores comuns. E embora seja inútil procurar um padrão que seja aceito por todos os judeus do mundo, um judeu não pode existir apenas como uma célula, e uma comunidade receptiva é necessária para viver uma vida judaica digna desse nome.
Ser judeu raramente é assunto de uma pessoa só. Como nos é ensinado no tratado Shevuot (daf 39a) do Talmud Bavli: “הזב הז םיברע לארשי לכ”. Todo o Israel é responsável um pelo outro.
O IIFRR faz uso do potencial da moderna tecnologia de ensino à distância, combinando seminários semestrais de inserção com estudo diário remoto.
Junte-se aos mais de 20 estudantes que iniciariam sua Formação e que serão nossos futuros rabinos/as e líderes comunitários.
As inscrições estão abertas para os que desejan iniciar sua formação.
Os meses recentes oferecem um quadro da realidade israelense, no qual ganha acento uma tendência considerável de retórica nacionalista e “nacional-religiosa” por parte dos círculos oficiais: ela teve palco nos muitos eventos que se seguiram com curto espaço: o Dia do Holocausto (Iom haShoá), em que a catástrofe da Shoá é tratada em termos de superficialidade pseudo-humanista; o Dia dos Caídos (Iom haZikaron), em que o inegável sacrifício de milhares não consegue escapar dos mesquinhos ocos palavreados de políticos; o Dia da Independência (Iom haAtsmaut) e o Dia de Jerusalém (Iom Yerushalaim), cômodos objetos de ufanismo azul e branco que se pronuncia em abundância em
eventos de discutível festividade e gosto, e infelizmente também de incitação e violência. E em contraste, a última campanha (denominada “Ação Escudo e Flecha”) lançada contra o território de Gaza – de onde o grupo guerrilheiro “Jihad Islâmica” vinha lançando um cerrado ataque de mísseis sobre as cidades de Ashkelon e Sderot e os kibutsim limítrofes com aquela faixa.
Há que salientar que todos esses eventos aconteceram quando estava em andamento o grande protesto popular pelo assalto que o governo (na pessoa do ministro Iariv Levin) iniciou contra o Poder Judiciário, contra a estrutura liberal e democrática do Estado, e contra os direitos do cidadão.
O prestígio do governo, e do primeiro-ministro Netanyahu em especial, estava em sensível declínio, também porque a cruzada contra os Tribunais desencadeou uma previsível reação da economia (que de sua situação de próspera solidez entrou de forma repentina num absurdo e preocupante recesso, ecoado na esfera nacional e internacional). Ao mesmo tempo, os partidos religiosos da coalisão governamental, seja os “Charedim” ultraortodoxos, seja os militantes “messiânicos” da kipá de crochê, seja os fanáticos racistas herdeiros da doutrina do Rav Kahana, interpretaram o momento como apropriado para fazer desvergonhadas exigências, que se traduzem num assalto aos cofres públicos, para os quais nenhum deles contribui (pois não trabalham, não pagam impostos, não servem no exército, ou seja, gozam de regalias que não são concedidas aos cidadãos produtivos).
Então, uma das faces do protesto é a afirmação clara de que o setor liberal, democrático e respeitoso das responsabilidades civis, não mais poderá tolerar tal sorte de cínico parasitismo.
A campanha militar, glorificada com um orquestrado discurso patriótico, foi na verdade uma larga operação das Forças Aéreas apoiadas em eficientes fontes de inteligência, dirigida com precisão “cirúrgica” contra as pessoas dos principais líderes do “Jihad” responsáveis pelos bombardeios de mísseis. Estes não causaram vítimas ou prejuízos graves, mas serviram de objeto para o dito discurso, no qual naturalmente não se falou da assimetria tecnológica entre os lados em conflito – por mais necessária e
Netanyahu traiu essa confiança, e levou o país a um inimaginável nível de perigo existencial. Sua ação nociva – proposital ou de efeito – se espalhou por incontáveis setores
justificada que seja a reação militar à provocação proveniente de Gaza. Nem se fazia referência ao fato de que, apesar da elogiada precisão, a retaliação aérea atingiu também crianças e civis inocentes.
A operação militar foi coberta pela mídia com o mesmo grau de nervosa intensidade como o de anteriores mais largos combates. E foi apresentada aos moradores de Ashkelon e Sderot (baluartes eleitorais do Likud – partido de Netanyahu) como a esperada solução às constantes agressões de que são vítimas, às quais esses moradores exigem opor significativos atos de vingança. Esta é o único caminho que o mal-esclarecido público do Likud sabe definir como saída para o persistente conflito.
Mas apesar do vangloriado sucesso, a operação em nada modificou a situação de muitos anos, e uma nova onda de ataques e consequentes ações de retaliação é apenas questão de tempo, já que nenhum sinal provem da parte do governo de se empenhar na procura de um acordo político de maior alcance.
Do acima descrito emerge um quadro que santifica a dedicação
dos combatentes e o sofrimento dos civis, criando-se um culto do luto que impregna muito da retórica corrente e se institui como uma presença oculta no quotidiano israelense. O mito da insolubilidade do conflito Israel-Palestina conquistou largos setores do público, e conferiu sentido de frustração naqueles que compreendem a necessidade de compromissos e reconhecem ocasiões perdidas para acordo.
Nas atuais circunstâncias, o exército ainda é a instituição indispensável com maior confiabilidade, não faltando exemplos de juízo equilibrado e realista frente a aventurosos desígnios da autoridade civil, formalmente encarregada da política estratégica a ser transmitida para a militar. Mas não é difícil compreender que a manutenção desse aparato – hoje reconhecido como exemplo de eficiência e objetividade – tende a conceder cada vez mais influência ao setor segurança, antepondo o critério da superioridade tática e tecnológica militar ao da política e negociação.
Também ao redor disto cria-se uma linguagem de superficial sabor patriótico, talvez orientada para compensar a afronta moral e prática da dispensa dos ultraortodoxos da convocação para o serviço (também ela revestida de argumentação visivelmente cínica e hipócrita).
Ao trazer estes comentários pessoais ao leitor de “Devarim” me é doloroso faltar à minha tradição de fé no caminho sionista, e de confiança nos líderes capazes que ele sempre soube produzir. Netanyahu
traiu essa confiança, e levou o país a um inimaginável nível de perigo existencial. Sua ação nociva – proposital ou de efeito – se espalhou por incontáveis setores: o já citado Poder Judiciário; a rede educacional subitamente submetida a programas de ensino de teor religioso, impingidos com espírito de retrocesso pedagógico; a cessão de pastas ministeriais de primeira importância (como Finanças ou Segurança Interna) a indivíduos incapazes e tendenciosos, que delas fazem uso em benefício de interesses setoriais, ideologias intolerantes e objetivos alheios à sua função específica; o acento em atos de caráter demagógico, declarativo e insolente, em detrimento do regular funcionamento dos instrumentos de governo para as atividades cívicas a que se destinam; o desigual apoio político e financeiro aos assentamentos da Cisjordânia, em desprezo pela opinião e compromissos internacionais; a velada ou aberta censura da livre expressão na imprensa e na mídia; a afirmada decisão de limitação de direitos das minorias e das mulheres; a autorização para o clericalismo rabínico, com cada vez novas medidas de coerção religiosa; e naturalmente como denominador comum, uma generalizada corrupção mascarada atrás de bases supostamente “legais”.
Reflexo também dos prejuízos infligidos por uma política presunçosa e errada frente à administração americana. Um desses “pecados” é a piora do liame com a Diáspora, e o
“Meme da internet que exemplifica a ‘argumentação visivelmente cinica e hipócrita’ citada no texto” colapso da centralidade de Israel como centro material e espiritual de Israel junto ao Judaísmo mundial. A linguagem que hoje emana de Israel para esse Judaísmo é uma de vulgaridade, de mística superstição, de desunião setorial e incitação étnica, de desprezo por valores universais.
Por uma surreal inversão de sentidos (inverossímil pela própria objetividade demográfica), será talvez dessa Diáspora que poderá partir o diálogo sensato que abra o caminho para uma volta de Israel à sua verdadeira vocação, agora esmagada pela grosseira politicagem. O Judaísmo Progressista em suas variadas
identidades – sufocado em Israel pelo mecanismo reacionário do Rabinato, pelo anacrônico poder de cortes chassídicas, pela pressão política dos militantes messiânicos, pela aberração de um fascismo judeu primitivo e agressivo, deverá convocar os recursos e encontrar a linguagem apropriada para essa tarefa: não através do isolamento cultural e do cultivo de atitudes abstratamente humanísticas de uma religião modernizada, e sim pela penetração ativa, programada e constante na conturbada arena israelense: as manifestações populares dos últimos meses demonstram que isto é possível.
Vittorio Corinaldi é engenheiro formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUSP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do kibuts Bror Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutsiano.
Em honra à memória de Annita Cohn Rosenberg, ativista incansável da ARI.
Não teria sido possível fazer este texto sem a colaboração de inúmeras amigas, sócias e frequentadoras da ARI.
Agradeço a todas pelos insights e depoimentos.
Você saberia apontar qual é a benção apropriada ao vestir o talit, o xale de orações? Ou quais são as bençãos realizadas quando se coloca os tefilin, os filactérios religiosos? Com certeza, mesmo que essas bençãos não estejam na ponta da língua de um judeu, uma rápida pesquisa em livro de rezas ou até mesmo na internet responde a essa questão. Mas qual é a benção destinada à colocação da kipá? Esse adereço é provavelmente o símbolo de identidade judaica mais reconhecível no mundo. E, diferentemente do talit e dos telifin, não possui uma benção que esteja ligada à sua colocação.
O motivo dessa diferenciação é muito simples. Não existe nenhuma menção dentro da lei judaica, a Halachá, sobre a obrigação de cobrir a cabeça. O uso da kipá é um minhag, um costume, e não uma obrigação religiosa. Mas trata-se de um costume que nos últimos séculos se mostrou tão universal, que seu uso foi estendido às demais obrigações religiosas de um judeu.
A noção que kipot são itens da vestimenta de um homem é praticamente universal, mas esse costume é historicamente recente e não possui nenhuma referência bíblica. O ato de cobrir a cabeça se tornou popular durante a Idade Média, especialmente entre rabinos de origem francesa e espanhola, como uma forma de honrar a santidade da oração e do estudo da Torá. O ato de cobrir a cabeça tornou-se então um símbolo de comprometimento ao Judaísmo. Com o passar dos séculos, o uso da kipá também se tornou um símbolo de resiliência e orgulho judaico.
No século XX, um movimento de mudança surge a partir da nomeação das primeiras mulheres rabinas. Chegou o momento em que, mais e mais, mulheres judias começaram a questionar e explorar o uso de kipot por mulheres. O status quo ligado ao caráter masculino e masculinizador da kipá passou a ser questionado.
Na grande esfera o próprio papel da mulher dentro do Judaísmo começou a ser discutido, e a religião não passou alheia às primeiras ondas do movimento Feminista. Se dentro da sociedade civil e do próprio núcleo familiar o papel da mulher já não era o mesmo do que em séculos anteriores, por que dentro da esfera judaica ele permaneceria estático?
Nossas antepassadas também tiveram o desejo de levantar suas cabeças e demonstrar o valor da mulher, sua importância e relevância nas práticas religiosas antes destinadas, sem questionamento, exclusivamente aos homens. O argumento da superioridade da mulher perante o homem, por ser a responsável pelos cuidados da casa e da família, e por consequência a não obrigação ou permissão do cumprimento de diversas mitsvot (mandamentos), passou a não ser mais suficiente ou sequer creditado como nada além da tentativa de exclusão e inferiorização da mulher dentro de uma sociedade estruturalmente e historicamente patriarcal. E, é claro, dentro da vida religiosa judaica.
Cada vez mais, as mulheres começaram a buscar seu lugar dentro da sinagoga, dos centros de estudo e da liderança religiosa. E aquilo que era exclusivamente destinado ao masculino passou a inquietar. Então começamos a nos questionar sobre diferentes formas de expressar nossa identidade judaica. E, aquele símbolo, tão intrinsecamente ligado à identidade judaica passou a encontrar seu lugar nas cabeças femininas.
Assim como um Aron Hakodesh, o armário presente no púlpito de qualquer sinagoga, repleto de Sifrei Torá, de tamanhos e formas diferentes, porém exatamente iguais em seu conteúdo, as mulheres que defendem um judaísmo igualitário também o fazem de formas diferentes, sentem necessidades diferentes de expressar seu judaísmo. Desta forma, não podemos afirmar que o uso ou não da kipá representa mais ou menos o feminismo judaico. A beleza está na possibilidade de se haver uma conversa sobre o assunto, onde as mulheres podem expressar livremente o que serve ou não para a sua prática religiosa individual.
Vamos verificar que existem muitos motivos pelos quais uma mulher decide fazer uso da kipá, assim como muitos motivos pelos quais uma mulher sente que essa prática não conversa com o seu tipo de identidade. O objetivo principal do feminismo judaico é dar voz a essas mulheres, diferentes em suas formas de pensar, mas iguais em sua vontade de serem ouvidas e de poder
Ordenação da rabina Alina Treiger na sinagoga da Pestalozzistrasse em Berlim, em 4 de novembro de 2010. A luta pela igualdade de direitos de uma Bertha Pappenheim ou Regina Jonas, interrompida prematuramente pela Shoá, continua.
praticar um judaísmo livre, onde suas opiniões e visões de mundo são escutadas e seus direitos respeitados.
Em um mundo onde chegamos a ponto de fazer graça com fotos e vídeos de cachorros usando kipot, será que a discussão sobre o direito de um ser humano usar kipá não se torna absurda? Na geração TikTok, onde vemos rabinos respondendo questionamentos sobre qual seria o nome judaico de um animal, aonde colocamos um ponto final? Ou se não nos é dada sequer a opção de um ponto final, podemos nós, metade do povo judeu, pedir um ponto de interrogação?
O objetivo da discussão é dar voz àquelas que durante praticamente toda a existência do povo judeu e do judaísmo, sequer foram contadas nos censos, que tiveram suas vozes constantemente caladas. Agora é a hora das mulheres liderarem o discurso sobre como elas desejam expressar tudo que dentro delas cabe. Esse é o nosso ponto de interrogação dentro da narrativa do nosso povo. É a hora de darmos voz ao nosso próprio judaísmo.
A narrativa mais simples é que essas mulheres se sentem completas como são. Não sentem falta de um objeto para significar de forma maior sua experiência religiosa. Acreditam que podem expressar o seu judaísmo sem a necessidade de agir de forma semelhante aos homens, e sentem que seu feminismo pulsa mais intensamente exatamente dentro das diferenças, e lutam para que a diferença seja tão respeitada quando o desejo por igualdade.
Toda discussão e troca de opiniões relevantes, também pressupõem uma fluidez de pensamentos.
Onde podemos ouvir a opinião do outro de mente e coração aberto
Toda discussão e troca de opiniões relevantes, também pressupõem uma fluidez de pensamentos. Onde podemos ouvir a opinião do outro de mente e coração abertos e deixar com que a visão do outro encontre-se com a nossa, seja ela idêntica ou distinta. Quando aprendemos e ensinamos, estamos constantemente em estado de metamorfose, somos um grande mosaico de tudo que passou e passa por nós, de quem fomos, somos e seremos.
Por essa razão, veremos que não são incomuns os relatos de mulheres que, em diferentes momentos de suas vidas, decidiram usar ou não a kipá, para posteriormente mudar completamente de ideia. E por que não, no futuro, mudar e seguir mudando? Grande parte das mulheres entrevistadas para esse texto sentiram necessidades diferentes dentro do curso de suas vidas, refletiram e pensaram nas práticas que eram mais adequadas para sua realidade atual, que pode não ter sido a mesma realidade de anos, meses ou até dias atrás. E a capacidade de mudar e se transformar é parte da própria característica de ser humano.
“Eu não me sinto vazia ou incompleta quando deixo de colocar uma kipá. Tenho uma kipá muito especial, que pertenceu ao meu avô, e a coloquei em momentos especiais no passado, simplesmente porque senti que naquele momento era importante e simbólico. Mas, atualmente, sinto que meu talit me completa e me abraça, e não sinto falta da kipá para me representar enquanto judia feminista.”
O discurso feminista se desenvolve de uma forma clara e uniforme na noção de que não há como recolocar a mulher no local ocupado no passado. Não é possível retornar aos dias de servidão familiar e papéis coadjuvantes dentro das comunidades. Apesar da dificuldade com que ainda a mulher se movimenta dentro do mundo, o local antepassado já é irreversível.
“Acredito que devemos levar com simplicidade os direitos da mulher e da paridade. Quando falamos muito sobre o machismo, estamos andando para trás. Temos que assumir nossas posições e nossos direitos com naturalidade, porque isso veio para ficar.”
A pesquisadora americana Helena Darwin, doutora em sociologia e mestra em estudos judaicos, separa em diferentes categorias os motivos que levam a decisão de uma mulher usar kipá: O “fazer judaico”, que está relacionado ao uso da kipá em atividades ligadas a ações de cunho judaico, como a tefilah (reza) e o estudo. O “parecer judaico”, ligado ao desejo de externalizar a condição judaica. “Sentir judaico”, relacionado aos sentimentos internos e individuais de ser judeu. “Desfazer o gênero”, que
se relaciona à vontade de eliminar as diferenças entre homens e mulheres. “Demonstração de Status”, que representa em grande número as profissionais ligadas à religião, como líderes comunitárias, rabinas, chazaniot, professoras, entre outras. Porém, podemos aplicar categorias diferentes para as mesmas razões, e, por outras vezes, as razões são diversas e se encaixam em mais de uma categoria.
A kipá passou a ser uma das formas de expressão judaica da mulher, e as diferentes razões ligadas aos motivos pelos quais uma mulher assimila esse costume são ricas e multifacetadas.
Muitas mulheres relatam que a decisão de usar kipá vem da vontade de expressar uma mensagem de igualdade entre homens e mulheres, seja nos seus direitos, como em suas obrigações.
Afirmamos que temos os mesmos direitos de sermos chamadas à Torá, de dizermos kadish por nossos entes queridos que faleceram, de cantar em voz alta publicamente, de poder sentar-se em qualquer local dentro da sinagoga, sem barreiras ou mezaninos para separar-nos, de fazer o kidush de Shabat, de servirmos como líderes comunitárias, rabinas e chazaniot, e de tantos e tantos outros direitos outrora destinado exclusivamente aos homens.
E uma vez que clamamos pelos mesmos direitos, também devemos abraçar as obrigações. O ato de usar kipá pode ser visto tanto como um direito como uma obrigação. O feminismo judaico, na sua forma mais plena, busca também responsabilizar as mulheres de forma igualitária. Também passa a ser nossa obrigação a preocupação com a tefilá, a manutenção de nossas casas comunitárias, de estar presente nos minianim.
Se não queremos mais ser colocadas em segundo plano, devemos arcar com todas as obrigações de se estar em primeiro plano.
“Usar kipá pra mim não é apenas estar seguindo uma mitsvá e entender que acima de nós está Deus. Ser uma
mulher que usa kipá é demonstrar que evoluímos, como povo e como comunidade. Em um mundo onde o machismo estrutural está muitas vezes mascarado em falas de proteção ao ‘sexo frágil’, isso também aparece em justificativas de que como a mulher gera vida, ela está isenta (o que em realidade é uma proibição) de cumprir determinadas mitsvot, pois já é mais elevada espiritualmente. Usar kipá pra mim é evoluir em comunidade, mostrar que homens e mulheres podem ocupar os mesmos espaços e que o judaísmo é para todos e todas sem diferenciação. Sejam os nossos direitos como nossas obrigações.”
A posição da mulher no Judaísmo sinagogal continuará a crescer cada vez mais, e nossas decisões sobre o uso de kipá não devem ser motivo para alterar esse fato, mas sim devem trazer à tona a necessidade da discussão sobre nosso papel religioso.
“Eu uso kipá desde 1991. Eu odeio a palavra feminista, tanto quanto odeio a palavra machista. Eu acredito em paridade. Nós conseguimos paridade na sinagoga, temos o direito a fazer tudo. Mas com os direitos vêm as obrigações. Se eu quero subir à Torá, fazer brachot (bençãos) e ter uma participação plena, eu tenho que colocar talit e uma cobertura na cabeça. E neste caso, prefiro usar uma kipá ao invés daquelas rendinhas, porque eu acho que isso também causa uma separação. Então, uma kipá feminina! É simples assim. E vou além em afirmar que, se dependesse de mim, as mulheres não poderiam mais fazer uma Aliá sem usar minimamente um talit, e eu venho dizendo isso a muito tempo. Na minha opinião, uma coisa puxa a outra.”
Mulheres relatam uma sensação reconfortante ao se sentirem conectadas com algo maior do que elas mesmas. Os relatos chegam a descrever essa sensação com o toque amoroso de uma mãe ou um pai.
O senso da obrigação de cobrir a cabeça muitas vezes também irá colidir com a vaidade. E mais uma vez cabe a reflexão que a kipá não é um acessório que decidimos se combina ou não com a vestimenta que apresentamos. O uso da kipá deve seguir sendo um ato consciente de manifestação religiosa e cultural, e cabe a nós continuar no aprofundamento do pensar e do agir.
“Gosto muito de usar kipá na sinagoga, e já tenho uma coleção de kipot para combinar com o que estou vestindo. Mas, especialmente em eventos
como casamentos e bnei mitsvá, eu muitas vezes tenho que me lembrar que essa obrigação se estende a todos os momentos. Porque sinceramente quando quero arrumar meu cabelo de uma forma mais especial, a kipá fica sobrando e simplesmente não combina. É um exercício lembrar que a kipá não é um adereço para ser usado apenas quando me é conveniente.”
Sentir-se judeu ultrapassa obrigações, deveres ou até mesmo tradições. Se trata de fatores sentidos interiormente, aquilo que nos faz sentir pertencentes a uma cultura e tradição milenar. Que nos conecta com algo maior, que promove integração nas relações, que nos destaca e até nos fornece uma conexão do sagrado. Mulheres relatam uma sensação reconfortante ao se sentirem conectadas com algo maior do que elas mesmas. Os relatos chegam a descrever essa sensação com o toque amoroso de uma mãe ou um pai. Às vezes, sentir o leve peso da kipá sobre nós pode trazer um sentimento de conforto, associado a uma mão sobre a cabeça, que guia, orienta e abençoa. Essa sensação nos torna mais conscientes de nossos atos, nos ajuda a chegarmos em níveis mais altos dentro da nossa própria espiritualidade. Conseguimos sentir mais facilmente a conexão com Deus e diferenciar aquilo que é sagrado do que é comum.
Em alguns relatos, a kipá traz a sensação de se estar em um patamar mais alto, onde podemos esperar mais de nós mesmos. Onde a compreensão do incompreensível divino se torna mais palatável. De forma mais prática, nos ajuda com a concentração e intenção de nossos pensamentos e ações. O ato de colocar a kipá ajudaria a ativar mais facilmente o nosso “ser espiritual” e ajuda com a concentração na atividade sendo realizada, sendo ela a reza, o estudo, o autocuidado e a tomada de decisões. É como se pudéssemos trazer Deus mais para perto de nós.
Esse sentir-se judia acontece não apenas na nossa relação com Deus, mas também em relação à nossa comunidade. Cria um vínculo muito especial entre outros indivíduos que adotam as mesmas práticas. É um gesto totalmente silencioso, mas que ecoa muito alto quando rezamos em conjunto e adotamos práticas semelhantes. Somos indivíduos e mesmo assim nos tornamos um. Uma comunidade, um Povo.
Os diversos objetos que usamos durante as orações (tefilin, talitot, etc.) nos ajudam também a trazer para
Rabina
em 3 de agosto de 1902 em Berlim e assassinada em 12 de outubro ou dezembro de 1944 no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, Regina Jonas foi a primeira mulher no mundo a ser ordenada rabina, em 1930, e a ocupar esse cargo religioso. Nas décadas de 1930 e 1940, ela pregou em várias sinagogas de Berlim e continuou a trabalhar no gueto de Theresienstadt, após sua deportação.
a consciência conceitos complexos. No exemplo dos tefilin, um objeto físico que nos ajuda a lembrar do cumprimento das mitsvot, da intenção de nossos atos e dos nossos pensamentos.
“O judaísmo não é uma religião que coloca a fé como o fator primordial, e sim a ação. O modo de agir. É muito mais uma maneira de viver e de se expressar do que uma simples crença. Eu acredito que faz parte do Judaísmo a adoção desses símbolos e aparatos.”
Claramente, a relação de objetos físicos com intenções religiosas e espirituais é amplamente estabelecida,
não apenas no Judaísmo, mas em diversas vertentes religiosas ocidentais e orientais. Logo, confiar na ajuda da kipá para nos colocar em uma maior conexão espiritual é algo bastante fundamentado nas diversas práticas religiosas encontradas na humanidade.
Como judeus somos constantemente provocados a encontrar significados para nossas atitudes e pensamentos. Colocamos nossas mentes, almas e corações dentro dos rituais e tradições que praticamos. Colocamos grandes representações e significados em objetos como uma Estrela de Davi, uma Hamsa ou um Chai e eles marcam uma afirmação de nossa identidade como judeus, e a kipá serve a um propósito similar independentemente do gênero do indivíduo.
Para mim, poder usar kipá quando sinto vontade reflete minha maneira de ser na vida: uma mulher que sempre brigou e segue brigando pela igualdade de gêneros.
Exatamente por ser um símbolo de tanta força, muitas mulheres que ocupam cargos públicos em entidades judaicas, como sinagogas, escolas e movimentos juvenis têm o sentimento de dever de ser um exemplo para as demais mulheres.
Com diversos relatos, em especial de chazaniot e rabinas, que ocupam um espaço amplamente visível nas comunidades, o desafio de levarmos para a frente um judaísmo moderno e de acordo com as medidas pelas quais queremos viver nossas vidas, seja dentro ou fora das sinagogas, é tão importante.
“Eu uso kipá quando vou à bimá (púlpito) em ocasiões em que tenho uma responsabilidade ou um papel especial – uma celebração, uma fala para a comunidade, uma aliá Torá. Para mim, poder usar kipá quando sinto vontade reflete minha maneira de ser na vida: uma mulher que sempre brigou e segue brigando pela igualdade de gêneros.”
Em adição aos significados internos, ligados à espiritualidade e conexão comunitária, outra razão muito frequente ligada ao uso de kipá é se parecer judia. E dessa vez, vamos tratar de fatores externos.
O orgulho de ser judeu, ou, nesse caso, o orgulho especificamente de ser uma mulher judia, é uma das razões apontadas. Trata-se de um sentimento de dever em representar o Judaísmo e o Feminismo, como duas entidades que podem, sim, andar juntas.
“Eu acredito que não é apenas um símbolo de resistência, mas ao mesmo tempo de imposição de que nós mulheres estamos aqui e nós importamos. É parte de abraçar o judaísmo nas nossas vidas. É um símbolo de demonstração de fé, porque é um elemento que faz você ser reconhecido como judeu. Isso não apenas é um grande motivo de orgulho, de estarmos aqui, apesar de todas as coisas, e somos judeus com orgulho. É uma demonstração de força.”
Obviamente também parte da nossa liderança feminina comunitária ser um exemplo não apenas por usar um adereço especial na cabeça, mas possuir a habilidade e conhecimento de esclarecer a importância das mulheres tomarem seus lugares na condução do judaísmo que desejamos.
O exemplo pobre, aquele que serve somente para uma foto nas redes sociais, não apenas não ajuda em nada o desenvolvimento de um judaísmo moderno, mas causa enormes malefícios dentro das comunidades reformistas pela confirmação de um grande estigma de que as ações são vazias e de serventia apenas para boas imagens e boa publicidade, sem tocar no cerne da questão.
“Quando assumi meu primeiro posto como chazanit, para mim era muito claro que gostaria de usar kipá. Dentre todos os motivos que para mim eram muito óbvios, de luta pela igualdade, de declaração feminista, de compreensão que existe um Deus acima de mim e essa é a nossa forma de honrá-lo, me senti absolutamente desmotivada quando vi que eu era apenas a moça de kipá, e essa imagem era propositalmente tratada de forma vazia e insignificante dentro da instituição em que eu atuava. Isso fez com que eu decidisse parar de usar kipá, pois queria ser um exemplo para o bem, e não para o mal.”
E se enganam aqueles que pensam que o exemplo dado atingirá apenas as jovens, aquelas que talvez ainda tenham uma mente mais aberta e propícia para o aprendizado. Cada vez mais, mulheres na faixa dos 50 anos fazem essa escolha, e conseguem usar da sua experiência de vida anterior, muitas vezes repletas de casos de opressão religiosa, como uma alavanca para essa nova prática.
É especialmente belo ver mulheres que nasceram e cresceram em ambientes muito machistas e controladores, seja por seus pais, irmãos ou maridos, darem esse grande salto de independência interna e poder externalizar um judaísmo e uma conduta pessoal diferente. Não são poucos os casos de mulheres que têm coragem para tomar essas decisões inclusive em momentos dolorosos, como no caso do falecimento de um pai, ou avô.
“Eu tinha aquela vontade de pedir pra fazer Bat Mitsvá (maioridade religiosa das meninas, a partir dos 12 anos de idade), de colocar talit. Nem passava pela minha cabeça ir muito mais longe que isso. Mas meu pai era muito ligado ao que ele tinha aprendido como certo e errado em sua própria criação. Então, a verdade é que mesmo depois de adulta eu não tive coragem porque senti que estaria desrespeitando meu pai, e naquele momento, era a coisa mais importante pra mim. Depois meu pai faleceu, senti que talvez minha missão pudesse ser diferente. Senti um grande acolhimento nas rezas de luto, me senti muito abraçada pela minha comunidade. E mesmo que hoje eu ainda não tenha subido à Torá ou colocado um talit, eu sinto que posso estar pronta para um novo capítulo.”
Muitas mulheres relatam uma nova sensação de demonstrar seu judaísmo quando passam por “ritos de passagem”, como o casamento, ao nascimento de uma filha, na ocasião do Bat Mitsvá de uma filha, ou simplesmente em um desejo de ser um bom exemplo para suas filhas.
“Eu só conheci o judaísmo progressista aqui no Brasil. Primeiro, estivemos numa comunidade conservadora e depois entramos na ARI, ou seja, meu contato com o judaísmo liberal mesmo tem uns 25 anos, não mais. Mas tive uma imersão profunda e apaixonada, com muita participação e estudo. Toda minha vida lutei pela igualdade de direitos em todos os níveis. Mais ou menos na época que entrei, meu filho adolescente que recém tinha feito Bar Mitsvá me desafiou que se eu pensava que todos tínhamos os mesmos direitos e obrigações no judaísmo, eu tinha que usar kipá também. Foi uma proposta tão básica que no
mesmo momento comecei a usar kipá. Anos mais tarde sou das poucas mulheres que usam kipá na sinagoga, e me permito dizer que acho superimportante. Por um lado, se lutamos pela igualdade das mulheres na religião, se nos é dado um espaço temos que ocupá-lo, rapidamente. Por outro lado, acho importante servir de exemplo, porque aqui e ali, surgem algumas jovens a usar.”
Também notamos o caso de mulheres que fazem questão de usar kipá em ambientes não judaicos, e citamos especialmente o caso de discussões inter-religiosas e sobre o Estado de Israel. Neste caso, a kipá tem o potencial de gerar diálogo sobre inúmeros tópicos. Desde o apoio ao movimento Sionista, a ameaça do antissemitismo e a posição da mulher e dos judeus na sociedade e no mundo.
No Brasil, é bastante incomum ver uma mulher usando kipá completamente fora da esfera judaica ou dos casos citados acima, mas este é um tópico de bastante relevância na esfera internacional, citando em especial os Estados Unidos e Israel. Ainda não vemos, em nosso país, mulheres realizando suas tarefas do dia a dia portando uma kipá, mas vemos tantas e tantas mulçumanas usando seu hijab com orgulho, e como uma declaração de sua identidade.
Apesar do uso do hijab, como expressão de orgulho, ser um exemplo que possa inspirar as nossas comunidades, obviamente a grande diferença é o medo do antissemitismo. Diversos relatos de judias americanas, que apesar da grande alegria de poder vivenciar seu dia a dia com um constante lembrete, tanto interno quanto externo, de sua identidade, relatam que eventualmente abandonaram a prática por medo da violência dos grupos antissemitas e antissionistas.
Para uma parcela de mulheres, a kipá tem um potencial único de transformar sua portadora em uma representante do Povo Judeu, permitindo a elas serem propositalmente notadas por suas diferenças. E este é um papel que gera enorme orgulho e confiança. A kipá funciona como um símbolo de sua etnicidade e religião. É uma forma de, mais uma vez, dizer sem palavras.
A ligação entre a kipá e a sexualidade também é relatada. O orgulho de assumir publicamente seu status de judeu e membro da comunidade LGBTQIAPN+ é diretamente associado à luta pela igualdade, respeito e dignidade. Para essa parcela da população, a aceitação interna e externa é uma luta muito maior. Não há como se buscar respeito por uma coisa e ignorar as outras.
“O judaísmo é muito ligado à tradição e a perpetuação de valores. Ser uma pessoa LGBTQIAPN+ em um mundo onde a tradição é muito relevante e a heteronormatividade é a tradição, a kipá é um símbolo de resistência muito grande. É muito importante a inclusão dentro da própria comunidade porque, em adição à família, é o local primário de acolhimento da nossa identidade e das nossas escolhas. Como é possível expressar a sua fé, que é o retrato mais perfeito de sua alma, em uma comunidade que não te aceita? O uso da kipá é extremamente ligado ao ato de expressão.”
Outro aspecto que sem dúvida não seria sequer mencionado há poucos anos é a própria ressignificação do que é ser mulher e do que representa o feminino. Atualmente, sabemos que nenhuma dessas denominações é única. Não podemos mais pressupor as camadas de profundidade de uma identidade LGBTQIAPN+ em ligação a ser defensor do feminismo judaico. Ser mulher é algo que tem tantas formas diferentes de expressão, assim como o próprio judaísmo.
“A mulher carrega o gene da transgressão. É ela quem carrega essa semente de mudança.”
Não são poucas as mulheres que admitem usar kipá pela vontade de chocar. Mas a pergunta que fica é por que motivo queremos causar um choque? Se a resposta é para trazer à luz o assunto e promover a reflexão, chamaremos de um choque com intenção de crescimento.
O choque com intenção de causar discórdia e desconforto não parece trazer benefícios para a verdadeira igualdade entre gêneros. O choque deve causar uma faísca de reflexão, que pode transformar-se em uma chama abastecida pelo conhecimento e a espiritualidade.
Quando pensamos em criar uma mudança que tenha como objetivo final, senão a igualdade de gêneros dentro das práticas judaicas, que este seja minimamente a consolidação do respeito e da celebração de uma vivência judaica religiosa ativa, tal e qual a dos homens.
A própria situação de não obrigatoriedade do uso da kipá por mulheres traz uma beleza para a discussão, que não poderia ocorrer se houvesse um consenso sobre a situação. Desta forma podemos não apenas apreciar opiniões diversas sobre o assunto, como devemos buscar dentro do nosso interior quais são os nossos entendimentos sobre o tema. Opiniões diversas sobre o papel da mulher na sociedade civil, religiosa e familiar, sobre como nós enquanto indivíduos do sexo feminino queremos usar dos nossos direitos e obrigações e, talvez a mais bela das discussões, o que ser mulher e o feminino representam para nós.
Todos esses são pontos que estão intrinsecamente ligados a uma decisão séria e informada sobre nossas escolhas dentro do âmbito religioso. O uso da kipá não deve ser incentivado apenas pelo seu apelo visual. Isso gera um duplo desrespeito: o primeiro trata da profanação de um objeto que tem um cunho de elevação espiritual, e o segundo trata do desrespeito com a própria mulher, que mais uma vez é utilizada por sua imagem, e não por seu valor enquanto indivíduo pensante.
Que possamos dar continuidade e aprofundar as discussões sobre como desejamos expressar nosso judaísmo, nossa identidade e nosso próprio papel dentro da sociedade.
A ARI se tornou a primeira sinagoga no Rio de Janeiro a transmitir, via streaming, o serviço de Kabalat Shabat. Naquela noite, mais de 600 computadores (o que resulta numa audiência estimada em mais de mil pessoas) se conectaram ao serviço!
Você, leitor, está convidado a voltar no tempo até o dia 20 de março de 2020 – ponto de partida desse relato. Havia cerca de dois meses que o mundo acompanhava a ameaça ainda pouco conhecida, surgida em Wuhan, na China, chamada Novo Coronavírus ou Covid-19. Daqui dos trópicos, muito pouco ou quase nada se sabia quanto à virulência da epidemia que se alastrava com força no Oriente e na Europa. Na Terra Brasilis, o clima era de atenção. Não se podia imaginar o que viria nos anos seguintes.
20 de março de 2020 era sexta-feira, portanto, Shabat. Lembro-me perfeitamente do cenário (e dos desafios) para levar até a congregação, da melhor maneira possível, o serviço de Kabalat Shabat da ARI – Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro. O estranhamento começou quando percorri o trajeto Lagoa-Botafogo, ambos bairros da zona sul do Rio, em cinco minutos. Normalmente, o caminho leva 20 minutos ou até mais, em dias frequentes de tráfego pesado. As ruas perturbadoramente desertas pareciam saídas dos filmes de apocalipse. A ARI estava fechada aos congregantes. A recomendação de afastamento social havia sido dada pelo Ministério da Saúde a todo país há poucos dias e as pessoas eram estimuladas a ficar mais em casa.
Chegamos apreensivos ao estacionamento vazio. Logo, eu e Reynaldo, meu marido e cinegrafista,
subimos até a sinagoga do 3º andar com a missão de fazer a primeira transmissão on-line de um Kabalat Shabat. Lá, encontramos os Rabinos Sérgio Margulies e Dario Bialer; os Chazanim (cantores litúrgicos) Andre Nudelman e Oren Boljover; a organista Regina Lacerda; os funcionários Bianca Adler, Jai e Brito; o diretor da Comissão de Assuntos Religiosos (CAR), José Raphael Bokehi e André Sztajn, voluntário e profissional de Comunicação que oferecera uma câmera semiprofissional. A tensão ocupava o espaço esterilizado por borrifos de álcool 70, e uma grande preocupação era respeitar o distanciamento entre nós.
De um lado, os oficiantes ocupavam a bimá (púlpito) em turnos. Nós, a equipe de transmissão, buscávamos o melhor ângulo para a câmera, que teimava não se conectar ao
wi-fi. Depois de tentativas frustradas, o jeito foi usar nossos próprios celulares – meu e do cinegrafista –apostando alto no 3G. Superados os desafios técnicos, restava para mim, acostumada a dirigir programas de TV, achar o tom ideal para captar um serviço religioso – algo completamente novo. Sabia que não deveríamos interferir. Ideal é que fôssemos invisíveis. E conseguimos! Fizemos o nosso melhor. Assim, em meio à inquietude e emoção, a ARI se tornou a primeira sinagoga no Rio de Janeiro a transmitir, via streaming, o serviço de Kabalat Shabat. Naquela noite, mais de 600 computadores (o que resulta numa audiência estimada em mais de mil pessoas) se conectaram ao serviço!
Na semana seguinte, repetimos o feito, já sob uma atmosfera bem mais pesada. A ARI havia decidido
manter o serviço on-line, com revezamento de equipes. Assim, o segundo Kabalat Shabat nas redes foi oficiado por um rabino, um chazan e a organista. O restante da equipe –transmissão e funcionários – permaneceu a mesma, acompanhada do diretor da CAR. Todos estavam visivelmente mais preocupados e atentos aos cuidados preventivos. O número de casos aumentava rapidamente na cidade e, a cada dia, surgiam novos protocolos e (des)informações assustadoras sobre a doença.
Corte rápido para os dias de hoje: reflito como o meu trabalho na TV me conduziu de maneira mais natural – não menos dramática, nem sofrida – pelo período da pandemia. Como já disse, dirijo programas de TV e um Núcleo de Audiovisual em uma produtora pública do Rio de Janeiro. Por lá, não houve folga. Nos
acostumamos, do dia para a noite, a entrar nos estúdios equipados com máscaras, face shields, luvas e álcool 70. Passamos a operar em equipes reduzidas, respeitando as regras sanitárias. Cumprimos uma agenda intensa de gravações de videoaulas para auxiliar a rede pública de ensino do Rio de Janeiro em tempos de escolas fechadas. Produzimos programas para ajudar a população a compreender a doença e a preservar a saúde mental enquanto nós mesmos nos adaptávamos como podíamos.
Nada foi fácil, e quis compartilhar a experiência com vocês antes de seguir porque foi graças àquela imersão na TV que me vi pronta e 100% capacitada para colaborar com a migração de todos os serviços da ARI, tradicionalmente presenciais, para o on-line. Tudo aconteceu em velocidade recorde. Menos de um mês após a primeira transmissão, deixamos de estar juntos na sinagoga. Era final de abril, os casos de Covid-19 cresciam de maneira descontrolada. As medidas de prevenção incluíam lockdown e o isolamento social. Os serviços religiosos passaram a ser feitos completamente
à distância. No lugar de estarem na ARI, oficiantes, cantores e participantes do serviço estavam, agora, em casa. O que se via eram quadradinhos da intimidade de cada um na tela. Eu, igualmente, passei a fazer as transmissões de casa, por meio de plataformas de streaming.
É interessante revisitar a história recente. Agora, com olhar distanciado, vejo com grande ternura e admiração como recorremos aos valores judaicos para nos atirar, sem filtro, na aventura de bytes e telas. Fomos atropelados por uma seríssima crise de saúde pública. Não cabia, naquele instante, ponderar se devíamos ou não usar e abusar da tecnologia para transmitir uma reza de shivá, um serviço de Shabat, a celebração de um chag (festa) mesmo em tempos sombrios. O que era certo é que precisávamos estar lá, acessíveis para nossos congregantes. E sempre estivemos! Durante todo o tempo, apoiados uns nos outros como cúmplices, usamos os recursos audiovisuais e nunca deixamos de estar conectados e unidos como ARI, como congregação.
Vieram as datas judaicas: Chol Hamoed Pessach, Iom Haatsmaut, Shavuot. Entre as muitas rezas de famílias queridas que sofriam com a perda de seus entes e amigos, entre muitos aprendizados quanto à melhor maneira de se passar mensagens religiosas e suprir um pouco a falta do afeto, do abraço, das relações interpessoais, agora mediadas por telas, a ARI foi encontrando seu lugar. Promoveu campanhas para os associados, produziu vídeos com as canções do Shabat e das festas, mergulhou na era das lives com convidados superinteressantes que tinham muito a dizer sobre aquele tempo.
A ARI foi resiliente e corajosa para se tornar uma sinagoga on-line. Seu time demonstrou imensa capacidade de adaptação. Superou dificuldades técnicas e financeiras. Lidou com os desafios de oferecer a experiência religiosa exclusivamente de modo virtual. Os rabinos compreenderam em tempo recorde como falar para as câmeras. Os cantores dominaram a arte de cantar juntos, em espaços distintos. Viram-se às voltas com os delays – aqueles indesejáveis descompassos entre
áudio e vídeo – e se transformaram em verdadeiros produtores musicais criando arranjos originais e composições judaicas em parceria com convidados especiais que alegraram e inspiraram nossa audiência em diversos momentos. Contando agora parece ter sido um processo orgânico, sem dores. Mas posso garantir que não foi bem assim.
Trocar os pneus com o carro andando nunca é simples. Muitas vezes me peguei pensando na missão dos líderes religiosos em momentos como o da pandemia. De onde tirar forças para consolar a humanidade quando eles próprios enfrentavam o medo? Como encontrar serenidade para atender à comunidade em um período tão longo de sofrimento e incertezas? Acredito que nossos rabinos e cantores, assim como os demais líderes religiosos em todo o mundo, não tiveram sequer um minuto para refletir e responder às questões acima. Penso que agiram no modo emergência e, com maestria, encontraram caminhos para usar a tecnologia de maneira a se colocarem realmente próximos e ao alcance de suas comunidades.
Um momento marcante dessa jornada virtual foram os primeiros
Embora houvesse a saudade e a ansiedade de ver a sinagoga cheia como de costume em Rosh Hashaná e Iom Kipur, cautela sempre foi a palavra de ordem para a diretoria da Casa.
Iamim Noraim. Até bem perto da data, esperava-se que o cenário iria melhorar. Talvez fosse até possível abrir as portas e receber novamente todos na ARI. Embora houvesse a saudade e a ansiedade de ver a sinagoga cheia como de costume em Rosh Hashaná e Iom Kipur, cautela sempre foi a palavra de ordem para a diretoria da Casa. Com a proximidade das festas e a manutenção do isolamento social, partimos numa força- tarefa para nosso primeiro Iamim Noraim on-line. E foi lindo, emocionante, profundo e inesquecível.
Estávamos de volta à ARI, na sinagoga grande, ainda fechada aos
congregantes. O templo se vestiu de estúdio de TV equipado com câmeras, luzes, profissionais de filmagem, de áudio e equipe de transmissão robusta. Oficiantes, cantores, organista e os incansáveis funcionários e voluntários da Comissão de Assuntos Religiosos (CAR) cuidavam dos detalhes para garantir a qualidade dos serviços religiosos. Era estranho e ao mesmo tempo mágico ver a sinagoga imensa, vazia, transformada em set de TV com direito a roteiro e direção. Confesso que me senti profundamente tocada e muito privilegiada por ser responsável pela entrega à congregação dos serviços religiosos mais importantes do nosso calendário.
Tudo fluiu. Foi como se estivéssemos numa orquestra. Cada um desempenhou seu papel. Por segurança e preservação à saúde, tínhamos à mão VTs (videotapes, no jargão de TV) gravados previamente com as leituras da Torá na sinagoga e com o toque do shofar do Rabino Sérgio Margulies, desta vez, bem longe da ARI. Gravamos num amanhecer de extrema beleza num dos mais belos cartões postais do Rio: o mirante do Leblon. Durante a transmissão do serviço, exibimos os vídeos. Posso dizer que ver os amigos da ARI
Alessandra Sauberman: “É interessante revisitar a história recente. Agora, com olhar distanciado, vejo com grande ternura e admiração como recorremos aos valores judaicos para nos atirar, sem filtro, na aventura de bytes e telas. Fomos atropelados por uma seríssima crise de saúde pública. Não cabia, naquele instante, ponderar se devíamos ou não usar e abusar da tecnologia para transmitir uma reza de shivá, um serviço de Shabat, a celebração de um chag (festa). O que era certo é que precisávamos estar lá, acessíveis para nossos congregantes. E sempre estivemos (…) conectados e unidos como ARI, como congregação.”
rezando na bimá (púlpito) e ouvir o som do shofar levado mais longe pelas ondas do mar carioca garantiram paz e esperança às famílias conectadas à transmissão por meio de mais de mil máquinas.
Estivemos juntos, ainda sem a possibilidade do toque e da proximidade física, nos dias de Iamim Noraim. Logo depois, voltamos às transmissões remotas, cada um de sua casa. Mas em todos os momentos foi o audiovisual via streaming que manteve a congregação unida e informada. Ao longo do caminho, no final de 2020, houve uma troca de oficiantes. Chegaram para substituir o Rabino Dario Bialer e o Chazan
Oren Boljover a assistente de Rabinato, Andrea Kulikovsky e a Chazanit Inés Kapustiansky. Ambas conheceram e foram conhecidas pelos associados da ARI por vídeo. Ah, o milagre da tecnologia! Sem dúvida, foi desafiador para elas, mas não impossível! Aos poucos, abriram espaço, trouxeram novos ares, somaram e compartilharam à sua maneira nosso judaísmo de modo natural.
De fato, eu poderia escrever mais e mais sobre a experiência de transformar uma sinagoga tradicional em virtual durante uma pandemia. Houve dias mais tensos: A internet não funciona! – há barulho em casa ou no vizinho!” Todos transformaram um pedacinho do lar em um pequeno estúdio de TV equipado com ring lights e microfones. “Cuidado com o enquadramento”, eu falava para os oficiantes e nossos convidados. “Está vazando muito da casa; sua cabeça está cortada; pode se afastar um pouco da câmera?”
Dirigir programas e transmissões remotamente virou hábito não só na ARI, mas igualmente na TV. Claro! Lá também nos rendemos à era das lives.
Tivemos dias de tristeza, outros de euforia. Trocamos carinho e demos força uns aos outros. Estreitamos laços. Nunca foi tranquilo. As dificuldades iam desde conseguir silêncio em casa para iniciar uma transmissão até organizar conteúdos interessantes para associados que demonstravam cansaço frente à vida nas telas.
Desde o início da pandemia, recebemos inúmeras mensagens de agradecimento por seguirmos levando a ARI até a casa de cada judeu e judia no Rio de Janeiro, em São Paulo, nas Minas Gerais, Israel, Portugal, Estados Unidos. Sim, nos tornamos internacionais! Uma inquestionável conquista pós-pandemia. O modelo híbrido veio para ficar: voltamos ao presencial, mas, na minha opinião, não há como renunciar ao virtual.
Uma sinagoga on-line oferece aos congregantes que estejam doentes, impossibilitados de se locomoverem
ou que se encontrem fora do Rio a chance de exercer sua religiosidade enquanto participam das cerimônias e serviços religiosos. Não são raros os pedidos de parentes espalhados por qualquer parte do mundo para se conectar à ARI e acompanhar as celebrações. Às sextas-feiras, durante as transmissões do Kabalat Shabat, registramos um bom número de aparelhos conectados em locais onde não há sinagogas reformistas próximas ou mesmo em áreas de mobilidade limitada.
A presença on-line das principais sinagogas do mundo parece-me irreversível. É que quando se ocupa um espaço precioso nas redes sociais acessadas pela congregação se estabelecem vínculos mais fortes pela presença constante. A máxima “quem não é visto não é lembrado” transbordou para todos os segmentos da sociedade como herança da pandemia. Não há como voltar! Vivemos o modelo híbrido. Nos serviços e eventos da ARI tenho a alegria e o prazer de conversar com diversos frequentadores que dizem se sentirem tranquilos sabendo que estamos on-line. Agradecem a certeza de que, caso não consigam comparecer presencialmente aos serviços, estaremos lá, à distância de um clique, entregando momentos importantes da vida judaica.
E embora alguns questionem ou tentem valorar a experiência presencial versus a on-line, não acredito ser o caso de colocá-las em lados opostos. As vivências presenciais e via streaming são complementares. Uma reforça a outra. Nunca ouvi dizer que participar de uma reza ou cerimônia pela tela tenha reduzido a espiritualidade do instante. Quem
se conecta a um serviço religioso está em busca do ritual. Claro, há quem sinta falta do abraço e da sensação de estar no templo. É óbvio que há momentos em que “estar lá” é tudo o que se precisa. Mas em tempos de inteligência artificial, mundo hiperconectado, precarização do trabalho com jornadas cada vez mais longas e megacidades reféns de violência e caos na mobilidade urbana, não há como negar o conforto e o valor que há em possibilitar às pessoas ouvirem as palavras do rabino quando, onde e como puderem.
Cuidado! Nem tudo é o que parece ser! Apesar de todo o aparato de TV usado para levar até você os serviços religiosos via streaming, sua sinagoga continua sendo... uma sinagoga! Há muito respeito aos princípios e tradições judaicas em cada nova transmissão. E apesar de ser diretora de TV, sei que não me cabe interferir nos conteúdos religiosos. E nem poderia! O que existe é uma troca bem-vinda sobre formas criativas e originais para captar uma ou outra situação dentro da liturgia.
São bastantes distintos os objetivos de uma transmissão de TV para o streaming de um serviço religioso. Enquanto a primeira entretém ou informa um público amplo com conteúdo e formatos super variados, buscando receita publicitária, a
transmissão de um serviço religioso preserva os oficiantes e participantes das rezas e cerimônias. A preocupação está em facilitar a interação remota dos congregantes. O foco é a liderança religiosa e a conexão espiritual.
Para concluir e tranquilizar o leitor que reviveu a transição nos últimos anos de uma ARI presencial para uma associação híbrida, deixe-me recapitular: exatamente como ocorreu nos quatro cantos do planeta, também aqui nos lançamos
Sempre preservamos a solenidade que embala o momento litúrgico, e nunca foi o objetivo transformar em espetáculo os serviços, as lives e as cerimônias. No entanto, eu seria leviana se não reconhecesse a importância que dou à estética nas transmissões. Cuido do streaming religioso com o mesmo zelo e qualidade dedicados aos produtos da TV educativa na qual trabalho. E não me parece errado! Neste sentido, os materiais audiovisuais que disponibilizamos para os associados e amigos da ARI devem guardar a beleza e a sacralidade do que é visto na sinagoga. Ainda assim, pode relaxar! A ARI não virou uma TV. Continuamos a ser uma sinagoga, palavra grega cuja semântica (sin-junto; agogue-ação de conduzir) traduz o hebraico beit haknesset (casa de reunião).
na aventura de viver por meio das telas quando outras formas de convívios não eram possíveis. É fato que, em grande monta, ter uma jornalista de TV a bordo, bem no início da pandemia, conferiu certo lastro para a mudança ser mais orgânica, menos traumática. Eu sabia o que estava fazendo e contei com um time, na ARI, de primeira grandeza nos quesitos valentia, confiança, competência e perseverança. O que precisava ser feito, foi feito por todos os atores do processo.
Hoje, manter um canal de vídeos para transmissões e exibições de conteúdos variados tem função diferente daquela narrada no início deste artigo. O que queremos é amplificar nossa voz para todos que estejam interessados em estar juntos – presencialmente ou como comunidade virtual. Para nós, ao final, é isso o que importa: sermos acessíveis, interessantes e relevantes para todos e qualquer um que se sintam tocados por nossas práticas e tradições. O vídeo é somente mais um suporte para chegar até você e nos manter sempre juntos!
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Em uma das mais lidas e apaixonantes obras da literatura universal, Adeus às Armas, de Ernest Hemingway, há uma interessante afirmação dita pelo herói da estória e ao mesmo tempo narrador do livro, Frederic Henry, um motorista de ambulâncias que atuou no front italiano durante a Primeira Guerra Mundial: “Desde o início eles já estavam derrotados. Eles foram vencidos no momento em que os retiraram de suas fazendas e os colocaram no exército.” Escrito ainda em sua juventude, esse romance semiautobiográfico, o segundo do escritor, ainda hoje é considerado uma obra-prima, tendo sido inclusive traduzido para o português por ninguém menos que Monteiro Lobato.
A constatação do personagem do livro em questão cai como uma luva para a dramática história da guerra em geral, e especialmente da Grande Guerra que devastou a Europa entre os anos de 1914 e 1918, da qual o próprio Hemingway participara. Há nela, o trágico enredo que desloca o homem simples do campo para as trincheiras da Europa, em um sombrio teatro de operações que deixariam rastros de outra guerra pela frente, mais devastadora e cujos efeitos ainda hoje sentimos.
Entretanto, o drama descrito por Frederic não poderia nunca se aplicar à história e cultura de um jovem e complexo país como Israel, apontando na verdade para mais um interessante paradoxo que compõe a natureza histórica e cultural da sociedade israelense. Em 1948, um grupo de pioneiros, essencialmente ligados à cultura agrícola em Israel, escreveu ao PrimeiroMinistro Davi Ben Gurion com a intrigante solicitação de que os grupos que atuassem em regiões agrícolas no país pudessem servir no exército juntos nos mesmos batalhões, fortalecendo não apenas o esprit de corps, como também a identidade coletiva camponesa israelense: estava fundado o Noar Halutsi Lohem, muito conhecido entre os israelenses como Nahal
Contradizendo o que nos diz Frederic Henry em Adeus às Armas, criou-se em Israel, por iniciativa do próprio Ben Gurion, uma brigada que combinava o serviço militar e a atividade do cultivo nas fazendas do país, e que com o passar dos anos desempenhou um papel histórico na construção do Israel que conhecemos hoje, inclusive nas relações entre Israel e Jordânia em um momento decisivo para a história israelense durante a Guerra dos Seis Dias. Dois anos depois de sua criação, o Nahal produzia um fruto no mínimo curioso do ponto de vista da sociologia da cultura: fundou-se ali um grupo dedicado às artes, à produção teatral e musical, que passou a se chamar Trupe de Entretenimento do Nahal. Desta iniciativa absolutamente original surgiriam grandes nomes da cena dramatúrgica israelense, soldados-estrelas, dentre eles o incontornável nome da dramaturgia israelense, Chaim Topol, que mais tarde se tornaria conhecido no mundo inteiro como Tevye, o leiteiro de O Violinista no Telhado
O jovem soldado de 17 anos, Chaim Topol entrou para a intrépida trupe do Nahal em 1953, onde desenvolveu gradualmente suas competências dramáticas, entre elas o canto e a performance no palco. Fora ali
que surgiram os primeiros contornos de grandes personagens que o acompanhariam durante a vida, dentre os quais vale a pena destacar Sallah Shabati, que anos mais tarde faria parte da homônima comédia de Efraim Kishon, lançada nos cinemas em 1964, acerca dos desafios imigratórios para Israel. Se ao sair das fazendas para o exército os italianos aparecem derrotados na obra de Ernest Hemingway, no caso israelense a combinação entre as armas e a gleba produziu outros efeitos, para lá de mais interessantes, nos presenteando com um dos maiores atores de todos os tempos.
Esta constatação parece tão simples quanto surpreendente: mesmo depois de cumprido o serviço militar em 1956, Topol chega a atuar em performances na Península do Sinai, com a finalidade de animar as tropas regulares no contexto da Guerra de Suez. Mais do que isso, a vida kibutsiana que ele levou por anos, primeiramente com seus pais, e depois ao lado de sua esposa, não o impediu de atuar e participar das companhias teatrais compostas por membros do Nahal que se apresentaram por todo o Israel entre os anos de 1957 e 1960. Em The Life and Legacy of Chaim Topol. From Humble
Beginings to International Stardom, Vicks Franklin reforça esse traço biográfico do ator: “A verdadeira paixão de Topol, apesar de seu amor pelas artes em geral, era atuar nos palcos como ator. Assim ele começou atuando em produções teatrais locais no final da década de 1950 e rapidamente alcançou o reconhecimento por suas habilidades. Em 1961 Topol debutou no cinema com o filme
https://www.goldenglobes.com/articles/1972-musical-or-comedy-fiddler-roof
“I Like Mike” e gradualmente foi se tornando um nome de peso em seu próprio país.” A curiosa trama do filme israelense I like Mike (קיימ קייל ייא), seu filme de estreia, de alguma forma estabelece a tonalidade da dramaturgia de Chaim Topol dali para adiante, onde a questão das representações identitárias e migratórias em Israel, como veremos em seu incrível personagem Sallah Shabati, e no mundo judaico de forma geral, tal como em O Violinista, aparece como uma espécie de leitmotiv performático predominante. O filme nos apresenta o personagem Yaffa Arieli, uma mãe que deseja de forma insistente que sua filha, Tamar, se case com um cowboy americano, magnata do petróleo. O jovem milionário Mike, porém, tem outros projetos para a sua vida, já que está apaixonado por uma jovem israelense de origem iemenita. Topol interpreta Mikha, um soldado israelense de origens humildes, e dono do coração de Tamar. Escrito e dirigido pelo diretor canadense e professor de cinema da Universidade de Tel Aviv Peter Frye, juntamente com o gênio da literatura israelense Aharon Megged, I like Mike circula internacionalmente, participando inclusive do Festival de Cannes de 1961, entrando para a história do cinema como o primeiro filme de sucesso internacional em língua hebraica.
Nascido em Tel Aviv em 1935, cidade jovem, vibrante e de fundação recente naqueles tempos, foi em sua escola localizada em seus subúrbios que Chaim Topol
ainda jovem chamou a atenção de sua professora primária, que no futuro seria uma proeminente escritora de livros infantis e radialista em Israel (vencedora do Israel Prize em 1984) Yemima Avidar-Tchernovitz. Foi a mestra quem apontou os primeiros caminhos artísticos do ator, fazendo-o engajar-se em projetos de teatro no ambiente escolar, comprovando a mais óbvia das teses: a educação possui a magia de nos encaminhar para uma vida de cidadania, e ao mesmo tempo revelar em nós a nossa própria genialidade. Com Topol foi assim e com tantos outros grandes nomes da classe artística em Israel, que depois se desenvolveram a partir do Nahal, como Uri Zohar e Arik Einstein.
Os anos 1960 viram nascer na vida de Chaim Topol um projeto ousado e que entraria para a história do teatro popular israelense. O ator fundara, com outros artistas do Nahal, a companhia Batsal Yarok, a Cebola Verde, que promovera o diálogo entre o teatro e a música popular. O próprio Efraim Kishon, que mais tarde presentearia Topol com um grande sucesso nas telas do cinema, escreveu textos para esta companhia, que contava ainda com a presença de Naomi Shemer, futuramente conhecida como a “primeira-dama da canção popular em Israel”.
Esse caldeirão efervescente de artistas, ávidos por produzir cultura e arte nos 20 primeiros anos de existência do moderno Estado de Israel, representa um interessante fator da história cultural do país, retratando entusiasmo e ao mesmo tempo certa pressa na criação de canais de entretenimento e reflexão, envolvendo ramos das artes como o teatro, a música, a literatura e o cinema. Mais intrigante ainda foi o papel do exército israelense como um dos celeiros deste fenômeno, além da estratégica aliança entre a cultura kibutsiana, a urbanidade nascente em centros como Tel Aviv e Haifa, e a formação
militar consolidada pelo projeto Nahal inaugurado em 1948, ano da própria independência do país. Chaim Topol é um dos grandes partícipes nessa empreitada de síntese de uma cultura de natureza nacional, que se encaminhou naqueles anos.
Em Haifa ele será um dos fundadores, juntamente com Yosef Milo, ainda nos anos 1960, do primeiro Teatro Municipal em Israel, que ainda hoje possui uma formidável marca multicultural e a fama internacional de promover pelas artes o diálogo entre atores judeus e árabes através de espetáculos ácidos e provocadores. Ali, juntamente com Milo, Topol trouxe para a cena dramatúrgica israelense grandes nomes da literatura teatral universal, como Eugène Ionesco e Bertolt Brecht. Foi também pelas mãos de Topol que William Shakespeare passou a ser regularmente encenado nos palcos do país, a partir da iniciativa do Teatro Municipal de Haifa. Sua interpretação do personagem Petrucchio em A Megera Domada é um dos destaques desse momento. Atualmente ele abriga uma trupe permanente com 10 apresentações anuais, com uma audiência de pelo menos 30.000 pessoas, circulando entre cidades, kibutsim e países.
A presença de grandes nomes literários na vida de Topol mostra não apenas o seu comprometimento estético e cultural, como sua vontade pessoal em estabelecer pontes entre autores universais e as particularidades da cultura israelense contemporânea em formação naqueles anos.
Graças ao seu trabalho como assistente de direção de Yosef Milo em Haifa, textos como Rinoceronte (Topol presenteia o público com o personagem culto e racional Jean, antípoda do protagonista Berenger), um dos maiores libelos antifascistas de todos os tempos foram ensaiados, encenados e apresentados por judeus e árabes conjuntamente,
criando um interessante caleidoscópio de linguagens e expressões, que combinavam reflexões e valores de caráter universal a partir de marcas estéticas essencialmente locais. Topol não foi o único a promover isso, mas certamente foi um dos pioneiros nesta prática cultural. Tanto o projeto Cebola Verde como sua atuação em Haifa são claras comprovações disso.
Desenhista talentoso, Chaim Topol foi o ilustrador de pelo menos 25 livros ao longo de sua vida. Sua coleção de pintura sobre figuras importantes da vida nacional israelense tornou-se tão famosa, que virou uma série oficial, sob a chancela da Federação Filatélica Israelense, órgão responsável pela emissão de selos no país, com destaque para o portrait que o artista desenhou e pintou de Shimon Peres e o autorretrato encarnando seu mais impressionante personagem anterior a Tevye: Sallah Shabati, grande sucesso internacional no cinema em 1964 e vencedor de inúmeros prêmios ao redor do mundo.
Apenas sete anos separam as atuações de Topol entre os grandes sucessos Sallah Shabati e O Violinista no Telhado, e é perfeitamente plausível estabelecer um diálogo entre Sallah, o iemenita e Tevye, o leiteiro, ambos produtos da genialidade dramatúrgica de um dos maiores atores que Israel viu em seus palcos e telas de cinema. Naturalmente, do ponto de vista da produção dos filmes, há enormes diferenças que de certo impactaram a percepção de seus personagens protagonistas por parte do público. Entretanto, a natureza estética de ambos nos permite caminhos analíticos mais profundos e para além das particularidades comerciais dos filmes em questão.
O imigrante judeu oriundo do Iêmen, encarnado em Sallah, foi inteiramente concebido por Efraim
Kishon (não sem sofrer modificações do próprio Topol) a fim de abordar a questão da absorção de imigrantes em Israel, a partir do embate entre identidades culturais particulares e a burocracia de um Estado que buscava uniformizar seus cidadãos, no intuito de tornar-se cada vez mais moderno e afinado com o crescimento econômico internacional. Há no filme de Kishon uma provocadora descontinuidade entre a individualidade de Shabati, insistente em manter-se o mais ileso possível diante das mudanças que toda história imigratória pode provocar, e o poder coercitivo estatal, que demanda e impõe adaptações das quais fugir quase nunca é possível. Há, portanto, em Sallah Shabati uma espécie de conversa de surdos, ambientada nas molduras de um contexto necessariamente israelense, circunscrito em um determinado marco histórico e temporal.
O universalismo que Tevye, personagem criado por Chaim Topol em 1971, nos apresenta de forma dramática, é talvez a maior demonstração do talento inesgotável de um ator capaz de se reinventar radicalmente, fruto possivelmente dos primeiros exercícios na Trupe da Nahal, mas também de seus experimentos com personagens como Jean, criado por Ionesco para Rinoceronte, e explorado ad nauseam por Topol em seus anos de atuação em Haifa. O particularismo do Shtetl na ficcional Anatevka é sempre superado pela universalidade sociológica das relações de família, pelas dinâmicas de gênero, e pelo traço temporal e por que não dizer universal da civilização judaica e seus percalços, agruras e tragédias ao logo da História.
O Shabati criado por Topol nos anuncia questões de ordem particular, expressas a partir da necessidade de promover pela dramaturgia e pelo cinema uma conversa entre israelenses sobre os rumos de sua própria sociedade, ao mesmo tempo em que os desafios do jovem país eram expostos ao mundo, graças ao sucesso internacional do filme, garantido pela atuação impecável de seu protagonista. Tevye nos remete aos dilemas universais do parentesco, das relações orgânicas que perpassam pela maioria das comunidades, da marginalização das minorias e de uma certa história geral do Povo Judeu, especialmente apontando para alguns de seus pontos de inflexão mais dramáticos.
O primeiro filme, israelense em todos os seus traços, ganhou o Golden Globe na categoria de melhor filme em língua estrangeira no ano de 1965. Já a produção americana de 1971, com direção de Norman Jewison, roteiro de Joseph Stein e baseada na literatura de Sholem Aleichem, conquistou o Oscar de melhor cinematografia, tendo sido Chaim Topol indicado para o prêmio de melhor ator. Como argumenta Margalit Fox, que por anos trabalhou como editora do suplemento literário do New York Times, em um artigo sobre Topol, a universalidade de Tevye, um homem que como qualquer outro reclama e discute com o próprio Deus, foi um dos ingredientes que se somou à impressionante habilidade do ator, garantindo-lhe a fama internacional que conquistou com o personagem.
Ao nos deixar neste ano de 2023, aos 87 anos de idade, Chaim Topol encarna em si mesmo a trajetória da história cultural de todo um país, que ajudou a construir e soerguer em momentos em que sua própria existência foi posta à prova. O menino dos subúrbios de Tel Aviv tornou-se um kibutsnik que alcançou o estrelato pelas artes e pela cultura. Contradizendo a constatação do protagonista de Hemingway em Adeus às Armas, ele construiu uma trajetória em direção à vida, aliás título de um livro de sua autoria que explora a sabedoria e o otimismo judaicos. As fazendas da Itália e os kibutsim israelenses, se tomamos Chaim Topol como exemplo e o personagem Frederic Henry como medida de comparação, deram ao mundo homens com destinos muito diferentes.
Referências
FRANKLIN, Vicks. The Life and Legacy of Chaim Topol. From Humble Beginings to International Stardom. Independently Published, 2023.
Israeli Film Archive - I Like Mike - The Israeli Film Archive - Jerusalem Cinematheque (jfc.org.il)
TOPOL, Chaim. To Life!: Topol’s Treasury of Jewish Wit and Wisdom. Robson Books, 1994.
REGEV, Motti. SEROUSSI, Edwin. Popular Music and National Culture in Israel. University of California Press, 2004.
IZHAR, Dror. From Us to Me: The Israeli Cinema between Nationalism and Individualism, 1964–1994. iUniverse ed. 2019.
TALMON, Miri. PELEG, Yaron. Israeli Cinema: Identities in Motion. University of Texas Press, 2011.
Benjamin Netanyahu é o primeiro-ministro mais longevo da história de Israel. É quem permaneceu no cargo por mais tempo. Ocupou a posição máxima na hierarquia política do país entre 1996 e 1999 e de forma ininterrupta entre 2009 e 2021, quando foi substituído após um ciclo de quatro eleições realizadas praticamente em sequência desde 2019. Depois de impasses sucessivos para conseguir formar uma coalizão de maioria mínima no Knesset, o parlamento, uma articulação de partidos diversos conseguiu finalmente alcançar um acordo. Naquele momento, o bloco liderado por Naftali Bennett e Yair Lapid realizou algo que parecia impossível: derrotar Netanyahu.
No entanto, a coalizão entre legendas de direita, centro, esquerda e até um partido árabe teria vida curta; menos de 14 meses, período em que Bibi, temporariamente líder da oposição, trabalhou com afinco para derrubar o governo. E conseguiu. Depois de novas eleições, em novembro de 2022, retornou ao cargo sustentado pela coalizão mais à direita da história do país, abrangendo inclusive elementos de extrema direita.
Os principais símbolos desta extrema direita alçada ao palco principal do jogo político israelense são os agora ministros Itamar Ben-Gvir (Segurança Nacional) e Bezalel Smotrich (Finanças). Juntos, conseguiram obter 14 das 120 cadeiras do Knesset. E falar em extrema direita em Israel é sempre complicado. Justificar seu discurso exige uma espécie de contorcionismo retórico.
Isso porque o movimento que sustenta as diversas correntes que operam no mundo se apoia sobre alguns pilares importantes. Seja na Itália, Hungria, Polônia ou no Brasil, uma de suas bases é o antissemitismo. Seja a versão que atribui a George Soros as responsabilidades por todas as questões nacionais
(manifestações de opositores ou imigração), seja a que abertamente culpa os judeus, seja a que imagina conspirações internacionais que têm como alvo uma suposta “pureza” ou “inocência” nacionais ora perdidas. Todas essas narrativas estão, de uma forma ou de outra, imersas em antissemitismo.
Em Israel, a extrema direita precisa fazer um grande esforço para repetir a retórica de seus pares ao redor do mundo e, ao mesmo tempo, ter sucesso em se desviar daquilo que a sustenta em todos os demais países. Pode-se dizer que o discurso da extrema direita israelense não é judaico de nenhuma maneira, porque o judaísmo é plural e certamente não é racista. Mas essa é uma discussão distinta e que não cabe neste texto. Mas a extrema direita de Israel tem como alvos prioritários os seus “inimigos internos”: a oposição (toda ela), a modernidade, a pluralidade em si, as minorias (todas elas, novamente) e os árabes, em especial.
Algumas das mudanças principais pretendem limitar a capacidade de atuação da Suprema Corte, em especial impedi-la de fazer deliberações e tomar decisões sobre as Leis Básicas de Israel, e também mudar a forma de indicação dos juízes.
parecer pouco, em especial quando analisada sob a perspectiva da realidade brasileira, mas, em abril do ano passado, essa mesma taxa atingiu o seu menor índice: 0,1%. Ainda durante as eleições, Netanyahu dizia que poderia solucionar duas das questões que se apresentavam (e ainda se apresentam) diante da população israelense: empobrecimento e perda de poder aquisitivo em função do alto custo de vida.
É neste ambiente de crise que surge o tema que hoje polariza o debate na sociedade de Israel: a polêmica Reforma Judicial. Ela é o elemento que preenche outro ponto fundamental dos métodos da extrema direita em todo o mundo, a ideia de que é preciso encontrar e combater os “inimigos internos”.
As eleições de novembro de 2022 mostram a profunda divisão da sociedade. Com Benjamin Netanyahu ainda como protagonista da política israelense, as fidelidades e dissonâncias são divididas em torno do primeiro-ministro. E, desta forma, esses são os números que resumem essa divergência: o bloco de partidos pró-Netanyahu recebeu 2.361,739 votos (49,57% dos votos totais); o bloco dos partidos anti-Netanyahu recebeu 2.331,788 votos (48,94% dos votos totais). A diferença entre os blocos foi inferior a 30 mil votos.
Durante a última disputa eleitoral, o tema da Reforma Judicial não pautou as discussões. Pelo contrário. A economia e os problemas sociais em Israel foram os principais assuntos dos debates entre os concorrentes. A situação, de fato, não é das melhores. Pelo menos não se levarmos em consideração que se trata de um país com histórico recente de estabilidade e crescimento econômico. Entre 2008 e o final do ano passado, a taxa média de inflação foi de 1,65%. No final de fevereiro deste ano, ela alcançou 5,4%.
Também no mês de fevereiro, o Banco de Israel (equivalente ao Banco Central brasileiro) aumentou pela nona vez consecutiva a taxa de juros, chegando a 4,25%. Pode
Algumas das mudanças principais pretendem limitar a capacidade de atuação da Suprema Corte, em especial impedi-la de fazer deliberações e tomar decisões sobre as Leis Básicas de Israel, e também mudar a forma de indicação dos juízes. Uma observação importante: Israel não tem uma Constituição. O conjunto de 13 Leis Básicas forma uma espécie de Constituição, ou seja, estabelece algumas das regras que tratam e definem conceitos fundamentais do país.
A Reforma de Netanyahu – de quem o ministro da Justiça Yariv Levin é porta-voz – tem a capacidade de mudar o sistema interno de equilíbrio de forças, os chamados pesos e contrapesos. A democracia israelense é mais simples do que a brasileira, por exemplo. Não há duas câmaras no Congresso e as Leis Básicas não têm a complexidade ou mesmo a força da Constituição. Desta forma, a Suprema Corte atua como a primeira e a última garantia para evitar que uma coalizão majoritária no Knesset decida tomar medidas autoritárias ou cometer excessos. A Reforma permitirá que os 64 membros da coalizão de Netanyahu façam o que bem entender, inclusive deliberar sobre as próprias Leis Básicas.
Para Netanyahu, em especial, ela pode, por exemplo, contribuir para atrasar ou evitar a condenação nos três casos em que é investigado. Seus aliados tentam encontrar
uma saída jurídica, que por aqui se chama de “Lei Francesa”, a concessão de imunidade a um primeiro-ministro enquanto ele estiver no cargo. Como em Israel não há limitação quanto às reeleições, Bibi estaria a salvo da Justiça desde que seja capaz de se manter no cargo. É até relativamente simples fazer paralelos entre a situação atual em Israel e a ocorrida recentemente no Brasil. Os apoiadores de Netanyahu apresentam argumentos sobre o “excesso” de intervenções por parte da Suprema Corte e até sobre um suposto esquema interno onde os juízes escolheriam a si mesmos, como uma espécie de “clube” fechado aos privilegiados. Essas ideias correm com rapidez pelas redes sociais e circulam nos grupos de WhatsApp.
Mas os fatos mostram o contrário; em 1992, houve autorização para que a Suprema Corte passasse a exercer revisão judicial das leis, tendo como critério as determinações das Leis Básicas. Pesquisa realizada pelos pesquisadores Yuval Shany e Guy Lurie, publicada pelo Israel Democracy Institute (IDI), mostra que durante todo o período entre 1995 e o final de 2022 a Suprema Corte invalidou apenas 22 leis aprovadas pelo Knesset, numa frequência de 0,8 lei por ano. Para se ter a ordem de grandeza dessas estatísticas, a mesma pesquisa mostra que entre 1995 e 2000 o parlamento aprovou em média 110 leis a cada ano; entre 2010 e 2017, este número
subiu para 150 leis aprovadas em média todos os anos. Ao mesmo tempo, a forma como os juízes são indicados também é alvo do projeto de Reforma, mas não se pode dizer – como defende o atual governo – que se trata de um “clube” fechado. Hoje, a Comissão de Seleção Judicial (JSC, em inglês) atua da seguinte forma: é preciso ter a aprovação de sete de seus nove membros. E compõem a Comissão três juízes da Suprema Corte, dois ministros do governo, dois membros do Knesset e dois representantes da Ordem dos Advogados.
Como isso pode terminar Funcionários do Ministério das Finanças de Israel apresentaram um estudo em que examinam os impactos econômicos ao país, caso o processo siga adiante. O primeiro aviso oficial foi dado por Yogev Gardos, responsável pela Divisão de Orçamentos.
De acordo com o site especializado em notícias de economia Globes, a projeção de Gardos mostra cenários preocupantes. As medidas do governo e a iniciativa da Reforma podem levar a um rebaixamento da classificação de crédito de Israel (decisão já tomada pela agência norte-americana Moody’s), aumentando a carga da dívida do estado em cerca de 7 bilhões de shekels (cerca de R$ 9,6 bilhões) anualmente, causando redução de crescimento econômico de 5,6%.
Na reunião em que os dados foram debatidos internamente, Shira Greenberg, economista-chefe do Ministério, também apresentou números alarmantes, caso a Reforma seja aprovada da maneira como está redigida hoje.
“Danos à classificação de Israel nas medidas de democracia e governança podem levar a um declínio estrutural na taxa de crescimento per capita de cerca de 0,8% ao ano. Durante um período de cinco anos após a aprovação da Reforma, (pode haver) perda acumulada de 270 bilhões de shekels (quase R$ 370 bilhões) e um declínio acumulado nas receitas do estado de 70 bilhões de shekels (cerca de R$ 96 bilhões)”, disse.
Em meio às sucessivas manifestações populares – já são 16 semanas seguidas de protestos contrários à Reforma e duas manifestações a favor do projeto –, o país busca se equilibrar. O Knesset retornou ao trabalho depois de quatro semanas de recesso. O período de descanso, que acompanhou os feriados nacionais, teve pouco efeito na tentativa de acalmar os ânimos e reduzir as tensões políticas. No entanto, o foco principal do governo neste momento não é mais a proposta. Pelo menos não até o dia 29 maio, o prazo final para a aprovação do orçamento dos próximos dois anos. O valor a ser discutido está na casa de um trilhão de shekels (R$ 1,37 trilhão).
A aprovação do orçamento marca um momento crucial para a coalizão liderada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu: caso os partidos que compõem o Knesset não cheguem a um acordo, há risco real de
dissolução do parlamento e de convocação de novas eleições gerais, um problema para o atual governo, principalmente em função das pesquisas recentes.
Os levantamentos mostram que, caso seja necessário que os israelenses compareçam às urnas novamente, o cenário seria bastante desfavorável à atual coalizão. De acordo com pesquisa do jornal Maariv publicada no final de abril, o Partido da Unidade Nacional, de Benny Gantz, seria o maior do Knesset, com 27 cadeiras. O Likud, de Netanyahu, perderia seis assentos, passando a 26. O dado mais importante mostra que a atual coalizão se enfraqueceria, sendo reduzida dos atuais 64 mandatos para 52. Já a oposição conquistaria 68 cadeiras.
Todo este quadro, aliado ao isolamento internacional, inclusive em relação aos EUA, o principal aliado de Israel, exigirá que Benjamin Netanyahu coloque em prática sua grande capacidade de negociação. E é provável que, tendo logo adiante o prazo de aprovação do orçamento, busque flexibilizar alguns dos pontos mais polêmicos da Reforma Judicial. E deve acabar seguindo este caminho – em nome da própria sobrevivência política, da tentativa de obter resultados positivos e para impedir o isolamento completo do país em meio a mudanças profundas, inclusive a partir do estabelecimento de novas relações regionais entre alguns dos principais inimigos de Israel no Oriente Médio.
Em 2012, o arquiteto polonês Jakub Szczesny construiu a Casa Keret, em uma abertura entre uma casa pré-Segunda Guerra Mundial e um edifício contemporâneo, em Varsóvia, Polônia, com o objetivo de oferecer um espaço de trabalho para o escritor israelense Etgar Keret. Por possuir 1,2 m de largura e 8,5 m de comprimento, o espaço é definido como narrow, ou seja, categoria de edifícios “[...] criados entre dois edifícios já existentes sendo maioritariamente confinados a um espaço muito limitado”. (CASTELO, 2014, p. 23.)
O edifício se resume a uma estrutura de dois andares, amparados por dois grupos de pilares leves, em uma estrutura reduzida ao mínimo e principalmente marcada pelo sentido ascensional, o que faz dele uma construção leve. Dentro, há uma cozinha, um escritório, um dormitório e um banheiro em miniatura (Figura 1). A luminosidade interior é intensificada com a externa através do teto poroso. (CASTELO, 2014.)
No lugar é possível identificar traços do estilo Gótico, tais como leveza, verticalidade da forma, tendência naturalista, entrada única, traços relacionados à sólida estrutura monárquica medieval e na qual a Igreja é depositária das ciências e das artes e mediadora entre Deus e a humanidade. (GÓTICO, 2018.)
A estrutura da casa apresenta um sentido, um ponto superior extremo, que, resgatando a arte gótica, talvez remonte à proeminência de Deus – ao culto à Virgem Maria, na crença católica – ou mais precisamente à preponderância da Igreja, o primeiro plano na iconografia sacra. (GÓTICO, 2018.) Para Victor Hugo, a Catedral de Notre-Dame foi o representante exemplar da arte gótica e “[...] a arquitetura foi o grande livro da humanidade”. (UTSCH, 2015, p. 19.)
Na visão do escritor francês, “[...] até Gutemberg, a arquitetura é a escrita principal, a escrita universal” (UTSCH, 2015, p. 31), uma vez que, até o século XV,
a arquitetura teria sido o principal registro da humanidade: “Porque todo pensamento, seja religioso, seja filosófico, está interessado em perpetuar-se; porque a ideia que agitou uma geração quer agitar outras, e deixar seu rastro.” (UTSCH, 2015, p. 35.) Esses comentários estão em “Isto Matará Aquilo”, segundo capítulo do Livro V de Notre-Dame de Paris (1831), onde o autor insere a Catedral como a protagonista do romance e confronta o livro, a Bíblia de papel, com a arquitetura, a Bíblia de pedra.
A Casa Keret remete à história, ao contexto absurdo da Shoá. Ela está localizada entre a Rua Chłodna 22 e a Rua Żelazna 74, dentro dos limites do gueto estabelecido pela Alemanha Nazista na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial.
Exatamente naquele local, em 1942, havia uma ponte de madeira que permitia aos cidadãos saírem do Gueto de Varsóvia. Ali, houve a primeira insurreição massiva contra a ocupação nazista na Europa, conhecida como o Levante do Gueto de Varsóvia de 1943, que culminou com a morte de milhares de poloneses.
Ali houve também massacre e queima de corpos, em 1944, pela Nordwache, a polícia alemã, e seus colaboradores.1
Em Sete anos bons, especificamente no conto “A casa estreita”, Keret trata do nascimento de sua mãe, em Varsóvia, da segunda guerra mundial, da trajetória dos pais do autor para escapar da Shoá. A narrativa retrata a vida no gueto e as dificuldades para sobreviver, naquele contexto:
Minha mãe nasceu em Varsóvia em 1934. Quando a guerra estourou, ela e sua família acabaram no gueto. Quando criança, ela precisava encontrar meios de sustentar os pais e o irmão bebê. As crianças podiam escapar do gueto e contrabandear comida para dentro pelas aberturas pequenas demais para os adultos. Durante a guerra, ela perdeu a mãe e o irmão mais novo. Depois perdeu também o pai e ficou inteiramente só no mundo. (KERET, 2015, p. 179.)
Keret, que pertence ao mundo judaico e israelense, mostra seu
edifício vencedor. Na casa só há espaço para uma pessoa, corroborando com a descrição do crítico Todd McEwen, para quem os personagens keretianos são confusos, solitários, repugnantes e sobretudo melancólicos. Nos contos sobressaem a linguagem cotidiana e a gíria. Muitas vezes, as histórias retratam temas caros aos estudos judaicos como Shoá, guerras em Israel, relação entre indivíduos religiosos e laicos e vida noturna em Tel Aviv. De dentro da casa, o escritor talvez possa se concentrar em dilemas pessoais, ou no mal-estar e na paranoia de uma sociedade conflitiva. Tal como a casa, limitada por edifícios maiores preexistentes, Keret está entre grandes autores da literatura israelense, como Amos Oz, A. B. Yehoshua e David Grossman. E talvez esteja descortinando um gênero tornado pequeno.
Ao aceitar a cidadania polonesa, o autor faz o movimento inverso da migração judaica. Sua família migrou de Varsóvia há mais de 70 anos, sendo apenas em 2012 que o escritor visita a Polônia para promover a versão polonesa do livro O pai foge com o circo
(Tata ucieka z cyrkiem), escrito em colaboração com Rutu Modan. A mãe de Keret nasceu na capital polonesa, em 1934. Durante a Segunda Guerra, ela esteve confinada ao gueto, onde os judeus eram vitimados por fome, doenças e deportações, tendo a família perecido. Ela conseguiu fugir para Israel, passando pela França. O pai de Keret, também nascido na Polônia, sobreviveu à guerra, permanecendo, junto a outros judeus, em um pequeno esconderijo de uma aldeia não identificada.
Em entrevista, Keret diz: “Fora de Israel, o lugar onde tenho mais sucesso, o lugar onde meu trabalho é mais valorizado, é a Polônia. Então, naturalmente, eu vou para lá. Mas a Polônia é um lugar para o qual meus pais se recusaram a voltar, por motivos pessoais, por causa de lembranças. Minha mãe perdeu os pais e o irmão lá durante a Shoá, então ela não quer voltar. Mas quando eu vou para lá, não quero dizer que me sinto em casa, mas me sinto muito confortável. Eu sinto que as pessoas, lá, realmente se conectam com minha escrita, minha perspectiva, meu humor.” Quando minha mãe leu um de meus livros em polonês – polonês é sua língua materna –, ela se virou para mim e disse: “Sabe, você não é um escritor israelense. Você é um escritor polonês no exílio.” (KERET, 2009, tradução nossa.)
Keret é um nome hebraico que o
pai do escritor assumiu em Israel. Nome e sobrenome do autor significam “desafio urbano”. Assim, a estreita casa pode ser uma complementação de seu nome. A casa é uma homenagem às inúmeras vítimas da Shoá, vinculando à tragédia a esperança, e Keret foi o seu primeiro habitante. Nos anos posteriores, funcionou como lar para diversos artistas e criadores estrangeiros.
(CASTELO, 2014.)
A casa, por sua particular localidade, bem como por suas características estruturais, pode, talvez, servir de modelo para o entendimento do lugar da escrita de Keret, bem como de Gavron e da literatura israelense contemporânea como um todo. Pois a rua se assemelha a um vale fendido, um lugar de colisão de maciços, do afloramento de formações modernas e a resultante criação de uma narrativa. A topografia simbólica deste lugar é simplesmente um excedente caoticamente crescente, ou é um sistema de vasos comunicantes caracterizados por uma ordem reconhecível de fluxos internos, sensível às flutuações de pressões externas? O sistema tem uma regra, uma lei governando o arranjo simbólico espacial.
(JANICKA, 2019.) A estreita casa é construção arquitetônica simbólica que possibilita reorganizar um espaço e ao mesmo tempo uma narrativa. Esse projeto fala sobre o passado e o futuro, sobre história e arquitetura
Etgar Keret: “Fora de Israel, o lugar onde tenho mais sucesso, o lugar onde meu trabalho é mais valorizado, é a Polônia. Então, naturalmente, eu vou para lá. (…) Mas quando eu vou para lá, não quero dizer que me sinto em casa, mas me sinto muito confortável.”
impossível. Mas o que um autor israelense estaria fazendo no interior do estreito edifício?
Casa Keret talvez não seja uma casa, mas uma metáfora. E ao usar o adjetivo menor, apresentando-se o grau comparativo de inferioridade, contraditoriamente aumenta o seu valor. (GROLLMUS, 2012.) Assim, a construção da “Casa Mais Estreita do Mundo” (WARZECHA, c2016) expõe a história judaica na Polônia, e na Europa como um todo. Então a casa, para a qual retorna o filho de judeus poloneses sobreviventes da Shoá, também pode ser desafiadora. Mas o que é mais desafiador: a largura do edifício ou a reviravolta na História?
O edifício parece estar suspenso no ar e não se apoiar no chão, como se no intuito de não profanar um
cemitério. Denise Grollmus problematiza a questão, referindo-se à casa como um bunker, abrigo de guerra, algo que os judeus almejavam (esconder-se dos seus algozes) durante a Segunda Guerra Mundial. (GROLLMUS, 2012.) Assim, o espaço, que remete à Diáspora, ao exílio judaico, permite agora que se preencha aquela lacuna. Estar suspenso do chão talvez seja uma honra, em outras culturas. Com Keret, a literatura de um país tão pequeno, como Israel, encontra posição no exílio.
Referências:
CASTELO, Joana Andreia Correia. Edifícios narrow: caso de Borneo Sporenburg, Keret House e Azuma House. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Faculdade de Arquitectura e Artes, Universidades Lusíada de Lisboa, Lisboa, 2014.
Estrutura da casa: Cortesia de Centrala https://www.archdaily.com/152505/keret-house-centrala/ dom-kereta_jakub-szcz%ef%bf%bdsny_wersja-z-otwartymi-schodami_czerwiec2011?next_project=no
GÓTICO. In: ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL DE ARTE E CULTURA BRASILEIRAS. São Paulo: Itaú Cultural, 2018.
GROLLMUS, Denise. A house is not a home is an idea. Malakulturawspolczesna, Varsóvia, 2012.
JANICKA, Elżbieta. A Triumphant Gate of the Polish Narrative: The Symbolic Reconstruction of the Bridge over Chłodna Street in Warsaw vis-à-vis the Crisis of the Dominant Polish Holocaust Narrative. Studia Litteraria et Historica, Varsóvia, n. 8, 2019.
KERET, Etgar. Etgar Keret on Tradition, Translation, and Alien Toasters. Entrevistado: Adam Rovner. Words without Borders, [New York], Mar. 2009.
KERET, Etgar. Sete anos bons. Tradução: Maira Parula. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.
NASCIMENTO, Lyslei. Borges e outros rabinos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
UTSCH, Ana. Isto matará aquilo: Capítulo II do livro V de Notre-Dame de Paris. Tradução: Ana Utsch. Belo Horizonte: Museu Vivo Memória Gráfica, 2015.
Acerca da situação demográfica e social dos judeus ao final do século XIX e na primeira metade do século XX, é importante notar que cerca de 80% de um total dos 15 milhões de judeus do mundo viviam na Europa Oriental e somente perto de 20% no restante do mundo, inclusive EUA, Europa Ocidental, Austrália, América Latina, norte da África e demais regiões. E falavam iídiche. Hebraico era a língua sagrada e o iídiche o meio de comunicação do dia a dia.
A grande maioria dos judeus da Europa Oriental vivia em shtetls, em estado de pobreza, sem educação formal, só educação religiosa dos Cheders, como cidadãos de segunda categoria, sujeitos a perseguições constantes (pogroms) e falando iídiche desde o século X, com baixíssima produção cultural nos moldes dos países cristãos como França, Reino Unido, Alemanha e outros.
A renascença judaica quatro séculos após a cristã
Esse era o cenário até o surgimento do Iluminismo judaico (Haskalá), na Alemanha do século XVIII e XIX, e do chassidismo, mais ou menos no mesmo período na Europa Oriental.
Se, por um lado, o chassidismo liberou o judeu do leste europeu do controle do rabinato, por outro, o supriu de um messianismo radical, com contornos anti-intelectuais e antiprogressistas, afastando-o do desenvolvimento social e científico trazido pelo iluminismo europeu.
No sentido oposto, em Berlim, sob a inspiração de Moses Mendelssohn, buscava-se emancipar o judeu e incluí-lo na sociedade europeia através da transformação do judaísmo numa religião e da assimilação político-social
A Grande Sinagoga de Varsóvia (polonês: Wielka Synagoga w Warszawie) foi uma das maiores sinagogas construídas na Polônia no século XIX. Na época de sua inauguração, era a maior casa de culto judaico do mundo. Localizada na rua Tłomackie em Varsóvia, foi inaugurada em 26 de setembro de 1878 durante Rosh Hashaná e explodida pessoalmente pelo SS-Gruppenführer Jürgen Stroop em 16 de maio de 1943.
na sociedade alemã. Mendelssohn propunha ainda que os judeus abandonassem o iídiche, como parte do que supostamente seria superstição e atraso, em prol do alemão e abandonando ainda o que fosse culturalmente judaico em prol dos valores germânicos. Propôs ainda uma reforma completa da religião judaica afastando-a do chassidismo, numa versão atualizada do rabinismo. Mas, ironicamente e ao mesmo tempo em que o Iluminismo começava a chegar ao grande império russo, os maskilim (ilustrados) se interessaram menos em discutir a religião, se vinculando mais na valorização da cultura judaica para auxiliar os judeus em seu processo de emancipação. Portanto, ao contrário de Mendelssohn, uma emancipação que não buscava a assimilação da cultura judaica vigente, mas sim, a partir desses próprios valores culturais, fazer os pobres e perseguidos no Leste Europeu se reconhecerem como um Povo e, ao mesmo tempo, abandonarem o atraso e a ignorância. Foram os maskilim que viram no iídiche um poderoso aliado para difundir suas ideias. Este é o ponto de partida para o surgimento dos espaços seculares e para uma produção filosófica e organização política e, a partir delas, a artística, em todas as suas dimensões como teatro, literatura, música, pintura e outras. (Herzog, 2021:2)
É exatamente nesse período que o iídiche adquire sua dimensão secular e política, apartada de sua dimensão religiosa, até hoje existente nas comunidades charedim. Quando se diz que o iídiche é falado pelos charedim é preciso distinguir a dimensão secular e a dimensão religiosa em termos de produção cultural e política.
Quando falamos nessa dimensão secular e política na Europa Oriental, é fundamental entender que foi, basicamente, a proletarização das massas judaicas que tornou possível a criação de organizações políticas com suas vertentes culturais e o surgimento de lideranças políticas para conscientizar essas massas sobre a luta política por melhores condições de trabalho e salários, mas sobretudo da luta contra o antissemitismo, através dessas organizações. São essas lideranças que possibilitam o surgimento de uma “inteligentzia” que vai se manifestar na literatura, no teatro, na pintura, no jornalismo e nos movimentos sociais. Praticamente tudo em iídiche.
Dessa maneira, esses movimentos iluministas se desenvolveram em várias direções e as ideias socialistas rapidamente se difundiram nas massas judaicas, recém secularizadas, acarretando os movimentos sociais judaicos na Europa Oriental e seus desdobramentos na Europa Ocidental, na Palestina, nas Américas, Austrália e outros: o sionismo político (sionistas somos há dois mil anos), o BUND e o movimento comunista na primeira metade do século XX.
O ponto central das diversas teses que moviam esses movimentos era sobre como emancipar as massas judaicas do jugo das sociedades em que viviam. Como eliminar o antissemitismo crescente e violento (pogroms) e, ao mesmo tempo, lutar contra as injustiças sociais. Cada movimento tinha a sua visão sobre a emancipação judaica, mas tinham todos uma visão comum sobre a luta contra a
injustiça social via socialismo, também nas suas diversas matizes.
O sionismo político defendia a tese de que a única forma eficaz de combater o antissemitismo era recriar um estado judeu socialista e militarmente forte e deixar de se constituir em minorias sujeitas ao inevitável antissemitismo que, periodicamente, assumia formas catastróficas para os judeus. Todos os judeus deveriam emigrar para esse estado judeu, segundo a visão de Herzl, na reconquista de sua soberania nacional e retorno à nossa terra ancestral. Faço um reducionismo ao caracterizar todo o movimento sionista como socialista, até porque o sionismo político foi gestado no seio da burguesia austríaca, mas só conquistou os corações e mentes das massas judaicas quando se organizou com ideias socialistas na Europa Oriental.
O BUND, por sua vez, defendia a tese de que era irrealista pensar numa migração em massa de todos os judeus para um estado judeu e que, por isso e por outras razões de cunho internacionalista, os judeus deveriam lutar por uma sociedade sem classes sociais, onde o antissemitismo desapareceria naturalmente e os judeus poderiam florescer com a sua cultura iídiche nessas sociedades.
O movimento comunista tinha uma posição próxima à do BUND na questão social mas divergia basicamente quanto à manutenção da cultura iídiche, que, segundo eles, deveria ser absorvida num mundo sem classes sociais e sem nacionalidades. Por isso, tanto o movimento sionista quanto o BUND, eram considerados nacionalistas, pela questão cultural.
Dos três, o movimento
comunista era o único que não oferecia uma solução judaica mas sim um assimilacionismo cultural, ao contrário do BUND e do sionismo político, que almejavam uma emancipação política mas com a manutenção de uma cultura judaica como um de seus pontos centrais.
Infelizmente, de forma trágica, como prevista pelo sionismo político, a história lhes deu razão com o advento da tragédia do Holocausto. Mas o que o BUND e o sionismo político tiveram em comum, e que é de grande relevância, foi o de terem forjado, ao longo dessa luta, um judeu moderno e emancipado que compreende hoje a grande maioria do povo judeu em Israel e no mundo.
A construção de uma moderna sociedade judaica e democrática em Israel, fundamental para o futuro do judaísmo, bem como a participação dos judeus na luta por sociedades mais justas nos EUA e em outros países (Canadá, África do Sul, Argentina, Brasil, Austrália e outros) são constatações inequívocas dessa almejada emancipação e de uma visão de justiça social desse judeu forjado nesse luta política.
Não se trata obviamente de nenhum reducionismo das diversas dimensões do movimento sionista, focar nesse artigo, na questão dessa forja do perfil do judeu que foi para a Palestina. A luta fantástica pela recriação do Estado Judeu teve muitas outras dimensões importantes, como por exemplo a criação das instituições e das forças militares ainda no pré-estado. Mas no contexto dessa forja, o papel do iídiche é importante e esquecido.
Resta, finalmente, no bojo dessa reflexão, uma importante e difícil
discussão sobre a questão linguística, em especial quanto ao iídiche, visto que já existe um grande consenso entre os judeus sobre a importância capital do renascimento do hebraico e do Estado de Israel.
A questão linguística Chegamos ao ponto mais polêmico da nossa discussão. Para prosseguir é fundamental rever o conceito de uma língua estruturante em uma cultura, no caso, a judaica.
As três línguas estruturantes da cultura judaica, segundo a grande maioria dos historiadores, são o aramaico, o hebraico e o iídiche. São línguas onde estão concentrados os repositórios de valores de uma civilização e uma cultura e que foram portanto capazes de registrar para a posteridade elementos como a religião, a literatura, a música e outras manifestações culturais. E nesses aspectos é difícil contestar a cultura iídiche.
É claro que existiram outros dialetos falados pelos judeus em diversos países, que merecem ser preservados como por exemplo o ladino, mas que não tiveram a mesma importância na estruturação de uma cultura judaica como a desses três idiomas.
Era portanto razoável que o iídiche fosse considerado como uma segunda língua judaica oficial do Estado de Israel, como era defendido por uma parte do próprio movimento sionista.
Não se trata de questionar a decisão de instituir o hebraico como a única língua judaica oficial. A história não admite o “SE”. Trata-se de entender o que houve com o iídiche e rever, se for o caso, políticas públicas sobre a atitude em relação ao iídiche em Israel e no mundo. Além
do fervor hebraísta que ocorreu na Palestina, fundamental para o renascimento do hebraico, duas foram as razões alegadas para eleger somente o Hebraico como a língua judaica oficial do Estado de Israel.
A primeira, de caráter eminentemente político, partia do pressuposto de que o iídiche era um idioma usado pelos ashquenazis e que não tinha portanto nenhuma relação com os sefaradis. Ora, essa argumentação simplesmente justifica a eliminação da imensa maioria da cultura judaica para as futuras gerações simplesmente porque se originou no meio ashquenazi ou sefaradi. Além do que a mixigenação entre sefaradis e ashquenazis em Israel já é uma realidade. Mas o tesouro lá contido também desaparece? Essa justificativa é sociologicamente frágil. Nada é impossível quando o Estado tem em suas mãos o poder de ditar políticas públicas através do seu sistema educacional. Mas a decisão política estava tomada apesar da oposição de importantes segmentos do próprio movimento sionista.
Mas a segunda e principal razão da supressão do iídiche do cenário israelense, e depois das escolas judaicas no resto do mundo, foi a acirrada luta linguística entre os bundistas e os sionistas na rua judaica da Europa Oriental na primeira metade do século XX e que politiza integralmente a questão linguística.
O grande acontecimento histórico que marca o início dessa violenta luta foi a Conferência Linguística de Czernowicz em 1908, que reuniu a nata da intelectualidade judaica e que declarou o
iídiche como a língua nacional do povo judeu.
É o início de uma luta linguística irreconciliável de consequências trágicas para a cultura judaica e para a própria sociologia do povo judeu. Sholem Aleichem e Bialik, ambos fervorosos sionistas, tentaram de todas as formas evitar a politização da fratricida luta de idiomas. Em vão. O acirramento da luta entre sionistas e bundistas na rua judaica torna irreconciliável a magna dimensão dos valores linguísticos e de valores de ambos idiomas em face da dimensão política da luta entre esses dois movimentos sociais judaicos.
Sholem Aleichem estava doente durante a Conferência de Czernowicz. Tão logo ele pode recomeçar a escrever, ele iniciou a sua importante tradução para o iídiche de Kohelet (Eclesiastes) e paralelamente escreveu:
“Aqui me encontro no meu leito de enfermo, mas na realidade estou em Czernowicz. Meu corpo está aqui mas minha alma está lá na Primeira Conferência Linguística do Povo Judeu. Minha temperatura subia dia a dia, mas quando meu grande amigo Nathan Birnbaum fez o discurso de abertura em mame-loshn, e quando começaram os encarniçados debates, minha temperatura foi a 40 graus.”
Para Sholem Aleichem e Bialik, iídiche e hebraico eram as duas faces de uma mesma moeda, e portanto inseparáveis. Mas o curso da História as separou.
Num dos trechos do seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de
Literatura, Bashevis Singer dedicou seu prêmio à língua iídiche e explicou que uma das razões pelas quais escrevia em iídiche era porque quando o Messias chegasse, os mortos ressuscitariam e a primeira pergunta que grande parte deles faria era o que tem de novo para ler em iídiche?
Na realidade, como ele mais tarde explicou, a metáfora dizia respeito ao milagre da ressurreição da língua iídiche nos mesmos moldes da ressurreição da língua hebraica e também do Estado de Israel. Ben Gurion dizia que, entre os judeus, mesmo o mais agnóstico, acredita em milagres. E esse foi o pensamento de Bashevis Singer.
A essência do meu pensamento na questão do iídiche não é a de trabalhar em prol do iídiche voltar a ser falado em Israel e no resto do mundo, mas sim transmitir, em sua plenitude, para as gerações vindouras, a importância capital que o iídiche teve na forja do judeu moderno, que, através do iídiche, foi conscientizado para a luta política tanto a dos chalutsim sionistas, primeiro na Europa Oriental e depois na Palestina otomana e britânica, e de ter criado uma massa crítica de intelectuais que criaram uma literatura, que deve ser conhecida através de traduções, e movimentos políticos que forjaram o judeu que somos hoje. Eles tiveram no iídiche o seu grande veículo.
Poucos sabem que Bialik, o poeta nacional de Israel, não só escrevia também em iídiche mas considerava o conjunto hebraico/iídiche como
indissolúvel tal a sua complementaridade como repositório de valores, como também no seu conjunto literário. Sholem Aleichem, Perets, Leiwick, Bashevis Singer, Sholem Ash, Sutskever e tantos outros expoentes da literatura iídiche pensavam da mesma maneira. Eles estavam muito acima da luta linguística que se abateu sobre o judaísmo.
Israel é o único guardião desse tesouro que tem a máquina do Estado para reverter essa perda para as gerações futuras.
Gostaria de concluir essas reflexões reafirmando a importância do iídiche na formação da modernidade judaica para os nossos filhos e netos, nas escolas judaicas e na academia. O sonho de Bashevis Singer fica, quem sabe, para mais tarde.
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O75o aniversário do Estado de Israel estimulou pedidos a profissionais judeus para explicar e ensinar sobre o significado deste marco da história judaica contemporânea.
A grande variedade de lugares e pessoas com quem seremos convidados a nos envolver durante a análise da complexa história do Estado de Israel, me fez lembrar do truísmo usado em 1926 pelo jornal Chicago Tribune: as três coisas que mais importam no mercado imobiliário são “location, location, location”. Esse conhecido aforismo de negócios considera a óbvia lista de fatores que a localização determina, além da condição real da propriedade: terreno; centro da cidade; praia; vista para as montanhas; segurança; transporte público; escolas; acesso a empresas etc. Hoje, as questões de compra e venda de casas e propriedades continuam a ser determinadas por esse mesmo axioma de 100 anos, mas esses insights vão muito além da venda de imóveis.
Vou usá-los para enquadrar a realidade extremamente difícil para qualquer pessoa que tente explicar, ensinar ou até mesmo representar o Estado de Israel. Meu uso de “location, location, location” em relação a Israel em 2023 é: para quem você está falando e quando envolve mais do que local, data e hora. O Zeitgeist dentro do qual você está ensinando é o item mais relevante.
Hoje, existem aproximadamente 16 milhões de judeus numa população mundial de mais de 8 bilhões de pessoas. Em 1939 havia 16,6 milhões de judeus numa população mundial de 2 bilhões. Ou seja, nos 80 anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, a comunidade judaica global encolheu consideravelmente – de 0,83% para 0,20% da população mundial.
Na América Latina, estima-se que 400 mil judeus vivem entre quase 650
milhões de pessoas. Assim, nossa proporção é bem menor que a mundial: somos 0,06% da população, sendo que a maioria dentre nós vive nos centros urbanos da Argentina e do Brasil. Portanto, os judeus que não vivem nas poucas grandes áreas urbanas fora dos EUA e de Israel, enfrentam a mesma questão: explicar Israel e a enigmática identidade judaica do século 21 a não judeus, a maioria dos quais nunca conheceu um judeu.
O que se segue é a minha experiência de ensinar nos EUA em uma comunidade semelhante a tantas da América Latina.
Eu ensinei em St. Cloud State University de 2002 a 2016. A SCSU estava envolvida em uma ação coletiva federal sobre discriminação antissemita. Após o acordo entre as partes, fui contratado para criar um
JUDEUS NO MUNDO
1939 havia 16,6 milhões de judeus numa população mundial de 2 bilhões. Hoje, existem aproximadamente 16 milhões de judeus numa população mundial de mais de 8 bilhões de pessoas.
Nos 80 anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, a comunidade judaica global encolheu consideravelmente - de 0,83% para 0,20% da população mundial.
1939
POPULAÇÃO MUNDIAL 0,83% POPULAÇÃO MUNDIAL
JUDEUS
2 bilhões 16,6 milhões
MUNDIAL 0,20% POPULAÇÃO MUNDIAL
JUDEUS
8 bilhões 16 milhões
programa de Estudos Judaicos num campus que fica a aproximadamente 100 km de Mineápolis e que contava com um pequeno punhado de judeus, entre professores e alunos. A maioria dos estudantes era proveniente da área rural que vai de Mineápolis até a fronteira canadense.
Em todos os cursos que dei, sempre havia vários alunos que nunca tinham conhecido um judeu; a maioria dos alunos e professores só conhecia “sobre” judeus de suas igrejas, de uma menção no ensino médio e, claro, da cultura popular. Durante o meu primeiro semestre, ao dar uma palestra sobre estereótipos judeus na televisão, perguntei aos mais de 75 alunos quem dentre eles gostava de Jerry Seinfeld. Eles responderam com muitas mãos e risos, mas quando perguntei se eles sabiam que Jerry
Havia uma “ausência” de judeus – uma total falta de um contexto cultural sobre judeus e a vida judaica. Essa “ausência” não é o mesmo que simplesmente NÃO haver judeus.
Seinfeld e Larry David eram judeus, houve silêncio. Eles gostavam do show sem qualquer compreensão de seu contexto cultural – a sátira judaica de Nova York. Me perguntei: do que eles riam?
Após essa experiência, eu fiquei ciente de que a comunidade que havia sido rotulada como antissemita não entendia seu próprio comportamento. Havia uma “ausência” de
judeus – uma total falta de um contexto cultural sobre judeus e a vida judaica. Essa “ausência” não é o mesmo que simplesmente NÃO haver judeus em uma maioria óbvia de não judeus: cristãos e alguns muçulmanos somalis. Essa “ausência” às vezes é a inocência de um estudante perguntando sinceramente onde eu aprendi que todas as pessoas compartilham o mesmo Um Deus; ele cresceu em uma cidade de 450 pessoas. Essa “ausência” é sempre distorcida por sua fonte de notícias, seu envolvimento com a internet e mídias sociais, política e o que quer que seus costumes sociais pessoais exijam. A ausência de judeus significa que, quando esses alunos, professores e funcionários cometem erros sobre os judeus ou a vida judaica, não há judeus para questioná-los ou desafiá-los.
Dado o escopo bastante específico do meu argumento, pode-se contestar que alguns não judeus que nunca conheceram um judeu não são representativos de um fenômeno. No entanto, a hermenêutica rabínica tradicional, ‘prat u’clal’ (do particular para geral), ressalta meu propósito. Os desafios que esses não judeus representam afirmam como devemos nos preparar para qualquer apresentação sobre Israel.
Aprendi muito rapidamente que não há pressupostos sobre os judeus e a vida judaica entre os não judeus cujas ideias foram construídas no silêncio da ausência de judeus. Levei seis meses para convencer o comitê do corpo docente de alguns cursos de Estudos Religiosos a incluir o termo “Bíblia Hebraica” em “Estudos Religiosos 101: O Antigo Testamento”, fazendo com que o catálogo acadêmico pudesse ser inclusivo. Um dos professores do comitê do departamento de inglês, que se opôs à minha presença no campus e se recusou a apoiar a mudança do título, argumentou que este não era um campus para judeus!
A organização “Faculty of Color” ministrou cursos sobre raça e racismo para cumprir o requisito de graduação de “relações humanas”. Eles criaram oficinas obrigatórias para o corpo docente usando suas pedagogias de antirracismo; quando participei, fui julgado como o judeu branco que se recusou a aceitar a experiência única das vítimas do racismo. Eu argumentei que o antissemitismo e o racismo não devem se tornar vitimologias comparativas. Ironicamente, alguns desses professores conheciam judeus, mas seus comprometimentos ideológicos
tornaram impossível para eles reconhecerem que minha presença havia sido resultante de antissemitismo institucional.
Logo houve uma foto minha como “O Furioso Professor Sionista” na página do Facebook do “Students for a Free Palestine”, dizendo aos alunos para não fazerem nenhum dos meus cursos. Quando pedi para participar de programas anti-Israel para fornecer outro ponto de vista, me disseram “nunca”, eis
Ser judeu ou viver uma vida judaica não incluía o que ela entendia como sionismo; mais tarde ficou claro que ela nunca conheceu um judeu nem experimentou a vida judaica real.
que isto seria como pedir à vítima de estupro para se sentar ao lado do estuprador! A ausência de judeus sustentou uma cultura política e social de silêncio e passividade; ninguém recuou em nome de uma minoria “ausente” porque o discurso vigoroso tornou tóxica a defesa dos judeus. Como todos nós precisamos compartilhar um discurso histórico comum, eu perguntava aos alunos se eles poderiam explicar/definir quatro palavras: israelitas, hebreus, judeus e israelenses (eu misturava a ordem histórica). Dificilmente o grupo era capaz de distinguir os termos e
contextos históricos, o que me dava a oportunidade de oferecer uma base para os diversos tópicos sobre judeus e vida judaica. Experimentei isso recentemente quando fui convidado para um curso realizado remotamente sobre nacionalismo e religião em Israel, na Universidade de Washington, Seattle. Os nove alunos haviam lido o material de um sociólogo israelense, mas apenas três haviam tido relacionamentos com judeus, alguns haviam conhecido judeus e dois nunca haviam conhecido um judeu. Fiquei surpreso quando uma das alunas me desafiou dizendo que eu tinha que incluir “sionista” na minha lista de termos básicos. Ela assumiu que TODOS os judeus eram sionistas se apoiassem Israel, que, em sua opinião, é o produto da “opressão sionista-colonialista”. Eu tive que explicar que ser judeu ou viver uma vida judaica não incluía o que ela entendia como sionismo; mais tarde ficou claro que ela nunca conheceu um judeu nem experimentou a vida judaica real. Mais uma vez, o vácuo da “ausência” de judeus havia incubado a certeza ideológica de seu antissionismo.
Os locais físicos e os contextos sociológicos que representam a ausência de judeus são ainda mais complicados pelo nossa localização no tempo, nosso Zeitgeist imediato. O aumento global e a intensidade do antissemitismo tornam cada comentário sobre os judeus e a vida judaica muito mais complexo do que há cinco anos. Imagine alguém que nunca conheceu um judeu, mas só conhece sobre eles de programas como Madoff, Hunters II, Fauda ou You People – uma comédia romântica sobre famílias judias e negras.
No entanto, os dados mais recentes sugerem que, embora haja um aumento do medo que os judeus sentem sobre o antissemitismo, nove em cada dez americanos (91%) acreditam que o antissemitismo é um problema que afeta a sociedade como um todo. Eles afirmam decisivamente que o antissemitismo não é apenas um problema para os judeus. Além disso, nove em cada dez americanos também acreditam que o antissionismo, refletido na frase “Israel não tem o direito de existir”, é antissemita.
A realidade física de uma casa/ propriedade é imutável: você ou está perto de uma praia ou ao lado de uma colina ou seu quintal fica de frente para a autoestrada; apenas uma dessas situações é possível. Assim também é a compreensão de uma pessoa sobre os judeus, quando essa compreensão vem apenas da
Charedim estão difamando publicamente todas as formas pluralistas de expressão judaica. O recém-criado governo de Israel nos desafia a reformular criticamente nosso próprio relacionamento com Israel e o sionismo.
cultura popular e política não filtrada em que vivemos. Como explicamos o “milagre” de Israel aos 75 anos para pessoas que não têm acesso à história, literatura e cultura que são a base desse milagre?
Acrescente a isso a dinâmica ainda emergente da própria
polarização política de Israel, na qual Charedim estão difamando publicamente todas as formas pluralistas de expressão judaica. O recém-criado governo de Israel nos desafia a reformular criticamente nosso próprio relacionamento com Israel e o sionismo. Duvido que as comunidades onde constatamos a “ausência” de judeus possam apreciar os artigos recentes de Donniel Hartman, a carta pungente de Matti Friedman, Yossi Klein Halevi e Daniel Gordis, ou os podcasts de Ammi Hirsh. Se a realidade atual de Israel desafia o discurso normativo e as premissas da comunidade judaica, ainda mais necessária se faz uma apresentação do propósito histórico e das realizações de Israel após 75 anos.
Entre a complexa variedade de não judeus descritos neste texto estão aqueles que apoiam Israel como
os cristãos evangélicos, bem como alguns nacionalistas cristãos. Essas pessoas podem ficar confusas quando os líderes de sua comunidade condenam os judeus por serem muito liberais politicamente e não apoiarem Israel o suficiente! Imagine tentar explicar o complexo pluralismo da comunidade judaica a um grupo cujo amor por Israel está textualmente enraizado na promessa da Salvação, não no reconhecimento de Herzl de que o projeto do Iluminismo europeu havia falhado. Os sionistas cristãos, que não conheceram judeus ou experimentaram a vida judaica, não entendem que os judeus do século XXI não são os descritos nas escrituras ou que usar objetos rituais judaicos na afirmação de Jesus, o judeu, é inadequado. Essas pessoas “amam” os judeus por causa de sua fé cristã e seus pastores lhes dizem
Ensinar sobre judeus, vida judaica e cultura em tais áreas neste momento exige que rejeitemos até mesmo as suposições mais óbvias.
para apoiar o governo de Israel incondicionalmente. Nossa localização neste “tempo” específico não pode ser enfatizada o suficiente, nem ignorada; precisamos nos preparar para os valores contraditórios entre tantos não judeus com quem nos envolvemos.
Ensinar sobre judeus, vida judaica e cultura em tais áreas neste momento exige que rejeitemos até mesmo as suposições mais óbvias. Uma vez, ao ministrar um curso de
graduação sobre literatura judaica, escolhi as memórias de Isaac Bashevis Singer, In My Father’s Court, como texto. Durante a sessão, perguntei aos alunos sobre o idioma em que o livro foi escrito e fiquei surpreso que ninguém respondeu, iídiche! Essa experiência me convenceu a ensinar sobre como se preparar para ler um livro, usando as páginas de título e direitos autorais. Eu os ajudei a entender o valor de dedicar tempo aprendendo sobre os idiomas que foram traduzidos para o inglês e o que estava acontecendo nos anos anteriores à publicação.
Agora eu sempre ensino que cada texto tem seu próprio contexto e que cada aluno/leitor traz seu próprio contexto para o desafio de ler e entender. Essa lição é ainda mais essencial ao considerar a preparação necessária para ensinar sobre Israel em 2023. Não há detalhes
tão pequenos que possam ser presumidos, nenhum tópico histórico tão insignificante para ser descartado, porque a leitura crítica e a compreensão são disciplinas que não são facilmente dominadas em qualquer nível.
Todo profissional judeu tem seu próprio relacionamento com Israel: as viagens que você fez durante sua juventude, os passeios que você liderou e compartilhou, os sabáticos quando você “viveu” lá e, para alguns, os laços familiares; tudo isso faz de Israel um assunto muito pessoal. Alguns profissionais judeus falam e escrevem da profundidade de suas almas, arriscando sua estatura comunitária por causa da lacuna entre o Israel que ansiamos e o Israel que atualmente somos obrigados a aceitar. O choque desses valores inflama o sentido mais profundo de ser judeu. Todas essas verificações de realidade pessoal devem ser consideradas quando aceitamos qualquer convite, porque o profissional que é convidado pode ser distintamente diferente das paixões individuais da pessoa sobre o Israel que amamos dentro de nossas reflexões privadas. O judeu profissional público e pessoa privada nem sempre podem convergir, especialmente para pessoas que – elas
mesmas – têm pouca autoconsciência sobre Israel: o Estado, a Pátria e a esperança profética do sionismo. Finalmente, qualquer pessoa que fale, ensine ou “represente” Israel deve sempre dar àqueles a quem você fala um documento escrito de uma ou duas páginas. Dada a complexidade do nosso tempo, devemos nos certificar de oferecer fontes para uso além da sessão e ter provas do que ensinamos. Períodos de atenção sobre história e política global são curtos e, para aqueles que têm pouco ou nenhum histórico, um simples esboço ou lista de tópicos esclarecerá e enfatizará nossas ideias muito além dos 60-90 minutos que nos são permitidos. Eu ofereço links para fontes judaicas comunitárias importantes porque, na “ausência” de judeus, os ouvintes não saberão como encontrar a URJ ou ADL. Explicar que entre os judeus não há uma opinião única não é o mesmo que mostrar os vídeos de protestos recentes. Todos nós sabemos que as mídias sociais distorcem, e a desinformação perigosa é difundida, independentemente de quão cuidadosos tenhamos sido. As distorções podem ser minimizadas quando oferecemos um “registro” de nossas ideias.
Neemias 8:8 nos ensina: “Eles liam do pergaminho da Torá do Eterno, traduzindo-o e explicando seu sentido; assim, eles entenderam a leitura.” As pessoas que haviam retornado do primeiro Exílio não conseguiam mais ouvir a Torá e entendê-la, então um ‘targum’ era necessário e levou-se tempo para explicar o texto. A tradição judaica exige que todos os nossos textos sejam interpretados para aprendizado e discussões comunitárias; fazemos isso há séculos dentro de nossa comunidade uns pelos outros. Agora, em 2023, devemos estar conscientes de nossas responsabilidades para com aqueles fora de nossa comunidade, especialmente aqueles que nunca conheceram um judeu. Nosso relacionamento com essas comunidades não é discricionário quando pensamos em diálogo inter-religioso ou antissemitismo. Portanto, há um papel único que os profissionais judeus podem e devem ter com aqueles cuja relação com os judeus e a vida judaica é mínima e distorcida pela “ausência de judeus”. Vamos aceitar que este é o desafio único do nosso tempo: traduzir e explicar Israel para aqueles que, mesmo hoje, ainda não conheceram um judeu.
Este artigo foi adaptado do original de mesmo título, recentemente publicado pelo Journal of Reform Judaism. Gentilmente traduzido do inglês por Sheila e Michel Ventura.
Ojudaísmo é composto por uma miríade de facetas, cada qual refletindo buscas milenares com seu próprio brilho. As tentativas de encontrar um denominador comum para unir tradições ao redor do mundo e através dos tempos, entre comunidades de diferentes tamanhos, esbarram em desafios aparentemente intransponíveis. Aparentemente.
Desde Gênesis encontramos o conceito de grande e pequeno, de maneira relacional: Lua e Sol se confrontam, cada qual buscando conquistar seu espaço de poder. A narrativa avança, até chegar no embate de um povo aprisionado, cujas tendas sobrepujarão as ruínas das pirâmides imponentes, saga descrita em Êxodo. Mas a liberdade não é conquistada pela razão, pela falta de água, alimento ou pela escuridão – elementos que afetam a subsistência.
É quando Mitsraim perde o futuro e a esperança, quando a emoção é acorrentada pela morte dos primogênitos, que finalmente ele avança em sua jornada. Este olhar, que acentua a vitória dos oprimidos sobre os mais fortes, será recorrente, como na luta dos macabeus contra os selêucidas ou dos judeus na Pérsia, relatada em Purim, para citar as mais conhecidas.
E lembremos a história de David, o jovem pastor, e Golias, o gigante (1 Samuel, 17). Para o embate, David utiliza uma funda e pedras: derruba o oponente ao acertar seu ponto crítico, entre os olhos.
David e Golias: a razão da vitória
Sabemos como venceu. Mas a pergunta é outra: não o como, mas o por quê Esta reflexão nos leva a questionar as categorias naturalizadas de “gigante” e “pequeno”. Gigante em quê? Em estatura? Em agilidade? Em saber utilizar as ferramentas apropriadas para cada ocasião? O “gigante” Golias assim se estabelece porque se contrapõe a David, ponto de referência no relato. No
Portanto Deus criou duas grandes fontes de luz: a luz maior para governar o dia, e a luz menor para governar a noite e as estrelas.
Gênesis 1:16*
entanto, David, transposto para a terra de Lilliput, seria ele mesmo um gigante em estatura. Perderia suas características que o fazem gigante na história judaica?
Todos estes elementos – Golias, David, Lilliput, funda, pedras – passam pela minha cabeça enquanto caminho a passos largos rumo à minha congregação... pequena. Pequena, sem dúvida, se comparada pelo critério numérico de pessoas. Tal contagem é importante – se não o fora, por que haveria censos na Torá, como descrito em Bamidbar?
Precisamos saber o número de pessoas para estimar a massa crítica com a qual podemos contar, fazer projeções de arrecadação, encomendar chalot e guefilt fish... Que não falte comida, transgressão impensável para qualquer judeu! Mas o que constitui uma congregação?
Uma congregação definida para além do seu tamanho
O conceito de congregação se traduz na existência do minian, como encontramos em Bamidbar 14:27: - Por quanto tempo essa comunidade perversa continuará a resmungar contra Mim?
Define-se congregação, sem caracterizá-la como “grande” ou “pequena”. Esta dicotomia entre “pequeno” e “grande” oblitera outras discussões fundamentais, pois destaca valores caros ao mundo contemporâneo: quantos seguidores?
Quantos views? Quantos likes? É um mundo que valoriza a grandiosidade, o gigantismo de prédios com mais de 150 andares, de shoppings que se erguem como mausoléus, de transatlânticos que abrigam 9.288 pessoas em cada viagem. Como resgatar a força do pequeno? Este é o desafio
das congregações esparsas que, atraídas como mariposas pelo espetacular das sinagogas imponentes, decretam seu próprio fim.
O povo judeu supera o Faraó não por ser pequeno, mas por ter um objetivo bem definido: a conquista da liberdade. Não vence pela lógica, pelas ameaças materiais de falta de água, comida ou luz. A vitória se fundamenta no emocional: o futuro do opressor deixa de existir (a morte dos primogênitos) e finalmente os judeus conquistam o direito ao seu próprio devir.
David supera Golias não porque é pequeno, mas porque tem um objetivo preciso; porque tem as ferramentas certas para o embate e porque utiliza tais ferramentas.
Os Hasmoneus vencem porque possuem uma meta clara, possuem as estratégias certas e colocam tais estratégias em ação.
Portanto, o tamanho, na história judaica, não é a categoria mais importante, pois é referencial e contextualiza os desafios. O tamanho é um pano de fundo para a atuação das diferentes comunidades. Mais do que o tamanho, os líderes comunitários com os quais tive a oportunidade de conversar1 descrevem desafios em duas direções: nas relações intracomunitárias
1 Os desafios aqui sintetizados são o resultado de conversas informais realizadas com representantes de várias congregações judaicas ao redor do mundo, presentes no Connections – WUPJ 2023, realizado em Jerusalém de 3 a 6 de maio de 2023 e também em entrevistas com estudantes de rabinato e professores do Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista, de diferentes congregações latino-americanas, reunidos em Campos de Jordão, Brasil, em junho de 2023. Seria impossível nomear a todos, mas agradeço as sugestões, ideias e o compartilhamento de experiências, angústias e sonhos.
e nas relações interinstitucionais. A complexidade dos desafios enfrentados pode paralisar tais congregações e, para evitar tal risco, usemos as armas de David.
As armas de David Para agir, David preparou-se com 5 pedras – e 5 pedras somente. Eis os 5 obstáculos, sintetizados, que unem tais congregações.
1. A primeira pedra: impermeabilidade. Em comunidades restritas, todos se conhecem intimamente, sabem segredos e mantêm relações de amor e ódio. Como autoproteção, constroem muros que protegem, mas também aprisionam. Cerram portas para evitar a entrada do outro, do estranho. Ele é bem recebido – como manda a tradição de hospitalidade judaica – mas só porque está de passagem. O medo do “outro” acaba por tornar impermeável tais comunidades, que ficam estagnadas e aprisionadas em suas próprias tradições.
2. A segunda pedra: lutas de poder Em grupos familiares e flutuantes (como as narrativas judaicas das lutas entre irmãos atestam), o espaço para exercer poder e diferentes papéis é restrito. A passagem de poder, embora anunciada, raramente se efetiva, seja pela transitoriedade dos membros, seja pelos papeis institucionais ocupados – e quando ocorre, é em meio a ranger de dentes.
3. A terceira pedra: o mito de Sísifo. Muitas destas comunidades se estabelecem em locais desenraizados e isolados: os judeus permanecem por curtos períodos de tempo, a trabalho ou estudo. Não há tempo de desenvolver um ciclo de tradições repassadas de geração em geração. Ledor vador. Os conselhos diretivos têm a sensação, como Sísifo, de es-
David supera Golias porque tem as ferramentas certas e porque utiliza tais ferramentas.
tar sempre reproduzindo as mesmas ações, sem atingirem o alvo.
4. A quarta pedra: invisibilidade. Comunidades afastadas dos grandes centros muitas vezes carecem de expressão econômica ou política (ou ambas). Tendem a ter pouca visibilidade, o que gera um círculo vicioso: a falta de visibilidade dificulta a arrecadação de verbas para implementar projetos, o que por sua vez gera falta de visibilidade...
5. A quinta pedra: toxicidade. Com baixa densidade e falta de massa
crítica, a convivência é intensa. Por um lado, isto torna rica e experiência entre os participantes; por outro, a coexistência sempre com os mesmos gera conflitos e pode ser altamente tóxica, levando à morte da congregação.
Cinco desafios. Cinco estratégias para superá-los. As comunidades esparsas necessitam se armar com pedras certeiras e, para isto, o judaísmo reformista pode ajudar a selecionar tais pedras – capacitação para desenvolver uma comunicação não agressiva, apoio e reconhecimento em ações proativas, especialmente empoderando tais comunidades e transformando-as em campo propício para testar estratégias e validar ações para enfrentar os Golias do mundo contemporâneo. No entanto, cabe a cada congregação, de posse de tais pedras, estirar a funda e fazer vibrar a baladeira, soltando-a no momento exato. São elas o frasco que contém um judaísmo altamente concentrado, pois estão aglutinadas em torno do “echad”: um corpo diretivo, em que um grupo desempenha múltiplos papéis, um sefer torá (quando o há), um moré/morá (que também é aluno) e todos os espaços (utilize sua imaginação) são sempre preenchidos pelos mesmos. Para sobreviver, é importante gerar energia para semear frutos nos campos do judaísmo. Lech Lechá. Caminhemos.
Ethel Scliar Cabral, gaúcha, atualmente radicada em Florianópolis, Brasil, é graduada em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo e doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC). Possui curso de Extensão em Estudos Judaicos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É autora de artigos e livros sobre cidadania, judaísmo e ética. Atua como palestrante e professora de assuntos judaicos, com foco principal na Identidade Judaica e tecnologias aplicadas neste campo. Ela atua no monitoramento e combate ao antissemitismo e apresenta o programa on-line 3ª é Dia D... sobre assuntos judaicos.
É CEO da Editora Lili e líder espiritual da União Israelita do Vale da Região do Itajaí (UNIVRI). Atualmente está em formação rabínica pelo Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista.
Como rabina, Delphine Horvilleur se defronta diariamente com o mistério da morte. Diante da necessidade de encontrar um sentido para esse momento, recorre às palavras, usando as lendas tradicionais e os textos sagrados do judaísmo para elaborar, junto aos enfermos e aos enlutados, essa experiência dolorosa e inexplicável. Em seu livro Viver com nossos mortos, que define como um “pequeno tratado de consolo”, ela conta com leveza e bom humor diversos casos e histórias que presenciou, mostrando como seus relatos criam uma ponte entre os vivos e os mortos: trazem consolo aos enlutados e lhes permitem ficar em paz com seus entes queridos – e com sua própria história. Delphine Horvilleur é a terceira mulher ordenada rabina na França, autora de uma dezena de livros já publicados em diversos países. Viver com nossos mortos está sendo lançado no Brasil pela editora Garamond.
Devarim publica a seguir um fragmento deste sábio e instigante livro.
“O mundo vindouro”
Quando eu era estudante em Nova York, às vezes dava aulas de hebraico numa sinagoga em Manhattan, como aspirante a rabina. Meus alunos eram principalmente mulheres, na maioria idosas, vovós do Upper East Side, sempre muito alinhadas e com o penteado impecável.
[...]
Uma delas me parecia mais velha que as outras. Seu nome era Miriam, e antes do início de cada aula tirava da bolsa uma montanha de comes e bebes para todo o nosso grupo. Normalmente colocava na mesa umas garrafas térmicas de chás aromáticos e passava um tempo enorme descrevendo o sabor e as propriedades de cada infusão.
Nossos sábios contam que, na Bíblia, Miriam desempenhou exatamente esse papel. Atravessou o deserto junto com todo um povo faminto e sedento, que ela milagrosamente podia salvar. A Bíblia diz que Miriam tinha o poder de levar consigo um poço nômade, e esse poço impediu que os hebreus morressem de sede.
A minha Miriam da América nos trazia praticamente a mesma fartura, um verdadeiro maná bíblico, numa bolsa que parecia não ter fundo. Aquilo nos permitiria sobreviver durante décadas de viagem. Um dia, ela me serviu uma das histórias mais extraordinárias que já ouvi.
Quando lhe perguntei se sempre havia sido tão atenciosa com os outros como era conosco, respondeu que tinha se tornado essa mulher recentemente, a partir de uma mudança radical em sua vida.
– Durante anos – contou –, vivi
com uma depressão muito profunda. Não tinha mais vontade nem desejo de nada. A força da vida me abandonou, desisti até de sair de casa ou de encontrar qualquer pessoa. Nunca teria me inscrito numa aula de hebraico, porque um compromisso assim estava além das minhas forças. Não conseguia cozinhar nada para mim, muito menos para alimentar os outros. Meus filhos ficavam desesperados, tentavam me devolver o gosto pela existência. Vinham me dizer o que sempre se diz às pessoas que estão passando por uma depressão cuja causa não se entende bem: “Mas, afinal, você está com saúde, seus filhos vão bem, seus netos a amam. Você não tem o direito de entregar os pontos…” Todas essas frases sem sentido ditas por pessoas saudáveis erram totalmente o alvo. A depressão não tem nada a ver com uma recusa a enxergar o que vai bem na nossa vida, ou uma incapacidade de reconhecer os lados bons da existência. A consciência da sorte ou dos privilégios que temos nunca vai poder nos libertar ou aliviar. E quem exige que você reaja geralmente não sabe nada sobre a morte do desejo. Essa pessoa não tem a menor chance de trazer alguém de volta para a vida: vem fazer propaganda de um produto cujo valor você não nega, mas cuja falta nunca sentiu. Não tem, portanto, nenhum argumento sério de venda.
Miriam era divertida e leve. Um dia me disse que na sua família todos tinham esse humor. Para mim foi difícil acreditar que, com tal trunfo, ela tenha carregado por tantos anos o peso daquilo que estava me contando.
De repente, suas feições se
alteraram e, com um sorrisinho um pouco infantil, sussurrou no meu ouvido, em tom de confidência:
– Nessa época só uma coisa me interessava, algo que começou a me fascinar e acabou se tornando meu único interesse. Pouco a pouco fui dedicando a isso todo o meu universo mental, toda a minha atividade intelectual.
Eu me perguntava que paixão iria me descrever, por qual hobby ela poderia ter se encantado lá no fundo da sua depressão. E Miriam concluiu, pronunciando a frase lentamente para administrar seu efeito:
– Eu estava apaixonada pelo meu enterro.
[...]
Ela tinha passado vários anos planejando o próprio enterro. Sabia exatamente qual funerária devia ser chamada, quem seria a pessoa de referência para entrar em contato, como devia estar arrumado o salão e como as cadeiras deveriam estar dispostas. Ela tinha uma ideia bem clara do caixão onde iria repousar e, claro, da música que acompanharia a sua entrada. Sabia quem ia participar da cerimônia e em que lugar cada um se sentaria. Com o tempo, chegou a refinar a trilha musical, determinar que versão usar de cada canção, Gershwin interpretado por Hendricks e Learning the Blues de Sinatra, mas na versão jazzística do Oscar Peterson Trio.
Já sabia também os tamanhos dos buquês e sua composição, e tinha decidido quais retratos seus deveriam ser expostos, e onde, e como seriam iluminados. E, principalmente, havia determinado com precisão quem deveria falar e por quanto tempo, em
que ordem se sucederiam as homenagens e como se encadeariam. Para seu grande pesar, não podia ditar o conteúdo dos discursos fúnebres. Mas, se pudesse, teria definido o teor de cada alocução – e até escrito o seu próprio obituário. Evidentemente, o anúncio a ser publicado na imprensa já estava redigido e a lista com os telefones dos que deviam ser avisados, preparada.
Muitas vezes essa obsessão de Miriam provocou violentas discussões familiares. Seus filhos e seus netos lhe imploravam que acabasse com todo aquele planejamento, que parasse de falar o tempo todo dos detalhes da cerimônia. Quando criticavam aquele zelo macabro, ela respondia que era para o bem deles, só para o bem deles, porque assim os poupava de tomar decisões difíceis e de enfrentar dilemas num momento em que estariam dominados pela emoção. Tudo aquilo era apenas um gesto de devoção materna, um altruísmo pré mortem.
Ela tentava relativizar a sua obsessão, mas, no fundo, sabia muito bem: havia algo a mais naquela programação tão detalhista de um evento ao qual, por definição, não poderia assistir. Mas acabou tendo que admitir que só organizando a própria morte obtinha alívio para sua abulia, sua falta de vontade, de desejo de viver. Só assim recuperava a própria vontade. Em inglês, a palavra “vontade” não traz a mensagem que ouvimos no termo francês envie, que cola duas palavras e não dá lugar para a morte (en vie: em vida). Miriam, durante seus anos de depressão, simplesmente tornou-se uma esmeradíssima organizadora de eventos, uma versão “funeral” da mais talentosa wedding planner. Só faltava morrer, único detalhe do
grande evento que ainda não estava programado. Mas isso foi antes que a vida mudasse todos os seus planos... Conheci várias pessoas que compartilhavam essa paixão de Miriam, sem levá-la a tal paroxismo. Algumas sentiam a morte se aproximando ou suas forças minguando, outras diziam estar em plena forma mas queriam manter algum controle sobre o que a morte prometia arrebatar-lhes. Todas quiseram conversar comigo sobre a sua partida.
No meu escritório de rabina recebo muita gente que vem falar sobre a cerimônia que quer “ver” se realizar. E, em algum momento da conversa, eu sempre preciso lembrar a essas pessoas que elas provavelmente não estarão lá para “ver” coisa nenhuma.
Esse planejamento detalhado da cerimônia muitas vezes significa uma negação daquilo que realmente está em questão: o fim do controle sobre as nossas vidas. A organização da morte fala, em primeiro lugar, e sobretudo, de uma recusa a aceitá-la.
Nem sempre é fácil explicar isto às pessoas que vêm me procurar. Eu lhes falo dos ritos tradicionais do judaísmo: neles não há lugar, a princípio, para toda essa preparação. O caixão deve ser o mais simples possível, sem floreios nem ornamentos, um símbolo de humildade que evoca a igualdade de todos diante da morte e o inevitável retorno ao pó de onde viemos. Em alguns lugares, como em Israel, por exemplo, não se usa nem mesmo um caixão: o corpo é envolvido em sua mortalha e pousado diretamente na terra, e o enterro acontece logo após o anúncio da morte. Às vezes não dá tempo de tomarmos conhecimento da morte de uma pessoa próxima: quando chega a notícia, já
foi enterrada. Uma cerimônia fúnebre não pode ter planejamento. Deve atender aos requisitos de rapidez e simplicidade.
É esse mesmo intuito de humildade que explica porque geralmente não há flores e coroas nas cerimônias judaicas. A morte não tem que ser embelezada ou estetizada de alguma forma, e devemos evitar que seja objeto de fascínio ou exerça uma atração contra a qual os sábios nos advertem.
O uso da palavra também é altamente codificado no mundo da tradição. O rabino ou oficiante fala da pessoa morta utilizando quase que exclusivamente a liturgia, invocando uma passagem da Torá lida nas sinagogas naquela semana ou as palavras de um sábio. A oração fúnebre não é lugar para grandes criatividades literárias e, como toda a cerimônia, deve ser sóbria e minimalista.
Atualmente, a maioria dos enterros judaicos não obedece muito estritamente a essas normas, e é comum atender aos pedidos deixados pelos mortos, usando elementos mais íntimos, imagens, músicas, e assim descrever o seu mundo, personalizar a cerimônia.
Quando enfrento vontades muito firmes ou pedidos de “produções” especiais em alguma conversa no meu escritório, meu dever é lembrar à pessoa que organiza a própria despedida uma verdade muito simples que o rito judaico tenta ilustrar, um enunciado a princípio banal mas cujas implicações são fundamentais: nossa morte não nos pertence completamente, nem nosso corpo após a morte. Não me refiro aqui apenas aos momentos e condições em que a morte ocorre, mas a uma ideia mais fundamental,
que é difícil ouvir nas nossas sociedades contemporâneas que dão uma prioridade total aos desejos do falecido.
Devemos respeitar os desejos dos mortos, mas também temos que reconhecer os limites daquilo que eles nos impõem e a possibilidade de escolher a vida. [...]
Em uma tarde quente de verão em Nova York, Miriam estava esperando sua filha Ruth para ir fazer compras. Ela não tinha certeza de que fosse uma boa ideia, mas Ruth vinha insistindo havia vários dias que atravessassem o parque e fossem aos centros comerciais refrigerados do Colombus Circle. Miriam não tinha a menor vontade de sair de casa. A ideia de sair e enfrentar o mundo era dolorosa para ela, que preferia ficar deitada. Mas a filha insistia em organizar seus dias com horários e objetivos, o que era suficiente para aumentar sua vontade de morrer. Tentou mobilizar forças dentro de si para se vestir e maquiar um pouco mais que o normal, para disfarçar seu estado e poder sair com as bochechas rosadas de quem parece saber aonde vai e caminha com passos decididos. [...]
Miriam entrou na grande capela da funerária. A princípio não distinguiu os rostos, mas reconheceu imediatamente a voz que a recebeu. Era Bárbara Hendricks, uma voz que ela tinha ouvido muitas vezes mas nunca lhe soara daquela maneira. Como se fosse pela primeira vez, ouviu “Summertime and the livin is easy”…
As cadeiras tinham sido dispostas em um semicírculo, e todos os
presentes ainda estavam de costas para ela, mas Miriam reconheceu imediatamente cada detalhe daquilo que, durante anos, ocupou sua cabeça. Havia alguns retratos seus expostos no salão, muito bem iluminado, e uns buquês grandes de rosas, crisântemos e lilases em tons de amarelo, branco e laranja.
Bárbara sussurrou: “So hush little baby, don’t you cry…”
Mas Miriam não chorou, ela não entendeu de imediato o que estava acontecendo. Então sua filha, seu genro e seus netos a levaram gentilmente para o centro desse semicírculo e trouxeram uma cadeira para que se sentasse ali. Quando finalmente conseguiu ver todos os rostos ao seu redor, identificou-os um por um: eram conhecidos de longa data e amigos da filha. Havia comerciantes do seu bairro, pessoas com quem tinha feito cursos, um vizinho que já se mudara de lá havia muito tempo, sua cabeleireira, a quem foi fiel por mais de trinta anos, e o porteiro do prédio, que deve ter pedido licença no trabalho para estar presente.
[...]
Claro que faltava o essencial: a morte não compareceu. Ninguém a tinha incluído na lista de convidados, e nesse dia a vida lhe deu uma vigorosa banana na rua 76 de Manhattan. Miriam me contou como as falas tinham sido engraçadas, profundas e excêntricas. Na ausência de caixão, ela foi submetida à mais intensa “sátira” que se pode imaginar. Seus amigos e conhecidos se sucederam no uso da palavra e tiveram um prazer maligno em provocá-la com humor, lembrando tudo o que iam perder com sua ausência – desde as coisas que amavam nela até as que estavam
felizes por se livrar. Enumeraram todos os reparos que tinham à sua culinária e às suas especialidades, sempre salgadas e cozidas demais, e riram do seu jeito de mentir (muito) mal às pessoas que não queria ver, da sua arte de se lamentar usando um iídiche totalmente inventado e de dizer a quem quisesse ouvir, sem pensar muito no assunto, que ia acabar votando no partido Republicano. Aquela capela funerária nunca tinha ouvido tantas risadas nem tantas manifestações de amor a um ser vivo.
Alguns podem achar que essa iniciativa foi doentia ou totalmente inapropriada. Miriam podia ter desabado, ou até sucumbido diante daquela surpresa que lhe prepararam. Mas ela, pelo contrário, me contou a história como a coisa mais extraordinária e determinante que já lhe aconteceu.
Depois me confidenciou que aquele cerimonial, que terminou em lágrimas, com um adeus a uma parte da mulher que ela havia sido, teve um efeito “mortal” na sua vida, no sentido literal do termo. Sentiu que estava morrendo uma coisa dentro de si da qual ia aprender a prescindir, e que naquele momento poderia estar começando o resto da sua vida.
“Summertime and the livin is easy”… “Às vezes, no verão, a vida pode ficar fácil”, prometia Bárbara Hendricks naquela tarde. “Fish are jumpin, and the cotton is high…”, os peixes pularam alto no rio Hudson. Seriam os mesmos peixes quando caíram de novo em suas águas?
Só vim a conhecer Miriam anos depois, e a história que ela me contou sobre esse acontecimento extraordinário tinha sido filtrada, sem dúvida, pela passagem do tempo e a reescritura da própria memória que ninguém
consegue evitar. Mas posso garantir que quem estava à minha frente era uma mulher decididamente viva, que fizera da fome e da sede dos outros, ou seja, do cuidado dispensado aos vivos, uma prioridade absoluta.
Não sei se ela ainda continuava a planejar seu enterro ou se tinha abandonado definitivamente a ideia.
Acho que resolveu renegociar o contrato e desde então recusou todos as datas que a morte lhe oferecia.
Depois de ouvir sua história, nunca mais olhei da mesma forma a minha aula de hebraico. Entendi que a estudante de rabinato que eu era nunca mais ia duvidar da possibilidade de ressurreição, porque eu já tinha testemunhado uma.
Para descrever a ressurreição dos mortos, a tradição rabínica menciona geralmente dois conceitos, dois mundos paralelos: Olam Hazê, o universo em que vivemos, e Olam Habá, aquele para onde vamos. A maioria dos comentadores enxerga no segundo a promessa de uma redenção futura, a ressurreição em tempos messiânicos cuja vinda ainda é esperada. Mas não excluem a possibilidade de que os dois mundos coexistam para os que são capazes de viajar em vida de um para o outro. O mundo tal como é pode deixar aberta uma passagem para o mundo tal como poderia ser. A morte os separa, e às vezes é preciso realmente encontrá-la para entrar em um novo mundo.
Qual é o gosto do Olam Habá?, perguntam os sábios. Alguns dizem que o Shabat tem esse sabor, a doçura de um tempo à parte, em que o repouso é possível.
Outros dizem que o estudo da Torá, ou seja, a sede de aprender, nos dá um gostinho desse mundo e nos prepara para saboreá-lo.
Graças a Miriam, para mim o “mundo vindouro” terá para sempre um sabor de infusão de ervas. Sabor criado em Manhattan por uma mulher que voltou à vida num dia de verão e que, desde então, nos oferece uma xícara de chá perfumado, pedindo à rabina que não vai enterrá-la que lhe dê uma aula de hebraico.
Na ética judaica, ajudar os outros é um dever essencial e nossa tradição nos ensina que somos responsáveis uns pelos outros. O Lar União tem sido esteio de nossa comunidade desde sua fundação, em 1937.
A atual sede, inaugurada em 1953, foi concebida para oferecer aos moradores do Lar instalações adequadas e confortáveis. Ao longo dos anos, essa sede foi ampliada e ganhou áreas especiais para atividades como fisioterapia,
restaurante, sala de TV. E as instalações vêm sendo modernizadas constantemente, tanto para proporcionar saúde, alegria e bem-estar aos residentes, como para torná-las mais econômicas e sustentáveis.
Em Rosh Hashaná 5783, inauguramos nossa nova sinagoga Beit União, revitalizando elementos da antiga sinagoga, com espaço mais moderno e amplo, reforçando assim nosso compromisso com a vida judaica de nossa instituição.
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A nova obra do matemático e escritor Jacques Fux “Meu pai e o fim dos judeus na Bessarábia” (Perspectiva, 2023) é de autoria conjunta com seu pai, Samuel Fux.
Samuel Fux é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela qual se tornou mestre em Filosofia do Direito (2009). Foi advogado e professor durante quarenta anos. “Meu Pai” é seu primeiro romance.
Jacques Fux nasceu em Belo Horizonte, é ficcionista, ensaísta e tradutor. Tem doutorado em Literatura Comparada pela UFMG e pela Universidade de Lille 3. Foi pesquisador na Universidade de Harvard de 2012 a 2014. É autor de, entre outras obras: Antiterapias (Maralto, 2022, prêmio São Paulo 2013), As Coisas de Que Não Me Lembro, Sou (Aletria, 2022), Literatura e Matemática (Perspectiva, 2016, prêmio Capes; finalista do APCA), O Enigma do
Instantes se apagam; as cicatrizes permanecem. Meu pai tratou de enterrar suas feridas. Talvez tenha sido a sua única saída; sua forma de continuar caminhando. Ele nunca me contou sua história, nunca me ensinou sua língua – para falar a verdade, nem sei que língua ele falava com seu pai e seus amigos, se era ídiche, romeno, russo ou algum dialeto já desaparecido. Seu carinho se deu em forma de silêncios e vestígios.
Sou filho de um pai que teve o pai arrancado pelo ódio. Sou filho de um alfaiate, de um caixeiro-viajante fugidio, temeroso e silenciado. Sou o filho que leva e suporta a herança do pai.
Sou, entretanto, o filho que não precisa mais ficar vagando sem rumo, sem casa e sem esperança nesse mundo que um dia concebeu guetos, pogroms e Auschwitz. Sigo um rastro: um vestígio-rasgo na minha pele. Um pequeno acidente, brincando de circo no quintal de terra batida da nossa casa. Eu cercava o picadeiro usando cordões cortados com um canivete, e criança com canivete não dá certo. Ao me abaixar para fincar a madeira-haste do meu circo, o canivete penetrou na minha coxa. A dor foi grande, o susto do meu pai foi maior ainda. Talvez naquele dia eu tenha decidido largar a profissão, mesmo que imaginária, de circense. Penso nas feridas do meu pai, tão secretas e pungentes. Tão diferentes das minhas feridas superficiais. Ao escrever, alguns detalhes surgem. Eu e os funcionários do papai da Colchoaria Calafate enfiávamos, numa
Infinito (Maralto, 2019, selo FNLIJ, finalista do prêmio Jabuti), Herança (Maralto, 2022). Seus livros e contos foram publicados na Itália, no México, no Peru, em Israel, nos Estados Unidos e na França.
Este livro, uma autoficção, é mais um passo na busca memorialística que Jacques empreende desde o seu primeiro livro, quando se lançou na senda do pensamento sobre a questão da memória, que, conforme ele resume, consiste em explorar o que cerca quatro
abertura do tecido, capim e crina. E, com uma agulha grande, modelávamos a beirada do colchão com pontos repuxados, dando ao colchão um formato perfeito. Durante esse processo, eu fazia acrobacias circenses sobre esses colchões – sem papai sequer sonhar. Não me lembro de ter me ferido.
Houve um período da infância em que me sentia o máximo – e não foi durante nenhuma apresentação circense na loja de colchões. Frequentava o Hashomer Hatsair – um movimento de jovens sionistas que sonhavam em emigrar para Israel, construir kibutsim e continuar colonizando esse jovem país que acabava de ser criado e que estava passando por maus bocados. Quando tínhamos as tão aguardadas machanot, acampamentos, os líderes do grupo compravam na nossa loja vários colchões e travesseiros.
(A cidade de onde meu pai veio tinha uma intensa atividade sionista com vários movimentos juvenis sonhando em criar um Estado judeu. Na juventude de papai, por volta de 1925, era uma utopia: imaginavam que um dia as perseguições e o antissemitismo teriam fim quando existisse uma terra só para os judeus. Um lugar único na história que zelasse pela segurança de qualquer judeu, de qualquer parte do mundo.)
Papai, comigo a tiracolo, alugava um caminhão e partia como um guerreiro para cumprir sua missão: assegurar que todos os jovens judeuzinhos sionistas tivessem um lugar confortável para dormir depois de um longo dia de
fenômenos: o que a gente lembra; o que a gente inventa que lembra; o que a gente quer lembrar e se esquece; o que a gente não quer lembrar e se lembra.
A quarta capa do livro explica: Este é um livro sobre o vazio. Ou melhor, sobre o esforço de preencher o vazio, o oco da história. Na esperança de resgatar da distância o amor em sua plenitude e complexidade, Samuel Fux recria para e com o filho, Jacques, a história de seu pai e de sua família, judeus da Bessarábia, e resgata a sua própria na Belo Horizonte desde a sua infância.
Ghers, seu pai, foi um homem que viveu para a família e o presente, silenciosamente, e sem nunca falar sobre a terra de onde veio ainda criança com os pais e o que viveu lá. A numerosa comunidade
judaica de Briceni tinha sido praticamente varrida do mapa pela violenta onda de antissemitismo que sacudia a Europa já no início do século 20 e que culminaria com o genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial.
Não falar sobre os amigos e familiares que haviam deixado de existir foi a forma que Ghers encontrou para lidar com a dor da perda. Mas o silêncio, o não dito, sufoca, estrangula. É preciso libertar as palavras e, se o apagamento impede que se saiba os detalhes (pois não é possível recuperar a conversa que não se teve nem indagar nada de quem já partiu), é preciso recriar os acontecimentos para legar uma história e um afeto que vençam o esquecimento e a morte. E que preencham o oco do coração.
trabalhos e diversões. Também para nos proteger dos malditos insetos e carrapatos antissemitas. As cabanas onde dormíamos eram feitas de lonas que o exército emprestava. Mesmo com certa proteção, voltávamos para casa mordidos por insetos e com carrapatos por todo o corpo. Lembro-me especialmente de alguns carrapatos nazistas que se escondiam no meu umbigo e me acompanhavam durante as aulas.
Certa vez, indo para uma machané, papai ficou com receio de que eu ficasse com fome e traficou, escondido nos seus colchões, pão, queijo, salame e biscoitos. De noite, depois de uma longa jornada de trabalho – essas machanot não eram só diversão; não havia estrutura, nem luxo e nem conforto, pois servia como uma simulação da vida agrária que enfrentaríamos se nos mudássemos para um kibuts cercado de inimigos e sempre na iminência de uma guerra –, cheguei com fome (a comida era péssima, pois nós mesmos cozinhávamos) e ansioso para comer o tráfico ilegal. Já salivando com a minha ceia secreta, fui surpreendido por formigas que haviam invadido a tenda e atacado sem dó os quitutes.
Talvez eu tenha compartilhado essa refeição com as formigas. Não me lembro.
Não me esqueço também de uma chuva antissemita que inundou o acampamento e estragou todo o jantar. No dia seguinte, depois da tempestade, fomos para a barraca onde fazíamos as refeições e qual não foi nossa surpresa quando percebemos uma quantidade maior de sopa. Mas era uma sopa rala, bastante diluída. Vendo uma
Devarim publica um fragmento desse pequeno grande livro, fruto da criatividade, da inquietação e das buscas dos judeus brasileiros.
foto, em que não me reconheço, lembro-me desses dias molhados de chuva e de sopa. Dias felizes. Meu pai nasceu em Briceni, em 1917. Fugiu de lá em 1930. Nessa época, a democracia existente na Romênia foi se transformando numa ditadura fascista. Manifestações antissemitas constantes diziam que os judeus tramavam a dominação do país e da economia. Os judeus eram conspiradores e tudo podia ser comprovado nos Protocolos dos Sábios de Sião.
Anos depois, com o início da Segunda Guerra, as tropas nazistas entraram na Romênia. No dia 22 de junho de 1941, mesmo com o pacto de não agressão germano-soviético, as tropas nazistas invadiram a União Soviética e ocuparam a Bessarábia e a Bucovina. A Romênia era governada pelo ditador Ion Antonescu, que incentivou a matança de judeus na capital. Em 8 de julho de 1941, Antonescu discursou ao seu Conselho de Ministros: Mesmo correndo o risco de não ser compreendido por alguns tradicionalistas, sou a favor da total migração forçada dos elementos judeus da Bessarábia e da Bucovina. Não me importa se formos apontados como bárbaros perante a história. O Império Romano também cometeu atos de barbárie, mas foi a maior potência de seu tempo. O momento é este e, se necessário, saberemos como utilizar nossas metralhadoras.
Os judeus que não foram dizimados foram enviados para campos de concentração e extermínio. Muitos deles relataram da sopa rala e bastante diluída – sem sorrisos e esperanças – que os (des)nutriu durante anos. n
Lançada no primeiro semestre de 2023, minha obra “As origens do antiJudaísmo cristão” propõe-se e a repensar as relações entre duas grandes religiões: o Judaísmo e o Cristianismo.
Qual foi a grande motivação? Há sete décadas ouço de amigos não judeus que, sem perder o respeito, manifestam posições que discordo, e postulam formas diversas de preconceito em relação aos judeus e ao Judaísmo. Eu pesquisei, por cerca de quinze anos, a polêmica cristã-judaica na Antiguidade Tardia, até o final da Idade Média, cerca de mil anos.
Meu ponto inicial foi minha tese de doutorado, sobre o pensador cristão (padre da igreja) o bispo Isidoro de Sevilha (morto cerca 636), defendida em 2004.1 Em diversos artigos analisei alguns antecessores dele como o célebre Agostinho, bispo de Hipona (morto cerca 430). Porém temia recuar, ao terreno pantanoso dos apóstolos e dos criadores da igreja nos séculos 1 até o 5.
Antes de me aposentar (mas não de parar de produzir), resolvi enfrentar o desafio. Recuar no tempo. E teria de ser algo útil para a sociedade brasileira, ajudando a esclarecer certos mitos, que tanto cristãos tinham contra os judeus, quanto os judeus tinham da impermeabilidade do Judaísmo, que pretensamente “influencia, mas não é contagiado”. Estes mitos são de longa duração, e se prestam a gerar desprezo ao “outro”, distanciamento e preconceito. Sentimentos de superioridade são sempre suspeitos de esconder, inseguranças e mecanismos diversos.
1 Devarim publicou uma resenha do livro que emergiu dessa tese em seu número 37 - dezembro de 2017.
As verdades preestabelecidas e sedimentadas são difíceis de se contestar. Geram edifícios de saber, que se pretendem absolutos, únicos e dificultam diálogos e novas reflexões. Num Brasil e num mundo polarizado, onde as verdades absolutas predominam, seria ousadia, relativizar as verdades geradoras do antiJudaísmo, que são a base para o ódio antijudaico que descamba no antissemitismo. Neste livro cruzei a fronteira.
O recorte temporal é amplo, indo de Paulo de Tarso (século I da Era Comum) até Agostinho de Hipona (século V da Era Comum). Os encontros e os desencontros deste período são analisados com profundidade, mas de maneira acessível aos leitores, evitando a erudição desnecessária.
Foram utilizadas ora fontes primárias traduzidas, ora bibliografia, mas devido ao público-alvo, optamos por não inserir referências, notas de rodapé com bibliografia, salvo menções diretas no corpo do texto. O objetivo é chegar aos leitores não acadêmicos, leigos “cultos” e iniciantes, a um só tempo. Leitura com embasamento, mas a escrita preocupada com a clareza.
A obra intenciona analisar como ocorreu a separação das duas religiões. Analisa como o Cristianismo, para herdar a condição de “povo eleito” ou “verdadeiro Israel”, podendo se colocar como herdeiro da revelação do Sinai e dos profetas, e se qualificar como juridicamente legítima aos olhos das autoridades romanas, trata de desqualificar os judeus e o Judaísmo.
Sergio Alberto Feldman: “E muitas perguntas são levantadas. Como se explicar a resiliência judaica através dos séculos? Alguns ensejariam a escolha divina?
Outros num modelo sartriano, o preconceito que gera uma identidade coesa para a resistência histórica.”
Inicialmente os pensadores cristãos, denominados “padres da igreja”, emitem críticas e insistem nos erros judaicos, para imediatamente começar pesadas acusações que constroem mitos antijudaicos, como o deicídio (morte de Jesus), a cegueira espiritual, e acabam convergindo na malignidade judaica. Uma lenta e profunda construção que enraíza o ódio.
As interações deste período são o início de um longo processo, que prosseguirá e chegará no antissemitismo, mas sempre havendo surpreendentemente trocas culturais e espirituais contínuas.
E muitas perguntas são levantadas. Como se explicar a resiliência judaica através dos séculos? Alguns ensejariam a escolha divina? Outros num modelo sartriano, o preconceito que gera uma identidade coesa para a resistência histórica. Já a historiografia concebe uma solução para a filosofia da história de Agostinho de Hipona, que define uma função judaica no juízo final. Os judeus são necessários, pois, no final dos tempos, sua conversão, propiciará a segunda vinda de Jesus, e a redenção universal.
Este papel dos judeus servirá para múltiplas funções. Vejamos apenas algumas delas: a) proteger os judeus da violência, nem sempre, mas na maioria das vezes; b) a negação da violência e das conversões forçadas pelo alto clero (mas não pelo baixo); c) as campanhas de conversão pelo convencimento que gerarão as polêmicas cristãs judaicas (minha pesquisa por uma década e meia) e d) o contínuo sequestro de nossos símbolos, travestidos de símbolos cristãos.
Este último tópico tem aparecido, nos séculos XX e XXI, em algumas denominações religiosas, que se apropriam de bandeiras de Israel, constroem simulacros do templo de Jerusalém (Beit haMikdash), se fantasiam de cohanim. Seriam versões recentes de múltiplas tentativas de sedução no intuito de converterem os judeus.
E de uma maneira contraditória, negam, criticam, e diminuem, quando não satanizam os judeus. Por outro lado, imitam e reciclam e utilizam valores e
símbolos judaicos, por vezes explicitamente, por vezes disfarçadamente.
A negação do “outro” (denominado sociologicamente como alteridade) serve de construção para a identidade de cada um dos dois grupos. “Eu sou, o que não sou. E eu não sou você.” Trocas e críticas, negação e influências. Um livro para ler e refletir. n
Vendas com o autor através do messenger dele ou do e-mail serfeldpr@yahoo.com.br
Seérgio Alberto Feldman é professor titular de História Medieval junto ao PPGHIS (Programa de Pós-Graduação de História) da UFES (Vitória-ES). Graduado em História Geral pela Universidade de Tel Aviv - 1975. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo - 1986. Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná - 2004. Estágios pos doutorais em Madrid (CSIC), Paris (EHESS), Jerusalém (Universidade Hebraica), e Rutgers University (New Jersey/USA).
O capítulo 5 do livro de Daniel conta a dramática história, na qual o rei Belshazar (filho de Nevuchadnezar, o rei da Babilônia que conquistou Jerusalém)1 oferece um banquete a milhares de nobres. Num certo momento, intoxicado pelo excesso de vinho, ele ordena que os utensílios de prata e de ouro que seu pai pilhou do Templo em Jerusalém sejam trazidos ao banquete para que seus convivas bebam neles.
Neste momento os dedos de uma mão humana aparecem numa parede e traçam as palavras: ןיסרפו לקת אנמ אנמ (mene mene tekel ufarsin). Como ninguém entende a misteriosa escrita, um grande pânico toma conta de todo o salão,
até que a rainha se lembra de Daniel, um hebreu exilado para a Babilônia, ao qual se reputa uma grande sabedoria.
“Chamem imediatamente este Daniel!”, exclama o rei. Ao chegar, Daniel prontamente decifra a escrita na parede. E elas não trazem boas notícias. Diz ele ao rei: “Mene” significa que Deus mediu os dias do teu reinado e ele está por terminar; “Tekel” significa que você foi avaliado negativamente; “Farsin” significa que teu reino será dividido entre os Medas e os Persas.
Naquela mesma noite, Belshazar é assassinado e o rei Ciro conquista a Babilônia.
Esta história inspirou muitos artistas, sendo o mais famoso deles o genial holandês Rembrandt van Rijn. Uma de suas obras-primas é “O Festim de
Baltazar”, na qual se pode observar tanto sua inigualável habilidade pictórica, como sua ignorância do hebraico, visto que as letras na parede não têm relação alguma com o texto bíblico.
Além disso, a expressão “está escrito na parede” é usada até hoje para expressar que uma catátrofe está prestes a acontecer.
Finalmente, a história ainda tem uma remota ligação com a palavra do hebraico moderno usada para o veículo que em português (e em quase todos os idiomas do mundo) se chama “taxi”.
Em seu empenho por evitar usar palavras estrangeiras na definição de conceitos contemporâneos, os formuladores do hebraico moderno quebraram a cabeça para achar um substituto para o quase universal “taxi”.
Em homenagem ao “Ano Ben Yehuda” que celebra o centenário do falecimento da pessoa de maior relevância no processo de renascimento do hebraico como idioma usado para todas as atividades dos judeus, a Devarim vai publicar nos seus três números de 2023 esta coluna com curiosidades a respeito da origem de palavras do hebraico pós-bíblico.
E acabaram escolhendo “monit” ( תיִנוֹמ), uma palavra que deriva do verbo “limnot” (תוֹנְמִל), que significa “contar”, ou “medir”, e é uma derivação da primeira palavra escrita pela mão na parede do palácio de Belshazar.
Mas o que taxi tem a ver com “contar”?
Ora, “taxi” é uma redução da expressão francesa “taximètre cabriolet”. Sendo “cabriolet” uma pequena carruagem de aluguel, e “taximètre” um equipamento cujo nome deriva do latim taxo (taxar, por preço em), combinado com o grego métron (medida). Logo, o “taximètre cabriolet” é um veículo de serviço cuja tarifa de uso é calculada por um medidor (que combina a distância percorrida, o tempo de uso e uma unidade de valor).
Em Israel os taxis foram primeiramente chamados de “sherut monit” (תיִנוֹמ תוּרֵשׁ), eis que “sherut” significa “serviço”.
O uso popular acabou reduzindo e esquartejando esta expressão, fazendo com que “sherut” passasse a significar um veículo de serviço com roteiro fixo, compartilhado por passageiros independentes, e “monit” o taxi individual regular.
Taxis são encontrados em todas as partes do mundo. Mas apenas em Israel, um país no qual cada pequeno detalhe parece estar ancorado em alguma fonte judaica, eles remetem a um dos livros da Bíblia. n
Em quase todos os idiomas do mundo, o alimento composto por duas fatias de pão que envelopam um alimento (por exemplo, fatias de queijo ou de carne), compartilham uma denominação semelhante ao original inglês “sandwich”. Vejam o resultado de uma rápida pesquisa ao Google Translate, na Tabela 1. É evidente que esta convergência não é uma mera coincidência. Todos estes idiomas prestam uma homenagem a
John Montagu, um nobre inglês nascido em 1729, que herdou de seu pai o título nobiliárquico “4º Conde de Sandwich”, eis que sua família dominava a pitoresca cidade de Sandwich, no condado de Kent, defronte do Canal da Mancha.
O 4º Conde de Sandwich ocupou dois postos muito importantes no Império Britânico. Foi Primeiro Lorde do Almirantado (um cargo semelhante ao de Ministro da Marinha) e Secretário
Russo сэндвич sendvich
Búlgaro сандвич sandvich
Grego σάντουιτς santoyits
Iídiche סטיוודנעש sendvvyts
Japonês サンドイッチ sandoitchi
Nepalês स्यान्डविच syandavica
Chinês 三明治 sanmíngzhì
Tailandês แซนวิช sae nwich
Coreano 샌드위치 saendeuwich-i
de Estado (um cargo semelhante ao de Ministro do Exterior).
Ninguém chega a estas posições por cultivar o ócio e o conde era, portanto, uma pessoa obsessivamente focada em seus afazeres. Ele era tão ocupado que não admitia perder tempo com coisas que lhe pareciam banais, como, por exemplo, comer uma refeição propriamente focado. Assim que, pediu ao seu cozinheiro que seu almoço fosse composto por algo que ele pudesse consumir enquanto se ocupava com outros compromissos.
O criativo cozinheiro cortou um pão em duas fatias e colocou no meio delas finas fatias de rosbife. Pronto! Estava inventada a refeição rápida, que se espalhou pelo mundo, sob o nome popular “sandwich” em homenagem ao título de John Montagu. Claro que o real inventor da iguaria, o cozinheiro, permanece anônimo, numa flagrante injustiça histórica.
Algumas más línguas contestam esta história e dizem que o conde era
um grande aficcionado de um jogo de cartas chamado “whist”, uma forma ancestral e mais rudimentar do atual e altamente sofisticado jogo chamado “bridge”. Assim que, o pedido ao cozinheiro foi motivado por seu desejo de jogar o máximo possível de horas.
Qualquer que seja a versão correta desta história (e existem os que contestam ambas as versões), o sanduíche tem um nome quase universal, sendo que o “quase” nesta frase é de responsabilidade de uma pessoa que viveu dezesseis séculos antes de John Montagu. O sábio talmúdico Hilel Hazaken (ןקזה ללה), ou seja, Hilel, o Velho.
Hilel foi uma das figuras mais proeminentes no mundo judaico de sua época, com percepções, ensinamentos e decisões que permanecem válidas até os dias de hoje. O passo do Seder de Pessach chamado “corêch” (ְךֵרוֹכּ), que consiste em colocar entre dois pedaços de matsá (pão não fermentado) uma porção de erva amarga, embebida na mistura de ingredientes
que simboliza a argamassa usada no trabalho escravo, e depois proferir uma benção enquanto se ingere os três alimentos, foi instituído em lembrança a um ensinamento dele.
Hilel já fazia isto no tempo em que o Templo existia, afirmando que esta era a forma correta de ritualizar a injunção de Bamidbar (Números) 9:11, pela qual a oferenda de Pessach deve ser ingerida junto com matsot e coisas amargas (וּהֻלְכאֹי םיִרֹרְמוּ תוֹצַּמ־לַע - al matsot umrorim iochluhú).
A palavra korêch tem o significado de “encadernar”, sendo que “capa de livro” é הָכיִרְכּ (krichá), uma palavra da mesma raiz. E efetivamente a combinação idealizada por Hilel “encaderna” ingredientes entre dois pedaços de pão não fermentado. Ou seja, o povo do livro pensa em livros até mesmo quando o assunto é comida…
Os formuladores do hebraico moderno sempre procuraram valorizar as fontes judaicas ao propor palavras novas. Assim que, ressignificando kôrech de Hilel, deram ao sanduíche o nome karich (ְךיִרָכּ), plural krichim (םיִכיִרְכּ) Israel, então, substituiu a memória do apressado e obsessivo John Montagu pela de Hilel, aquele que legou para a humanidade a insuperável máxima: “Tudo o que for odioso para você, não faça a um terceiro. Esta é a essência da Torá, o resto é comentário. Agora vá e estude.”
Ao comer o teu próximo sanduíche lembre-se de jamais fazer a um terceiro o que não gostaria que façam contigo. E depois vá estudar a Torá. Hilel vai gostar. n
Em 4 de junho passado, um policial egípcio invadiu um posto de fronteira e assassinou três jovens membros do Tsahal (o exército de defesa de Israel). Uma investigação, realizada em cooperação entre os exércitos de Egito e Israel, determinou que o assassino agiu movido pelos monstros que habitavam sua cabeça, sem ter ligação com nenhuma organização oficial ou clandestina do Egito.
Isto não serviu de consolo, nem para as famílias de Ohad Danan (20 anos), Ori Izhad (19 anos) e Lia Ben Nun (19 anos), que perderam suas joias mais preciosas, nem para os demais israelenses. Toda imprensa
de Israel pranteou os três jovens de forma eloquente. Por vários dias, suas fotos habitaram as páginas dos jornais e as telas das televisões e computadores.
Contudo, houve uma assombrosa exceção. O site de notícias JDN.co.il, que foca em notícias do interesse do público ultraortodoxo, publicou apenas as fotos de Ohad e Ori. A foto da jovem Lia foi substituída pela imagem de uma vela de recordação.
A supressão das imagens femininas do mundo ultraortodoxo não é uma atitude tomada em respeito à tradição judaica. Essa atitude é uma novidade que reforma as várias
interpretações de Bereshit / Genesis
1:27 (Então Deus criou os seres humanos, criando-os à imagem de Deus, criando-os macho e fêmea) e também de Shir haShirim / Cântico dos cânticos
2:14 (Faz-me ouvir tua voz, pois tua voz é doce e lindo é teu rosto).
A reinterpretação dos textos sagrados não é uma novidade no mundo judaico. Os judeus fazem isto há milênios. Contudo, as releituras misóginas não são nem construtivas nem bem-vindas. Os ultraortodoxos em Israel estão evoluindo por um caminho que os afasta cada vez mais do caminho trilhado pelas demais partes do povo. n
Em 10 de novembro de 1938, minha avó era professora de física numa escola pública em Roma, meu avô era um dos engenheiros civis que serviam à prefeitura daquela cidade, onde minha mãe e minha tia estudavam na mesma escola em que minha avó lecionava. Eles viviam num pequeno apartamento no centro da cidade, a 15 minutos a pé da deslumbrante Fontana
di Trevi e a cinco minutos a pé da segunda sinagoga construída em Roma depois da emancipação dos judeus italianos em 1848, o “Tempio Ebraico” da Via Cesare Balbo, onde minha mãe fez seu Bat Mitsvá.
Em 11 de novembro de 1938, meu avô não era mais engenheiro da prefeitura, minha avó tinha sido demitida, e suas filhas haviam sido
sumariamente expulsas da escola.
O motivo desta reviravolta cataclísmica? O racismo.
Mais precisamente, as “Leggi per la difesa della razza” (Leis pela defesa da raça) promulgadas naquele dia. Minha mãe contava que uma das memórias indeléveis de sua vida foi a do meu avô entrando em casa, com o jornal debaixo do braço, olhando
“Judeus reformistas apunhalam o judaísmo pelas costas”
“Eles são uma afronta à Torá”
“Judeus reformistas são maus”
“Eles são como os negacionistas da Shoá”
“Devemos levantar nossas vozes em todos os lugares, para expor as mentiras do judaísmo reformista”
“O filho perverso da Hagadá é o judeu reformista”
Todas essas expressões injuriosas têm sido proferidas há anos por líderes ultraortodoxos, rabinos e políticos,
numa incansável campanha de deslegitimização do Movimento Reformista. Provavelmente, sua incitação resultou até mesmo em concretos crimes de ódio contra congregações reformistas em todo Israel. Num exemplo dentro de muitos (escolhido apenas por ter sido abordado na Devarim 34 de dezembro de 2017), vândalos plantaram claras ameaças de morte na sinagoga reformista de Raanana.
O curioso é que, depois de décadas injuriando e difamando o Movimento Reformista, membros ultraortodoxos
atarantado para a família, dizendo: “dobbiamo partire da qui” (Temos que ir embora daqui!). Seu patriotismo, demonstrado pela medalha que recebeu pela participação na guerra de 1914-18, com o respectivo diploma assinado pelo próprio Mussolini, não foi atenuante do “crime” de ser judeu. A cena dos judeus lendo no jornal sobre as leis raciais é reproduzida no filme “Il giardino dei Finzi-Contini”, que eu e meus irmãos assistimos junto com nossos pais, no Rio de Janeiro. Nós nunca havíamos visto nossa mãe chorar tanto, a ponto de soluçar alto no meio do público, como naquele momento do filme.
Não obstante a enorme angústia dos meses subsequentes àquele momento, a nossa família sofreu relativamente pouco com o racismo. Um irmão do meu avô, Marcelo Cohen z’l, foi assassinado no transporte entre o campo de trânsito de Bolzano e Auschwitz, organizado pela Repubblica Sociale Italiana, o regime colaboracionista
implantado na Itália pela Alemanha Nazista entre setembro de 1943 e abril de 1945. Contudo, o restante da família sobreviveu, alguns na Itália e outros no Brasil.
Mas sem a menor dúvida, eles sofreram racismo na carne, e reconheceriam, sem muita dificuldade, que o que se abateu contra eles em 1938 é apenas uma das facetas do que se chama hoje de racismo.
As culturas (todas elas) estão em constante evolução, e o assombro do racismo antijudaico do século passado fez com que aquele formato, no qual uma generalização maldosa levou à perda de direitos, que levou ao genocídio, tenha sido colocado fora da lei em todos os países democráticos da atualidade.
Enquanto lutamos contra o racismo dos nossos dias, não devemos esquecer que nossos pais, avós e bisavós lutaram contra um monstro muitas vezes mais virulento. n
do parlamento de Israel, apresentaram um projeto de lei que proibiria o incitamento contra suas comunidades e sua linha religiosa sob as leis antirracismo de Israel.
Convenientemente, numa aberta manifestação de hipocrisia, o projeto de lei não menciona nenhum outro grupo religioso. Deduz-se que, segundo eles, o incitamento ultraortodoxo é válido e justificado, mas o dos demais é criminoso. E, muito além da hipocrisia, enquadrar um suposto incitamento contra os ultraortodoxos como “racismo”, conduz à mensagem subliminar
que judeus não ortodoxos pertencem a outra raça.
Coroando esse circo de horrores está o fato que o Judaísmo Reformista não deslegitimiza a corrente ultraortodoxa, ou qualquer outra. Os reformistas reconhecem a máxima rabínica que celebra a diversidade de caminhos judaicos, afirmando “estas e aquelas são as palavras do Deus vivo”.
Deus não se manifesta na vida dos humanos de uma única forma, dizem os reformistas e demais liberais, ecoando as palavras dos sábios do passado. Já os políticos ultraortodoxos, que
afirmam ser os únicos guardiões da tradição judaica, postulam uma mudança radical na cultura de tolerância a opiniões divergentes que sempre nutriu o judaísmo. Uma cultura que sacraliza o Talmud, um livro que registra os debates que a inquietação judaica produziu ao longo dos séculos.
Claramente, as insensatas injúrias dos políticos ultraortodoxos contra os judeus de outras correntes são manifestações do temor de quem se sente ameaçado por uma inevitável perda do monopólio político em Israel. n
O cruzador “Admiral Graf Spee” começou a ser construído pela marinha alemã em 1932 e entrou em serviço em 1936, quando a Alemanha já se encontrava sob o regime nazista. Ao entrar em serviço, uma imponente escultura de bronze, com mais de dois metros e meio de altura e 200 quilogramas de peso, adornava sua popa. A escultura figurava uma gigantesca águia de bronze, cujos pés estavam apoiados num círculo com uma suástica.
Sendo um dos mais valiosos ativos da marinha nazista, o Graf Spee causou grandes estragos no Atlântico Sul, durante a segunda guerra mundial. Ele afundou nove navios mercantes, que não tinham como escapar de seus armamentos pesados e sua enorme velocidade, mandando 50 toneladas de carga e equipamento para o fundo do mar.
Até que, em 13 de dezembro de 1939, ele encontrou um adversário à altura. Três cruzadores britânicos o enfrentaram no Rio da Prata (que corre entre o Uruguai e a Argentina) e o danificaram tão seriamente, que ele teve que fugir para o porto de Montevidéu, pedindo refúgio no Uruguai, país que se manteve neutro, se bem que com simpatia para o lado aliado, até quase o final da grande guerra.
Quatro dias depois, ao perceber que ele não teria como levar seu cruzador de volta para a Alemanha sem ser capturado pela marinha britânica, o comandante do Graf Spee resolveu afundar o navio. Ele seguiu para o exterior do porto, com apenas quarenta marinheiros a bordo e uma multidão de vinte mil pessoas assistiram o momento que as cargas de demolição foram acionadas.
A tripulação foi evacuada por um rebocador argentino e o cruzador afundou às 20:55.
Em 2006, 67 anos após o naufrágio, uma empresa privada uruguaia liderou uma bem-sucedida expedição de localização e resgate de sua águia de bronze. O objetivo dos envolvidos na recuperação da escultura, era de vendê-la num leilão, contudo as autoridades uruguaias não permitiram que isso acontecesse, argumentado que a águia e a suástica seriam usadas como memorial por simpatizantes do nazismo.
Em junho de 2019, a primeira instância da justiça uruguaia ordenou ao governo que vendesse a obra e dividisse os lucros com os empresários responsáveis por sua recuperação. No entanto, uma nova e recente decisão judicial estabeleceu que a obra de arte é propriedade nacional e não privada. Como resultado, o presidente uruguaio Lacalle Pou decidiu transformar aquele símbolo de ódio e violência num bem-vindo símbolo de paz.
Ele propôs construir uma pomba com o metal resultante da fundição da águia nazista e assentar a nova escultura num parque. Contudo, teve que recuar da ideia, depois que a proposta
atraiu fortes críticas de todos os lados do espectro político.
Algumas objeções vieram, inclusive, de membros de sua coalizão de governo, sob o argumento de que destruir os símbolos do passado não apaga a história. Eles propõem a construção de um museu dedicado à batalha naval onde o Graf Spee foi derrotado. A exibição da águia naquele museu não seria, segundo eles, uma apologia ao regime nazista e sim um testemunho de sua existência e imensa malignidade. Então, neste momento, o destino na águia continua indefinido.
Esperamos que as vacilações dos amantes da paz não resultem numa vitória dos apologistas do mal. O desmonte dos símbolos visuais megalômanos da monstruosidade nazista foi levada a cabo sem controvérsias pela geração que a testemunhou.
O fato dessa atitude ser, hoje, objeto de controvérsias é preocupante. Sem dúvida que o mundo precisa preservar as provas que o nazismo aconteceu, que foi genocida e que promoveu a mais destrutiva guerra jamais testemunhada pela humanidade. Mas, será que as grandiosas imagens de seu poderio se prestam a esta finalidade? n
Estou traduzindo agora um livro sobre pós-modernismo. Em certo trecho, o autor compara duas imagens de distopia política e cultural, dois mundos futuros possíveis: o de George Orwell em 1984 e o de Aldous Huxley em Admirável mundo novo.
No primeiro, num ambiente sombrio e pessimista, o Grande Irmão controla o comportamento “politicamente correto” de todos os cidadãos, que abrange todos os detalhes da vida, uma alienação compulsória mesmo no mais íntimo aspecto individual. É a opressão autocrática instalada e aparentemente irreversível. O fascismo sem saída. O fim do caminho por falta de qualquer abertura para mudá-lo.
No segundo, aparentemente ao contrário, todos os cidadãos entregam-se prazerosamente às delícias de
uma alienação voluntária, o abandono do “eu” em benefício da estabilidade oferecida pelo “soma”, o elixir da felicidade vivencial, cultural e sexual, que dispensa interação e emoção verdadeiras, mas que neutraliza divergências, conflitos, no marasmo da mesmice. Parece o prenúncio da sociedade do consumo total, em todos os níveis, na qual não se distingue mais verdade de fake, realidade virtual – ou aumentada – de realidade real, pensamento de chatGPT. Também é o fim do caminho, pois ninguém se sente oprimido, todos os caminhos estão abertos, assim se pensa, ilusoriamente. Na verdade, esta é a mais insidiosa das opressões, pois compactuamos com ela.
A pergunta inevitável diante desses dois tenebrosos possíveis futuros (e também presentes) é se há uma
diferença real entre eles. Claro que sim, é a resposta intuitiva. Um se baseia em opressão explícita. O outro em ilusão explícita. O que nem sempre se percebe é como essa ilusão é opressiva, escravizante, alienante, com um agravante em relação à outra: a primeira induz à revolta, à luta pela libertação, à esperança de mudança. A segunda é tida como a própria mudança, o “fim da história”, como formulou Fukuyama. E é voluntária, prazerosa, não importa que seja ilusória. Aqui e agora.
Parte da humanidade vive hoje nesse Abominável Mundo Novo. Claro, como no romance de Huxley há bolsões de “selvagens”, de quem ainda não desfruta das maravilhas tecnológicas de nosso tempo, das conquistas do crescimento econômico, das benesses “civilizatórias” que nos cercam por
todos os lados: telas e telinhas (janelas para um mundo que já não sabemos se é fato ou fake), IA, informação instantânea, respostas a todas as perguntas, carros elétricos, tudo isso é o novo “soma” que nos deleita, satisfaz, alimenta, e nos diz que está tudo bem, e vai melhorar.
Isso também é prisão, também é opressão, na medida em que nos priva de discernimento e visão crítica, nos condiciona a parâmetros que nos estão sendo impostos sem que o percebamos, define, por nós e em vez de nós, o que é viver bem e ser feliz no planeta Terra e na parte que nos cabe nesse latifúndio. E, pior, faz com que queiramos isso (o soma, em vez de interação humana, o gadget, em vez do convívio com o outro, o ”mais” aqui e agora, em vez de menos [para todos] no futuro a longo prazo). É a isso que chamei de “fim do caminho”. Estamos sendo parte do algoritmo. E, exatamente por isso, é uma opressão hermética à sua possível solução, a menos que, como no filme Matrix, consigamos enxergar os simulacros, recompor prioridades e seguir nossa vocação humana como parte solidária da humanidade, do planeta e da natureza.
Isso se aplica a nosso caso específico de povo judeu, e ao estado do povo judeu. Durante mais de 3.000 anos, desde que uma “multidão misturada” de escravos, muitos deles
descendentes de um clã que fizera um pacto com o Deus único, afirmou sua decisão de ser uma nação comprometida com esse pacto, que incluía seu estabelecimento soberano numa terra prometida, os princípios do pacto foram mantidos em sua essência, assumindo o formato comportamental que cada época e cada circunstância induzia. Esse povo conseguiu evoluir, acompanhar os tempos, somar valores, ser contemporâneo sem abandonar o pacto, sem se deixar seduzir por simulacros, mantendo a profunda adesão aos mesmos princípio éticos, morais e comportamentais que constituem a essência, religiosa e secular, de seu ser. Mesmo perseguido, massacrado, alienado, assassinado, não recorreu ao soma, sempre apegado à utopia humanista que alimenta sua fé e sua visão do futuro e do mundo. Da mesma forma, o estado que ele tornou a criar e para o qual voltou, 2.000 anos depois de ter sido dele expulso, reafirmou a escolha feita há 3.000 anos. Essa escolha se expressa nos fundamentos religiosos ancestrais, resumidos por Hilel, e nos valores universais contemporâneos que os traduzem: democracia, justiça, paz social. Nisso se baseia a visão trimilenar do povo judeu como um povo só, com centro em Sion, onde é soberano em seu estado nacional.
O povo judeu, no qual se inclui seu estado nacional, se reconhece
nesses valores. Com base neles resistiu e sobreviveu às opressões de muitos “Grandes Irmãos”, não se deixou levar pelas seduções do soma, não vendeu sua alma às muitas e fáceis conveniências do aqui e agora. Assim fizeram os escravos liderados por Moisés, os Macabeus, os heróis de Massada e de Betar, os que morreram al kidush Hashem, os chassidim, os iluministas, os que se revoltaram nos guetos, os que redimiram o deserto de Érets Israel, os que lutaram as guerras de Israel, os que construíram um estado, uma economia, uma tecnologia, uma cultura, uma nova identidade judaica.
Mas ainda há a ameaça do empoderamento de Grandes Irmãos, internos e externos, ainda existe a sedução do soma, do aqui e agora em detrimento dos princípios básicos do judaísmo. Mais do que nunca é preciso reafirmar os valores ancestrais judaicos, também em sua expressão contemporânea e planetária. Reiterando: democracia, justiça, paz social, respeito ao planeta e à natureza: amar o próximo como a si mesmo. Uma identidade é feita de se reconhecer em seu passado e de ter uma intenção de futuro. O povo judeu, o Estado de Israel, ao compreenderem seu passado, têm de ter uma intenção de futuro. É isso que está em jogo exatamente neste momento. Que povo, que estado queremos ser? n