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MARTIN BUBER

100 anos de O Princípio Dialógico

Martin Buber (1878–1965) é um dos maiores pensadores judeus do século 20. A dimensão do ensino e a construção do saber fizeram com que Buber compreendesse prontamente que as perguntas filosóficas e a tarefa do pensador depois das duas Guerras Mundiais não poderiam ser iguais às do tempo precedente e que, por outro lado, como pensador judeu, tinha a responsabilidade de dar conta das mudanças radicais daquele momento histórico. Um modelo de mundo que, sobre as bases de seus próprios ideais, tais como a burocracia, a institucionalidade, a secularização e o espírito nacional, no seu auge de sua radicalização, transformou-se numa máquina assassina que declarava o culminar e o novo início do seu projeto político. Do mesmo modo, aquele tempo trouxe consigo a Solução Final a um dos problemas cujas maiores contradições históricas foram trazidas à Europa: a questão judaica. Se existia um vislumbre de esperança na humanidade que tinha destruído os valores da sua própria história, essa devia ser construída como um novo humanismo diante das ruínas do Estado-nação.

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Esse foi o mundo de Buber, que atravessou aquele século como um pensador empenhado em dar respostas à crise da Modernidade, mas fazendo-o já não só como o judeu que devia viver o seu judaísmo no âmbito da sua vida privada, enquanto se vestia de cidadão nacional na sua vida pública. Para Buber, o pensamento judaico não tinha limites territoriais nem metodológicos: atravessou e pensou seu tempo como judeu, como sobrevivente, como ser humano, como cidadão e como pensador crítico. Participante destacado da filosofia judaica desde o final do século 19, pertenceu à constelação de pensadores judeus como Hermann Cohen, Guershom Scholem e, especialmente, seu amigo Franz Rosenzweig; e foi também um estudioso da mística chassídica e de suas implicações sociais, de onde Buber construiu uma filosofia do diálogo, renovando as reflexões sobre a ética judaica e sua vinculação entre o mundano e o divino. Assim, deixou as bases para as obras de pensadores como Hans Jonas, Emmanuel Levinas ou Jacob Taubes, assim como para a atualidade de nosso tempo.

Para Buber, a Torá é ensino e não somente lei, por isso as leis inscritas na Torá têm por função ensinar, devem ensinar. E o que é ensinar? Mostrar o caminho, propor um caminho dirigido para uma vida melhor.

Completam-se 100 anos da aparição de seu Princípio Dialógico, ou mais conhecido como o Eu e Tu, uma obra transformadora tanto para a filosofia como para as demais ciências sociais, na qual Buber nos ensina que a relação do homem com Deus e com o outro homem ocorre no mundo porque “Deus fala ao homem nas coisas e nos seres que Ele lhe envia na vida e o homem responde através de sua ação”. Nesse sentido, devemos começar entendendo que, para Buber, a Torá é ensino e não somente lei, por isso as leis inscritas na Torá têm por função ensinar, devem ensinar. E o que é ensinar? Mostrar o caminho, propor um caminho dirigido para uma vida melhor.

Essa visão de um diálogo entre o topo e a base leva Buber a construir o próprio fundamento de sua filosofia dialógica. O coração do pensamento buberiano se baseia no pensamento dialógico: nas relações intersubjetivas Eu-Tu, “não existe o eu em si, mas somente o eu da palavra básica eu-Tu e o eu da palavra básica eu-Ele”. Essa relação torna-se possível graças à relação Eu-Tu eterno, ou seja, a relação do homem com Deus.

O Pensador é uma das esculturas mais importantes de Auguste Rodin e retrata um homem em meditação.

Enquanto que ao transformar-se numa relação objetiva institucionalizada, esse Eu-Tu torna-se um Eu-Ele. E aqui reside o problema: o problema é que a instituição religiosa, segundo Buber, tende a esquecer as relações dialógicas que lhe deram origem (o Eu-Tu e o Eu-Tu eterno) e dessa maneira se tornam opressoras. Esse é o maior perigo: perder a relação com o outro como um Eu-Tu nas mãos da relação institucionalizada pela religião ou pelo Estado, tornando-se um Eu-Ele. Buber afirma que a estrutura de todo pensamento (e da vida) se dá a partir desses dois pares, o Eu-Tu e o Eu-Ele. O primeiro representa as relações intersubjetivas recíprocas, simétricas e efêmeras, enquanto o segundo são relações sujeito-objeto, relações de dominação que se caracterizam pela não reciprocidade, a assimetria, e que, por isso, podem perdurar no tempo, como fazem as instituições.

Por isso, Buber nos adverte que o “pior perigo” que seduz o homem é que um aspecto do humano saia desta “comunhão” entre o Eu e o Tu, ganhando autonomia e tornando-se “autorreferencial”. E ainda que essa parte independente finja ser o que faltava para completar “a reciprocidade vincular” entre Deus e o humano, “na realidade coloca-se a si mesma no lugar que lhe corresponde à comunhão” entre o resto das dimensões que conformam a possibilidade de diálogo com o outro: isto é, no lugar do mundo e a linguagem. Desta forma, transforma o outro, o Tu, num Ele. E isso se instala como a mediação da relação dialógica e, portanto, retira o mundo e Deus do diálogo. Ou seja, o pior perigo se produz quando o próprio ser humano toma o lugar central em uma relação de iguais institucionalizando-se, e retira a dimensão de Deus e do mundo do lugar onde se deveria dar a comunhão entre Deus e o ser humano. É assim que esse Ele para Buber é caracterizado pela religião como instituição e como institucionalidade, e por isso mesmo é para ele “o principal perigo para o homem”.

É importante dizer que isso é consequência de processos históricos, especialmente no mundo judeu, na relação entre religião e Modernidade, e na maneira em que a instituição religiosa se formou como parte da lógica secular e racional, para levar a espiritualidade ao foro interno e privado da vida dos seres humanos, mas fundamentalmente pondo o foco no Ele sobre o Tu, na lei sobre a responsabilidade e o diálogo com o outro, e na exclusão sobre a comunidade. Nesse sentido, e aqui observamos a atualidade do pensamento buberiano, já que podemos pensar esta lógica também sobre qualquer forma de institucionalidade, e com isso se entende especialmente a política e o Estado moderno. Pensado desde aqui, como a cisão também entre ética e política, transformando a política na forma de vida no mundo que não só se independe numa “suposta racionalidade” da ética como serviço ao mundo e ao outro homem, mas que faz da instituição uma divindade encoberta que acaba legitimando ocultamente o Estado.

Buber nunca deixa de compreender que não se pode estabelecer uma filosofia dialógica sobre o éter da abstração, mas na realidade material do mundo que habitamos. É assim que o conceito de redenção para Buber coloca o humano como parte de uma tarefa no mundo e, justamente, com o mundo. A redenção não fica entregue à vontade de Deus, mas à relação ativa do homem entre as dimensões do divino e do mundano. Para Buber, o ser humano coopera na redenção do mundo já que Deus “deseja necessitá-lo” para realizar esta tarefa: não é que não pode fazê-lo quem tudo faz, mas prefere precisar do outro, do ser humano. Como escreve Buber: “Deus quer precisar do homem para Sua tarefa de completar Sua obra. [... ] Que Deus queira isso significa que esse ‘precisar’ se torna realidade ativa, um trabalho: na história, tal como tem lugar, Deus espera o homem.” Essa é a tarefa do homem na história segundo Buber, que tanto se vincula também com a tradição mística que coloca o ser humano no objetivo da Criação divina, aquela que o situa como parte necessária da redenção. Mas entenda-se, ao colocar a equação do processo de redenção no trabalho humano na Terra, também está se comprometendo o homem “responsavelmente” com a história: a redenção é um processo de responsabilidade com o mundo do criado e de suas criaturas – o Você. Porque só o homem pode ser responsável pelo outro homem e pelo seu mundo. Somente o ser humano pode ser responsável pelo criado, pelo Tu, que contém a unidade do Eu e do mundo.

Todo ensinamento, para Buber, é a tarefa impossível de dar uma única resposta, a impossibilidade de construir uma verdade. O ensino é sempre um caminho que se abre para a construção de saber, uma relação em forma dialógica e, especialmente, uma pergunta que se apresenta (se faz existente) para romper a harmonia do silêncio, a paisagem da conformidade e a aceitação cega; é o diálogo sobre um impossível que nos constitui e nos empurra para a próxima pergunta. Para Buber, a construção de saber, que é também a filosofia, se poderia imaginar como a saída do Egito e o fim da escravidão. A liberdade é a possibilidade de construir um diálogo, de percorrer os caminhos do saber através das perguntas e das respostas, das vozes que se encontram. Porque a opressão, na realidade, é a aceitação da voz do outro, do monólogo, mas também a impossibilidade do diálogo, da união de si mesmo com o mundo que representa o criado primeiro, e com o outro Eu, o Tu, depois.

O interessante e atual do olhar de Buber é que nos apresenta uma visão que vai além da moral como sentido da revelação e, por isso, o que ocorre é um “-Eu- e -Tudespojado do Eu e Tu”. Essa nova relação instala uma distância entre um e o outro em forma de institucionalidade e como um semblante que vem substituir a relação dialógica e que deixa à vista a necessidade da sociedade de transformar a Voz divina em uma obrigação de ser ouvida e não na liberdade de ser ouvida. Como diz Buber, a sociedade quer uma “moral sem voz” e uma “lei sem rosto” como verdade da Palavra.

Emmanuel Taub é pesquisador adjunto do CONICET (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da República Argentina). Suas áreas de trabalho são a filosofia e a mística judaica. Seu último livro é «La palabra y la errancia. Para una filosofía de la in-existencia“ (Editora Paidós). Texto gentilmente traduzido do espanhol por Sheila e Michel Ventura.

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