Devarim 46 (ano 17 - dezembro 2022)

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Ben-Yehuda

Tempero para todos os tempos Rabino Sérgio R. Margulies Kreplach x Pescado Cocho Yael Cobano O Museu Judaico de Belo Horizonte Andy Petroianu e Lucca Myara Academia Judaica, uma necessidade Mario Fleck Filhos, por que tê-los? Isio Ghelman E mais: Israel Beloch, Jacques Fux, Juliano Klevanskis Candido, Paulo Geiger, Paulo Haroldo Mannheimer, Salomão Polakiewicz, Sócrates Nolasco, Vittorio Corinaldi, Yair Lapid
Centenário de um grande herói Miriam Gottlieb Treistman e Raul Cesar Gottlieb Revista da Associação Cultural – ATID Ano 17, n° 46, dezembro de 2022 Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI

EDITORIAL

Amaior história de amor do mundo não envolve as peripécias com final feliz de um casal romântico, nem relata as agruras de um trágico amor platô nico, em que uma das partes se consome sonhan do com o inalcançável.

A maior história de amor do mundo acontece no cur so de uma viagem muito longa – na verdade, de várias viagens muito longas.

Viagens que incluem um sem-número de paradas. Muitas delas encerram eventos trágicos, mas também têm momentos de paz, harmonia e de criatividade. Viagens muito variadas e diferentes, que têm entre si um único ponto em comum: a bagagem que acompanha os viajan tes. Uma bagagem singular, que tanto os sustenta como os impulsiona a seguir na caminhada.

A maior história de amor do mundo relata o esforço de tradução da Torá para todos os idiomas falados pelos judeus em sua multimilenar caminhada pela dispersão.

Como muitas histórias românticas, esta também inclui uma barreira que os amantes têm que ultrapassar antes de po der fruir seu amor.

No século terceiro antes da era comum, a grande maioria dos judeus da Alexandria helenizada era fluente apenas no gre go. Poucos tinham proficiência no hebraico bíblico necessá rio para a apreciação da beleza literária e da mensagem atemporal da Torá.

Preocupados com o fato que esta carência poderia provo car o distanciamento dos judeus de seu texto fundacional, com a consequente diminuição do amor à sua cultura, algumas pes soas propuseram que ela fosse traduzida para o grego.

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Charles Steiman

Era uma proposta sensata, mas que enfrentou oposição. Alguns argumentaram que a palavra de Deus só seria ple namente entendida em seu ditado original, no hebraico. Esta objeção faz sentido, pois efetivamente todo tradutor imprime um entendimento particular ao texto, criando assim uma camada de inter pretação pessoal entre o autor e o leitor.

A Torá só é verdadeira em hebraico, diziam, com razão. Mas, nos casos de amor, a ra zão nem sempre é a melhor conselheira e, ao final da con tenda, um texto em grego da Torá foi produzido.

A Septuaginta (nome des ta primeira tradução) abriu as comportas para a fruição do amor dos judeus com sua Torá. A partir daí ela foi tra duzida para todos os idiomas falados pelas comunidades onde viveram.

Aramaico, árabe, iídiche, ladino, alemão, espanhol, in glês, italiano, russo etc. A lista é muito longa e inclui até mesmo (pasmem!) uma tradução em 2001 para o hebrai co moderno, no qual o autor assim justifica seu trabalho: “Embora a linguagem bíblica seja parte fundamental do tex to bíblico, sua mensagem é igualmente fundamental. E como a linguagem bíblica é de difícil compreensão para muitos fa lantes de hebraico moderno, a mensagem não chega até eles, e, portanto, a Bíblia é para eles como um livro selado.” Este argumento me parece definitivo e penso que todos os tra dutores da Torá tiveram uma frase semelhante a esta como norte.

No Brasil, evidentemente, o amor pela Torá é tão gran de como em outras partes do mundo, e, portanto, tradu ções da Torá para o português estão amplamente disponí veis há muitos anos.

Mas, quando o amor é intenso, sempre cabe mais um. E, efetivamente, estava faltando ao nosso país uma

tradução moderna que aten desse a duas características centrais: (a) fidelidade ao texto original, ou seja, que incluísse um texto que não contivesse ajustes que pretendem adequá -lo a interpretações rabínicas posteriores e (b) fosse enrique cida por comentários numero sos e de amplo espectro, abrangendo tanto as visões dos sá bios do passado como a dos contemporâneos e também, por que não?, de fontes exter nas ao judaísmo: arqueologia, história geral, textos de outras culturas, pensadores não ju deus etc.

Portanto, a UJR-AmLat (instituição que é uma das patrocinadoras da Devarim desde a sua fundação) promo veu a tradução para o portu guês do livro de estudo da Torá mais usado no mundo de fala inglesa – o livro “A Torá, um comentário moderno” do ra bino alemão-canadense Gunther Plaut (1912-2012).

O rabino Ruben Sternchein da CIP comenta: “Existem muitas versões de Chumash1. Alguns têm boas traduções, ou tras boas histórias, outras boas reflexões, outras boa filosofia, explicações, teologia e arqueologia. Só o Plaut tem tudo”.

Já o rabino Sérgio Margulies da ARI afirma: “Desbravar a Torá numa linguagem instigante e acessível é o objetivo des ta obra. É destinada a todos que têm respeito pelo saber e bus cam espiritualidade.”

Conheça mais sobre o Plaut em www.plaut.com.br e junte-se à imorredoura lista dos que, ao longo das gerações, não deixaram que a barreira do idioma fizesse da Torá um livro selado.

1 Chumash é o nome que se dá ao livro que contém a Torá e as Haftarot – ou seja, é o livro da Torá para uso litúrgico.

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ATID /
ARI
Associação Cultural–
Associação Religiosa Israelita–

MINISTÉRIO DO TURISMO APRESENTA:

devarim [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coisas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então milim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos.

3 O quinto e último livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coisas. 4 Revista da Atid e do judaísmo liberal, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

Revista Devarim Associação Cultural – ATID Ano 17, nº 46, dezembro de 2022

PRESIDENTE DA ATID Gilberto Lamm

RABINO CONSULTOR Sérgio R. Margulies

DIRETOR DA REVISTA Raul Cesar Gottlieb

CONSELHO EDITORIAL Breno Casiuch, Germano Fraifeld, Jeanette Erlich, Marina Ventura Gottlieb, Moacir Amancio, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies.

DIREÇÃO DE ARTE Charles Steiman

EDIÇÃO DE ARTE Daniela Knorr

REVISÃO DE TEXTOS Raquel Correa

TRADUÇÃO Michel e Sheila Ventura

FOTOGRAFIA DE CAPA Bruno Gottlieb

FOTOGRAFIAS iStockphoto.com

COLABORARAM NESTE NÚMERO Andy Petroianu, Isio Ghelman, Israel Beloch, Jacques Fux, Juliano Klevanskis Candido, Lucca Myara, Mario Fleck, Miriam Gottlieb Treistman, Paulo Geiger, Paulo Haroldo Manheimer, Rabino Sérgio R. Margulies, Raul Cesar Gottlieb, Salomão Polakiewicz, Sócrates Nolasco, Vittorio Corinaldi, Yael Cobano.

Os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

Os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista Devarim é editada pela Associação Cultural – ATID

Rua General Severiano 170 – Botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro-RJ CNPJ 33.388.059/0001-71

www.devarimonline.com | devarim@aririo.org.br

A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

SUMÁRIO

Tempero para todos os tempos – Rabino Sérgio R. Margulies .................... 5

Kreplach x Pescado cocho – Yael Cobano ................................................. 8

Três Crônicas – Vittorio Corinaldi ........................................................ 15

O Museu Judaico de Belo Horizonte – Andy Petroianu e Lucca Myara ...... 20

O centenário de um grande herói – Miriam Treistman e Raul Gottlieb ..... 26

Academia Judaica: uma necessidade – Mario Fleck .................................. 34

A guinada histórica de Georges Bernanos – Israel Beloch 41

O real e o paradoxo de Primo Levi em Auschwitz – Jacques Fux 48 Devarim, Misparim vehaEmet – Paulo Haroldo Mannheimer 57

Filhos, por que tê-los? – Isio Ghelman 65

Antissemitismo no Século XXI – Sócrates Nolasco 69 Antissemitismo e fraude literária – Juliano Klevanskis Candido 76

O Caminho de Israel – Yair Lapid ........................................................... 83

De uma noite de Yom Kipur – Salomão Polakiewicz .................................. 88 Resenha de Livros – Raul Cesar Gottlieb ............................................... 92

Em poucas palavras ............................................................................... 94 Cócegas no Raciocínio – Paulo Geiger .................................................... 99

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Marion Botella
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TEMPERO PARA TODOS OS TEMPOS

“Não afastes da tua boca este livro da Torá, e nele medite dia e noite”

Tanach, Iehoshua (Josué) 1:8

Na sinagoga, junto-me à congregação, ávido para ouvir a leitura da Torá. Ouvir, digo, saborear. Sim, saborear, pois o ritual estipula que o texto da Torá seja recitado de acordo com uma cantilena específi ca denominada taamim. Os taamim proveem o ritmo da leitura, as pausas e ênfases e, ainda que consequência de um desenvolvimento histórico, são de tal importância que suas origens são atribuídas ao próprio momento em que o texto da Torá foi entregue no Monte Sinai. A palavra taamim significa sabores. A ideia é que a mensagem da Torá possa ser saboreada, mas nem sempre acontece. Surpreendentemente, a delícia aguardada deste sabor pode ser substituída por um incômodo sentimento de estar ouvindo e lendo um texto insosso. A expectativa de nutrir-se pelo sabor da mensagem sagrada da Torá é anulada pela sensação de náusea dian te, por exemplo, das seguintes passagens:

• “Se um homem se deitar com um macho como quem se deita com uma mulher, ambos cometeram uma coisa abominável; serão conde nados à morte – eles têm a culpa de sangue.” Vaikrá (Levítico) 20:13;

• “Se um chefe de família tiver um filho rebelde e desobediente, que não der ouvidos ao seu pai ou à sua mãe e não lhes obedecer mesmo depois que eles o dis ciplinem, seu pai e sua mãe o pegarão e o levarão para fora até os anciões da sua ci dade, em local público de sua comunidade. Eles dirão aos anciões da sua cidade: ‘este nosso filho é rebelde e desobediente; ele não nos dá ouvidos. É um glutão e um beberão’. Por isso, o conselho da sua cidade o apedrejará até a morte. Assim você varrerá o mal de seu meio: todo Israel ouvirá e temerá.” Devarim (Deuteronômio) 21:18-21

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Rabino

Como lidar com as passagens controversas da Torá? Uma opção, rápida e fácil, seria suprimir da leitura estas passagens em função de seu sabor intragável no que tange ao res peito à dignidade hu mana. Outra opção é se indagar porque es tas passagens são parte da Torá. É convite para que aceitemos a reflexão e para que aprofundemos a compreensão deste sagrado texto.

Uma das finalidades destas controversas passagens é lê-las sobre o prisma da moralidade, para que não sejamos au tômatos seguidores de um texto, o que abre espaço para sermos alvos de várias mensagens manipulativas que en golimos como se aceitáveis fossem. O convite para con frontar passagens complicadas da Torá permite aprimor ramos a reflexão e, sobretudo, fazermos uso das lentes da moralidade. É como se o sabor da Torá dependesse do tempero da moralidade que adicionamos ou não.

No que tange a passagem de Levítico sobre homosse xualidade, o rabino Steve Greenberg (1956-) explica que a intenção da Torá não se refere a questões anatômicas e sim à proibição de fazer uso exploratório das relações se xuais, demandando que parceiros sexuais se tratem com respeito mútuo. O rabino Bradley Artson (1959-) contex tualiza a realidade histórica do antigo Oriente Médio entendendo que a proscrição bíblica se refere à condenação da idolatria e de práticas de cultos pagãos, e não à homossexualidade em si1

O entendimento do contexto histórico do antigo Oriente Médio é também citado pelo rabino Barry Block2 para esclarecer a lei que autoriza o apedrejamento do filho rebelde: o pai desfrutava de um poder ab soluto através do qual não precisava prestar contas e poderia, inclusive, legalmente ma tar seu filho. A Torá, assim, limita esse poder pátrio ao estipular que tanto pai quanto mãe

devem estar de acordo que o comportamento do filho é repugnante. Afirma, ainda, que a atitude do filho deve ser publicamente declarada antes do apedrejamen to, prevenindo que a violência aconteça dentro de quatro paredes. Deste modo, ainda que por uma legislação estranha aos nossos olhos contempo râneos, a contextualização permite entender a preocupação da moralidade do texto bíblico ao transformar o normativo – o exercício absolu to do poder pátrio que encontra respaldo para o filicídio – em transgressão. A conclusão é que a ferramenta do conhecimento da história permi te a compreensão da intenção do texto da Torá –que numa leitura superficial nos escandaliza – de cor rigir uma prática num prévio momento da história.

A moralidade também tem seu desenvolvimento. O psicólogo Lawrence Kohlberg (1927-1987) propõe poten ciais estágios no desenvolvimento moral de um indivíduo que vão do nível do binômio obediência x punição, se guindo para a conformidade social e respeito à autorida de, até o nível que corresponde à adoção de princípios éti cos universais.

Dentro da Torá há – como o entendimento histórico exemplificou – um mecanismo que busca corrigir os des vios da moralidade. O sabor da Torá é encontrado atra vés do contexto de cada etapa do desenvolvimento moral dos indivíduos e da sociedade da qual fazem parte.

A Torá Oral, como a coletânea de debates rabínicos do Talmud, busca lidar com passagens controversas da Torá Escrita e suas implicações. Assim, aponta na lei so bre o filho rebelde que a expressão “se não obedecer nossas vozes (kolenu)” cria uma dificuldade para a aplicação da punição ao filho conside rado rebelde: a voz da mãe tem que ser idêntica à do pai para o filho ser consi derado rebelde.

Uma vez que não há como as vozes da mãe e do pai serem idênticas, este ajuste oriundo do escrutínio da Lei Oral sobre a Lei Escrita estabelece

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“Toda a Torá depende das qualidades morais”
Eterno! Corrige-me, porém
demasia.”
Irmiahu (Jeremias) 10:24
Orchot Tsadikim, Alemanha, séc. 15 “Ó
não em
Tanach,

Torá, Bereshit (Gênesis) 9:9

impedimentos para a aplicação da lei, no entanto, não a rejeita. Assim, também a Lei Oral deve ter um corretor ba lizado pelos princípios do desenvolvimento da moralidade. De outro modo, uma in terpretação que cria empecilhos pode abrir espaço para outra interpretação que justi fica a lei. Aliás, foi assim que o assassinato do ex-pri meiro-ministro do Estado de Israel, Itschak Rabin, foi justificado pelo uso (ou abuso!) da interpretação de um conceito da lei judaica3. Por isso, urge fortalecer os mecanismos que coí bem a prática e aceitação de leis que violam a sensibilida de ética. Esta tarefa é contínua, o desenvolvimento da éti ca é permanente.

A sacralidade do texto da Torá não é isenta do senso crítico humano que busca constantemente o sabor a ser re finado pela ética e, neste intento, exerce uma espirituali dade intelectual, sensível e honesta. Este processo abraça dois pactos: o pacto da criação, universal, escrito nos co rações humanos, e aquele estabelecido no Sinai com o povo de Israel. Nas palavras do rabino David Hartman (1931-2013): “o pacto do Sinai não pode sobrepor o da criação”, em alerta para as leis do Sinai que contradizem nossa moralidade4.

O Talmud adverte: a Torá é veneno ou elixir. O que a torna um ou outro? Se confrontada com os imperativos da éti ca é um elixir. Se autorreferenciada é um veneno. Veneno como destilou a serpente em Adão e Eva. A vulnera bilidade de Adão e Eva decorreu, pois estavam sozinhos, sem a contenção de referências morais comparti lhadas. Se estivermos sozinhos, somos inclinados a nos sujeitar ao veneno. Se estivermos juntos, somos propensos a in corporar o elixir.

O pacto particular cria comunidades atuantes e ajuda na tarefa de estarmos juntos para que os propósitos do pacto universal sejam zelados. De um lado, o pacto particular – mais precisamente, os vários pactos particulares de distintas crenças – evita que o pacto universal seja inócuo ou talvez inexisten te; por outro lado, o pacto universal – como as lentes da moralidade em seu estágio mais ele vado – reforça o sentido de atuarmos através de comunidades, evitando que sejamos hordas que perambulam a esmo num mundo caótico.

“E esta é a Torá … diante dos filhos de Israel”

Torá, Devarim (Deuteronômio) 4:44

Esta é a Torá com amplo sabor para todos os temperos. E para todos os tempos. Os eternos tempos que se tempe ram com o paladar da moralidade.

Torá, Devarim (Deuteronômio) 29:11

Notas

1 Ellenson, D., “Jewish Meaning in a World of Choice,” Jewish Publication Society, Philadelphia, EUA, 2014.

2 Ensinado por Avital Hochtstein, Instituto Shalom Hartman, Jerusalém, Israel.

3 O assassino de Rabin justificou –distorcendo a lei judaica – seu ato através do conceito de ‘din rodef’, a lei do perseguidor, sob o argumento que assim eliminava uma ameaça.

4 Dr. Rabino Norman Solomon (1933 -), ‘Relating Truthfully to Morally Problematic Torah texts’.

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O Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI, Rio de Janeiro
“Estabelecerei Meu pacto com … todo ser vivo”
“No pacto … que o Eterno seu Deus conclui com vocês”

KREPLACH x PESCADO COCHO

Por que ficar apenas com um se também posso comer o outro?

Na minha comunidade valorizamos costumes e melodias, que atravessam diferentes tradições, misturando o que acreditamos firmemente pertencer a todos, e não apenas a alguns: o patrimônio das nossas muitas “judeidades”

Pescado

Sou testemunha privilegiada de um novo choque de culturas na Espa nha. Com isso, não quero dizer a cultura judaica com as outras, mas sim um choque de culturas dentro do judaísmo espanhol, que tem efei to na minha comunidade: a comunidade judaica reformista de Madrid.

Esse choque que questiona “o que é judaico” me faz recordar que o encontro de culturas é judaico. Tenho em mente que isso ocorreu muitas vezes. No entanto, fazia muito tempo que ele não era vivido nessa parte do mundo. Além disso, quando ocorreu aqui tinha características distintas das que vou relatar, porque o curso dos acontecimentos históricos era muito diferente.

É na minha jovem beit haknesset, a Comunidade Judaica Reformista de Madrid, de apenas sete anos, que a mistura vem ocorrendo sem problemas. Entre nossos membros e frequentadores temos pessoas de diferentes nacionali dades que carregam, por sua vez, várias tradições judaicas: sefaradi marroqui na, sefaradi turca, mizrahi e ashkenazi de diferentes origens. Todos sabemos: um ashkenazi argentino não é o mesmo que um ashkenazi americano; não o é nem em termos de idiossincrasia, nem em de liturgia ou de gastronomia, para citar alguns exemplos. A evidência parece nos dizer que não há uniformidade judaica.

Felizmente, na minha comunidade, valorizamos costumes e melodias, que atravessam diferentes tradições, misturando o que acreditamos firmemente per tencer a todos, e não apenas a alguns: o patrimônio das nossas muitas “judeidades”.

Como sentimos que não éramos nem uma coisa nem outra, tínhamos um certo grau de desconforto, como se tivéssemos que optar por uma definição; e,

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Kreplach, em iídiche, é um pastel de massa cozida recheada para sopas. cocho, em espanhol, é o nome de um prato judaico à base de peixe, de origem marroquina.

ao caminhar com esse desconforto, ele passou a fazer parte do nosso ohel, da nossa tenda.

E toda essa rica dimensão do judaico vem se acentuan do cada vez mais. O encontro entre judeus locais e judeus que imigraram por motivos econômicos e sociais de dife rentes partes do mundo, especialmente da América do Sul, mas também da América Central, Turquia e Estados Unidos, permitiu que cada uma dessas pessoas comparti lhasse sua bagagem, impactando na dimensão judaica.

Esse encontro, que hoje parece natural e fluido e que acontece aos poucos, não era a tendência habitual por aqui nos últimos tempos. Não é intenção deste artigo aprofundar o aspecto histórico, mas relatar como o curso da histó ria reuniu judeus de diferentes origens e tradições e depois os separou ou, melhor dizendo, os compartimentalizou.

A Espanha tem uma história recente em termos de vida judaica moderna. Ao longo de quinhentos anos após a ex pulsão dos judeus pelos Reis Católicos, não houve vida ju daica. E isso não é trivial. Somente com a Constituição de 1869, não católicos foram autorizados a viver no país.

Os pioneiros que se estabeleceram na Espanha na pri meira década do século XX e que foram a força motriz da futura Comunidade Israelita de Madrid, se chamavam Weisweiller, Bauer, Salzedo, Gommes, Camondo, Mansberger, Farache, Pereire. Eles construíram a comuni dade juntos. Embora as orações fossem realizadas nas casas particulares, entre outras, dos banqueiros Salzedo e Farache, foi com o apoio de Bauer, Landauer e Krauss que o Midrash Abarbanel foi inaugurado em 1917, segundo relatos do livro Ledor Vador, 100 años de vida judía en Madrid, editado pela “Comunidad Judía de Madrid” em

2017. O espaço de reunião acolheu tanto o rito sefaradi quanto o rito asquenazi. Mesmo com ritos diferentes, pa rece que soavam uníssono.

Com a Segunda República até a Segunda Guerra Mundial, centenas de judeus alemães e poloneses chega ram à Espanha fugindo do regime nazista. Nos primeiros anos da ditadura de Franco, a partir de 1939, o catolicis mo dificultou a vida judaica de várias maneiras. A liberda de de culto foi extinta, de modo que nem orações nem fe riados judaicos foram permitidos e os judeus voltaram a se reunir em casas particulares. Em 1948, Bauer, Lawenda e Cuby conseguiram estabelecer um novo espaço de orações, que mais uma vez reuniu judeus de diferentes tradições culturais.

A coexistência de dois ritos “quando possível” no mes mo edifício se deve às características daquela época marca da pela luta pela sobrevivência. A vontade de sobreviver e de dar dignidade à diversificada comunidade judaica da época levou um rabino sefaradi a oficiar Rosh Hashaná, graças à generosidade de Temple Emanuel de Nova York, em conjunto com um rabino ashkenazi, capelão da Marinha dos EUA. Parece que a soma de nossas vivências e os acontecimentos políticos e sociais nos permitiram ser mais criativos ao trabalhar por um objetivo comum: a so brevivência da própria comunidade.

A ditadura queria, com ressalvas, se aproximar dos ju deus de origem sefaradi, mas desconfiava muito daqueles que, sem ter nacionalidade espanhola, imigravam; descon fiava que fossem agentes operando contra os interesses na cionais. A tal ponto que um dos requisitos para autorizar a constituição da Comunidade Sefaradi de Madrid, em

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Israelita–
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Uma rua de Madrid

1955, foi que todos os membros do comitê diretor fossem judeus sefaradi de nacio nalidade espanhola ou sefaradi do Protetorado Espanhol do Marrocos. Talvez essa condição tenha, timidamente, começado a determinar a prevalência de um grupo sobre o outro.

Os anos 1960 foram muito impor tantes para o desenvolvimento da vida ju daica em Madrid. Com a aprovação da Lei de Liberdade Religiosa, em 1967, a Espanha deixou de ser um Estado exclu sivamente confessional católico. E com a independência de Marrocos e o fim do protetorado espanhol chegaram ao país ondas de judeus sefaradi. De acordo com o livro Ledor Vador, os novos líderes sonhavam com uma comunidade judaica em Madrid que revivesse as tradições do glorioso passado do judaísmo espanhol.

Qual é o método judaico senão guardar tudo o que fizemos e afirmar que sempre fizemos assim? Desejo que aquele alfinete que espeta evoque em nós a mistura do que somos coletivamente.

excludentes, haverá risco para nossa so brevivência a médio e longo prazo.

Entre 1973 e 1976, judeus da Argentina, Chile e Uruguai imigraram para a Espanha. No início dos anos 1990 e em 2001, chegaram majoritariamente judeus de ori gem argentina, que trouxeram consigo uma forte experiên cia cultural judaica, também marcada por figuras rabínicas conhecidas. De acordo com Ledor Vador, “os judeus latino -americanos inicialmente relutaram em se juntar à comuni dade existente porque a viam como muito tradicional e ob servante”. A mesma relutância existia na comunidade local, conforme o texto cita: “De um ponto de vista objetivo, a integração seria mutuamente enriquecedora, mas as pessoas estavam cautelosas sobre a convergência de duas visões e culturas diferentes: a maioria da comunidade judaica de Madrid, que tinha origem marroquina sefaradi, era obser vante e culturalmente oposta aos argentinos.”

Os espaços compartilhados eram fundamentalmente a escola judaica e o Macabi. Mas o uso comum dos espaços não implicaram, nem implicam atualmente, em compar tilhar culturas, expostas e manifestas com o objetivo de acolher e confirmar a existência do outro. Eu não tenho nenhum julgamento em relação a isso, simplesmente aconteceu assim.

Tampouco posso determinar em que medida um não deixou espaço para o outro e vice-versa, ou se, em última análise, optou-se por adotar o “cada um na sua”. E insisto, não faço julgamento disso. Contudo, se a nossa composi ção sistêmica mantiver essas compartimentalizações

Existem exclusões que se originam de grupos dentro do judaísmo que adotam o discurso único, mas há outras exclusões que passam por dimensões insuspeitas, como a que envolve a gastronomia, já que a qualidade da comida do outro faz parte do humor judaico: “Como vou dividir uma comunidade com alguém que não sabe o que é kreplach?” Essa exclusão, que é real, não foi feita apenas contra o sefara di, mas também contra aquele judeu por opção, a quem ninguém contara sobre essa dimensão de ser judeu. Chega a ser algo assim: “Não vou lhe fazer experimentar o krepla ch, não vou lhe dizer o que é, nem o que evoca em mim; em vez disso, vou jogar na sua cara que o culpo por não saber e fazer deste o motivo perfeito para excluí-lo do meu convívio.”

Para outros, a dimensão de ser judeu passa pelo meldar – rezar em ladino, judeo-espanhol; de forma que, em nos sa judiaria, isso também é motivo de exclusão do outro e pretexto para não partilhar espaços de oração, pois eles “não meldam como nós”; ou: “você não faz a tefilá como eu fazia na minha infância com o meu zêide”. Todos estes dizem: “O que você faz remete a quem eu sou, mas sinto que ao mudar estou traindo minha família e suas memórias.”

É verdade que a identidade é construída em grande parte por memórias arraigadas. Diz o escritor Jonathan Safran Foer, em sua obra “Tudo está iluminado”: “Os ju deus têm seis sentidos: tato, paladar, visão, olfato, audi ção… e memória. Enquanto os não-judeus experimentam e processam o mundo através dos sentidos tradicionais e usam apenas a memória como recurso secundário, para os judeus a memória não é secundária, como ao ser espetado um alfinete, no seu brilho prateado, ou no gosto de san gue que sai do dedo. O judeu espeta-se e lembra-se de ou tros alfinetes. O local da punção evoca outras perfurações – quando sua mãe tentou consertar sua manga com você vestindo a roupa, (…) quando Abraão testou sua faca para ter certeza de que Isaac não sentiria dor – porque o judeu é capaz de saber por que isso dói. Quando um judeu se depara com um alfinete, ele se pergunta: que me mória ele tem?”

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O que vejo na minha comunidade é que o componente que a viabiliza não é reformista, mas humanista. O que faz a diferença é uma ideia muito mais universal. É reconhecer o outro como outro, que independe de sua tradição e raízes judaicas

E eu não nego, é bonito estar enraizado nas próprias tradições e memórias. No entanto, o apego excludente surge quando certo grupo que se considera dono da ver dade limita o modo judaico apenas ao que eles fazem; tudo o que que for diferente não é o estilo judaico. E esse argumento é usado para exclusão, negação ou des prezo. Minha pergunta aqui é: qual é o método judai co, senão guardar tudo o que fizemos e afirmar que sempre fizemos assim? Desejo que aquele alfinete que espeta evoque em nós a mistura do que somos coletivamente.

Quando vamos de um nussach (modelo litúrgico) para outro na minha comunidade; quando temos guefilte fish ao lado do pescado cocho; quando se deseja “Gut Shabes”; quando trazemos as canções sefaradi para o Seder e para Rosh Hashaná; quando celebramos Mimona mesmo que poucos conheçam essa tradição marroquina de finalização de Pessach – o judaico pode sim ser o en contro: a exposição de nossas muitas culturas judaicas. Isso pode parecer trivial para alguns, mas para outros é a experiência do caldeirão cultural que somos. Falamos muito que as denominações estão obsoletas no judaísmo, mas tendemos a misturar contextos de diversidade e di zer que obsoleto é a homogeneidade.

Justamente comecei dizendo que sou testemunha privilegiada de um novo encontro de culturas, que quer construir uma nova judeidade que acolha todos, com vontade de ser outro. Não para anular o outro, porque isso o transforma, mas para abraçá-lo. Só pode haver um novo judaísmo nessa mistura, se todos estiverem abertos à bela tradição judaica da mudança.

Parece-me que a alteridade é a plena consciência de que o judaísmo nunca foi igual e que pode sobreviver aceitando a existência do outro. Essa alteridade não é apenas – se me permitem a redundância – a do outro, mas também a nossa alteridade percebida pelos outros. Há alteridade, qualquer que seja a maneira como você olhe para isso. Quero rever um grande precedente quando as tradições se misturam.

“Quando a Torá foi esquecida em Israel, Esdras a restaurou; quando foi esquecida novamente, Hillel veio da Babilônia e a restaurou.” Suká 20a

Quanto há no judaísmo do período da reconstrução do Segundo Templo daquela tradição babilônica trazida pelos exilados, que a tornaram sua e,

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Religiosa Israelita–
Fotos da Comunidade Judaica Reformista de Madrid

posteriormente, a tradição de todos? Não havia possibilidade de sobrevivência sem mudança de realidade.

O rabino Damian Karo afirmou em seu artigo “Fazemos qualquer coisa?”, na Devarim 35, de abril de 2018: “O modelo judaico é de renovação e adaptação. É assim que o judaísmo conseguiu fazer as transições de uma época para outra; do Primeiro Templo ao exílio, daí à restauração da soberania e do tempo do Segundo Templo, daí ao Judaísmo Rabínico, do Rabínico ao Medieval, do Medieval à Emancipação”, para citar ape nas alguns exemplos. Em cada transformação, o judeu foi redescoberto e redefinido.

Como é possível que, quando estava em jogo a sobre vivência e a construção com dignidade, houvesse criati vidade para a mistura e, em tempos de certa estabilidade, achamos divisões?

O que a citação em Suká 20a sugere é que sustentar o judaísmo após o exílio não era sustentar o judaísmo, mas sim sustentar-se, sobreviver. Apoiar o espaço físico de culto, o centro espiritual, é sustentar a si mesmo como povo, porque se não o fizer, os de fora irão devorá-lo. A reconstrução do Templo tinha a ver com emergir em meio à dominação, para não acabar devorado pela cultu ra do outro. Se nos esquecemos da Torá é porque já não estamos aqui e nos esquecemos do judaísmo.

Comecei dizendo que sou testemunha privilegiada de um novo encontro de culturas dentro do judaísmo espa nhol, semelhante ao que ocorreu no final do século XIX e início do século XX, e que está se refletindo na comunidade judaica reformista que fundei.

Provavelmente o movimento reformista possibilita um quadro de troca e convivência, pois a convivência com o outro pode me transformar e produzir uma nova cultura, comum a todos, mas igualmente nova. Isso é tí pico da reforma, na medida em que não há medo da mu dança, mas sim a mudança é o que se busca.

Mas o que vejo na minha comunidade, que está em construção e nascendo com pessoas de diferentes raízes e origens, é que o componente que a viabiliza não é re formista, mas humanista. O que faz a diferença é uma ideia muito mais universal. É reconhecer o outro como outro, que independe de sua tradição e raízes judaicas. O judeu que reconhece no outro um igual, para além das diferenças, não reflete a diversidade judaica e sim seu componente humanista. Esse é o verdadeiro desafio.

A sensação de que uma comunidade, que nasceu do en contro de culturas, não é mais assim hoje parece nos dizer que o olhar do outro se perdeu e que só reconhecem iguais. A chance de sobrevivência dessa experiência judaica não se dá por continuarmos trazendo pessoas diferentes, mas por continuarmos nos reconhecendo como iguais na diferen ça, sempre, desde o primeiro dia, evidenciando o que é humano.

Aqueles que vieram do exílio na Babilônia não deixaram a Babilônia para trás, eles a trouxeram consigo. Não anule o outro, não anule a diferença! O componente humanísti co reflete-se no respeito pela diversidade e na convivência. O importante não é, em primeira instância, reconhecer o outro como judeu, mas antes de tudo reconhecê-lo como um ser humano com sua dignidade. A partir daí, vemos como caminhamos.

E, em última análise, não é o judaísmo que estamos sal vando, mas a humanidade. A ideia de fazer um esforço para conviver na diversidade e reconhecer a dignidade do outro não cria uma comunidade judaica reformista, mas sustenta o que é humano. E, a propósito, o humano sempre esteve à frente da idiossincrasia judaica. De fato, o ris co dos outros é esquecer o que é humano e permanecer nas minúcias irrelevantes de uma halachá gradiosa. Quando a experiência mista é colocada onde as coisas surgem e se es tabelecem, quando a proeminência é colocada na dignida de do outro, a sobrevivência da Torá está garantida.

Emmanuel Lévinas propõe um novo humanismo em sua obra “Humanismo do outro homem” (Caparrós Editores, 1993). A tentativa de Lévinas se resolve em pen sar a partir do outro: conceber a exterioridade como con dição e origem de todo pensamento. O Outro é imensu rável, é o absolutamente outro, e é sempre anterior à pró pria subjetividade.

Yael Cobano é estudante de rabinato no IIFRR – Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista – e fundadora da Comunidade Judaica Reformista de Madrid. Ela é advogada, com mestrado em análise de inteligência.

Traduzido do espanhol por Raul Cesar Gottlieb

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Israelita–

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TRÊS CRÔNICAS

Reflexões sobre Israel, com um pé no judaísmo brasileiro

A surrealista transformação da sinagoga em acampamento, com colchões espalhados pelo chão, panelões empilhados pelos cantos para uma cozinha improvisada.

O quadro que Chagall não pintou

Folheando ao acaso entre livros e papéis, deparei-me com reproduções de quadros de Marc Chagall, sempre capazes de empolgar de novo a cada encontro. As figuras de judeus de feições místicas pairando pelo ar ou dançando nos telhados ao som de melodias tocadas por irreais intérpretes transportam o observador para um universo delicadamente surrealista, muito contrastante com o nervoso “stress” que caracteriza a vida urbana de hoje.

Mas os personagens chagallianos trazem para mim uma particular associa ção com um episódio relevante, que teve um peso muito grande para mim e para muitos de meus companheiros de trajetória – muitos dos quais já se acham na esfera do além.

Em primeiro de maio de 1950 eu, ainda “calouro” da Faculdade de Arquitetura, com o cabelo apenas despontando depois da tradicional tosatura do trote de admissão ao ambiente universitário, participei de um encontro de jovens do movimento “Dror” – muitos dos quais igualmente estudantes em iní cio de carreira ou já mais adiantados na vida acadêmica.

A data de primeiro de maio, feriado nacional, bem se casava com nossa vi são ideológica e nosso ideal “revolucionário” de ir viver no kibuts uma vida em base coletiva temperada pelo renascimento nacional judaico. E o encontro ci tado devia ter lugar fora de São Paulo, numa excursão campestre que duraria alguns dias. No dia estipulado, porém, chuvas torrenciais impediram a saída para o campo, e a intenção do seminário, que era de uma análise e debate de nosso programa de ação como movimento juvenil, se viu ameaçada de fracas so. Era preciso improvisar uma solução, enquanto o grupo já estava no cami nhão em viagem para o destino. Ela surgiu com a sugestão de um dos

Poster comemorativo pelo 1º Iom Haatsmaut, em 1949

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Vittorio Corinaldi

companheiros participantes, que morava no bairro da Lapa (daí o nome com que o encontro entrou para a his tória do judaísmo brasileiro).

Ele lembrou que a sinagoga do bairro deveria segura mente estar inativa naquele feriado, e vinculou a hipótese do animado grupo ir se instalar “com armas e bagagens” no recinto da dita sinagoga. Era preciso somente conven cer o shamash a concordar com a invasão – naturalmente sob absoluto desconhecimento da diretoria.

Ora, o dito shamash, que residia sozinho nos fundos do edifício, era a personificação de uma figura de Chagall: um judeu magro e baixinho de idade indefinida, que falava so mente iídiche, e que parecia habitar como luftmensch [cabeça de vento] um mundo imaginário regulado apenas pela rotina litúrgica do local.

Surpreendentemente, ele aderiu com mística naturali dade à incomum situação em que se viu repentinamente: a surrealista transformação da sinagoga em acampamento, com colchões espalhados pelo chão, panelões empilhados pelos cantos para uma cozinha improvisada, e os bancos que normalmente serviam o público em suas orações, ago ra usados para sentar alguns minianim de ruidosos jovens em acalorados debates.

Provavelmente, o uso irreverente e clandestino do am biente “sagrado” da sinagoga só não causou maiores escân dalos a posteriori porque o resultado da reunião, nele rea lizada, teve uma repercussão no ishuv que tocou muito mais do que o sacrílego destino dado ao cenário, que lhe foi de fundo.

O “Seminário da Lapa” se tornou então um marco de cisivo e controvertido no ambiente judaico. Ele introdu ziu um fator de ação concreta no até então amador funcio namento das entidades da coletividade, num momento histórico em que os acontecimentos no seio do povo judeu se desenvolviam em ritmo dramático e acelerado. E foram aqueles jovens inconformistas do Dror que tomaram para si a vanguarda dessa ação, com a decisão corajosa, doloro sa, responsável e consciente de abandonar os estudos e se ocuparem integralmente com a aliá para Israel.

Hoje, o fruto dessa decisão, Bror Chail, permanece real e visível ao lado da estrada que acompanha a fronteira da faixa de Gaza – o conturbado território muito citado pela frequente atividade do terror dele lançado.

Já não era mais o kibuts que eles imaginavam e queriam povoar como pioneiros de uma nova sociedade, mas sim

um marco no panorama rural do país: com o sacrifício de muitos dos princípios que orientaram os seus começos. O kibuts sobreviveu crises e dificuldades, e conseguiu atrair novos moradores e restituir filhos de veteranos, que o ha viam abandonado.

O caminho que liga a estrada principal ao kibuts sobe em aclive moderado até uma elevação, onde se encontra o cemitério: este é o modesto, austero panteão dos jovens da quela longínqua aventura. Daqui se descortina o amplo vale, onde muitos deles aplicaram os talentos que a “Lapa” encaminhou para outros rumos, como lavradores e perso nagens da renovação do homem judeu: uma afirmação que ao gosto de alguns pode ter o sabor de convencionais slo gans da propaganda sionista, mas que coloca o quadro sur realista daquela reunião numa moldura de realização ver dadeira e de íntimo, profundo sentido.

Tel Aviv, Agosto de 2022 ***

Oh!, pobre bandeira

Lembro-me bem de como, nos idos anos 1950, acon teceu a primeira visita ao Brasil do então Ministro do Exterior do recém-nascido Estado de Israel, Moshe Sharet. Na ocasião, eu, jovem estudante em São Paulo, andando pelo centro da cidade, atravessei ida e volta algu mas vezes o Viaduto do Chá, para observar repetidamente a bandeira branco-azul que, do alto do Hotel Esplana da, onde se hospedava o Ministro, tremulava ao vento, despertando em mim um sentido de orgulho e emoção – espécie de materialização das esperanças de todo judeu consciente naqueles anos.

Ainda naqueles mesmos anos, numa primeira volta à Italia em visita familiar depois da Guerra, ouvi de parentes que sobreviveram àquele triste capítulo o relato de como se depararam comovidos com os soldados de Érets Israel da Brigada Judaica do Exército Britânico que, ostentando a mesma bandeira com o Maguen David, restituíram a eles a confiança num futuro promissor, que o infame regime fas cista havia deles violado.

Depois, com a aliá para Israel, a despretensiosa mas dig na presença da bandeira em diferentes eventos e localidades no país constituía um símbolo e um estímulo para o

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progressivo entrosamento meu (e como o meu, o de tantos olim) na nova nação ju daica com solidário sentido de pertinência.

Este se manifestou com alívio e entu siasmo depois da Guerra dos Seis Dias, e novamente a bandeira dava expressão à sincera onda de patriótica satisfação que seguiu a surpreendente vitória.

Longas horas de estéril debate ao redor de desnecessárias disposições de caráter mais declarativo do que objetivo vêm ocupando a agenda do Legislativo.

Contudo, foi porém também o início de uma corrente místico-religiosa que buscou revestir essa vitória de uma roupagem de nacionalismo ferrenho e ra cista, partindo da incitação exaltada de supostos rabinos sobre as milícias dos novos ativistas da“kipá srugá (a típica kipá tecida com fio de crochê). Animados pela convicção de que a vitória militar era o retorno à divina promessa da Terra aos descendentes de Abraão, a bandeira se tornou, na mão deles, um instrumento de afirmação de sua agres siva ideologia de assentamento nos territórios palestinos ocupados.

Hoje, ela é presença obrigatória em constantes atos de provocação insolente e objeto de uma esquentada retórica nacionalista, de uma linguagem ofensiva e intolerante para com a população árabe, as minorias e coletividades “dife rentes”, e naturalmente “a esquerda”: nada de novo para quem conhece o mecanismo da propaganda fascista.

Os representantes na Knesset desta maléfica tendência, cuja inspiração vem do Rav Kahana (há anos assassinado em New York) e cujo defensor mais venenoso hoje é o deputado Itamar Ben Gvir, maquiavelicamente admitido no parlamento pela politicagem interesseira de Netanyahu, usam dessa retórica, definindo como “traidores” quem quer que expresse opiniões menos extremas quanto ao sim bolismo da flâmula ou ao uso de outras bandeiras por par te de grupos alheios ao patriotismo oficial, legitimamente permitidas dentro do quadro de liberdade de opinião: se jam a bandeira do movimento LGTB ou a da autoridade palestina (entidade reconhecida por Israel), bandeira com preensivelmente tida como espelho da identidade também sua pelos árabes israelenses, respeitosos embora de sua na tureza de cidadãos de Israel.

Longas horas de estéril debate ao redor de desnecessá rias disposições de caráter mais declarativo do que objetivo vêm ocupando a agenda do Legislativo, em detrimen to de decisões mais urgentes para o interesse público.

Veja-se por exemplo a “Lei da Nação”: buscando dar uma base “jurídica” a Israel como Estado Judaico, ela criou uma defi nição ofensiva e discriminatória para se tores minoritários da população. Depois de longos debates, a Knesset a aprovou, transformando uma situação de inócua realidade em instrumento de animosa opressão. Veja-se o constante uso da are na parlamentar para a defesa de obsoletas disposições religiosas que, em pleno século 21, ainda re gem a vida civil e a liberdade do indivíduo – como o regis tro de nascimento, casamento ou óbito, a conversão ao ju daísmo, a imposição da kasherut etc.

No que vem sendo apresentado como genuína de monstração da soberania israelense, já há alguns anos tem lugar o “desfile das bandeiras”, uma ruidosa marcha de ma nifestantes em que milhares de bandeiras usadas como es tandarte ou como vestimenta atravessam os bairros árabes de Jerusalém, acompanhadas por atos de provocação e hu milhação dos habitantes locais: uma inútil ameaça ao delicado equilíbrio entre os vários grupos da população, em desrespeito a costumes e hábitos de culto mantidos por acordos de status quo que não contradizem o controle israelense da vida pública, mas garantem liberdade religio sa, cultural, econômica etc. a todos os setores. É claro que tais provocações são estopins que podem atear o fogo da violência árabe, com potencial de inflamar todo o mundo muçulmano.

Oh, pobre bandeira! Perdeu sua inocente oficialidade, tornou-se propriedade de vontades opostas à original na tureza da experiência sionista: de liberdade, convivência, tolerância; de progresso e modernidade inspirada em con tinuidade cultural e desobrigada honesta tradição. Transformou-se em distintivo de oco “patriotismo”, que os portadores de visão liberal e moderada se envergonham de envergar.

Quando voltaremos a vê-la como límpido símbolo do inigualável fenômeno da verdadeira valorização humana contida no espírito de Israel?

Tel Aviv, Junho de 2022

ATID
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Harmonia ou cacofonia

Quarta -feira, 10:30 da manhã. O canal “Voz da Música” da Radio de Israel transmite na íntegra a Nona Sinfonia de Beethoven. O horá rio da transmissão não deixa de causar espanto para quem considera essa obra o cume da criação musical, que merece ser ouvida em condições de concentra ção espiritual, pouco provável em meio aos afazeres habituais de um dia de tra balho.

Mas se a Nona Sinfonia é aquela que mais estimula tal ordem de considerações, a música clássica em geral representa um refúgio muito almejado da crescente vulgaridade que vem se tornando denominador comum da vida pública em Israel.

Tais pensamentos, porém, desaparecem no exato mo mento dos primeiros acordes, e logo me deixo levar – pela enésima vez – pela audição cativante das melodias tão co nhecidas e amadas.

Sou ciente da reserva com que “connoisseurs” refinados concedem ver na “Coral” expressão de genialidade musi cal, mas acham que também obras “menores” ou exemplos de diferente caráter devem merecer igual medida de valor.

Não discuto nem discordo de tal opinião, nem tenho elementos de formação musical para polemizar sobre ela. Mas não me envergonho em afirmar que, para mim, não existe criação musical (e ouso dizer artística em geral) que encerre tão completamente os símbolos mais autênticos da condição humana, requisito essencial para a afirmação da obra de arte.

É sobre isso, e não sobre o simples prazer da repetida audição, que baseio minha inclinação quase “fanática” de interromper qualquer outra atividade ao ouvir as notas co nhecidas, acompanhando-as quanto possível de memória, e levando o pensamento para abstratos caminhos de iden tificação, seja ela estética, ética, filosófica ou psicológica.

Mas se a Nona Sinfonia é aquela que mais estimula tal ordem de considerações, a música clássica em geral repre senta um refúgio muito almejado da crescente vulgarida de que vem se tornando denominador comum da vida pú blica em Israel. A Orquestra Filarmônica de Israel é um oá sis de sanidade cultural em meio ao deserto dessa vulgari dade, e pode se contar entre os fatores que ainda garantem ao país prestígio na cena mundial.

A Knesset (onde parlamentares ignorantes e de discu tível estatura fazem uso constante de uma retórica

ofensiva e virulenta) transformou-se em arena de insultos e bate-bocas, exemplo negativo de comportamento civil. Os partidos só se preocupam com a populista e demagógica manu tenção de seus interesses; persiste nos debates e na mídia uma atmosfera pré-eleitoral, cheia de inamistosos confrontos que se tornaram uma constante na repetição das campanhas a que o país foi levado pela po lítica de Netanyahu.

E de reflexo verifica-se o baixo nível da imprensa e dos meios de comunicação, cúmplices na difusão de uma sub -cultura assentada em complexos de inferioridade e discri minação, provindos de um fundo étnico já de há muito injustificado.

Então a capacidade da Nona Sinfonia de transmitir pela música uma imagem do conflito inerente do ser hu mano – da luta entre o mal e o bem, a angústia e a alegria, o desespero e a esperança – reveste-se de uma concreta, material realidade, espelho da presente sociedade israelen se. E o gênio de Beethoven, que do fundo de sua surdez foi capaz de criar o mais eloquente documento de otimismo, parece nos dizer “façam orelhas surdas para a cacofo nia dessa ruidosa e violenta situação, voltem-se para a har monia de uma sociedade tolerante, aberta, livre de precon ceito, livre de extremismos religiosos ou nacionalistas, re ceptiva e capaz de modéstia frente a valores positivos da criatividade universal.

Será então que, também no plano do cotidiano is raelense, a sempre-nova sinfonia reassumirá o impulso vi tal que está na base de sua eternidade. E a genuína mile nar vocação do povo judeu voltará a ter em Israel seu ins trumento de realização.

Tel Aviv, Julho de 2022

Vittorio Corinaldi é engenheiro formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do kibuts Bror Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organiza ção dentro do movimento kibutsiano.

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O MUSEU JUDAICO DE BELO HORIZONTE

Agradecemos à revista Devarim, o honroso convite para incluirmos algumas “palavras” sobre o Museu Judaico de Belo Horizonte e expressarmos gratidão aos alicerces e pilares de nossa família. Esse Museu evidencia bem as origens gregas do templo das musas, onde era reverenciada a memória de quem, “por obras valerosas” pertencentes a todas as artes, destacaramse e conquistaram respeito.

OMuseu foi inaugurado em 20 de abril de 2022, como manifestação maior no centenário da primeira instituição judaica de Belo Horizon te, a União Israelita de Belo Horizonte (UIBH), que, em seu início, era constituída pela Sinagoga Beit Yakov e uma escola para ensino do judaísmo. Posteriormente, o seu espaço foi ampliado com a construção de um clube e um salão de festas, tornando-se o local de convivência das famílias em um ambiente judaico. Essa sinagoga foi o templo da nossa comunidade durante exatos 80 anos, quando foi desativada e permaneceu fechada por 20 anos, tendo sofrido as implacáveis consequências do abandono. Nesse período, a comunidade judaica distribuiu-se em outras duas sinagogas.

Para reverter a condição indigna imposta à primeira sinagoga de Belo Horizonte, o Instituto Histórico Israelita Mineiro (IHIMG) recuperou esse es paço precioso na forma de um Museu da comunidade judaica mineira, contan do a epopeia da nossa tradição e das nossas famílias. Nesse sentido, o Museu é composto por dois grandes espaços, o da Tradição e Cultura Judaicas e o de Arte e Cultura, este, para honrar os baluartes das origens de nossas famílias. Diferentemente de outros museus judaicos, cuja proposta é preservar a memó ria de nosso povo, como vítima de perseguições e injustiças ao longo da história, este Museu visa à superação das famílias judaicas no exílio, até a sua vinda a Belo Horizonte, onde reconstruíram as suas vidas e aqui permaneceram. No Espaço Tradição e Cultura Judaicas são mostradas as principais festas e cerimônias religiosas de nosso povo, com fotos das famílias em momentos mar cantes da comunidade, quadros, artefatos, instrumentos, mezuzot, candelabros,

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taças, livros (sidurim), discos, orações, plantas, alimentos e centenas de peças características de cada evento judaico. Há ainda um modelo, em dimensões naturais, de sinago ga, com o remanescente da Beit Yakov, simulando o seu funcionamento, com seu altar restaurado, o Aron Hakodesh (Arca Sagrada), contendo dois Sifrei Torá, além de diver sas outras torot e midrash completas, em miniatura, e uma cópia dos pergaminhos do Mar Morto. Para os visitantes não familiarizados com as vestimentas tradicionais usadas nas cerimônias judaicas, o museu expõe roupas e adornos destacados em manequins, bem como em dezenas de kipot, chapéus, taletim, tefilin, xales e lenços.

Já no Espaço Arte e Cultura estão objetos pessoais, fo tos, documentos e artefatos preservados durante muitas gerações das famílias de nossa comunidade. A similarida de das trajetórias familiares de todos os judeus do mun do torna a visita a esse espaço um resgate pessoal. Os ju deus reconhecem, nesse ambiente, muito de seus próprios antepassados, independentemente de sua origem. O Museu convida para conhecer, nesse espaço, a jornada da família de Jacques e Sonia Goldstein Petroianu, relatada em filmes, fotos, documentos e centenas de artefatos des de o século XIX.

Quando a Rússia foi invadida por Napoleão em 1812, os habitantes foram evacuados antes da chegada do exér cito francês. Todavia, os judeus da Ucrânia, que havia sido anexada à Rússia por Catarina II, foram abandonados à própria sorte. Sem possibilidade de fuga, as famílias que moravam próximo às fronteiras ocidentais entregaram suas crianças para barqueiros as atravessarem pelos rios frontei riços para serem adotadas por famílias judias dos países vi zinhos. Assim, muitos judeus da Europa Oriental têm ori gem ucraniana. Essa travessia lembra a origem do povo he breu (ivrim = do outro lado do rio), cujo nome remonta a Avraham ha-ivri (Abraão que atravessou desde o outro lado do rio), por Abraão ter cruzado o rio Jordão para en trar na terra de Canaã.

À semelhança bíblica, a origem de nossa família na Moldávia (Moldova), parte noroeste da Romênia, foi também hebraica, “do outro lado do rio”, mas o rio foi o Prut, que separa Moldova da Ucrânia. Esse afluente do Danúbio percorre Bessarábia e Bucovina, partes de Moldova, onde se concentrava a comunidade judaica

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A Saga da Família Goldstein Petroianu por Andy Petroianu Vista panorâmica de uma pequena parte do Espaço da Tradição e Cultura Judaicas, que ocupa a extremidade esquerda do Museu.

romena, em pequenos vilarejos, nos quais se falava russo e iídiche. A vida nessas aldeias foi fielmente descrita na maravilhosa obra lite rária de Shalom Aleichem, pinta da por Marc Chagall e, mais re centemente, encenada na peça e no filme “O violinista no telhado”.

Iancu, uma das crianças judias da Bessarábia, foi adotada pela fa mília Zuckerman. Percebendo as dificuldades de sua família adoti va, ele deixou a aldeia e aventu rou-se por Moldova até a cidade de Barlad, onde se tornou relo joeiro. Casou-se e teve três filhos, sendo Avram, o filho do meio, quem seguiu o ofício do pai. Seu talento sobressaiu e, em pouco tempo, passou a fabricar seus próprios relógios. Mudou-se para Ploiesti (Ploiéshti), uma cidade rica, em região petro leira, onde construiu uma fábrica de relógios, a única já existente na Romênia e, para agradar ao rei, denominou-a Coroana Romaniei (Coroa Romena). Um desses relógios do século XIX, com o nome A. Zuckermann gravado em seu cadran (mostrador) está exposto no Museu.

Vista do remanescente da Sinagoga Beit Yakov, com seu altar, onde estão cópias dos pergaminhos do Mar Morto, ao fundo, duas Arcas Sagradas, uma delas com dois rolos da Torá e, na parte direita do fundo, um manequim vestido para cerimônia, com quipá, talit e tefilim.

Guerra Mundial, quando Osias foi obrigado a servir no front. Por ser judeu, ele foi colocado à fren te nas batalhas e, durante três anos, sobreviveu em trincheiras. Ao final da guerra, retornou para casa com muitas medalhas por heroísmo, porém irreconhecível fisicamente. A relojoaria fechada, em uma cidade economicamente falida, fez com que a família Goldstein seguisse pelo mesmo rio Prut, atravessado por seus avós, até a cidade de Braila, às margens do Danúbio.

Avram casou-se com Minca e tiveram oito filhos, dois deles proeminentes. Iancu tornou-se um dos melhores dentistas da Romênia e desenvolveu muitas técnicas que ainda persistem em Odontologia. Por sua maestria, foi convidado para ser o dentista do “último faraó” do Egito, o rei Farouk, deposto por um golpe militar, o que obrigou Iancu e sua família a emigrarem para Israel, onde mante ve-se na profissão, continuada por seus filhos. O filho mais novo do Avram, Isaac, emigrou para a Austrália, onde se tornou banqueiro. Não teve filhos e, após a sua morte, por falta de herdeiros australianos, seu banco foi estatizado.

A primeira filha do Avram, Berta, apaixonou-se por um dos relojoeiros da fábrica de seu pai, Osias, e como dote de casamento, o casal recebeu uma casa com relojoaria na cidade natal de Avram, Barlad, para onde mudaram-se. Osias e Berta Goldstein, tiveram três filhos, Ana, Roza e Jac (Jacques). A “Relojoaria Osias Goldstein”, cuja foto está no Museu, trouxe-lhes o sustento até a Primeira

Nessa cidade, Solomon, ir mão de Berta, tornara-se um grande comerciante de roupas de pele e, com a sua ajuda, Osias abriu a “Relojoaria Cronos” (foto no Museu) junto com o seu filho Jacques, que abandonara a faculdade de Direito. Jacques havia herdado o talento da família e foi para Bucareste, onde se graduou Mestre Relojoeiro e Mestre Joalheiro especialista em brilhantes, cujos certificados estão no Museu junto com seus instru mentos profissionais. Jacques, que também era um exímio violinista, enriqueceu e comprou uma quadra de casas e lojas na rua principal de Braila, cujas fotos estão no Museu.

A tranquilidade dos Goldstein foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial. Com a entrada dos alemães na Romênia, recrudesceu o antissemitismo e todas as posses da família foram confiscadas pelo “bem da nação”. Osias, por ter sido herói de guerra, foi poupado, mas Jacques foi enviado para montar trilhos em estradas de ferro, frequen temente bombardeadas, tendo sobrevivido em trincheiras improvisadas e casas abandonadas.

Terminada a guerra, com a vitória, os russos invadiram a Romênia e usurparam todos os imóveis da família Goldstein, onde os oficiais russos, ladrões e assassinos bê bados uniformizados, passaram a morar. Jacques e seus pais foram confinados em apenas um quarto de uma das casas que antes lhes pertencia, com cozinha e banheiro co muns a serem utilizados em horários programados e com fila. O governo comunista, dominado pela Rússia, não lhes permitiu sequer o direito de reclamar, sob risco de

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serem assassinados, por terem sido ricos e, principalmente, por serem judeus.

Sob o regime comunista, Osias permaneceu relojoeiro em uma cooperativa, mas Jacques teve que buscar outra profissão que fosse de interesse da classe proletária. Assim, ele fez o curso superior e tornou-se oculista, cuja função era avaliar a visão e pres crever óculos, com lentes e arma ções confeccionadas por ele pró prio. Naquela época, os oftalmo logistas cuidavam de doenças oculares mais graves.

Durante um passeio em uma viagem para visitar a sua irmã Ana em Bucareste, encontraram uma amiga de Ana com sua prima Sonia. Os quatro foram a uma confeitaria, onde Jacques e Sonia apaixonaram-se à primeira vista e casaram-se em menos de três meses. Por constituírem uma nova família, tiveram direito a um outro quarto na mesma casa onde moravam os pais de Jacques. Depois de um ano, nasci e os três permanecemos no mesmo quarto com banheiro e cozinha comuns durante dez anos.

Vitrine do Espaço de Arte e Cultura, que mostra um relógio de bolso do século XIX, em cujo mostrador estão escritos a sua marca “Coroana Romaniei” e seu fabricante, A. Zuckermann, com sua foto no fundo à esquerda. Veja ainda, no fundo à direita, a foto de Jacques e à sua frente fotos de parte de sua casa e relojoaria-joalheria em Braila. Na frente à esquerda, está a foto da Relojoaria Osias Goldstein em Barlad e, diante dela, Ana com seu marido Artur.

ambiente de leitura e cultura ar tística. Coincidentemente, Sonia e Jacques tinham o mesmo sobrenome.

Com a entrada da Romênia na Segunda Guerra, a cidade que mais sofreu com a invasão alemã foi Iasi, onde os judeus foram ani quilados no tristemente famoso Pogrom de 1941, cuja documentação está no Museu. Em poucos dias, os judeus desapareceram de Iasi, a maior parte foi fuzilada, muitos foram enviados para os campos de concentração nos trens da morte e alguns poucos conse guiram escapar. Dentro do caos que se estabeleceu em Iasi, a famí lia de Sonia separou-se e cada um sobreviveu como pôde. Sonia, adolescente, foi para Bucareste em um vagão de trem, dentro de uma caixa de madeira cheia de galinhas. Na capital, abrigou-se dentro de um hospital, onde trabalhou no se tor de radiologia. Com o fim da guerra, ela continuou os seus estudos e formou-se contadora, assim como os seus dois avôs, tendo sido funcionária do maior jornal da Romênia.

O percurso da família de Sonia foi também uma epo peia. Aron Iosub tornou-se contador e mudou-se de uma aldeia da Bessarábia para Iasi (Iáshi), a capital de Moldova, cidade universitária e considerada a mais culta da Romênia. No século XIX, os proprietários de terras eram ricos e poderosos, mas analfabetos, e contratavam funcio nários que escrevessem e fizessem as contas necessárias às suas atividades. Aos judeus era proibida a posse de terras, sendo a eles permitida apenas a prestação de serviços. Aron destacou-se por ser um bom contador e saber nego ciar, tornando-se rico. Casou-se com Iohana e tiveram dez filhos. Eva, sua penúltima filha, era muito bonita e a mais letrada dos filhos. Ela passava os dias estudando, em uma época na qual o acesso à escola era vedado às mulhe res, principalmente judias. Já adolescente, frequentava a livraria de Moshe Iehuda (Míshu) Goldstein, jovem culto e violinista, pelo qual Eva se apaixonou. Casaram-se e tiveram uma filha, Sonia, que foi educada em um

Durante o Pogrom de Iasi, Eva e a sua irmã Rachel (Lala) embarcaram em um navio que seguia para Eretz Israel. Por sorte, não entraram no navio Struma, que, na mesma época, foi afundado pelos turcos, submissos aos alemães. Em Israel, Eva e Lala moraram em barracas e tra balharam em um kibuts. Depois, mudaram-se para Haifa. Míshu emigrou para Belo Horizonte, onde seu irmão Victor tinha uma loja de canetas na Praça Sete, centro da cidade. Para poder sair da Romênia, Míshu Goldstein teve de mudar seu nome para Iulius Laurian. Após um infarto fulminante do Victor, Míshu (Iulius) herdou a loja.

Em Braila, Jacques e Sonia Goldstein passavam por muitas dificuldades e, desde o início do casamento, tenta vam, sem sucesso, emigrar da Romênia. Para o regime co munista, ter sido rico significava exploração de proletários e, por punição, Jacques foi preso diversas vezes e tortura do. Sonia ia junto com ele e ficava na sala de espera da pri são dia e noite, sem ter sequer o direito de ir ao banheiro

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Cúpula da nova sinagoga de Berlim. dentro desse recinto da prisão. Graças ao amor dela e seu empenho pela soltura do Jacques, ele não foi assassinado na prisão. Nesse período, eu era cuidado por meus avós. Para facilitar a saída da Romênia, meus pais substituíram seu sobrenome por Petroianu, que havia sido criado por meus tios, para poderem trabalhar. Na época pós-guerra, havia poucos empregos e os judeus eram preteridos. Para sobreviverem, muitas famílias mudaram os sobrenomes ju daicos para nomes romenos, que também facilitavam a sua saída do país.

Após mais de dez anos de vida restrita, foi permitida a nossa saída da Romênia, com direito a apenas uma mala por pessoa. Emigramos sem documento, exceto os certificados de viagem expostos no Museu. Em Viena, fomos recebidos pela Hebrew Immigrant Aid Society (HIAS), organização filantrópica que auxiliava os emigrantes e nos abrigou em um hotel de periferia junto com outros desalojados. Após um mês buscando trabalho, as autoridades austríacas negaram a nossa permanência no país, com receio de meus pais se rem espiões. Fomos enviados em um trem para Gênova, onde a HIAS continuou a nos assistir. Permanecemos na Itália por dois meses, após os quais seríamos expulsos. Nesse período, a HIAS procurou por nossos parentes e encontrou o pai de minha mãe, em Belo Horizonte. Ele assumiu a res ponsabilidade por nós e conseguiu que as autoridades bra sileiras aceitassem a nossa imigração. Dessa forma, chega mos no Brasil em 30 de março de 1962.

Ficamos pouco tempo com o meu avô, que já havia conseguido contato com a sua esposa Eva e estava de partida para Haifa. A sua loja havia sido vendida. Com a aju da da HIAS e com poucas canetas que haviam sobrado da loja, começamos a nova vida nesta cidade maravilhosa. A comunidade judaica nos recebeu muito bem e nos orien tou em nossa sobrevivência. Meus pais abriram uma pe quena loja de canetas na entrada de um prédio e, em pou co tempo, ela tornou-se uma joalheria. Eu já havia com pletado o curso primário na Romênia e fui aceito durante poucos meses na Escola Theodor Herzl, que estava for mando a sua primeira turma, na qual fui incluído. Não tí nhamos dinheiro nem conhecíamos o idioma, mas estáva mos livres, em um país sem antissemitismo, para traba lharmos e estudarmos. Aos poucos, progredimos.

Honra teu pai e tua mãe

O Museu Judaico de Belo Horizonte dentro de um es paço que foi a primeira sinagoga de Minas Gerais possui características próprias ao exaltar o sucesso das famílias so breviventes de várias partes do mundo e que encontraram a paz nesta cidade. O clima excelente e a sua população acolhedora permitiram a essas famílias reconstruírem a vida e seus filhos terminarem no mesmo lugar onde nas ceram, ao contrário de seus antepassados. A anedota tris temente real do judeu errante, sempre com seu chapéu na cabeça por estar pronto para fugir, ficou no passado. A le veza das festas e das tradições judaicas alegres, junto com todos os artefatos que nos unem como povo, merecem a visita no espaço Tradição e Cultura Judaicas.

O único preceito da Bíblia que é indiscutível e respei tado por toda a humanidade, independentemente de reli gião, linha filosófica, posicionamento político, nacionali dade, classe social ou etnia, é o quinto mandamento da Lei Divina, ךמא תאו ךיבא תא דבכ, “honra teu pai e tua mãe”. Nesse sentido, o Espaço de Arte e Cultura permite à gera ção atual expressar sua gratidão pelo orgulho que nossos ancestrais, por sua integridade moral e dignidade, nos fa zem sentir. Cabe à nossa comunidade honrar, como tribu to muito merecido à sua memória, e trazer para dentro do Espaço de Arte e Cultura as nossas mães e os nossos pais, assim como sempre trouxemos em nossas orações Abraão, Isaac, Jacó, Saara, Rebeca, Raquel e Léa.

Andy Petroianu é Professor Titular do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Membro Titular da Academia MIneira de Medicina, Membro Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Pesquisador 1 do CNPq, Cidadão Honorário de Belo Horizonte, autor de 25 livros de medi cina e 574 artigos científicos.

Lucca Myara é marido, pai, padrasto e rabino da Congregação Israelita Mineira. Formado pelo Jewish Theological Seminary (NY), possui mestrado em Midrash e reconhecimento por excelência aca dêmica nessa área. Foi honrado como “Graduates who Inspire” ao término da sua formação.

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O CENTENÁRIO DE UM GRANDE HERÓI

Entrevista com Ruvik Rosenthal a respeito de Eliezer Ben-Yehuda

Ben-Yehuda é, talvez, o maior herói cultural do povo judeu dos últimos séculos, a tal ponto que é difícil encontrar uma cidade em Israel que não tenha uma rua, avenida ou praça com o seu nome.

Eliezer Ben-Yehuda, nascido Eliezer Yitzhak Perlman, em Lujki (atual Bielorrússia) em janeiro de 1858 e falecido em Jerusalém em dezembro de 1922 (há exatos cem anos) é um dos maiores heróis do Sionismo.

O Sionismo é um movimento político que, devido às circunstâncias, desenvolveu um forte braço militar. Portanto, a imagem de “herói sionis ta” remete a um militar, como Yossef Trumpeldor, ou a um político, como Theodor Herzl. Mas, antes de tudo, o Sionismo é um movimento cultural e Ben-Yehuda é, talvez, o maior herói cultural do povo judeu dos últimos sécu los, a tal ponto que é difícil encontrar uma cidade em Israel que não tenha uma rua, avenida ou praça com o seu nome.

Ele é o maior responsável pelo renascimento do hebraico e pela adoção dele como o idioma nacional do Estado de Israel. E isto foi fundamental para a cria ção e consolidação do Estado.

Todos os povos convivem com diversas visões políticas, ou seja, todos os povos são politicamente fragmentados. O que une o povo são seus bens cultu rais, sendo o idioma um dos elementos centrais das culturas.

Ben-Yehuda entendeu que um idioma comum era necessário para criar uma identidade única num povo que emergia de uma longa e vasta dispersão, onde havia criado uma série de socioletos (conjunto linguístico de um grupo ou es trato da sociedade, como iídiche, ladino, hakitia). As diferentes visões políti cas já seriam uma área de atrito constante, logo cumpria fortalecer a identida de judaica através de um idioma comum.

Este idioma teria que ser o hebraico, o idioma ancestral do povo judeu. Ao

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Miriam Gottlieb Treistman e Raul Cesar Gottlieb

final do século 19, o hebraico era utilizado principalmente na esfera religiosa e também, de forma limitada, em uso mundano. Contudo, ele não era um idioma capaz de aten der todas as necessidades de comunicação de uma socieda de. E Ben-Yehuda postulou, não sem ter encontrado resis tências, que o hebraico teria que ser revitalizado para cum prir esse papel. É sua a famosa citação: “o renascimento do povo de Israel acontecerá na terra de Israel e na língua he braica, pois não há nação sem uma língua comum.”

Para celebrar de forma condigna o centenário de seu fa lecimento, a Devarim entrevistou Ruvik Rosenthal, ex-cha ver kibuts, jornalista, escritor e autor premiado, linguista, presidente da Associação de Pesquisa da Língua e membro da Academia da Língua Hebraica, o organismo governa mental israelense que cuida do desenvolvimento e da manutenção da língua hebraica – o תירבע (ivrit).

Ruvik nasceu em Tel Aviv e no começo de sua vida adul ta se mudou para um kibuts onde viveu por 24 anos. Ele diz que desde os 10 anos já era jornalista e escritor. Ele se gra duou em linguística e sua tese de doutorado focou em como o exército é formado através das palavras lá utilizadas.

Depois dos estudos, e por um longo tempo, ele não atuou na área de linguística. Mas ao sair do kibuts, foi con tratado pelo jornal Maariv. Um dia, depois de alguns anos trabalhando no jornal, seu editor lhe pediu que fizesse um texto semanal a respeito do hebraico e assim nasceu a co luna Hazira Haleshonit, A Arena Linguística. A partir daí, o hebraico passou a ser o interesse central de sua vida in telectual. Até o momento da nossa entrevista, ele havia publicado 24 livros, grande parte em torno do uso e da his tória da língua.

Perguntamos a Ruvik, qual foi o processo adotado por Ben-Yehuda para revitalizar o hebraico. Ele nos contou que Ben-Yehuda foi a força motriz de sete iniciativas dramáticas, conforme seguem:

Os maskilim, pessoas que participaram da hascal, escreveram peças de literatura e de jornalismo com o hebraico das escrituras, porém eles não usavam o hebraico como língua falada. Eles faziam jornalismo e literatura não religiosa em hebraico, mas falavam em alemão.

Ben-Yehuda compreendeu que não bastava escrever, era necessário falar, usar palavras (criar palavras quando elas não existiam), reformar a gramática, com o objetivo de capacitar o hebraico a descrever a vida moderna. Em to dos seus primeiros artigos esta necessidade está claramen te explicitada.

Instituições

Em paralelo, ele entendeu que era necessário criar es truturas que dessem corpo à ideologia. Assim, ele estabe leceu em 1890 o Vaad Halashon, o Conselho da Língua. A comunidade judaica em Érets Israel era mínima e sofria imensos problemas econômicos, mas, mesmo assim, a ins tituição foi criada.

Em 1953, o governo do Estado de Israel mudou o seu nome para Akadêmia Lalashon Haivrit, Academia da lín gua hebraica, curiosamente trocando um nome hebraico Vaad para um nome estrangeiro Academia. O motivo da troca do nome foi dar um ar científico e profissional à instituição, que até então era composta apenas por voluntá rios. Ao se transformar numa instituição governamental, ela ganhou um regulamento legal, além de responsabilidades e métodos bem definidos.

Hoje em dia, ela é composta por um pequeno grupo de profissionais, apoiado por um corpo bem maior de vo luntários. Há 15 anos, eu faço parte, como voluntário, de uma das comissões: a de “renovação das palavras”.

Ideologia

A primeira iniciativa de Ben-Yehuda foi a implantação da ideologia. Ele foi o primeiro a propor que o idioma do Sionismo deveria ser o hebraico. O Sionismo político nas ceu na Europa Central no final do século 19, como um produto da hazcalá, o Iluminismo judaico, e o idioma da quelas pessoas era o alemão.

Por um lado, nós recebemos demandas da população, de pessoas isoladas ou de grupos de interesse, que querem palavras novas para expressar algo. Por exemplo: recente mente recebemos uma demanda dos profissionais da área de fabricação de chocolates. Eles queriam uma palavra para a sua profissão, tal como “chocolatier” em francês. Nós decidimos por chocoladai, a exemplo de jornalista que é itonai [iton é jornal em hebraico]. Mas não há garantia que a palavra que criamos vá vingar. Se o grupo não gos tar da nossa solução e optar por continuar usando “choco latier” ninguém poderá impedir.

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A outra forma de atuação da comissão não depende de demanda da população. Nós mesmos criamos as palavras ao perceber que uma área de atividade usa apenas palavras estrangeiras. Por exemplo, eu, que sou jornalista, propus a criação de um dicionário para a comunicação jornalística, o mass media, e trabalhamos três anos nisso.

Hoje, a Academia tem mais de 300 dicionários especí ficos para as mais diversas áreas de atividade. Esta segunda forma de atuação é idêntica à que o antigo Vaad Halashon exerceu no tempo do Ben-Yehuda.

Educação

Tendo fundamentado a ideologia e uma estrutura para colocá-la em prática, Ben-Yehuda partiu para criar víncu los com os educadores, instando com eles que ensinassem hebraico em hebraico, algo que não acontecia há milênios. Ele construiu, com Yossef Bachar, um sefaradi de Jerusalém, uma escola com este programa.

Os sefaradim de Jerusalém caminharam com BenYehuda, enquanto que os charedim [ultraortodoxos] de Jerusalém queriam acabar com ele. A primeira vítima do renascimento do hebraico é o cachorro da família de BenYehuda. Seu filho, Itamar Ben-Avi, foi ao correio com o cachorro e alguns charedim atacaram o garoto. Eles não feriram o menino, mas mataram o cachorro a pauladas.

Até hoje muitos ensinam hebraico em inglês ou em português. Mas na visão de Ben-Yehuda, o hebraico só seria internalizado se fosse usado com exclusividade em to das as atividades da sociedade, e isso exigia que o hebraico fosse o único idioma usado em educação, inclusive na aprendizagem do próprio idioma.

Jornalismo

Ben-Yehuda não criou o jornalismo em hebraico, mas foi ele quem trouxe o jornalismo em hebraico para Érets Israel. Ele criou jornais e entendeu que o jornalismo serve a um propósito mais amplo do que apenas a divulgação de informações e ideias.

A primeira edição do jornal Hatsvi [a gazela] foi im pressa em outubro de 1884, como um jornal semanal que evoluiu para um jornal diário. Ele revolucionou a

imprensa da comunidade judaica de Érets Israel por intro duzir assuntos seculares e culturais não religiosos. O jor nal ganhou um grande impulso depois que seu filho Itamar Ben-Avi assumiu a direção e implantou técnicas modernas de comunicação. Em 1914, o jornal foi fechado por ordem do governo otomano, na censura promovida durante a Primeira Guerra Mundial.

Pronúncia

Houve também o grande embate. Como falar? Com a pronúncia sefaradi ou com a pronúncia ashkenazi?

Esta questão tem origem no fato de que não há evidên cias sobre como era a pronúncia original, dos tempos bí blicos ou talmúdicos, que pudesse ser usada como padrão. O hebraico é escrito sem as vogais, seu alfabeto é compos to por 22 letras, todas elas consoantes. O leitor do

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hebraico reconhece a palavra por suas consoantes e aplica a vocalização confor me a tradição que recebeu. Assim, a pro núncia depende dos costumes das gera ções anteriores.

Contudo, havia mais de uma tradi ção! Grupos diferentes usavam tradições diferentes, o que não era benéfico à coe são do povo, o objetivo maior de Ben-Yehuda.

O desenvolvimento de várias tradi ções é natural numa sociedade que, após a dispersão provocada pela perda de sua soberania política, nunca mais foi hierar quizada em torno de um centro único.

O Sionismo é, antes de qualquer outra coisa, a mais nova construção cultural do multimilenar povo judeu.

E Ben-Yehuda é um dos elementos fundacionais desta nova construção. Seu centenário merece ser muito celebrado.

Como não havia um “certo” ou um “errado” no qual se basear, Ben-Yehuda acabou fazendo sua escolha pela pronúncia sefaradi por um critério que até hoje não foi desvendado. Existem al gumas histórias que tentam explicar os motivos da esco lha, mas eu penso que nenhuma delas é verdadeira.

Penso que Ben-Yehuda escolheu o sefaradi porque Érets Israel se situa no Oriente Médio, porque o hebraico é uma língua semita, e sua intuição julgou ser melhor fi car próximo das culturas vizinhas. Não que a vocalização do hebraico sefaradi seja igual ao árabe, mas ela é mais próxima ao árabe que o hebraico ashkenazi.

Não se pode omitir o fato de que, quando Ben-Yehuda chegou em Jerusalém, apenas a comunidade sefaradi queria falar com ele em hebraico. Os ashkenazim considera vam que o hebraico era lashon kodesh [língua sagrada] e não podia ser usada para assuntos mundanos.

Ao mesmo tempo, Ben-Yehuda fez aliá com Bialik e Tchernichovsky [dois grandes escritores], que falavam com a pronúncia ashkenazi. Ou seja, a simpatia pode não ter tido um papel em sua escolha.

Uma curiosidade com respeito à vocalização “correta” do hebraico é que esse embate é milenar. Durante os tem pos talmúdicos surgiram três diferentes escolas de vocali zação: a de Érets Israel (Eretsisraeli), a da Babilônia (Bavli) e a de Tiberíades (Tabrani), desenvolvida nesta cidade, que fica à margem do lago Kineret [Mar da Galileia]. Essas três escolas combatiam entre si, cada uma querendo que sua tradição prevalecesse.

Finalmente no século 10 da era comum, num

processo do qual não temos muitas refe rências, a escola Tabrani, dos massoretas, prevaleceu. Era a vocalização mais com plexa e também a mais precisa. O sistema de vocalização representa as vogais atra vés de pontos e traços sob, no meio e so bre as letras, e por isto foi chamado de nikud [palavra derivada de nekudá que, em hebraico, significa ponto; em portu guês, muitos denominam o nikud de “sinais massoréticos].

Contudo, tanto o ashkenazi como o sefaradi usam o mesmo nikud e são evo luções da escola Tabrani. Portanto, não existem o “certo” e o “errado” neste caso. A forma de falar é uma opção do povo e neste momento histórico, o hebraico cor rente em Israel segue a versão sefaradi pela escolha pessoal de Ben-Yehuda.

Renovação

Diferente do que muitos imaginam, Ben-Yehuda não foi a única pessoa a inventar palavras e nem foi quem mais inventou palavras. O próprio filho dele, Itamar, trouxe mais palavras novas do que ele. Mas foi ele quem definiu o método para a criação de novas palavras.

A principal regra, que se mantém firme até hoje, é que nunca se cria uma palavra do nada. As palavras não po dem nascer do zero, do mesmo modo como os famosos radicais de três letras do hebraico não podem nascer de uma nova sequência aleatória de letras. Todas as palavras devem ter um embasamento em palavras que já existem. Ele também definiu que o primeiro lugar em que deve mos buscar palavras é a Torá [o Pentatêuco]. O texto da Torá deve ser a nossa maior fonte de inspiração para a criação de palavras. Dessa forma, diversas palavras da Torá que já estavam em desuso ou que nós não sabemos exata mente o que dizem, ganharam novos significados no vocabulário dos israelenses.

Acontece que na maior parte das vezes, não se encon trava na Torá uma opção relevante para o termo, então o segundo caminho era pegar um dos 1.500 radicais do Tanach [a Bíblia Hebraica] ou do Talmud [a literatura

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rabínica] e colocar dentro de uma das fôrmas do hebraico (veja o que é fôrma no box anexo). Esse foi o caminho mais usado na renovação da língua e é, até hoje, o princi pal modo de criação de novas palavras pela Academia da Língua Hebraica.

Um exemplo que ilustra esse método é o nome das co res que seguem uma fôrma encontrada no Tanach: verme lho é adom, amarelo é tsahov e preto é shachor. Todas elas têm o mesmo formato: x-A-x-O-x. Os radicais mudam, mas as vogais são sempre A-O. Contudo, existem cores que não estão descritas no Tanach, tais como cinza, lilás e laranja. Era preciso criar palavras para elas! E aí entrou a rica e muito informada inventividade de Ben-Yehuda. Ele reparou que a palavra para a cor cinza em árabe vem das cinzas do fogo [observem que isso também acontece em português: cinza e cinzas]. Ele pegou o radical da palavra que significa cinzas em hebraico, efer, e a colocou dentro da fôrma das cores e pronto! Nasceu o nome da cor cin za: afor. A cor lilás, sagol, vem do nome da flor violeta: si gal. A cor laranja vem de uma expressão do livro Shir Hashirim do Tanach, que descreve uma pessoa cuja cabe ça é “uma mancha dourada” (ketem paz). Ben-Yehuda imaginou que a pessoa tinha cabelos ruivos e daí nasceu o nome para a cor laranja: katom.

Dicionário

O último elemento que definiu como Ben-Yehuda se ria lembrado foi o seu maior trabalho, seu Opus Magnum: o dicionário!

É muito interessante a ideia de um líder que define pa lavras. Trata-se de um líder cultural e também político. Em Malta, por exemplo, o líder político foi a pessoa que escre veu o dicionário Maltês há algumas centenas de anos.

Ben-Yehuda resolveu que ia ler tudo o que já tinha sido escrito em hebraico até o momento. Ele passou longas horas nas bibliotecas lendo de tudo, menos interessa do pelos assuntos, mas sim em encontrar palavras.

Ele dedicou os dez últimos anos da sua vida à organização de um dicionário. Ele já estava muito doente, viveu apenas até os 64 anos de idade; sua fiel esposa, Hemda, foi uma figura muito significativa no processo. Ele não conse guiu terminar a obra, pois preferiu trabalhar sozinho – ele dizia que um dicionário se escreve sozinho, sem equipe.

Fechando a conversa

Ruvik conclui dizendo que Ben-Yehuda ganhou o tí tulo de “Recriador do Idioma Hebraico” com toda a jus tiça, apesar de que mesmo sem ele as coisas teriam acon tecido. Segundo Ruvik, a força do impulso histórico da quele momento teria provocado o renascimento do idio ma, ou seja, é o povo que cria os heróis e não o contrário. Ben-Yehuda foi a pessoa certa que, no momento certo, estava no local certo.

Mas essa feliz localização cobrou um preço amargo. A vida de Ben-Yehuda e de sua família não foi nada fácil. A insistência dele para que seus filhos só falassem hebraico trouxe imenso sofrimento às crianças pela dificuldade de socializar sem ter uma língua comum com as demais crianças da vizinhança. Os filhos eram zombados e perse guidos, como a história da morte do cachorro [contada acima] evidencia.

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Ruvik Rosenthal é ex-chaver kibuts, jornalista, escritor e autor premiado, linguista, presidente da Associação de Pesquisa da Língua e membro da Academia da Língua Hebraica

Proibidas

E não apenas os filhos sofreram, ele também suportou enormes doses de sofrimento pessoal. A primeira esposa faleceu de tubercu lose, deixando-o viúvo com cinco filhos pe quenos para criar. O último desejo dela foi que ele se casasse com sua irmã, o que ele obede ceu. Logo após a morte da esposa, três de seus cinco filhos morreram de disenteria num in tervalo de dez dias.

No entanto, como acontece com os heróis, ele superou tudo isso por conta da grandiosi dade da obra que seu ideal colocou diante dele, bem como pela felicidade de ter encon trado na segunda esposa a companheira ideal.

A entrevista transcorreu num clima de imensa simplicidade e simpatia, num agradá vel apartamento da rua Achad Haam em Tel Aviv, a poucos metros da praça que abriga tan to o imponente prédio do teatro Habima (li teralmente “o palco”) como o não menos im ponente prédio do Eichal Hatarbut (literal mente “o palácio da cultura”).

Achad Haam foi contemporâneo de BenYehuda e é considerado um dos fundadores do sionismo cultural. Foi impossível deixar de per ceber a conexão entre os personagens da entre vista, o nome da rua e os edifícios da praça. O Sionismo é, antes de qualquer outra coisa, a mais nova construção cultural do multimilenar povo judeu. E Ben-Yehuda é um dos elementos fundacionais desta nova construção. Seu cente nário merece ser muito celebrado.

Miriam Gottlieb Treistman é pedagoga, com pósgradução em ensino de hebraico para estrangeiros, e criadora do método “Hebraico Simples” que desen volve videoaulas para o aprendizado do hebraico por brasileiros.

Raul Cesar Gottlieb é engenheiro, diretor da revista Devarim; chair da UJR-AmLat (União do Judaísmo Reformista da América Latina), uma das regiões da WUPJ (World Union for Progressive Judaism) e pre sidente do IIFRR (Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista)

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de frequentar as escolas na Alemanha nazista, crianças judias aprendiam hebraico para imigração para a Palestina na escola fundada pela educadora Leonore Goldschmidt em Berlim. Cenas gravadas em 1937 e exibidas no Documentário “Goldschmidts Kinder” em 2017

Entenda a criação de novas palavras em hebraico

Conceito 1 – O

que é o radical

A grande maioria das palavras (verbos, substantivos e adjetivos) tem um radical de 3 consoantes. Este radical aponta para o grupo semântico (significado) ao qual a palavra pertence, formando uma família de palavras. Por exemplo, com o radical ב ת כ temos as palavras:

Conceito 2 – o que é a fôrma

Fôrmas são padrões de composição de palavras que pertencem a uma mesma categoria. Para perceber a fôrma, devemos nos atentar principalmente às vogais das palavras. Por exemplo, há uma forma para os nomes das ocupações, caracterizada pelas vogais A-A.

Cozinheirotabach

Em hebraico, há duas formas de criar palavras: a partir de radical e a partir de nome

Radical + Fôrma “a palavra a partir de radical”

Assim são formadas a grande maioria das palavras, inclusive todos os verbos. Por exemplo, para criar a palavra “restaurante”, os linguistas pegaram o radical ד ע ס (de seudá – refeição) e o colocaram na forma para os lugares: MI-A-A, compondo assim a palavra “Missadá” (ה ָד ָע ְס ִמ).

Outras palavras desta fôrma são:

Palavra + Sufixo “a palavra a partir de nome”

Algumas palavras não têm radical, ou porque são as únicas da família ou porque são estrangeiras ou por qualquer outro motivo. A partir de palavras completas, podemos simplesmente agregar o sufixo correto e formar uma nova palavra.

Por exemplo, o sufixo MI é característico de adjetivos, assim temos:

Esquerdistasmolani

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da
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יִנ ָל א ֹמ ְשׂ Direitista yemani יִנ ָמ Espiritual ruchani י ִנ ָח וּ ר Manual yadani יִ נ ָד ְי
ה ָב ָתּ ַכּ
escrever lirrtov ב ֹתּ ְכ ִל carta mirrtav ב ָתּ ְכ ִמ escrita ktivá ה ָבי ִת ְכּ endereçoktovet ת ֶב ֹתְ כּ reportagemkatavá
(a letra כ tem som de “rr”, com o ponto dentro tem som de “k”)
ח ָבּ ט Pintor tsabá ע ָבּ ַצ Cabelereirosapar ר ָפּ ַס Soldado chayal ל ָיּ ַח
Floriculturamishtalá ה ָל ָתּ ֶשּׁ ִמ
ה ָר ָט ְשׁ ִמ
ָה ְנ ִמ
Delegaciamishtará
Túnel min-hará ה ָר
Enfermariamirpaá ה ָא ָפּ ִמ

ACADEMIA JUDAICA: uma necessidade

Impacto da Academia

Judaica da CIP em seu primeiro ano: 15 Cursos 674 Inscrições 126 Horas aula 244 Alunos Média de 2,75 cursos por aluno Média de 45 inscritos por curso Professores do Brasil, Israel, Estados Unidos e México. Chavurot de advogados, médicos, psicólogos e de filosofia com um total de 278 inscritos. Treinamento de madrichim do Taglit

O povo do livro

Ser o povo do livro é uma definição que traz importantes implicações para os judeus. Ser o povo do livro talvez tenha sido a mais importante característica de diferenciação e particularidade desse povo e, certa mente, foi essencial para a criação de um DNA capaz de sobreviver por milênios, à prova de todas as possibilidades de destruição.

Esse povo foi o pioneiro em tornar a educação e o estudo obrigatórios, ain da nos tempos em que apenas a agricultura e o trabalho manual serviam de ele mentos para a subsistência humana. Numa época em que outras questões eram prioritárias, como a sobrevivência e a capacidade de desenvolver mecanismos de guerra e proteção de cada tribo, esse povo conseguiu fazer da educação um valor em si.

Nossos antepassados sempre tiveram um compromisso com a transmissão de textos e tradições adquiridos ao longo de muitos séculos e passados de gera ção em geração como parte de um convênio divino. Esse compromisso é a maior razão pela qual a predominância de judeus em todos os campos depen dentes de conhecimento e educação soa desproporcional em relação ao tamanho de seu povo.

Esse processo educacional evoluiu ao longo dos tempos: passou da exclusi vidade do núcleo familiar para maiores amplitudes, através das instituições de ensino que foram sendo criadas. Graças à prioridade atribuída pelas lideranças comunitárias à educação, tal processo se multiplicou em todos os cantos por

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Mario
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Religiosa Israelita–

onde judeus se espalharam – por vontade própria ou coagidos por forças externas.

Vale destacar que em momentos muito sensíveis e de ameaça de destruição total, os judeus não perderam o foco na questão educacional, como nos mostra o caso da conquista de Jerusalém pelos romanos há mais de dois mil anos. Conta a lenda que o rabino Yohanan Ben Zakai se encontrou com o general romano Vespasiano e disse que ele estava destinado a se tornar imperador de Roma. Com essa aproximação, Ben Zakai teria conseguido for mular um pedido para que a cidade de Yavne fosse pro tegida, permitindo assim a continuidade dos estudos da Torá. Teria sido esse um momento de salvação do judaís mo pela via da educação?

Tempos de desafios

Trazendo essa história rapidamente para o presente, temos um contexto bastante desafiador para a manuten ção da educação judaica como elemento central da vivên cia do povo judeu.

Neste começo do século XXI, vivemos talvez o me lhor momento histórico no que diz respeito à integração do nosso povo com os demais. Apesar da ainda existen te ameaça e agressão do antissemitismo, os judeus gozam de liberdade em todos os países que habitam e contam com o Estado de Israel livre e soberano como seu maior guardião nos tempos modernos.

Integrados às sociedades em que vivem com maior ou menor predominância, os judeus são bem aceitos e até admirados por sua contribuição ao bem geral da huma nidade e por sua participação nas ações sociais. São tam bém muitíssimo respeitados pela aten ção que dedicam ao tema da educação.

Porém, a sociedade contemporânea navega no bojo de uma onda tecnológi ca, para o bem e para o mal: a abundân cia de mídias e plataformas de comuni cação faz com que a concorrência pelo nosso tempo e a disputa pela nossa aten ção sejam elevados a patamares jamais vistos. Há uma infinidade de alternati vas e ofertas cada vez mais superficiais; a sociedade como um todo vai

gradativamente perdendo o interesse por conteúdos mais profundos e relevantes em termos históricos. Esse pro cesso afeta em igual medida a comunidade judaica.

Apesar desse contexto de superficialidade e consumo rápido, os progressos tecnológicos disponibilizam uma infinidade de caminhos para acessar o verdadeiro tesouro contido na história do povo judeu, seus textos canônicos, as biografias de seus personagens mais inte ressantes, suas contribuições para a filosofia e para ou tras religiões.

Analfabetismo judaico

Diante desse cenário, um dos principais desafios atuais dentro da nossa comunidade é a questão da ins trução ou, digamos, da alfabetização das gerações con temporâneas do povo judeu. Sem negar as vantagens da integração e das liberdades de escolha, constatamos que as maravilhas da contemporaneidade paradoxalmente acabam deixando em segundo plano a atenção ao tesou ro do judaísmo.

Para enfrentar esse círculo vicioso e fortalecer os elos de uma corrente milenar, a liderança da CIP (Congregação Israelita Paulista) concluiu que existe nesse cenário uma obrigação e uma oportunidade. Assim nasceu a Academia Judaica.

A Academia Judaica

A ideia da Academia Judaica é oferecer à comunidade e a seus simpatizantes um amplo cardápio de ofertas, seja qual for o grau de conhecimento ou interesse de cada um. A Academia está estruturada de acordo com três pilares:

Integrados às sociedades em que vivem com maior ou menor predominância, os judeus são bem aceitos e até admirados por sua contribuição ao bem geral da humanidade e por sua participação nas ações sociais.

1) Judaísmo como religião e tradição, dedi cado a explorar nosso tesouro através de seus textos sagrados e mais relevantes;

2) Israel e sionismo, dedicado à jornada do povo judeu pré e pós a criação do Estado de Israel;

3) Nação judaica (Jewish Peoplehood), dedi cado a acompanhar todas as etapas de uma história de conquistas, derrotas, desafios, lu tas e contribuições.

A Academia Judaica tem também

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importantes atributos essenciais para a realização deste propósito educacional abrangente: Tecnologia – é preciso aproveitar a evolução que as ferra mentas tecnológicas disponibilizam. Nesse sentido, a Academia adotou uma ferramenta de ensino à distância, que permite a criação de uma biblioteca de cursos. A ideia é formar uma base para a oferta de textos, recomendações bibliográficas, produção e distribuição de material informa tivo e educacional complementar, culminando com a cria ção de comunidades de interesses por temas específicos. Conexões internacionais – a Academia Judaica se propõe a oferecer os melhores conteúdos disponíveis no Brasil e no exterior. Para isso, importantes parcerias já foram esta belecidas com instituições de destaque, como a Tikvah Foundation de Nova York e outras que gradualmente vão sendo incorporadas, de Israel e dos Estados Unidos. Essas parcerias permitem o acesso a conteúdos e professores de primeira linha a nível mundial. Docentes locais – uma das mais gratas satisfações ao lon go da criação da Academia foi a constatação da existência de instituições acadêmicas no Brasil com áreas dedicadas a estudos judaicos. A exemplo do que existe na USP e na UFRJ, há outras doze instituições acadêmicas com núcleos de estudos judaicos. Metodologia – outro importante atributo a destacar é que a ideia da Academia é copiar o modelo judaico de estudar,

que ao longo dos tempos provou ser o mais eficaz. Os pro fessores são instruídos a preparar aulas bastante participa tivas, com equilíbrio entre exposição, debates e comparti lhamento de ideias e opiniões, de tal modo a permitir um aprendizado também através das relações entre os partici pantes e não apenas na relação professor/aluno. Fonte de formação e aperfeiçoamento profissional –uma importante constatação do diagnóstico sobre a edu cação judaica no Brasil é a inexistência de uma instituição local que permita o desenvolvimento e a reciclagem dos profissionais que atuam no setor. A Academia pretende ocupar esse espaço, servindo inclusive como base de incen tivo e valorização da carreira de educador judaico.

Marketing e alcance da Academia Judaica

Uma vez pensada a lógica de construção da Academia, bem como de seus pilares, restava ainda refletir sobre a questão de sua valorização pelo público-alvo e, evidente mente, sobre como cuidar da divulgação e do marketing, de modo a equilibrar demanda e oferta.

Conforme descrevemos um pouco acima, a vida con temporânea oferece uma infinidade de alternativas que competem pelo tempo e atenção de todos. Por isso, há que se descobrir uma boa razão para atribuir prioridade ao tema judaico – lembrando que aqui estamos falando de judaísmo em um sentido muito mais amplo do que apenas religioso; estamos tratando de um país, Israel, com todas as suas nuances e impactos geopolíticos desde antes mesmo de sua criação, e também de filosofias, biografias, textos, histórias e conceitos judaicos, tanto modernos como antigos.

Para descobrir e sensibilizar o lado da demanda, fomos buscar soluções em nossas próprias fontes.

As chavurot

Um conceito que existe desde os primórdios da educação judaica é o de estudo em grupos, as chamadas chavurot.

Entre os mais ocupados e com menos disponibilidade de tempo para o judaísmo estão os profissionais liberais e os executivos – demandados acima de seus limites de tem po e em constante batalha pelo equilíbrio entre demandas profissionais, pessoais e familiares.

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A proposta das chavurot se encaixa perfeitamente nesse contexto, já que permite que através de reuniões de grupos de estudos da Academia Judaica os profissionais conversem sobre temas que contemplam ao mesmo tempo as fontes ju daicas e seus campos de atuação profissional.

As chavurot das áreas de Direito, Medicina, Filosofia, Psicologia e Escrita foram as primeiras já implantadas e ti veram boa participação e avaliação.

O Taglit

O projeto de maior impacto neste século na questão de conexão com o judaísmo tem sido o Taglit, Birthright. Por volta de 2001, lideranças judaicas norte-americanas tiveram a ideia de oferecer uma viagem de dez dias a Israel como um direito das jovens gerações de conhecerem um pouco de suas raízes. A ideia é que a viagem possa funcionar como um despertar de in teresses a serem aprofundados posteriormente. O sucesso des se projeto pode ser medido pelo expressivo número de partici pantes: ao longo de vinte anos, do Brasil já participaram mais de dez mil pessoas, e do mundo inteiro, mais de seiscentas mil.

A proposta da Academia Judaica é usar sua plataforma para a preparação prévia dos participantes, bem como dos madrichim, e também oferecer no retorno uma excelente op ção aos que se interessarem por um aprofundamento da ex periência vivenciada em Israel. Isso poderá também ser estendido aos familiares dos participantes, no sentido de am pliar seus conhecimentos sobre o judaísmo.

As escolas judaicas

Para as escolas, além de oferecer o aprimoramento de professores, a Academia Judaica possibilita aos pais de alunos o acesso a seu conteúdo, permitindo assim uma ampliação e extensão de conhecimentos a todo o círculo familiar.

Comunidades menores

Comunidades brasileiras menores, que até então lidavam com um desafio ainda maior de acesso a material e a profes sores, podem agora contar também com a Academia Judaica como sua fonte de acesso à sabedoria milenar judaica.

Curadoria

Para o desafio de selecionar temas, professores e fontes, a Academia Judaica conta com um comitê de curadoria, formado por professores e especialistas.

O tesouro

O propósito da Academia Judaica é bastante ambicio so e também essencial, dada a sua relevância e potencial de impacto no tema mais sensível e destacado do povo do livro. A história do povo judeu, os périplos da nação ju daica através do tempos e os desafios e realizações do Estado de Israel são fontes fascinantes de uma sabedoria que precisa ser oferecida com qualidade, tecnologia, me todologia e conteúdo.

Não precisamos de investimentos em tijolos e constru ções – a tecnologia moderna permite viabilizar a propos ta da Academia Judaica sem a necessidade de investimen tos pesados em infraestrutura –, por isso todos os recursos estão sendo alocados ao acesso às melhores fontes de con teúdo e processo de ensino.

Precisamos, sim, obter sucesso na adesão e recepção dessa ideia por parte dos membros de nossa comunidade e por todos aqueles que simpatizam e se interessam pelos temas judaicos. Temos plena convicção de que o judaís mo, em todas as suas faces, oferece perspectivas de apren dizado e engrandecimento pessoal de muita relevância e impacto.

Costumamos afirmar que trata-se de um tesouro talvez meio (ou muito) escondido em tempos modernos, mas cujo acesso e disponibilidade configuram uma oportuni dade e uma obrigação. Assim, todos aqueles que são cons cientes de que esse tesouro só chegou até os dias de hoje porque muitas gerações passadas trabalharam para isso de veriam incluir em sua vida esses ensinamentos tão caros ao nosso povo. Cabe à nossa geração fazer a sua parte para que essa corrente permaneça eterna e vibrante!

Mario Fleck é presidente da CIP – Congregação Israelita Paulista, idealizador da Academia Judaica e um apaixonado estudante eter no de judaísmo.

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Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– 39 Um projeto da CIP para a comunidade judaica brasileira Conteúdos inovadores e excelência metodológica com o melhor da educação judaica continuada. • Cursos interativos de curta duração • Comunidades de aprendizagem • Eventos, rodas de conversa e aulas abertas academiajudaica.org | @academiajudaica academia@cip.org.br | �� ��������� �ramal ������
Em busca de uma pousada mais estável, Bernanos percorreu Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, e as mineiras Pirapora, Juiz de Fora e, finalmente, Barbacena, onde se fixou

A GUINADA HISTÓRICA DE GEORGES BERNANOS

Parece difícil entender a tortuosa evolução do pensamento e da ação do grande escritor e refugiado do nazismo no Brasil Georges Bernanos, de católico fundamentalista de extrema direita, monarquista e antis semita militante das primeiras décadas do século 20 para batalhador e tribuno, sempre católico acima de tudo, mas antifascista e simpático aos judeus a partir dos anos 1930. Nascido em Paris em 1888, militou desde cedo nos Camelots du Roi (Propagandistas do Rei), grupo monarquista responsável pela venda dos jornais do baluarte da direita no país, a Action Française (Ação Francesa), encabeçada por Charles Maurras (1868-1952), antissemita de gran de influência.

No caldo de cultura dessa vertente política entravam o socialismo proudho niano (que Marx chamava de utópico), o monarquismo, a hostilidade ao capi talismo liberal e o corporativismo católico. Seus adeptos advogavam que os ju deus franceses não tivessem a nacionalidade do país, como “os indígenas de nos sas colônias” e que fossem excluídos das funções públicas.

O antissemitismo possuía uma velha história na França. Voltaire expres sou restrições aos judeus, os socialistas Proudhon e Fourier igualmente. A der rota diante da Prússia em 1870 criou um clima de chauvinismo que favore ceu o ódio racial. “Por volta de 1900 o antissemitismo era claramente um movimento internacional no qual o ódio aos judeus se tornou a premissa unifi cadora para grupos tão díspares e opostos como os anti-Dreyfus e os naciona listas da Alemanha, os mesmos para os quais Dreyfus era acusado de espionar. Judeus eram identificados nas maiores capitais europeias como os mais mo dernos, críticos e cosmopolitas supranacionais, e portanto a força cultural que

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Israel Beloch Georges Bernanos Unknown authorPublic domain / Wikimedia Commons

as novas ideologias de extrema direita estavam tentando destruir.”1

O que jogou gasolina na fogueira foi o rumoroso caso em que o capitão Alfred Dreyfus, um dos poucos oficiais judeus do exército francês, se viu acusado de es pionagem em favor dos alemães e conde nado em 1894, provocando verdadeiro racha na sociedade francesa. Expulso das forças armadas, degredado na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, permaneceu preso muitos anos até ser inocentado de finitivamente em 1906. O Caso Dreyfus forneceu ao jornalista austríaco Theodor Herzl o embasa mento para a criação do sionismo, o movimento que se propôs a criar um lar específico para os judeus, no qual eles estivessem livres de perseguições e preconceitos.

Suas ideias seduziram, chocaram ou escandalizaram os contemporâneos, intelectuais, políticos e católicos, mas sobretudo esses o acusaram de incoerente e contraditório.

antijudaica. Déroulède, militar e político, comandou a barulhenta Liga dos Patriotas, vanguarda antidreyfusard. A partir desses personagens, o antissemitis mo deixou marcas profundas na socieda de francesa, que se estendem até o presen te com Jean-Marie e Marine Le Pen. Aos vinte anos, Bernanos se definia como anarquista, monarquista, socialista e cristão, adepto da estranha salada tem perada pelo guru Maurras. Com 24 anos, engajou-se com alguns colegas numa aventura armada visando à restauração da monarquia portuguesa, que havia sido derrubada dois anos antes, em 1910.

Charles Maurras, o mentor do jovem Bernanos, foi um dos maestros do coro anti-Dreyfus. “O partido de Dreyfus inteiro merecia ser fuzilado como insurgente”, escreveu a Maurice Barrès2 em 1898. Qualificou o oficial alsaciano de traidor judeu que merecia “doze balas que lhe ensinarão, enfim, a arte de não mais trair (…) este país que o hospe dou”.3 Apesar de antigermânico, Maurras apoiou o regime de Vichy – o governo “autônomo” instalado em parte da França durante a ocupação nazista – e sua legislação antissemita, além de defender a execução dos membros da Resistência. Preso na libertação da França, Maurras foi condenado à prisão perpétua e à degradação nacional. Ficou célebre o seu comentário na ocasião: “É a revanche de Dreyfus.”

Edouard Drumont e Paul Déroulède foram outros dois propagandistas antissemitas que floresceram em torno do explosivo caso. Drumont publicou La France juive (A França judia), considerado o livro antissemita mais bem-sucedido da história, e fundou em 1896 o jornal La Libre Parole (A Palavra Livre), um marco da propaganda

1 Encyclopaedia Judaica. 4ª ed., Jerusalem, Keter Publishing House, 1978, vol. 3, pg. 126. Trad. nossa.

2 Maurice Barrès (1862-1923), jornalista, escritor e político, ferrenho adversário de Dreyfus . “Que Dreyfus é culpado, eu deduzo não dos fatos em si mas da sua raça.”, afirmou. Na Primeira Guerra Mundial foi um belicista inflamado, o que lhe valeu o epíteto de “rossignol des carnages” (rouxinol das carnificinas).

3 O clima da época foi admiravelmente retratado pelo escritor Octave Mirbeau, ar doroso partidário de Dreyfus, no romance Diário de uma camareira, lançado em 1900. Ver a edição brasileira, tradução de Mateus Kacowicz: Rio de Janeiro, Xenon, 2016.

Já em 1919, descontente com os rumos tomados pela Ação Francesa após a Primeira Guerra Mundial, endereça ra a Maurras uma carta de demissão e iniciara um tortuoso processo de afastamento da extrema-direita. O rompimen to definitivo só se deu em 1932 ao ser repreendido pelo che fe por ter publicado um artigo no jornal liberal Le Figaro.4

Desligado de seu núcleo político, em 1934 transferiu-se com a família para a ilha espanhola de Maiorca, onde per maneceu até 1937 e presenciou as etapas iniciais da Guerra Civil que assolou o país ibérico (1936-1939). Horrorizado com os sangrentos combates e a crueldade da repressão franquista contra os adversários republicanos e, mais ainda, com a conivência da hierarquia católica diante da brutalidade das chacinas e assassinatos, abandonou o território espanhol e fez um balanço de sua posição crítica no livro Os grandes ce mitérios sob a Lua, marco de sua translação política. Há, no entanto, quem o considere incoerente: “Suas ideias, segun do Albouy5, seduziram, chocaram ou escandalizaram os contemporâneos, intelectuais, políticos e católicos, mas so bretudo esses o acusaram de incoerente e contraditório: for mado pelo antissemitismo social de Drumont, ele conde nará o antissemitismo hitleriano; defensor da Ação Francesa, ele a abandonará; ele se coloca de início a favor da subleva ção na Espanha [o levante franquista], depois fica contra;

4 Em 1936, anos depois de Bernanos ter rompido com a organização, a Action Française e os Camelots du Roi cometeram um atentado contra o judeu Léon Blum, deputado socialista, ferindo-o gravemente. As duas organizações foram dis solvidas em consequência do crime e Maurras ficou 8 meses preso. No entanto, em 1938, ele foi eleito para a Academia Francesa, correspondente à nossa Academia Brasileira de Letras.

5 S. Albouy. Bernanos et la Politique. Toulouse, Ed. Prevat, 1980.

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ele é um católico que critica a Igreja. Parece, enfim, que Bernanos bascula de um campo a outro: é o personagem instável e incoerente que os adversários cobriram de sarcas mos ou o modelo de continuidade política que ainda veneram os seus admiradores (…)?”6

Bem antes, seu livro Sob o sol de Satã (1926), um po deroso estudo sobre o misticismo e o satanismo, já havia alcançado grande repercussão e influenciado toda uma ge ração de intelectuais católicos. Em 1936 viu a consagração literária ao ganhar o grande prêmio de romance da Academia Francesa com Diário de um pároco de aldeia.

Intoxicado pelo clima político europeu e enojado com o que presenciara na Espanha, resolveu comandar um gru po de migrantes ao Paraguai, onde sonhava encontrar o seu Eldorado. Desembarcou no Rio de Janeiro e rumou para a nação guarani em agosto de 1938, mas em poucos dias, de siludido com a realidade social e a aspereza do clima, retor nou logo ao Brasil. Vinha com a mulher e os seis filhos, dois dos quais, as filhas Chantal e Claude, lhe deram ao todo dez netos brasileiros.

6

p. 33-43. Tradução nossa.

Hospedou-se em Itaipava, distrito de Petrópolis, onde foi apresentado pelo intelectual católico Alceu Amoroso Lima a Virgílio de Mello Franco, político que tivera um destacado papel na Revolução de 1930 e que se tornará um amigo decisivo na sua temporada brasileira. Procurando uma pousada mais estável, percorreu Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, e as mineiras Pirapora, Juiz de Fora e fi nalmente Barbacena, onde se fixou.

Nesta última, foi-lhe indicada uma fazenda para se es tabelecer e desenvolver atividades rurais, como era de seu desejo, mas achou fraca a propriedade e já ia desistindo. Ao tomar conhecimento, porém, de que o pedaço de ter ra se chamava Cruz das Almas, seu profundo cristianismo falou mais alto: resolveu ficar e adquiriu o lote, onde pas sou a criar gado, a escrever artigos para os jornais e livros como O caminho de Cruz das Almas. Depois que Bernanos retornou à França, a propriedade passou às mãos de novos ocupantes e acabou abandonada, sendo usada apenas como estábulo. As terras foram divididas, abrigando hoje um bairro popular, e a casa, restaurada pela primeira vez em 1968, converteu-se num pequeno museu.

Tornou-se amigo de Oswaldo Aranha, o ministro do Exterior do governo Vargas e franco partidário dos Aliados,

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Gorete Marques. Georges Bernanos: continuité ou rupture?. Letra L – Revista da Universidade de Aveiro, 7 (II), 2018,
Erwan Hesry/Unsplash.com

de quem ganhou de presente um cavalo puro-sangue in glês, aliás batizado de Oswaldo, no qual trotava por toda Barbacena, inclusive nas idas diárias ao Café Colonial, onde o francês era a língua franca dos intelectuais frequentadores.

Seu confessor Paulus Gordan, monge beneditino ale mão, nascido judeu como Günther Heinrich Jacob e con vertido ao cristianismo, era igualmente um refugiado do nazismo, tendo aportado no Brasil em 1939. Tomava to dos os domingos a confissão de Bernanos, numa casa da ilha de Paquetá, alugada pelo escritor no verão de 19431944. Alí mantinham longas conversas sobre a situação mundial e a questão judaica, que passara a lhe interessar de perto, como ao amigo sacerdote, desde que potenciali zada pelo nazismo.7

O depoimento do abade é eloquente: “Bernanos me surgiu como cavaleiro destemido e irrepreensível, como um antigo cruzado, viril em seu ímpeto e acreditando na

alma que, com uma esperança enevoada de dúvidas e de dúvidas atravessadas por clarões e esperança, cavalga contra a morte e contra o diabo.”8

Por outro lado, Bernanos manteve relações tempestuo sas com o clero brasileiro, composto em parte por italia nos, espanhóis e portugueses, que não lhe perdoavam a crí tica cortante ao franquismo, esse primo do fascismo.

Seu vínculo com o cristianismo permeia também um dos seus textos mais conhecidos, a peça teatral Diálogo das Carmelitas, baseada na obra da alemã Gertrud von Le Fort, Die Letzte am Schafott (A última no cadafalso), que retrata o episódio do martírio das carmelitas de Compiègne durante a Revolução Francesa. A peça só foi ao palco depois da morte de Bernanos e inspirou uma ópera de Francis Poulenc, estreada no Scala de Milão em 1957, e o filme de Philippe Agostini (1959), com Jeanne Moreau no papel título.

Entre 1940 e 1945, Bernanos publicou dois artigos por

8 Sébastien Lapaque. Sob o sol do exílio; Georges Bernanos no Brasil (1938-1945) Trad. Pablo Simpson. São Paulo, É Realizações, 2014, pg. 107.

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7 Israel Beloch, coord. Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil. Rio de Janeiro, Casa Stefan Zweig, 2021, pg. 233-5. Joanna kosinska/Unsplash.com

9

semana em O Jornal, influente órgão carioca dos Diários Associados, abordando com sua peculiar veemência a Guerra, o nazismo, a política da França ocupada, o governo colaboracionista de Pétain em Vichy e a resistência comandada por De Gaulle. Mensagens suas eram difundidas pela BBC e também pela publicação clan destina Témoignage Chrétien (Testemu–nho Cristão). Textos seus apareceram no periódico de língua francesa publicado no Brasil, France Libre, apesar de alguns te rem sido vetados pela censura do Estado Novo, possivelmente a pedido do embai xador de Vichy.

Os laços de simpatia que se estabeleceram entre o católico Bernanos e o judeu Zweig fazem lembrar outra dupla que esteve no Brasil mais de vinte anos antes: o embaixador francês Paul Claudel, católico fervoroso de direita, e seu adido cultural Darius Milhaud, judeu de Marselha

Bernanos herdara do campo de bata lha da Primeira Guerra Mundial ferimentos que o obri garam a se locomover pelo resto da vida com o auxílio de uma bengala. Era conhecida sua paixão pelas ideias que defendia, assim como suas formidáveis explosões de raiva. Depois de uma militância antissemita na juventu de e no início da maturidade, o terror nazista veio acor dá-lo para o absurdo dos seus preconceitos tenebrosos, embora por algum tempo ainda dividisse o antissemitis mo em duas vertentes: a racial e religiosa, que renegou, e a política, na qual perseverou por certo tempo, vendo na figura do judeu tanto o liberalismo econômico e as finanças quanto o materialismo e o comunismo. Num artigo de 1944 sobre o antissemitismo, assevera que “essa palavra me causa cada vez mais horror, Hitler a des figurou para sempre”.9

Em 1939, escreveu: “Nenhum desses que me deram a honra de me ler podem acreditar que estou associado à repulsiva propaganda antissemita que se desencadeia hoje na imprensa dita nacional, sob ordens do estran geiro.” Em 1943, a respeito de Georges Mandel10,

Nem todos foram acordados pela violência nazista. No Brasil, o ilustre histo riador Gustavo Barroso, fundador do Museu Histórico Nacional, liderava a vertente pró-nazista do movimento integralista de Plínio Salgado. Títulos de alguns de seus livros atestam o seu agressivo antissemitismo: Brasil, colônia de banqueiros (1934), Judaismo, maçonaria e comunismo (1937), A sinagoga pau lista (1937), Roosevelt es judio (Buenos Aires, 1938). Ver Marcos Chor Maio. Nem Rothschild nem Trotsky; o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio de Janeiro, Imago, 1992.

10 Georges Mandel, judeu, de nascimento Georges Rothschild (1885-1944), foi um membro da Resistência e enérgico opositor do regime colaboracionista de Vichy. Preso em 1940, esteve no campo de Buchenwald até que, devolvido ao

antigo Ministro do Interior francês detido havia meses pelos alemães: “Quanto a Mandel, vocês dizem talvez que, não ten do nunca manifestado muito gosto pelos judeus, eu não falarei dele? Enganam-se! É a ele que vocês odeiam mais, vocês e seus mestres. Nesse sentido, ele me é mil vezes mais sagrado do que os outros. Se os mestres de vocês não devolverem Mandel vivo, vocês pagarão esse sangue judeu de um modo que surpreenderá a História – ouçam bem, cachorros – cada gota desse sangue judeu vertido em cóle ra de nossa antiga Vitória é-nos mais pre ciosa do que toda púrpura do manto de um cardeal fascista.” E um ano depois: “Não sou antissemita – o que, aliás, não significa nada, pois os árabes também são semitas. Não sou de nenhum modo antijudeu.”11

Os laços de simpatia que se estabeleceram entre o ca tólico Bernanos e o judeu Zweig fazem lembrar outra du pla que esteve no Brasil mais de vinte anos antes, de 1917 a 1918: o embaixador francês Paul Claudel, católico fer voroso de direita, grande intelectual, teatrólogo e escritor, e seu adido cultural Darius Milhaud, judeu de Marselha, um dos mais importantes compositores franceses do século 20.12

Um episódio que ficou famoso e que abordei em arti go anterior para Devarim revela a simpatia e o interesse de Bernanos por um colega de exílio, um angustiado escritor judeu mortificado pela guerra. Stefan Zweig e sua mulher Lotte deslocaram-se de Petrópolis até Barbacena à convite de Bernanos, que os recebeu com grande afeto em Cruz das Almas.

O escritor mineiro Geraldo França de Lima, secretário informal de Bernanos, descreveu o encontro: “Nunca até então eu tinha visto Bernanos receber tão carinhosamente, acolher comovido e fraterno, como rece beu Stefan Zweig (…) desfigurado, triste, abatido, sem es perança, cheio de pensamentos aziagos. (…) Bernanos

cárcere na França, foi capturado por uma milícia pró-nazista e executado.

11 Sébastien Lapaque, Op. cit., pg. 119.

12 Manoel Corrêa do Lago et alii, org. Uma outra Missão Francesa 1917-1918: Paul Claudel e Darius Milhaud no Brasil. Rio de Janeiro, Andrea Jakobsson Estúdio, 2017.

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(…) convidou-o a acompanhá-lo num protesto ao mun do contra as barbaridades que Hitler praticava contra os judeus e que Bernanos, enfurecido, qualificava como cri me contra a Humanidade.”13

Zweig declinou do convite para passar uns dias na pro priedade do francês e retornou de trem a Petrópolis. Depois de sua partida, Bernanos refletiu: “ele está morrendo”.

O suicídio do escritor austríaco dias depois confirmou a trágica premonição e foi objeto de duras críticas do francês: “O suicídio do Sr. Stefan Zweig não é, aliás, um drama pri vado. Antes mesmo que a última pá de terra caísse sobre o caixão do célebre escritor, as agências já transmitiam a notí cia ao público universal. Milhares e milhares de homens, que tinham o Sr. Zweig como um mestre, honrando-o como tal, puderam dizer lá consigo que o mestre desesperara da sua causa e que esta causa era uma causa perdida. A cruel decep ção desses homens é um fato muito mais deplorável ainda do que o desaparecimento do Sr. Stefan Zweig, isso porque a humanidade pode prescindir do sr. Stefan Zweig, como de qualquer outro escritor, mas não pode ver, sem amargura, re duzir-se o número dos homens obscuros, anônimos, que não tendo jamais reconhecido as honrarias nem os lucros da gló ria, se recusam a consentir na injustiça, vivendo do único bem que lhes resta: – uma humilde e ardente Esperança. Quem toca nesse bem sagrado, quem se arrisca a dissipar-lhe

13 Alberto Dines. Morte no paraíso; a tragédia de Stefan Zweig. 4ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 2012, pg. 532-3.

uma simples parcela, está desarmando a consciência do mundo e despojando os miseráveis.”14

Outros contemporâneos ilustres acusaram Zweig de ter posto em dúvida a vitória final da humanidade. Thomas Mann, igualmente refugiado do nazismo, foi cruel: “Não tinha ele consciência de um dever a cumprir diante de seus companheiros de infortúnio de todo o mundo, para os quais o pão do exílio é muito mais duro do que para ele, adulado e livre de toda preocupação material?”15

Na última frase de sua mensagem de despedida, Zweig deixou claro que sua renúncia pessoal não implicava numa perda de esperança coletiva: “Saúdo a todos os meus ami gos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes.”16

Terminada a Guerra, Bernanos regressou a seu país, passando uma temporada em Paris, outra em Bandol, na Côte D’Azur, e outra ainda na Tunísia. Morreu coberto de reconhecimento em 1948, aos 60 anos, no Hospital Americano de Neuilly-sur-Seine, junto à capital francesa.

Israel Beloch, historiador, presidente da Casa Stefan Zweig, coor denador do Dicionário histórico-biográfico brasileiro, da Fundação Getulio Vargas, e do Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, 2021.

14 Georges Bernanos. “Apologias do suicídio”. O jornal, Rio de Janeiro, 6 de março de 1942.

15 Citado em Sébastien Lapaque, Op. cit., pg. 107.

16 Stefan Zweig. Declaração. In Alberto Dines. Op. cit., pg. 503.

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O REAL E O PARADOXO DE PRIMO LEVI EM AUSCHWITZ

Aproblematização da Shoá começou a ser discutida na Alemanha logo após o fim da guerra, motivada pela famosa frase de Theodor Adorno: “A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (Adorno, 1962, p. 29).

A sentença de Adorno provocou polêmica e sua recepção foi bastante infe liz. O fato é que ele alertava para a necessidade de elaborar o passado e criticar o presente prejudicado, salvando o passado de opressão e mantendo a fidelida de às utopias não realizadas. Para isso seria necessário eliminar no presente as causas da barbárie: “[…] a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora” (Adorno, 2003, p. 119).

Auschwitz “não representa somente um episódio dramático da história ju daica ou da história alemã, mas é um marco essencial e pouco elaborado da história ocidental” (Gagnebin, 2006, p. 59). Na obra de Adorno, Auschwitz aparece como paradigma por excelência de nossa modernidade esclarecida, o do campo de segregação, ideia que foi desenvolvida por Giorgio Agamben. Mas ainda hoje há um esforço conservador de desprezar a memória das víti mas do autoritarismo, o que torna urgente a rememoração do período, para

Auschwitz “não representa somente um episódio dramático da história judaica ou da história alemã, mas é um marco essencial e pouco elaborado da história ocidental”

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Jacques Fux

The future is now

Preparar nossos alunos para um mundo globalizado, onde saibam se posicionar criticamente, tenham responsabilidade com a sociedade e com o mundo, calcados nos princípios e valores judaicos é o nosso compromisso com as famílias. Para isso, sabemos que a pro ciência na Língua Inglesa é essencial, independentemente da área de atuação ou em qual país viverão, e o Liessin segue investindo fortemente nessa área.

Assim, é com muita satisfação que anunciamos mais uma grande conquista para a nossa Comunidade Escolar: a partir de 2023, teremos um currículo o cialmente bilíngue em nossa escola.

Nossos alunos do Pré I ao 8º ano passarão a utilizar um material 100% autêntico e exclusivo da National Geographic e teremos aplicação do currículo bilíngue da seguinte forma:

Educação Infantil: além das aulas de Inglês, serão oferecidas aulas de Science and Arts.

Fundamental I: além das aulas de Inglês, Maker e Geography, serão oferecidas aulas de Science and Arts.

Fundamental II: além das aulas de Inglês, serão oferecidas aulas de Geography e Coding.

50 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI LIESSIN
2023
Quer saber mais? Marque a sua visita: (21) 97627-7270 ou relacionamento@liessin.com.br

“[…] que Auschwitz não se repita” (Adorno, 2003a, p. 119). Nas palavras de Giorgio Agamben:

[…] não só falta algo semelhante a uma tentativa de com preensão global, mas também o sentido e as razões do com portamento dos carrascos e das vítimas; muitas vezes, as suas próprias palavras continuam aparecendo como enigma in sondável, reforçando a opinião de quem gostaria que Auschwitz ficasse incompreensível para sempre (Agamben, 2008, p. 19).

O pensador italiano se propôs a reavaliar conceitos e pensar novos caminhos para a compreensão do problema Auschwitz. Torna-se necessário escrever, apesar da impos sibilidade de descrever fielmente o que de fato aconteceu. A tarefa de rememorar o passado é árdua e ambígua, pois envolve o confronto com as feridas abertas pelo trauma e a tentativa de sua superação. Ao mesmo tempo em que há necessidade de lembrar e comunicar, na maioria das vezes aquilo que se rememora é o incomunicável, a morte: “ (…) o indizível por excelência, que a toda hora tentamos dizer (…)” (Seligmann-Silva, 2003, p. 52).

A possibilidade do Real

O testemunho, de acordo com Márcio SeligmannSilva, possui basicamente duas acepções, dentre as quais a segunda é a que mais nos interessa: 1) “no sentido jurídi co e de testemunho histórico”; 2) “no sentido de ‘sobrevi ver’, de ter-se passado por um evento-limite, radical, pas sagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’” (Seligmann-Silva, 2003, p. 8). Seligmann atenta ainda que esse “real” deve ser diferenciado da “realidade” dos roman ces realistas e ser entendido, na chave do trauma, como algo que resiste à representação (Idem, p. 377).

Nos seguintes trechos de sobreviventes da Shoá fica evi dente que a experiência dos campos de concentração, nos quais não havia nenhum elemento humano que os pudesse organizar minimamente, acaba por anular qualquer ten tativa de simbolização:

Já éramos velhos Häftlinge [prisioneiros]; nossa sabedoria es tava em “não tentar compreender, não imaginar o futuro,

não atormentar-se pensando como e quando tudo isso aca baria, não fazer perguntas nem aos outros nem a nós mes mos” (Levi, 1988, p. 118).

Todas essas fontes são concordes entre si; porém, é-nos di fícil, quase impossível, construir uma representação de como esses homens [que trabalhavam nas câmaras de gás e nos fornos crematórios] viviam dia após dia (…)” (Levi, 1990, p. 26).

Para além do processo de extermínio e da violência providos de forma inimaginável e que dispensam maiores comentários, o absurdo da situação é uma constante, po dendo ser percebido em pequenos rituais obrigatórios: engraxar os tamancos e pregar os botões do casaco que se soltarem mesmo não recebendo material para tais tarefas; arrumar a cama impecavelmente todas as manhãs. Ademais, se no Realismo acreditava-se haver uma espécie de transparência e de ligação direta entre a palavra e o evento por ela representado, Levi esbarra na dificuldade da língua comum para dimensionar o horror dos campos e sente a necessidade de uma nova linguagem para dar seu testemunho:

Assim como nossa fome não é apenas a sensação de quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio mereceria uma denominação específica. Dizemos “fome”, dizemos “cansaço”, “medo” e “dor”, dizemos “inverno”, mas trata-se de outras coisas. Aquelas são palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas. Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e ela nos faz falta agora para explicar o que significa labutar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, vestindo apenas ca misa, cuecas, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega (Levi, 1988, p. 125-6).

Mesmo parecendo impossível lidar com o “real” trau mático, Levi e tantos outros sobreviventes de fatos histó ricos extremos são impelidos a narrar: há a necessidade de falar daquela situação de que não se pode esquecer por completo. O testemunho, dessa forma, está sim marcado pelo peso de uma “realidade”, que inclusive afigura negar a possibilidade de haver uma outra – “Parecia impossível

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ARI | devarim | 51
Revista da Associação Cultural–
/ Associação Religiosa Israelita–

1919–1987

que existisse realmente um mundo e um tempo, a não ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado (…)” (Levi, 1988, p. 119) – e chega a ser tomada como possuidora de uma verdade – “É natural e óbvio que o material mais consistente para a reconstrução da verdade sobre os campos seja constituído pelas memórias dos so breviventes” (Levi, 1990, p. 4). Ele, porém, não se ocupa da imitação dessa “realidade”. É nesse sentido que Seligmann-Silva afirma que depois da pretensão realista e dos ideais de autorreferência, a literatura passa a ser vista a partir da sua relação e compromisso com o “real” (Seligmann-Silva, 2003, p. 377):

Na literatura de testemunho não se trata mais de imitação da realidade, mas sim de uma espécie de “manifestação” do “real”. É evidente que não existe uma transposição imediata do “real” para a literatura: mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo e com a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura é marcada pelo “real” que resiste à simbolização (Idem, p. 386-7).

E como o “real” é simultaneamente afirmação e negação, o texto que o “manifesta” constrói-se entre a necessidade e a impossibilidade de narrar, o que significa, confor me ressalta Giorgio Agamben, que a dificuldade faz parte da própria estrutura do testemunho, pois se o que aconte ceu se apresenta aos sobreviventes como algo verdadeiro e inesquecível, por outro lado essa verdade não deixa de ser inimaginável: “Trata-se de fatos reais que, comparativa mente, nada é mais verdadeiro; uma realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais: é esta a aporia de Auschwitz” (Agamben, 2008, p. 20). A dificuldade de que fala Agamben torna-se explícita nos momentos em que se duvida dos fatos apresentados: “Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou sentado frente a uma mesa, es crevendo – hoje eu mesmo não estou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido”, ressalta Levi em É isto um homem? (1988, p.105). Apesar de admitir ao longo do texto que seu testemunho está povoado pela hesitação, no prefácio a este mesmo livro, Levi escreveu: “Acho desne cessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto

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Primo Levi

de imaginação” (Idem, p. 8). Ou seja, se por um lado ele defende a veraci dade daquilo de que se lembra e que transpõe para o papel, por outro, em certos momentos, por mais que pre tendesse fazê-lo, não houve como ex cluir a dúvida acerca da legitimidade de algumas recordações, que, de tão inverossímeis, parecem pertencer ao registro da imaginação.

O paradoxo em Agamben e Levi

Marcados por acontecimentos nunca encontrados na história, os sobreviventes da Shoá começaram a testemunhar essas histórias. Os sobreviventes devem e precisam testemunhar, mas a existência de lacunas, de problemas e da própria não neutralidade do testemunho, torna a tarefa literária e histórica ainda mais complexa.

Sabemos, em relação à posição do leitor, que sua leitura determina o texto. Mas como resolver a complexa relação que existe entre Literatura e Realidade? O sobre vivente, aquele que passou por um evento e viu a sua morte e a morte de muitos de perto e, após tal evento, resolver relatar, testemunhar, desperta uma modalidade de recepção nos leitores que é capaz de causar certa em patia e de desarmar a incredulidade. Porém, em relação a Auschwitz, o que percebemos é a existência de uma si tuação e de uma possibilidade de realidade tão comple xa e inimaginável, que os primeiros escritos e documentos a respeito de tal acontecimento não foram recepcio nados da forma que deveriam ter sido. As atrocidades e a indústria da morte eram tão inimaginavelmente complexas e cruéis que o simples testemunho passou a ser discutido. Por isso, como mostrado na primeira parte deste artigo, Adorno pronunciou a célebre e famosa fra se acerca da impossibilidade de se fazer poesia após even to de tamanho porte.

Marcados por acontecimentos nunca encontrados na história, os sobreviventes da Shoá, tomados por uma vontade de continuar vivendo e de contar ao mundo o que de fato aconteceu, começaram a testemunhar essas histórias, embora essa impossibilidade de se testemunhar diante de um grande trauma caminhe sempre junto da literatura de testemunho. Os sobreviventes devem e pre cisam testemunhar, mas a existência de lacunas, de pro blemas e da própria não neutralidade do testemunho, torna a tarefa literária e histórica ainda mais complexa. As narrativas dos sobreviventes são depoimentos dos

vencedores, dos que de alguma forma foram capazes de sobreviver para po der contar.

Agamben e Levi escrevem sobre a impossibilidade de se testemunhar. Em Os afogados e os sobreviventes, Levi escreve: Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas. Esta é uma no ção incômoda, da qual tomei consciência pouca a pouco, lendo as memórias dos outros, relendo as minhas muitos anos depois. Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo. Quem o fez, quem fitou a górgona, não voltou para contar, ou voltou mudo: mas são eles, os ‘muçulmanos’ [Levi relata que os prisioneiros denominavam “muçulmanos” os que davam sinais que sua morte era iminente, por estarem totalmente submetidos e indiferentes ao seu destino], os que submergiram – são eles as testemunhas integrais, cujo depoi mento teria significado geral. (Levi, 1990, p. 47).

Para Adorno não é possível fazer poesia, para a psica nálise não é possível testemunhar sem a presença constante de lacunas e para Levi e Agamben, somente o muçul mano é capaz de testemunhar o que de fato ocorreu. Logo seria somente o muçulmano capaz de falar, sem lacunas e de fazer poesia depois da Shoá? Agamben corroborando a tese de Levi, em seu livro O que resta de Auschwitz, apre senta o testemunho daqueles que considera os únicos ca pazes de testemunhar, os muçulmanos. Mas mesmo aí há outro paradoxo: os muçulmanos surgem como testemu nhas impossíveis, pois se são capazes de testemunhar, de relatar, escrever, contar, deixam de possuir a característica inerente do próprio mulçumano, que é a impossibilidade de testemunhar. No momento que testemunham, aceitam de alguma forma que são incapazes de fazer poesia e inca pazes de descrever sem a presença do seu próprio véu e de sua própria lacuna.

Agamben, ao longo do seu livro, tenta fugir do paradoxo. Ele quer e precisa falar, ele tenta demonstrar que só o muçulmano é capaz de falar (como conjecturou Levi), apresentando a própria fala do muçulmano no fim de seu

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livro, mas recai no próprio paradoxo já que os que escrevem no fim de seu livro, a nosso ver, não são mais mulçumanos. Assim escreve Agamben sobre a impossibilidade:

Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho da sua incapacidade de falar. Nela, coincide uma língua que sobrevive aos sujeitos que a falam com um falante que fica aquém da linguagem. É a ‘treva obs cura’ que Levi sentia crescer nas páginas de Celan como um ‘ruído de fundo’; é a não língua de Hurbinek (mass-klo), que não encontra lugar nas bibliotecas do dito, nem no arquivo dos enunciados (Agamben, 2008, p.161).

E assim apresenta Agamben o testemunho do inteste munhável que recai, a nosso ver, nas impossibilidades apre sentadas em Adorno e na psicanálise, a cisão entre o que é possível dizer e o que se diz:

Na expressão Eu era um muçulmano, o paradoxo de Levi al cança a sua formulação mais extrema. O muçulmano não é só a testemunha integral, mas ele agora fala e dá testemunho em primeira pessoa. Já deveria estar claro em que sentido esta reformulação extrema – Eu, alguém que fala, era um muçul mano, ou seja, alguém que, em nenhum caso, pode falar – não só contradiz o paradoxo, mas sim, pontualmente, o verifica. Permitamos, portanto, que sejam eles – os muçulmanos – a ter a última palavra (Agamben, 2008, p. 165).

O argumento de Levi, enquanto uma reflexão pessoal, é válido, e a posição de Agamben corrobora a tese de que a literatura de testemunho é paradoxal e extrema. É neces sário e possível testemunhar e não somente os muçulma nos ou ex-muçulmanos são os únicos a testemunhar. Sim, eles fazem parte desse conjunto, mas outros são também testemunhos importantes, porém com presença indelével das marcas, das ficções e da impossibilidade possível.

Ao rememorar Auschwitz e outros eventos-limite mar cados pelo caráter traumático das experiências coletivas de

violência extrema, Adorno, Levi e Agamben tornam co mum a barbárie de nosso passado, com suas catástrofes, ruínas e cicatrizes, nos permitindo reelaborar as heranças da nossa formação.

Jacques Fux é matemático e escritor; autor de Antiterapias (Miralto, 2022), Meshugá; um romance sobre a loucura (José Olympio, 2016), Nobel (José Olympio, 2018), entre outros.

Referências

ADORNO, Theodor. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003a.

ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ______. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003b.

ADORNO, Theodor. Prismas: La crítica de La cultura y La sociedad. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962.

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemu nha (Homo Sacer III). Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo; Editora 34, 2006.

LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjeti va. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão. In: ______. História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.

SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Ed. 34, 2005.

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תֶמֱאָהְו םיִרָּפְסִמ םיִרָבְּד

DEVARIM MISPARIM VEHAEMET Coisas, Números e a Verdade

Oque fez a humanidade evoluir tão rapidamente nos últimos 200 anos? Certamente foi o método científico, quando o ser humano entendeu que o sobrenatural não nos governa, e que os números, com sua obje tividade, provam ou não, sem viés ideológico, uma ideia.

Contra números não há argumentos. Assim, com minha formação em ciên cias exatas, me veio a inspiração para este artigo – uma tentativa de atribuir nú meros à nossa história judaica, explicando de forma objetiva algumas ideias e preconceitos que nos cercam.

Abordo abaixo alguns dos pontos que acredito que vêm recorrentemente a nós como judeus, como conceito e preconceito, numa tentativa de obter e for necer ao leitor subsídios para retrucar e refutar ilações sobre nossa história, iden tidade judaica e até sobre antissemitismo.

Do peso e importância do povo judeu

Fiz outro dia uma pesquisa informal (nada científica) com alguns amigos com a simples pergunta: “Dada a importância que a humanidade parece atri buir ao povo judeu, quantos judeus você acha que existem no mundo?”.

Como o homem das cavernas, que olhava para raios e trovões e atribuía o fenômeno a algum tipo de sobrenaturalidade, atribuir este desbalanceamento a um esquema malévolo ou, até mesmo, a um preconceito pseudobenigno de “povo escolhido” é arcaico e incorreto. As explicações racionais para este fenômeno são fascinantes

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 57

As respostas me deixaram surpreso. De todos os entrevistados, nenhum citou um percentual menor de 5%, inclusive com depoimentos que acreditam que a população judaica mundial, dada a sua influência nos mais diversos segmentos da sociedade (mais sobre isso a seguir), pudesse beirar os 20% de todos os habitan tes de nosso aprazível planeta!

Como podemos explicar que cerca de 20% dos prêmios Nobel concedidos foram atribuídos a indivíduos com ascendência judaica?

De acordo com uma rápida pesquisa no “Dr. Google”, somos surpreendidos em saber que cor respondemos a apenas 0,2% da população mundial – me ros 15 milhões de indivíduos num mar de cerca de 8 bi lhões de pessoas.1 Como muitas vezes uma imagem vale mais do que mil palavras, me dei ao trabalho de criar um gráfico mostrando o grau de nossa desproporcionalidade numérica. A fatia do gráfico atribuída aos judeus é tão fina que desconfio que irá sumir na impressão da revista.

Há de se perguntar, então, o porquê da atenção desme surada da humanidade conosco. Desconfio que a resposta para esta pergunta seja a facilidade relativa em se atacar algo tão insignificantemente menor, além de admiração e inveja – sentimentos alimentados pelo ponto seguinte.

Do peso desproporcional dos judeus nas artes, ciências, finanças, política etc.

Aqui a colocação vira “borderline” com antissemitismo, pois teorias conspi ratórias apontam os judeus como excessi vamente influentes, dado que sua quantidade numérica estaria justamente em contrassenso com seu peso intelectual na sociedade. De fato, como podemos explicar que cerca de 20% dos prêmios Nobel concedidos fo ram atribuídos a indivíduos com ascendência judaica?2

Como o homem das cavernas, que olhava para raios e trovões e atribuía o fenômeno a algum tipo de sobrenatu ralidade, atribuir este desbalanceamento a um esquema malévolo ou, até mesmo, a um preconceito pseudobenig no de “povo escolhido” é arcaico e incorreto. As explica ções racionais para este fenômeno são fascinantes, como veremos a seguir.

Existem diversos motivos históricos que são mencio nados para explicar a “inteligência judaica” e sua propensão a certas profissões. Do ponto de vista profissio nal, muitos autores atribuem a proibição medieval da Igreja Católica aos judeus de arar ou possuir terra, 2

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1 https://en.wikipedia.org/wiki/Jewish_population_by_country
https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Jewish_Nobel_laureates
Judeus Restante da população mundial

restando a eles as labutas menos gloriosas (na época) de comerciantes, artesãos e agentes de câmbio entre burgos. Ou seja, em virtude da proibição da Igreja, os judeus não eram proprietários de terras. Eram uma população móvel que migrava conforme sopravam os ventos da intolerância.

Do ponto de vista intelectual, o investimento em for mação que o povo judeu vem mantendo ao longo de sua existência é inquestionável. Diz-se que há mais de 2.000 anos não existe um judeu analfabeto, fruto do manda mento de se ter que aprender a ler e escrever para poder estudar a Torá (Pentateuco). A necessidade de estabelecer escolas inibiu o isolamento comunitário dos judeus e au mentou o seu grau de solidariedade intracomunitária.

Alguns autores, entre eles Götz Aly (um escritor ale mão que aprofundou seus estudos na história judaica europeia e alemã),3 interligam os dois cenários acima, espe culando que, quando do momento do liberalismo euro peu a partir de meados do século XIX, os judeus euro peus estavam numa posição intelectual mais avançada e, profissionalmente, menos apegados à terra, o que os per mitiu assumirem profissões liberais numa velocidade e proporcionalidade muito maior que o restante da popu lação, que continuaram por algum tempo camponeses e não urbanos.

Como consequência disso, diversas universidades europeias passaram a impor cotas máximas de participação ju daica nos seus cursos, assim como associações de classe es tabeleceram limites para a quantidade de judeus que pode riam receber autorização para exercerem profissões regula mentadas. Ou seja, uma sequência de eventos históricos le vando a consequências inimagináveis e, finalmente, ressen timento, inveja, ódio e restrições econômicas e profissionais – o embrião do antissemitismo de estado de larga escala que veríamos em toda sua força na Alemanha nazista.

A explicação matemática para desvios como os do prê mio Nobel é menos histórica e mais numérica. Para o leitor que não gosta de matemática, não se preocupe: tentarei ser o mais superficial possível, mantendo o mínimo de rigor para que meus pensamentos não sejam taxados de incorretos pelos antissemitas de plantão. :-) A propósito, o racio nal que apresento a seguir não é de minha criação. Li há uns 10 anos na internet um artigo4 sobre o assunto que me mar cou, daí reproduzo sua ideia central.

Para começar, precisamos entender que diversas medi ções na natureza (por exemplo: altura, peso, inteligência, notas escolares, tamanho do sapato) obedecem, em gran des populações, o que chamamos de distribuição normal padrão, conforme a figura abaixo.

4 Gastei horas tentando reencontrar o artigo original para colocar aqui como refe rência, mas infelizmente ainda não consegui. Continuo tentando.

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3 Europe Against the Jews – 1880-1945: um dos livros de Götz Aly que aborda o tema.
Valores -3s -2s -1s +3s +2s +1s 68,26% 95,44% 99,74% Distribuição normal padrão

Distribuição de QI na população

80 100 120 140

CORTE População 1

80 100 120 140 População 2

CORTE População 1

Na distribuição normal padrão, existe um ponto mé dio e a dispersão de resultados, tanto para um lado quan to para outro. Por exemplo, se medirmos a inteligência dos indivíduos do mundo pelo método do QI (Quociente de Inteligência), podemos chegar a uma média de 100 e a uma dispersão de 10, que chamaremos de desvio padrão (standard deviation, em inglês), representado pela letra “s” no gráfico.

A distribuição normal padrão diz que aproximadamen te 70% da população tem um QI entre 90 e 110 (100 + ou - 1s; s = 10) e que 95% da população tem um QI entre 80 e 120 (100 + ou - 2s; s = 10). Podemos, ainda, calcular que, num mundo com 8 bilhões de habitantes, temos 2% da população (160 milhões de pessoas) têm QI acima de 120. Certamente, os artistas, cientistas, financistas e polí ticos do mundo estão neste grupo.

Mas o que acontece se fizermos uma conta similar para uma população que seja mais culta, alfabetizada, poliglo ta, geração após geração, há 2.000 anos consecutivos, e que consistentemente investe na educação de seus filhos? Teremos algo similar ao gráfico Distribuição de QI na po pulação (acima).

Repare como a curva à direita da linha de corte cresceu. Por simplesmente termos educado melhor, aumentamos a

média da inteligência do grupo, e a distribuição normal nos permite agora afirmar que 16% das pessoas possuem QI acima de 120, ou seja, teremos potencialmente neste grupo, comparado ao anterior, oito vezes mais artistas, cien tistas, financistas e políticos. É claro que os números utili zados são meras aproximações da realidade, mas o raciocí nio apresentado se sustenta em qualquer cenário, sendo suficiente para explicar a participação excedente de representantes da comunidade judaica nas mais diversas profissões.

Não se trata de mágica, conspiração ou intervenção di vina. Trata-se de educação. Simples assim! Mas, às vezes, o óbvio precisa ser desenhado.

Dos números do antissemitismo nazista

Há algum tempo atrás, resolvi estudar a história econô mica do nazismo para entender e ter argumentos concretos para refutar as alegações que certamente você já ouviu: que os judeus alemães possuíam uma condição econômica e uma influência absurdamente desproporcional na socieda de alemã, e sua riqueza era tamanha que grande parte da motivação do antissemitismo alemão e do esforço de

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guerra do Terceiro Reich foi financiado pelos valores expropriados de nossas famílias que moravam na Europa.

Como sou analista de sistemas, e não historiador, busquei ler bastante sobre o tema, montando uma pequena biblioteca sobre o assunto. Em particular, comprei quase todos os livros do Götz Aly, entre eles: Hitler‘s Beneficiaries – Plunder, Racial War, and the Nazi Welfare State, Why the Germans? Why the Jews? e Europe Against the Jew, 1880-1945

O antissemitismo europeu do século XIX tinha raízes econômicas, fruto do desbalanceamento na migração de sociedades

elemento de aglutinação do povo alemão em torno de sua liderança, e como uma for ma de trocar a luta de classes pela luta ra cial-religiosa.6 A bibliografia demonstra em números as posses dos judeus alemães e eu ropeus são ínfimas se comparadas ao custo do esforço de guerra nazista, e insuficientes para financiar sequer meses de uma guerra que durou seis anos.

Outro autor com trabalho bem interessante sobre o tema é Adam Tooze, com sua obra The Wages of Destruction – The Making and Breaking of the Nazi Economy. Por fim, outros livros interessantes estudados foram Nazi Billionaires – The Dark History of Germany’s Wealthiest Dynasties, de David De Jong. Nesta obra, Jong expõe de forma brilhante o colabo racionismo dos industriais alemães ao nazismo e como os Aliados fizeram vista grossa a esse fato após o término da guerra, por medo do avanço do comunismo. Aftermath –Life in the Fallout of the Third Reich – 1945-1955, de Harald Jähner, tenta mostrar como a sociedade alemã conviveu com a destruição e culpa após o conflito.

Para completar a bibliografia, tive acesso ao paper de um renomado professor da London School of Economics, Dr. Albrecht Ritschl. No estudo5 Financial Destruction: Confiscatory Taxation of Jewish Property and Income in Nazi Germany, Prof. Ritschl mapeia de forma detalhada os ins trumentos que foram usados para expropriar os judeus ale mães e chega às conclusões: que o butim da expropriação foi pequeno do ponto de vista do orçamento de guerra da Alemanha; que o valor da riqueza judaica alemão era pro porcional à população judaica; e que, sim, os judeus ale mães possuíam formação profissional acima da média da população alemã (vide acima), porém não eram mais ricos que seus pares.

Das leituras extrai-se também: O antissemitismo europeu do século XIX tinha raízes econômicas, fruto do desbalancea mento na migração de sociedades arcaicas e pastorais para sociedades urbanas e liberais. Já o antissemitismo nazista foi um fenômeno eminentemente ideológico, baseado principal mente na pseudociência da supremacia da raça ariana, como

O valor relativamente pequeno não significa que os alemães não se beneficia ram enormemente da expropriação dos bens da população judia e dos demais povos que conquis tou temporariamente. De fato, a expropriação que ocorreu na Europa inteira ajuda a explicar em parte a pequena resistência da população alemã às atrocidades do regime, trans formando-se numa enorme engrenagem de mobilidade so cial para as classes alemãs menos favorecidas. Toda família que tinha um parente no front recebia com regularidade pa cotes de presentes (alimentos, roupas e demais itens de va lor) do seu “emissário”, fruto de roubo ou aquisição no mer cado negro em condições favoráveis aos invasores.

Os soldados nazistas literalmente esvaziaram as prate leiras dos países conquistados. Em cada país que conquis tou, o Reich, pelo controle monetário, criou um esquema econômico, através do qual o próprio país acabava pagan do pela ocupação. Era proibido pagar qualquer coisa em Reichsmark fora da Alemanha, de forma a proteger a moe da. Em cada país, a ocupação nazista (des)controlava a emissão de moeda local, criando inflação e mercado negro. Os compromissos contratados localmente pela máquina de guerra nazista eram pagos em uma moeda intermediá ria de ocupação, com taxa de câmbio para a moeda local determinada pelo Reich, com evidente prejuízo sempre ao povo dominado. O Lebensraum (espaço vital) pleiteado pe los nazistas como direito fundamental do povo alemão em expandir suas fronteiras se traduziu de fato em uma gran de máquina de roubar os outros, inclusive com diretrizes de estado orientando o correio alemão a queimar e não deixar rastros do serviço postal de guerra. A arianização de propriedades e negócios foi, efetivamente, uma operação transeuropeia de roubo.

6 O comunismo morava ao lado e em expansão, na recém-criada União Soviética. O pavor do comunismo constitui-se até hoje como uma eficaz ferramenta de MID (medo, incerteza e dúvida) e motivo pseudolegal para radicalismos da direita.

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5 https://eprints.lse.ac.uk/100727/1/WP297.pdf
arcaicas e pastorais para sociedades urbanas e liberais

Intimação ao avô de Paulo Mannheimer, Martin Rosenberg, cancelando sua licença de advocacia.

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Em particular sobre a expropriação dos judeus, podemos dividir a canalhice em duas etapas. A primeira, da ascensão do nazismo até a Noite dos Cristais ( Kristallnacht ), em 9 de novembro de 1938, traduziu-se em uma pressão civil e desorganizada para tirar proveito dos judeus e seus negócios. Por exemplo, um judeu que decidisse imigrar era “conven cido” por pressão social a vender seus ativos (imóveis, bens, participações so cietárias etc.) por um valor de mercado bem abaixo do justo, traduzindo-se assim em um ganho imediato ao comprador.

O estado alemão fez seu papel indiretamente, através de leis restritivas que suspendiam licenças de profissio nais liberais e impunham restrições e taxas exorbitantes aos judeus que deixavam a Alemanha. O documento ao lado é a intimação ao meu avô Martin Rosenberg z’l , can celando sua licença de advocacia.7

A partir de novembro de 1938, a expropriação direta passou a se tornar política fiscal do estado, começando pela “Taxa de Perdão” (Judenvermögensabgabe) imposta por Hermann Göring, ordenando que a comunidade ju daica pagasse 25% sobre os seus bens como uma multa pela “culpa” judaica do assassinato, por um judeu, de Ernst von Rath, adido da embaixada alemã em Paris, que alegadamente motivou a “fúria espontânea” do povo ale mão. Outro caso: em fevereiro de 1939, foram criadas leis tributárias discriminatórias para os judeus, impedindo, por exemplo, a dedução de impostos para filhos judeus. Em 1942, o governo nazista da Hungria tornou nulo to dos os débitos do estado para com os judeus que haviam emprestado recursos para a Primeira Grande Guerra.

À medida que a Alemanha ia dominando a Europa, a pilhagem continuava e seguia a mesma cartilha. Bélgica, Holanda, Dinamarca, Hungria, Romênia, Polônia, Ucrânia, Grécia, França… Em dezembro de 1941, o Alto Comando Militar francês multou a comunidade judaica parisiense em um bilhão de francos. O governo romeno forçou os judeus a comprar bônus de guerra no valor de

7 Uma curiosidade: a intimação foi assinada por um notório juiz nazista, que prova velmente teria sido julgado em Nuremberg se não tivesse morrido em 1945 duran te um bombardeio aliado a Berlim.

25% de todos os gastos que o país teve com a guerra. Os valores e bens saquea dos eram muitas vezes utilizados tam bém para aliviar o “sofrimento” que a guerra estava impondo ao povo ale mão. À medida que os bombardeios aliados se intensificaram, lojas de mó veis disponibilizavam, a preços módi cos, itens saqueados de lares de judeus para alemães, que tiveram suas casas demolidas, pudessem “comprar” a mo bília e reconstruir suas vidas, em detrimento das outras destruídas.

Os dados e informações sobre o tema são vastos e muitas vezes áridos, na forma de tabelas e planilhas. Busquei aqui realizar um resumo sobre o assunto e pas sar a você, leitor, a mensagem principal que os fatos e nú meros mostram. A ideia de que o nazismo surgiu e se for taleceu porque os judeus eram muito ricos e de que a de sapropriação de seus bens fez a diferença na qualidade de vida da sociedade alemã é falsa. Os nazistas nos tiraram quase tudo, economicamente falando, mas nosso tudo fez pouca diferença em seu esforço de guerra e na sua consequente derrota.

Dos fatos, números e o futuro

Em uma época tão permeada de fake news, convém sempre basear aquilo que acreditamos em fatos e números que fortaleçam nossos pontos de vista, para não incorrer mos também em parcialidade e desinformação. Contra fa tos e números não há argumentos, a não ser que a outra parte seja irracional ou esteja imbuída de má-fé. Mas a ver dade (ha’emet) sempre há de triunfar!

Em tempo: Talvez algum leitor esteja estranhando eu não ter abordado a numerologia da Cabala, tema esotérico que mistura judaísmo e números. Não abordei porque, além de ser uma pessoa extremamente racional e pragmá tica, este é um assunto que conheço zero. Quem sabe num próximo artigo… :-)

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Paulo Haroldo Mannheimer é Analista de Sistemas, Bacharel em Matemática e sócio da ARI.
Em uma época tão permeada de fake news, convém sempre basear aquilo que acreditamos em fatos e números que fortaleçam nossos pontos de vista

Filhos… Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos Como sabê-los?

Se não os temos Que de consulta Quanto silêncio Como os queremos! Vinicius de Morais

FILHOS, POR QUE TÊ-LOS?

Comentários sobre a Haftará do primeiro dia de Rosh Hashaná

Isio Ghelman

Bom dia a todos. Gostaria de fazer pouquíssimos comentários sobre a Haftará desse primeiro dia de Rosh Hashaná. Existem inúmeros aspectos que mereceriam atenção, como, por exemplo, elaborar um pouco sobre o fato de Eli, o Cohen Hagadol, ter tomado Chana como bêbada ao observá-la rezando, tamanha era sua entrega e fervor balbuciando as palavras, apenas movendo seus lábios sem emitir sons. O texto original da Haftará não menciona, mas alguns comentaristas, apoiando-se na mística judaica, sugerem que Eli, em busca de resposta para o estado de Chana, teria consultado os Urim veTumim, que, pelo que entendi, eram uma espécie de I Ching – me desculpem o sincretismo (se bem que a própria Cabala já é um sincretismo) –, em que, de acordo com o Zohar, teriam os Nomes de Deus de 42 e de 72 letras gravados em pedras que se acendiam sequencialmente, de modo a emitir uma resposta a uma eventual pergunta feita pelo Sumo Sacerdote. E quando ele o fez a respeito de Chana, quatro letras se acenderam. Essas letras poderiam ter formado tanto a palavra shikorá (bêbada), como kessará (como Sara, significando que Chana, assim como a matriarca Sara, também era estéril) e também kesherá (ela é pura). Aqui faço um parêntesis. Palavras com vários significados, palavras parecidas, pala vras que compartilham os mesmos radicais são fontes inesgotáveis de comen tários, não é mesmo? As raízes das palavras hebraicas são verdadeiras cartolas de mágico: delas saem não só coelhos, mas também pombas e flores multicoloridas! Não é à toa que somos o povo dos livros, uma vez que, de verdade, apre ciamos a magia das palavras. Mas por que Eli escolheu a primeira opção e a to mou como bêbada? Não sei. Aqui, só provoco, mas não tenho resposta.

Outro aspecto é o fato de Chana e sua prece terem se tornado o paradigma da prece sincera, a ponto de passar a ditar o padrão para a oração da Amidá:

Recentemente, tive a oportunidade de estudar e ler, na ARI, a Haftará do primeiro dia de Rosh Hashaná, durante o serviço de 5783. Reproduzo aqui o comentário que fiz na ocasião, antes da leitura ritual, acrescido de um ou outro aspecto que me ocorreu posteriormente, além do título do texto, que referencia o “Poema Enjoadinho” de Vinicius de Morais.

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oramos em silêncio, enunciando as palavras, mas não em voz alta a ponto de serem ouvidas pelos demais. Essa Haftará con tando como Chana foi atendida em sua prece sincera me faz pensar que o fracasso e o sucesso, o triunfo e a derrota, a grande za e a pequenez, não são condições perma nentes. A oração – e entendo a oração como um momento em que verdadeira mente nos conectamos com nossas ques tões – influencia nossas ações, e, com isso, podem produzir mudanças na condição humana, perpetradas pelo próprio sujeito, e não apenas pela Graça Divina. E esse é um dos temas fundamentais de Rosh Hashaná. Neste início de um novo ano, temos a oportunidade de um reco meço – o que, aliás, podemos fazer em qualquer momen to de nossas vidas – de melhorar o que é preciso, de ques tionar nossas escolhas e de admitir novas possibilidades.

Minha mãe, que me faz uma falta imensa, dizia que, para ela, os filhos eram uma janela para o mundo. E dessa janela, testemunhando nossas escolhas, nossos erros e acertos, ela tentava compreender o mundo e a evolução dos costumes.

Mas o que eu mais quero falar é sobre o fato de Chana, em troca da dádiva da maternidade, ter oferecido seu filho “ao Eterno todos os dias da sua vida”. Mas condicionando a fazê-lo apenas quando a criança desmamasse. Nós, humanos, temos praticamente uma espécie de ges tação em duas etapas, a primeira intrau terina e, a segunda, com a criança já fora do útero. Nossos bebês não seriam capa zes de sobreviver aos primeiros um ou dois anos de suas vidas sem o auxílio de suas mães, durante o período do aleita mento materno. Daí a ressalva feita por Chana, de que daria seu filho ao Eterno somente após o desmame, quando, enfim, a criança poderia ter autono mia. Li em algum comentário sobre essa Haftará feito por uma mulher – em algum site sobre questões judaicas – em que ela dizia não entender o fato de uma mãe desejar tan

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to um filho e, ainda assim, ser capaz de dá-lo ao Eterno. Quero dizer que entendo perfeitamente. Me antecipo aqui à crítica de que não tenho lugar de fala para dizê-lo, uma vez que sou pai e não mãe. Aceito a crítica, mas, ainda assim, mantenho minha opinião. Eu entendo. Entendo como mãe. Não só entendo, como acho que deveríamos todos fazer o mesmo. Acho até que mui tos de nós o fazem. É claro que não tomo o sentido literal de “dar ao Eterno” – nem como sacerdote, muito menos em sacrifício. Mas não é isso que fazemos quando estuda mos nossas rezas? Nós buscamos contextualizar essas his tórias – em princípio tão anacrônicas – com nossos tem pos e as transformamos em parábolas. “Doar nossos filhos ao Eterno todos os dias de suas vidas.” Ora, é para isso que temos filhos: para os darmos ao mundo! Não à toa dizemos que as mães dão à luz (a com acento grave indicando a contração do artigo com a preposição): mães dão seus fi lhos “a a” luz, “a a” vida, “a o” mundo. A dádiva concedi da à Chana se dá porque ela não queria filhos apenas para

si. Minha mãe, que me faz uma falta imensa, dizia que, para ela, os filhos eram uma janela para o mun do. E dessa janela, testemunhando nossas escolhas, nossos erros e acertos, ela tentava compreender o mundo e a evolução dos costumes. Nada mais praze roso do que acompanhar nossos filhos dando os seus primeiros passos e, a nós, pais, só nos resta oferecer a eles as condições e as ferramentas para que eles pró prios possam escolher seus caminhos. Seja percorren do a estrada menos utilizada do bosque amarelo, como dizia o poeta1, ou a mais utilizada; mas para nós, pais, o que faz a diferença é permitirmos que eles verdadeiramente façam suas escolhas, doando-os ao mundo.

Tová a todos.

Acrescento aqui uma pequena nota: após fazer a leitura da Haftará – e desses meus breves comentários –, ao descer da Bimá e voltar ao meu lugar, meu querido amigo de lon guíssima data – além de consultor particular para assuntos ligados ao judaísmo –, Ricardo Gorodovits, me puxou pelo braço e me disse meio à brinca, meio à vera, que Eli havia escolhido a opção de tomar Chana como bêbada porque isso tornava a narrativa mais interessante! Achei essa expli cação genial e logo me lembrei de um trecho do livro Homo Sapiens – Uma breve história da humanidade, escrito por Yuval Noah Harari, em que ele elenca entre as hipóteses para o salto evolutivo de nós, Homo Sapiens, frente aos ou tros hominídeos contemporâneos, a nossa capacidade de acreditar na ficção. Segundo Harari, entre 30 e 70 mil anos atrás, nós, Homo Sapiens, adquirimos novas formas de pen sar e de se comunicar naquilo que se constituiu como uma Revolução Cognitiva. Nossa linguagem se tornou incrivel mente versátil, permitindo-nos “consumir, armazenar e comunicar uma quantidade extraordinária de informações

sobre o mundo à nossa volta”. Isso nos habilitou a partilhar informações sobre o mundo e – mais importante ainda –informações sobre nós mesmos. Mas ainda segundo Harari, a característica verdadeiramente única da nossa linguagem é a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. “Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva […] e a capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos Sapiens.” E nós fazemos isso coletivamen te. Isso nos deu uma capacidade sem precedentes de coope rar de modo versátil em grande número, impulsionando nossa vertiginosa ascensão ao topo da cadeia alimentar. Ora, quanto mais interessante as narrativas, maior nossa adesão a elas. E Ricardo tem toda a razão: a história da estéril e so frida Chana não se torna de fato mais interessante com Eli a tomando como bêbada e, ainda assim, acolhendo-a, con fortando-a e assegurando-lhe de que o Eterno iria atendê-la em suas preces?

Isio Ghelman é ator, diretor e professor de teatro, designer de livros e sócio da ARI.

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Religiosa
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Shaná 1 Me refiro aqui a Robert Frost (1874-1963), poeta americano, autor do poe ma The Road Not Taken.

ANTISSEMITISMO NO SÉCULO XXI

A Conferência de Londres, setembro de 2022

Sócrates Nolasco

Durante dois anos, conferências e eventos relacionados ao Antissemitismo foram suspensos por conta da COVID-19, o que motivou um grande número de estudiosos e ativistas a se deslocarem para Londres nos dias 11, 12 e 13 de setembro de 2022. Estiveram envolvidos nesse evento 17 países, distribuídos em 66 palestras sobre o assunto. A Conferência foi organizada pelo London Center for the Study of Contemporary Antisemitism e aconteceu no cam pus da Goldsmiths University. A maioria dos trabalhos eram de pesquisadores do Reino Unido, seguidos pelos Estados Unidos e Israel. Outros países também estiveram presentes neste encontro, foram eles: Hungria, Rússia, Alemanha, Itália, Áustria, Polônia, Noruega, República Tcheca e Suécia. Mas também, África do Sul, Austrália, Brasil, Chile e Venezuela.

A maioria dos trabalhos abordou o monitoramento de ataques a judeus e a Israel nas mídias sociais, dentro de escolas e universidades, manifestações polí ticas de antissemitismo e análises históricas sobre antissemitismo. Diferentes países relataram o aumento do ódio contra judeus e ao estado de Israel, que ain da não foram combatidos sistematicamente pelas sociedades onde ocorreram.

As restrições legais não têm sido suficientes para inibir esse tipo de comporta mento que não é mais aceito quando se trata de outros grupos minoritários, como acontece com as mulheres, negros e homossexuais.

As restrições legais não têm sido suficientes para inibir esse tipo de comportamento que não é mais aceito quando se trata de outros grupos minoritários, como acontece com as mulheres, negros e homossexuais.

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Isto nos leva a pensar que o baixo empenho das sociedades para combatê-lo poderia estar relacionado a alguma fun ção que o antissemitismo teria para elas, não apenas no âmbito político e econô mico, mas também psíquico e social.

Freud disse que quando um indivíduo se sente parte de um grupo, ele faz o que não faria se estivesse sozinho.

Assim como no racismo, o antissemi tismo é um espelho de tudo aquilo que uma sociedade re jeita em si mesma. Os conteúdos rejeitados têm mais se melhanças entre si do que divergências e são deslocados para diferentes manifestações de ódio. Estamos falando de conteúdos psíquicos sem elaboração que aportam em fe nômenos sociais, e são usados para desviar atenção dos in divíduos das propostas descabidas apresentadas como so lução para regeneração social, defendidas como algo novo e transformador, como aconteceu no início do cristianis mo com Constantino e, posteriormente, com a igreja ca tólica e os nazistas.

Esse fenômeno também esteve presente no século XVII, na transição para o individualismo moderno. Mecanismos psíquicos estão relacionados a fenômenos so ciais e podem ser usados para afastar tanto do indivíduo, quanto da sociedade, críticas mais profundas a respeito do modo como ambos funcionam.

Considerando as análises apresentadas em cada um dos trabalhos, percebemos que diferentes culturas distorcem o entendimento a respeito das tensões sociais geradas por elas, atribuindo aos indivíduos a responsabilidade por isso. Por outro lado, muitos indivíduos acreditam no que está sendo apresentado e o fazem usando seus próprios conteú dos psíquicos que ficaram sem elaboração. Desta maneira, eles acreditam que os problemas que lhes afligem é respon sabilidade de terceiros. Um contexto social com essas ca racterísticas inibe qualquer possibilidade de reflexão ou crítica a respeito do que esteja acontecendo na vida das pessoas.

Vários trabalhos apresentados na Conferência aponta ram que a esquerda usa o antissemitismo como matéria -prima para evitar uma análise profunda a respeito dos próprios erros. Merleau-Ponty disse que o fracasso da re volução russa começou quando ela se afastou das necessi dades básicas da população. A temática de cada trabalho mostrou que o modo como os judeus foram representados no passado ainda continua vigente e se repete nos ataques contra Israel.

A intelectualidade e o desenvolvimen to cognitivo de um povo não livraram na ções doutas de cometerem atrocidades e crimes contra a humanidade. A Alemanha é apenas um dos exemplos. Em Psicologia das Massas, Freud disse que quando um indivíduo se sente parte de um grupo, ele faz o que não faria se estivesse sozinho. Esse tipo de empo deramento é estimulado por comunicações políticas ou re ligiosas que envolvem propostas de regeneração social. Foi o que aconteceu no nazismo, que usou maciçamente a propaganda apresentando-a como um espelho da realida de. Muitos acreditaram e aderiram.

Para que o antissemitismo tivesse relação com os ju deus, os conteúdos veiculados nas mensagens antissemitas foram associados a uma representação de judeu que ativa va nos indivíduos memórias relacionadas às ofensas sofri das no passado, e que foram reprimidas em nome da so ciedade na qual se inseriam. Ofendidos muitas vezes usam a vingança para escapar da humilhação que experimenta ram no passado, manifestando sentimentos de ódio por aqueles que a cultura apontou como sendo os responsáveis por isso. A cultura autoriza odiar qualquer um que não foi classificado por ela como um de seus membros, os judeus e os negros, por exemplo. O antissemitismo serve para re conciliar indivíduos com as ofensas e traições perpetradas pelas sociedades das quais fazem parte. A vingança é um prazer mesquinho e quase sempre está vinculada a indiví duos amedrontados e avarentos, que buscam resgatar sua autoestima através da humilhação de terceiros.

Um “Segundo Judeu” foi inventado, distinto de tudo que foi escrito e dito pelas tradições judaicas, de modo que, através dessa nova representação, uma ideologia fos se transmitida sem qualquer reflexão ou crítica. O antisse mitismo inventou um outro judeu que se tornou mais conhecido socialmente do que o descrito pelas tradições ju daicas. Surge um indivíduo avarento, mesquinho, interes seiro e manipulador que passou a fazer parte do imaginário social. Não é apenas uma questão ligada a ter ou não ter informação sobre a história dos judeus, mas de perce ber, por exemplo, que no ódio dirigido a eles encontram -se conteúdos e memórias pertencentes aos primórdios das sociedades humanas que ficaram sem elaboração. O antis semitismo desloca para os judeus conteúdos que não lhes cabem. Eliminá-los seria considerado solução para

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problemas sociais. Algo semelhante aconteceu com a cirurgia feita por Marie Bonaparte para curá-la da fri gidez. O indivíduo adere ao antisse mitismo conduzido por emoções que não reconhece como suas, mas gera das por terceiros.

Um “Segundo Judeu” foi criado para ser odiado, de modo que essa representação agregasse em torno de si tudo aquilo que uma sociedade e indivíduos rejeitam neles mesmos. O antissemitismo continua presente em um grande número de países e vem sendo atualizado nos ataques contra o estado de Israel. Vidas importam, mas não a vida dos judeus. Por exemplo, a mídia tolera o antissemitismo, mas não tole ra o racismo, a misoginia e os ataques a homossexuais. A tolerância em relação ao ódio sistêmico dirigido aos ju deus e a Israel pode ser notada em diferentes países do ocidente. Por exemplo, o autor do livro usado pelo

Quando a questão é atacar Israel, esquerda e direita ficam em paz entre si. Fato é que o crescimento do antissemitismo na Europa pós-holocausto continua avançando, não apenas através da direita, mas sobretudo por meio de partidos políticos, intelectuais e artistas simpáticos aos discursos de esquerda.

finado Hugo Chavez para fazer seus discursos se chama Norberto Ceresole, um defensor de ideias neonazistas que afirma abertamente que os judeus são terroris tas. Maduro mantém uma estrei ta relação com o Irã e com o pen samento de Ceresole.

Quando a questão é atacar Israel, esquerda e direita ficam em paz entre si. Fato é que o cresci mento do antissemitismo na Europa pós-Holocausto continua avançando, não apenas através da direita, mas sobretudo por meio de partidos políticos, inte lectuais e artistas simpáticos aos discursos de esquerda. A es querda reinventou o antissemitismo, promovendo-o através da luta pelos direitos humanos e reivindicações de liberdade para os “palestinos”. Possivelmente agem assim para escon der as agruras criadas pelos países que adotaram ideologias de esquerda para ocultar das massas o próprio fracasso.

Antissemitismo como função social

A vítima expiatória é um tipo de repre sentação social que tem como função ex purgar simbolicamente o que comprome teria a integridade de sociedades que usam imagens idealizadas de si para encobrirem as próprias contradições. Para tanto, deslocam para grupos ou pessoas tensões sociais que comprometeriam o status quo. A escra vidão das populações negras avançou através de imagens de superioridade usadas para encobrir as atrocidades pra ticadas por impérios. Com isso, inventou-se a representa ção do “negro inferior”, “não humano” e, portanto, passí vel de ser escravizado. O tráfico de escravos está articula do a uma rede simbólica que a cultura usou para fortale cer seu funcionamento e expansão. O antissemitismo ado ta essa mesma estratégia.

Roth dizia que os judeus não têm pátria em lugar nenhum, mas cemitérios em todas elas.

Nelas, eles deram mais do que lhes foi retirado. Roth dizia que os judeus não têm pátria em lugar nenhum, mas ce mitérios em todas elas. Para ele, o an tissemitismo avançou com o fortaleci mento dos nacionalismos e das religiões. Na medida em que ambos se consolidaram, os ju deus foram sendo colocados à margem, para depois serem perseguidos e expulsos.

O boato de que Judas matou Cristo prosperou desde o século I ec e está presente ainda nos dias de hoje na malha ção de Judas. Se o cristianismo se tornou o eixo das sociedades ocidentais, as atrocidades cometidas em seu nome precisariam encontrar vários álibis para negá-las ou justificá-las.

A continuidade do antissemitismo fez com que os ju deus fossem condenados a viver em pátrias provisórias.

A semântica da palavra judeu variou ao longo do tem po, passando a ter novos significados nos discursos políti cos ou religiosos. Fato é que esses significados foram sen do incorporados às interpretações culturais e transmitidos de uma geração à outra. Uma das propriedades da palavra é ser manipulada, particularmente quando é empregada pelo falante como se fosse um malabar linguístico, usado a favor de um propósito que as distorce para benefício próprio.

Na mitologia grega, Eósforo foi o nome dado a Estrela da Manhã, também chamada de Estrela D’alva, uma referência ao planeta Vênus. Eósforo era filho da deusa Aurora, a estrela Vésper. A tradução latina para Eósforo é Lúx-ferus (lux e ferres), o “portador da luz”. Depois de terem perce bido que Vênus era um planeta, os gregos passaram a iden tificá-lo com Afrodite, deusa do Amor. Portanto, em sua

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origem, Lúcifer não tem qualquer relação com a interpretação dada a ele pela igreja católica, que, a partir do sé culo IV ec, usou uma interpretação tendenciosa das palavras de Isaías para se referir à luz. Inclusive, ainda no sé culo IV, um bispo de Cagliari, na Sardenha, se chamava Lúcifer Calaritano (San Lúcifero). Nesse mes mo século, São Jerônimo o identificou a Satanás, desconsiderando todas as referências anteriores, usando como base uma interpretação forçada das palavras de Isaías. Como tradutor da bíblia (Vulgata) para o latim, Jerônimo deu às palavras um sentido que favorecia mais a seus inte resses, do que a premissa etimológica. Quando agiu desse modo, São Jerônimo traiu a tradição mitológica, se apro priando do nome de Lux-ferus para um outro fim.

Foi com a própria imaginação e aspectos da cultura em que vivem que diferentes grupos sociais inventaram o judeu do antissemitismo, considerando-o como se fosse real. Nas manifestações antissemitas indivíduos defendem idealismos sociais, mas de fato o que buscam é reparar os males que afligem as próprias vidas.

racionalidade social. Contudo, se fi zermos uma análise cuidadosa a esse respeito, veremos que a carga emo cional, que o constitui, o distancia de qualquer parâmetro de racionalida de. O antissemita pode defender seus pontos de vista em tom fervoroso ou frio, mas é possível perceber sua fal ta de consistência quando analisamos seus argumentos. O que nos leva a inferir que a capacidade de convenci mento desse discurso esteja relacio nada à perícia do orador em conven cer seu público, articulando imagens e afetos que despertem nele memó rias de injúrias e ofensas sofridas no passado e que agora poderão ser curadas. Napoleão dizia que a imaginação governa o mundo e possivelmente por isso foi derrotado. Mas ele não estava de todo enganado.

Desta maneira, Lúcifer passou a ser conhecido como Satanás. Esta passagem só foi possível por intermédio do desenraizamento de sua origem, cujo interesse e aplica bilidade foram capitaneados pela igreja católica para nor matizar seu uso posterior. A inquisição pôs uma pedra sobre a luz e a transformou em escuridão. Eventos como esse são recorrentes e comuns nas sociedades humanas.

O judeu descrito pelo discurso antissemita é uma in venção que nada tem a ver com a história do judaísmo, suas tradições e etnias judaicas. O discurso antissemita se apropriou da história judaica destituindo o judeu dos registros e documentos que o identificam historicamen te, para criar uma outra representação com intuito de promover ideologias e crenças que se apresentam como soluções para problemas sociais e políticos. Mas, por que o discurso antissemita arrebanha pessoas em torno dele? O que leva uma parcela de acadêmicos a apoiarem ata ques a Israel, cometendo uma série de imposturas inte lectuais, negando dados históricos e fontes que contradi zem o modo como o BDS descreve Israel? Possivelmente, por que, além dos motivos sociais e políticos, existam fa tores biopsíquicos atuando no antissemitismo.

Curiosamente, o desenvolvimento cognitivo não ra tifica maturidade emocional, capacidade de elaboração e crítica do acusador em relação a si mesmo. O discurso antissemita se apresenta como se fosse agente de uma

O discurso antissemita usa uma sintaxe emocional, conduzida por crenças que aportam o falante em um mundo idealizado, criado para libertar sociedades ou re ligiões que se consideram reféns dos judeus. Uma pro messa de redenção cresce na cólera do antissemita, semelhante a que emerge nos discursos de vitimização. Este seria um dos álibis usados para justificar o extermínio de todo aquele cuja natureza tiraria do antissemita o direi to de se regenerar. O nazismo usou essa estratégia para convencer os humilhados de Versailles, dizendo a eles que os responsáveis pela situação em que se encontravam não era a Alemanha.

Na imaginação do antissemita, o judeu é descrito como um terceiro, cuja representação foi reforçada pelos desdobramentos da Revolução Russa, a partir da qual avançaram as tiranias totalitárias tanto de direita, quanto de esquerda, bem como nacionalismos, racismos e in tolerância religiosa. É preciso manter longe da consciên cia memórias que levem os indivíduos a encontrarem novas percepções e soluções para os problemas que enfren tam. É preciso despertar em cada um deles sentimentos de ofensa, hostilidade, preconceito, discriminação e re jeição em relação aos judeus, mantidos através das histó rias inventadas sobre eles.

Em diferentes culturas, os ataques a judeus são perpe trados por indivíduos ou grupos, com pouca capacidade

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de elaboração e reflexão sobre as próprias vidas, quer sejam eles letrados ou não. Foi com a própria imaginação e aspectos da cultura em que vivem que diferentes grupos sociais inventaram o judeu do antissemitismo, consideran do-o como se fosse real. Nas manifestações antissemitas, indivíduos defendem idealismos sociais, mas de fato o que buscam é reparar os males que afligem as próprias vidas. Esses idealismos são vendidos como guardiões da verdade e da integridade moral. Nestes termos, ideais grandiosos foram criados para alimentar e encantar humilhados que buscavam reparar as mazelas de suas vidas eliminando o outro, apontado como responsável por elas. Ainda hoje, a motivação para os ataques antissemitas tem como eixo a representação de um judeu inventado, cuja matriz simbó lica é Judas Iscariotes. A igreja nunca incluiu o evangelho de Judas como uma parte da história sobre Judas. Apesar de ter negado Jesus Cristo três vezes, Pedro não foi consi derado traidor, pelo contrário, ele tornou-se o padroeiro da igreja católica.

Observo que a solidariedade dos movimentos políticos e sociais em relação às “minorias” não foi estendida para os judeus, embora eles sejam de fato uma minoria,

particularmente depois do Holocausto. A hostilidade e a desconfiança em relação aos judeus aumentaram depois da criação do estado de Israel.

O antissemitismo é uma das peças que compõe um “sítio arqueológico”, no qual foram enterrados uma boa par te das ambiguidades e contradições existentes dentro dos indivíduos e das sociedades humanas e que ficou sem elaboração.

É necessário ampliar as análises sobre o antissemitis mo levando-as até as origens das sociedades cristãs, exa minando o modo como foi modelado o vínculo social desde então, avaliando o quanto a falta de coragem para enfrentar angústias primitivas não estaria estimulando, dentro das sociedades e indivíduos, uma montanha de preconceitos e equívocos sobre quem somos. Os judeus são apenas a ponta desse iceberg complexo. É preciso re movê-los deste lugar, para não correr o risco de tomar o que foi atribuído ao “Segundo Judeu” sinônimo para a identidade judaica.

Sócrates Nolasco é Psicólogo, Doutor em Psicologia Clínica, Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia.

Seleção da Alemanha manifesta-se contra o cerceamento da liberdade de expressão, na Copa da FIFA no Qatar em 2022

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ANTISSEMITISMO E FRAUDE LITERÁRIA

Umberto Eco: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada à nossa vida cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, não lhe acrescentamos elementos ficcionais?”

Segundo o filósofo e crítico de arte Anatol Rosenfeld (1912-1973), há duas modalidades de fraude literária, “a atribuição a outrem de um trabalho de própria lavra”,1 e o inverso, o plágio.

O antissemitismo gerou, entre outras aberrações literárias, muitos documentos forjados e atribuídos aos judeus, sendo o mais conhecido deles Os Protocolos dos Sábios de Sião, texto plagiado entre 1900 e 1905 por círculos re trógrados russos, a partir de Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu ou a política de Maquiavel no século XIX, sátira do escritor francês Maurice Joy (1829-1878) contra Napoleão III, publicado em 1864. O livro descreve um su posto complô mundial dos judeus para a dominação do mundo.

Mas Os Protocolos é apenas a mais conhecida das aberrações. Outros textos atribuem aos judeus o controle da riqueza e da imprensa mundiais: Judeu, ju daísmo e judaização dos povos cristãos (1869), de Roger Gourgenot de Mousseaux (1805–1876); Os judeus nossos mestres (1882), de Emmanuel Chabauty (18271914); A França judaica, panfleto publicado por Edouard Dumont (18441917), em 1886; No cemitério judaico de Praga, capítulo do romance Biarritz (1868), de Hermann Goedsche (1815-1878), publicado como panfleto em 1876;2 Carta dos judeus de Constantinopla (1550), do arcebispo de Toledo Juan Martínez Silíceo (1486-1557); La Isla de los Monopantos (1644), de Francisco de Quevedo (1580-1645).3

1 ROSENFELD, 1967, p. 57-58.

2 ROSENFELD, 1967, p. 50.

3 GONZALO, 2002.

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Há séculos, esses textos contribuem para a dissemina ção do antissemitismo, incitando perseguições e massa cres (os pogroms). “No cemitério judaico de Praga”, que se refere a um suposto conselho de representantes das doze tribos de Israel [em 1868, as doze tribos de Israel não mais existiam há pelo menos 2.500 anos!], influenciou o pogrom de Kishinev (atual Moldávia), em 1903, culmi nando em dias de violência e dezenas de mortos.4 Dois anos depois, Czar Nicolau II acusou judeus de organiza rem a Revolução de 1905 – manifestação da população por melhorias nas condições de trabalho e mais abertura política no Império Russo.5

Nesse sentido, o objetivo dos Protocolos talvez fosse “fortalecer as tendências absolutistas frente às correntes li berais da época”, na Rússia czarista.6

Por outro lado, escritores como Vladimir Korolenko (1853-1921), Alexandre Ivanovich Kuprin (1870-1938), Leonid Andreiev (1871-1919), Anton Tchekhov (18601904) e Máximo Gorki (1868-1936), após a onda de po groms que varreu a Rússia czarista na virada do século,

4 ROSENFELD, 1967, p. 50.

5 ROSENFELD, 1967, p. 55.

6 ROSENFELD, 1967, p. 62.

defenderam judeus oprimidos e, pode-se dizer, combate ram o antissemitismo.7

O crítico Maurice Friedberg analisou revistas, jornais e livros dos países que compunham a União Soviética, denunciando a perseguição antissemita naquele território.8 Para ele, o antissemitismo se agravou com a passagem da Rússia czarista para a soviética, em especial na era stalinis ta, momento com variedade maior de “vilões” judeus na literatura.9

Friedberg reflete sobre a imagem do judeu trapaceiro em “Elya Isaakovich e Margarida Prokofyevna”, de Isaac Babel (1894-1940), autor que não tinha nenhuma inten ção de pintar um quadro negativo dos judeus, e cuja fic ção era centrada em sua visão da realidade. Babel foi um escritor judeu que tentou com todas as suas forças se incluir na União Soviética, mas que acabou assassinado pelo regime. Escrito em 1916, o conto narra o encontro entre um comerciante de meia-idade, que precisa se estabelecer

7 ROSENFELD, 1967.

8 Outras publicações citadas pelo autor são as revistas Jewish Chronicle, londrina, e Behinot, israelense de breve existência (1952-1956), editada pelo crítico Shelomo Zemach e devotada a críticas, resenhas e traduções (BEN-PORAT; HRUSHOVSKI, 1974, p. 19).

9 FRIEDBERG, 1962, p. 17.

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por alguns dias em uma cidade proibida aos judeus, e uma prostituta russa. O ne gociante, impossibilitado de se hospedar em um hotel, aloja-se no apartamento da prostituta. Os dois se queixam de suas res pectivas profissões e se tornam amigos.10

Há uma associação entre os personagens, unidos pela restrição de direitos. Contudo, a narrativa contribuiu, segun do o crítico, para impor uma espécie de “antissemitismo endêmico” na literatura soviética.

Após a onda de pogroms que varreu a Rússia czarista na virada do século, escritores defenderam judeus oprimidos e, pode-se dizer, combateram o antissemitismo

De Nicolai Brykin (1888-1938), a novela Nem tudo está calmo na fronteira oriental corrobora com a ideia: “no exército czarista havia três grupos de soldados suspeitos: os estudantes, os judeus e os trabalhadores industriais, enquanto entre estes três grupos, presumivelmente, não de veria haver atrito de nenhuma classe”.11 Na narrativa, a dis criminação é explícita. Friedberg afirma ainda que “outro princípio da doutrina comunista proíbe considerar o an tissemitismo como um fenômeno situado acima do pro blema das classes”.12

Algumas narrativas recriam ambientes judaicos de for ma bem-sucedida, tal como Pôr de sol, conto publicado por Babel, em 1964, que retrata dois bandidos judeus de Odessa. É o caso, também, da novela Depois dos Filarets, de Boris Vadetsky (1906-1962) cujo personagem confunde o período em que os hebreus estiveram na Pérsia com o Êxodo Judaico do Egito.13

Parentes, do ucraniano Oleksandr Kopylenko (19001958), publicado em 1961, trata da Guerra Civil Russa (1918-1921). No conto, cujo cenário é um shtetl, vilarejo judaico, um octogenário reside em uma sinagoga em ruí nas. A princípio, ele teme os rumores negativos sobre a re volução bolchevique e permanece encerrado na sinagoga. Mas, ao descobrir que os soldados bolcheviques abomi nam os ricos, o protagonista resolve conhecer o comissá rio bolchevique, que o trata como parente. Surpreendentemente, o velho experimenta o maior êxito na vida: os ricos que o desprezaram vêm a ele pedir que in terceda por seus destinos junto ao comissário.14

10 FRIEDBERG, 1962, p. 12.

11 FRIEDBERG, 1962, p. 13.

12

FRIEDBERG, 1962, p. 15.

13 FRIEDBERG, 1962, p. 16.

14 FRIEDBERG, 1962, p. 20.

Obras de Sholem Alechem (18591916) – judeu, assim como Babel, que não tinha a menor intenção de produzir literatura antissemita – foram publicadas em revistas e jornais soviéticos por ocasião do cinquentenário de sua morte. Na épo ca, o jornal ucraniano Peret publicou “Gitya Purihkevich”, que, intencional mente ou não, constituiu-se numa esco lha infeliz. No conto, uma pobre viúva ju dia, em período czarista, consegue, com astúcia, livrar seu filho único do serviço militar. Provavelmente, ao invés de despertar simpatia e compaixão pela pobre viúva, o texto reforça estereótipos judeus.

Duas publicações da década de 1960 ilustram o antissemitismo soviético. A peça A agulha e a baioneta, de Anatoli Galiyev (1934-2022), trata de Dora Soloveichik, judia que negocia no mercado negro. O conto “O calcário não derreterá”, de Vardges Tevekelyan (1902-1969), trata de judeus contrabandistas de ouro e diamantes.15 Ambas correlacionam judeus e “crimes econômicos”.

Vitali Zakrutkin (1908-1984) criou um dos primeiros retratos literários do intelectual e líder bolchevique Leon Trotsky (1879-1940), impregnado de estereótipos antisse mitas. Na novela Criação do mundo, o nome do assassino é indiscutivelmente judaico, Yuda Stern, coincidindo com um dos apelidos de Trotsky na propaganda soviética, Yuda Trotsky.16

Pelas estradas da vida, publicado por Anatoli Dimarov (1922-2014), em 1963, ambienta-se na Ucrânia pós-Guer ra Civil (1917-1921). Solomon Lander, personagem judeu, constantemente usa o termo “khokhly”, espécie de insulto étnico russo. O termo se origina, na narrativa, após maus -tratos sofridos pela família Lander, que passa a odiar os ucranianos, os “malditos khokhly”. Na narrativa, “os Lander já conflitavam com a nação ucraniana desde a época distan te na qual a nobreza polonesa designou os judeus arrendatários (concessionários) de Igrejas Ortodoxas”.17 Isaac Lander, antepassado de Solomon, herdou três igrejas na re gião de Podole, explorando os habitantes que precisavam batizar os filhos, enterrar os mortos ou receber a bênção da Páscoa. O pai de Solomon quer que este se torne

15 FRIEDBERG, 1962, p. 22.

16 FRIEDBERG, 1962, p. 23.

17 FRIEDBERG, 1962, p. 23.

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comerciante; a mãe, rabino. Solomon ingressa no Bund (União Judaica Trabalhista) e segue carreira política, ten do Trotsky como ídolo, mas com “um de feito herdado do avô Motele, o qual já o tinha herdado do bisavô Chaim: o ódio aos ‘malditos khokhly’”.18 O protagonista da narrativa é judeu de esquerda, nacio nalista, filiado ao Bund (movimento tra balhista, solidamente de esquerda, que mesmo assim foi dizimado na URSS por defender uma autonomia cultural iídichista), comerciante e quase rabino, reunindo caracte rísticas suficientes para ser odiado na União Soviética, em especial por ucranianos. A história termina prevendo “que também os filhos de Lander serão ‘ladrões’”.19

Ao conceber o judeu como ladrão, avarento, chantagista ou conspirador, desconsidera-se a diversidade humana

roubo e a violência. Para ele, enalteceu-se a violência e a máfia, através de uma con duta de “honra” baseada em intimidação, chantagem, extorsão e assassínio.

Ao conceber o judeu como ladrão, avarento, chantagis ta ou conspirador, desconsidera-se a diversidade humana, presente em todos os grupos, e a complexa relação entre judeus, isolados ou em comunidades, sempre percebidos como “diferentes”, e não judeus. No caso soviético, estes persistiram enquanto povo, com sua própria língua e reli gião em um país de regime massificador e uniformizante.

E é justamente fora da ficção onde se encontram os ver dadeiros criminosos.

De acordo com o historiador Richard Pipes, os gulags (campos de trabalho soviéticos) inspiraram os campos de concentração nazistas.20 O antijudaísmo, repúdio à reli gião judaica, originou o antissemitismo apoderado pelo nazismo, com suas práticas criminosas e sistemáticas, ba seadas em supostos fatores raciais.

Gérard Rabinovitch revela que o programa nazista or questrado para a conquista do poder oportunamente se aproveitou do antissemitismo e do “mito ariano”, miscelâ nea ideológica, para perseguir e exterminar judeus, comu nistas, sociais-democratas e qualquer grupo rival – como a facção SA (tropa de assalto), eliminada pela SS (guarda de elite do partido nazista) no episódio conhecido como “Noite dos longos punhais”; a SS logo assumiria o contro le dos campos de concentração.

A partir do termo cunhado por Bertolt Brecht, em A resistível ascensão de Arturo Ui, Rabinovitch denomina os nazistas de gângsteres, por praticarem a chantagem, o

18 FRIEDBERG, 1962, p. 25.

19 FRIEDBERG, 1962, p. 25.

20 PIPES, 1997.

O nazismo foi inédito no que tange à tecnologia de violência: a técnica de mor ticínio se aprimorou, com câmaras de gás – morte industrializada, química, aperfei çoada em laboratório. A técnica “científi ca” de caracterização do judeu e a criação de “um territó rio fora do mundo”, os Campos de Concentração e de tra balho forçado, marca característica do regime, culminou na criação dos Campos de Extermínio, cuja função era de aniquilamento imediato. Rabinovitch esclarece que “ma tar pelo gás é uma novidade na era industrial e do morticínio em massa. A engenhosidade criminosa nazista o identifica como seu instrumento privilegiado”.21

Judeus viveram por séculos “fragmentados em comu nidades de tamanhos variados, sem outros laços, senão o de uma solidariedade de rejeitados”.22 Um povo forçada mente sem pátria, reunido em torno de seus livros mais sa grados, a Torá (“pátria portátil”, na definição de Heinrich Heine) e o Talmud (sobretudo comentários da Torá e co leções de leis e costumes judaicos), foi vítima de poderes seculares e religiosos que o privaram de exercer determina das profissões em determinadas épocas e locais.23 Essa condição imposta, tornado pária e forçado à miséria, é uma marca irrecuperável na história ocidental.

Mais recentemente, Art Spiegelman (1948-) publicou Maus, romance gráfico de relevância para o estudo do an tissemitismo, inicialmente como série, entre 1980 e 1991. A narrativa conta as experiências de Vladek, pai do autor, durante a Shoá, e retrata judeus como ratos, poloneses como porcos, alemães como gatos, franceses como sapos e norte-americanos como cães.

Outro romance gráfico relevante é O complô: a história secreta dos protocolos dos Sábios de Sião (2006), de Will Eisner (1917-2005), que trata da fabricação e divulgação dos Protocolos, em um processo que envolve a polícia rus sa de Czar Nicolau II, e dos desdobramentos da farsa, desmascarada pelo jornal britânico Times, nos anos 1920.

21 RABINOVITCH, 2004, p. 61.

22 RABINOVITCH, 2004, p. 31.

23 RABINOVITCH, 2004.

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Umberto Eco (1932-2016) publicou Cemitério de Praga, em 2010, romance cujo título alude ao antigo ce mitério, onde, de acordo com os Protocolos, judeus teriam conspirado para dominar o mundo. No capítulo Protocolos ficcionais, do livro Seis passeios pelos bosques da ficção, o crí tico afirma que o “documento”, aceito por diversos gover nos europeus desde o fim do século XIX, ajudou a disse minar o antissemitismo no mundo.24

Eco questiona: “se a atividade narrativa está tão intima mente ligada à nossa vida cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, não lhe acrescentamos elementos ficcionais?”.25 Ele sugere que nós, leitores, talvez interpretemos a vida como ficção e acrescentemos elementos ficcionais à realidade, trazendo, assim, um questionamento sobre a fronteira entre o real e o imaginário.

Por fim, trata-se de uma absurda construção (pela lite ratura e por outros meios) de um ideário de medo dos ju deus, visando objetivos políticos variados. Estes objetivos eram às vezes nacionalistas-xenofóbicos, às vezes econômi cos, às vezes religiosos. E os judeus, por não serem parte da cultura dominante, serviram (e em alguns lugares do mundo ainda servem) muito bem para o objetivo de colo car medo na população e a partir deste temor esconder (ou justificar) as falhas abjetas dos governos. Esse estado, além de acompanhar personagens e a ficção em geral, está por

24 ECO, 1994, p.123-148.

25 ECO, 1994, p. 137.

trás de comportamentos humanos, o que remete a Jean Delumeau, para quem, ao longo da História, indivíduos e coletividades permanentemente dialogam com o medo.

Juliano Klevanskis Candido é escritor e membro do Instituto Histórico Israelita Mineiro. Em 2022, concluiu doutorado em Letras: Estudos Literários pela UFMG, pesquisando sobre as literaturas israelense e hebraica.

Referências: BEN-PORAT, Ziva; HRUSHOVSKI, Benjamin. Poética e estruturalis mo em Israel. Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1974.

DELUMEAU, Jean; MACHADO, Maria Lucia. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

EISNER, Will. O complô: a história secreta dos protocolos dos Sábios de Sião. Tradução: Andre Conti. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2006.

FRIEDBERG, Maurice. A imagem do judeu na literatura soviética pós -stalinista. Tradução desconhecida. São Paulo: Grijalbo, 1962.

GONZALO, Álvarez Chillida. El Antisemitismo en España. La imagen del judío (1812-2002). Madrid: Marcial Pons, 2002.

PIPES, Richard. A história concisa da Revolução Russa. Tradução: T. Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.

RABINOVITCH, Gérard. Schoá: Sepultos nas Nuvens. Tradução: Fany Kon e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004.

ROSENFELD, Anatol et al. (org.). Entre dois mundos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1967.

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O CAMINHO DE ISRAEL Discurso de Yair Lapid na ONU

Em 22 de setembro de 2022, Yair Lapid, na qualidade de PrimeiroMinistro do Estado de Israel, proferiu um brilhante discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas em New York, em que ele de finiu de forma concisa e precisa os motivos do sucesso de Israel e o que o país espera alcançar no futuro. A Devarim apresenta aqui sua tradução para o português deste discurso.

Sr. Presidente, Sr. Secretário-geral, Delegados, Senhoras e Senhores,

Em novembro de 1947, esta Assembleia-Geral se reuniu e decidiu so bre a criação de um Estado judeu. Apenas algumas centenas de mi lhares de judeus viviam em Israel na época, em um ambiente hostil, chocados e devastados após a Shoá, em que seis milhões de nosso povo foram assassinados.

Setenta e cinco anos depois, Israel é uma forte democracia liberal. Orgulhosa e próspera, a “Start-Up Nation” inventou o Waze e o Iron Dome, medicamentos para Alzheimer e Parkinson e um robô que pode realizar ci rurgias na coluna vertebral; líder mundial em tecnologia de água e alimen tos, defesa cibernética e energia renovável; com 13 ganhadores do Prêmio Nobel em literatura e química, economia e paz.

Como isso aconteceu? Aconteceu porque decidimos não ser vítimas. Optamos por não nos deter na dor do passado, mas focar na esperança do futuro. Escolhemos investir nossas energias na construção de uma nação. Para construir uma sociedade feliz, otimista e criativa.

A história é determinada pelas pessoas. Precisamos entender a história, res peitá-la e aprender com ela. Mas também estarmos dispostos a, e sermos capa zes de, mudá-la. Escolher o futuro ao invés do passado. Paz ao invés da guer ra. Parceria ao invés de isolamento.

Nossas democracias estão sendo envenenadas por mentiras e notícias falsas. Não há nenhum país que enfrente esse fenômeno mais do que Israel. Não há país que tenha sofrido um ataque maior de mentiras, com uma quantidade tão grande de dinheiro e esforço sendo investido na disseminação da desinformação.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 83

Há alguns meses, sediamos a histó rica Cúpula do Negev. Sentamo-nos para jantar, não muito longe do túmu lo de David Ben Gurion, o pai funda dor do Estado de Israel. Éramos seis. O Secretário de Estado dos Estados Unidos, Ministros das Relações Exteriores do Egito, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Marrocos e Israel. Um jantar que há apenas dois anos ninguém acreditava ser possível.

E então a porta se abriu, alguém entrou e disse: “Lamento incomodá -lo, mas houve um ataque terrorista

Isso aconteceu porque decidimos não ser vítimas. Optamos por não nos deter na dor do passado e sim focar na esperança do futuro. Escolhemos investir nossas energias na construção de uma nação.

não muito longe de Tel Aviv. Dois israelen ses foram assassinados.”

Num instante, todos nós entendemos que o objetivo do ataque era destruir a cú pula. Para criar raiva entre nós, para nos fa zer argumentar e nos dividir nessa nova parceria.

Disse aos Ministros das Relações Exteriores: “Temos de condenar este ataque terrorista, agora mesmo, juntos. Temos de mostrar ao mundo que o terror não triun fará.” A sala ficou em silêncio. E então um Ministro das Relações Exteriores de um dos países árabes disse: “Estamos sempre contra

Julia Nikhinson/AP 84 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI
Yair Lapid na ONU

o terror, é por isso que estamos aqui.”

E cinco minutos depois, lançamos uma declaração conjunta condenando o ata que e santificando a vida, a cooperação e nossa crença de que há um caminho diferente.

A cúpula continuou. Acordos fo ram assinados. Grupos de trabalho fo ram formados para lidar com questões de tecnologia, segurança alimentar, energia, água, educação e infraestrutura. Esses grupos de trabalho estão mudando a face do Oriente Médio neste momento.

Um acordo com os palestinos, baseado em dois Estados para dois povos, é a coisa certa para a segurança de Israel, para a economia de Israel e para o futuro das nossas crianças.

Devemos saber, não há nenhum país no mundo que enfrente esse fenô meno mais do que Israel. Não há país que tenha sofrido um ataque maior de mentiras, com uma quantidade tão grande de dinheiro e esforço sendo investido na disseminação da desinformação.

Sempre que encontro alguém que critica Israel, tenho a mesma resposta: Venha nos visitar! Venha conhecer o verdadeiro Israel. Você vai se apaixonar. Um país que combina inovação de tirar o fôlego com um profundo senso de história. Grandes pessoas, ótima comida, gran de espírito. Uma democracia vibrante. Um país em que judeus, muçulmanos e cristãos convivem com plena igualdade cívica.

No governo que lidero há ministros árabes. Há um partido árabe como membro da nossa coalizão. Temos juízes árabes em nosso Supremo Tribunal. Médicos ára bes salvando vidas em nossos hospitais. Os árabes is raelenses não são nossos inimigos, eles são nossos parcei ros na vida.

Venha nos visitar! Você vai descobrir que Israel é um incrível mosaico cultural. Das montanhas brancas nevadas do Golan à areia branca do deserto do Negev. De Tel Aviv, a capital da alta tecnologia, uma festa sem parar no Mar Mediterrâneo, até Jerusalém, nossa capital eterna, a cidade santa para três religiões, em cujas belas ruas o pas sado encontra o futuro todos os dias.

No entanto, há duas grandes ameaças sobre a cabeça de nosso maravilhoso país. Elas também pairam sobre suas cabeças, mesmo que vocês possam tentar negá-las. A primeira é a ameaça nuclear – o medo de que os Estados terroristas e as organizações terroristas ponham as mãos em armas nucleares. A segunda ameaça é o de saparecimento da verdade.

Nossas democracias estão lentamente sendo envene nadas por mentiras e notícias falsas. Políticos oportunistas, Estados totalitários e organizações radicais estão con taminando nossa percepção de realidade.

Em maio passado, a foto de Malak Al-Tanani, uma menina palestina de três anos, foi publicada em todo o mundo, com a terrí vel notícia de que ela foi morta com seus pais em um ata que da Força Aérea Israelense. Era uma imagem como vente, mas Malak Al-Tanani não existe. A foto foi tirada do Instagram. É de uma garota da Rússia.

Eu posso dar milhares de exemplos de notícias falsas semelhantes sobre Israel. O movimento anti-Israel vem espalhando essas mentiras há anos. Na mídia, nos cam pi universitários e nas mídias sociais. Por que você está ouvindo as pessoas que investiram bilhões de dólares em distorcer a verdade? Por que você está do lado de extremistas islâmicos que enforcam gays em guindastes, opri mem mulheres e disparam foguetes contra civis a partir de jardins de infância e hospitais?

Eu não sou um convidado neste edifício. Israel é uma nação soberana orgulhosa e um membro igual das Nações Unidas. Não ficaremos em silêncio quando aqueles que desejam nos prejudicar usarem este plenário para difun dir mentiras sobre nós.

Conduzindo essa orquestra de ódio, está o Irã. Há mais de quarenta anos, nas praças e nas ruas do Irã, ma nifestantes são fotografados queimando bandeiras is raelenses e americanas. Perguntem-se: de onde vêm as bandeiras? Como eles conseguiram tantas de nossas bandeiras?

A resposta é: eles as fabricam especialmente para que possam queimá-las. É a isto que uma indústria de ódio se parece. Esse é um regime que lida sistematicamente com o ódio.

Eles até odeiam seu próprio povo. Jovens iranianas es tão sofrendo e lutando contra as amarras do regime do Irã, e o mundo está em silêncio.

Elas clamam por ajuda nas mídias sociais. Elas pagam por seu desejo de viver uma vida de liberdade – com suas vidas.

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Israelita–

O regime do Irã odeia judeus, odeia mulheres, odeia gays, odeia o Ocidente.

Eles odeiam e matam muçulma nos que pensam de forma diferente, como Salman Rushdie e Mahsa Amini. Seu ódio é um modo de vida. É uma maneira de preservar seu do mínio opressivo.

Há apenas um Estado-membro na ONU que declara abertamente seu desejo de destruir outro Estadomembro. O Irã declarou repetida mente que está interessado na “des truição total” do Estado de Israel. E este edifício está silencioso.

O regime do Irã odeia judeus, odeia mulheres, odeia gays, odeia o Ocidente. Eles até odeiam seu próprio povo. Jovens iranianas estão sofrendo e lutando contra as amarras do regime, e o mundo está em silêncio.

Seu ódio é um modo de vida. É uma maneira de preservar seu domínio opressivo.

O país que quer nos destruir é também o país que fun dou a maior organização terrorista do mundo, o Hezbollah. O Irã financia o Hamas e a Jihad Islâmica e está por trás de ataques terroristas em massa da Bulgária a Buenos Aires. É uma ditadura assassina que está fazen do todos os esforços para obter uma arma nuclear.

Se o regime iraniano conseguir armas nucleares, ele vai usá-las.

A única maneira de impedir o Irã de obter uma arma nu clear é colocar uma ameaça militar crível em cima da mesa. É obrigatório deixar claro ao Irã que se avançar com o seu programa nuclear, o mundo não responderá com palavras, mas com força militar. Toda vez que uma ameaça como essa foi colocada na mesa no passado, o Irã parou e recuou. Hoje, o mundo está escolhendo a opção fácil. Ele es colhe não acreditar no pior, apesar de todas as evidências em contrário. Israel não tem esse privilégio. Desta vez, não estamos de mãos vazias contra aqueles que querem nos destruir.

Os judeus hoje têm um Estado. Temos um exército. Temos grandes amizades, em primeiro lugar com os Estados Unidos. Temos capacidades e não temos medo de usá-las. Faremos o que for preciso: o Irã não terá uma arma nuclear. Não ficaremos parados enquanto houver aqueles que ten tam nos matar. Não novamente. Nunca mais.

A força econômica e militar de Israel nos permite nos proteger, mas também nos permite outra coisa: lutar pela paz com todo o mundo árabe. E com nossos vizinhos mais próximos – os palestinos.

Um acordo com os palestinos, ba seado em dois Estados para dois po vos, é a coisa certa para a segurança de Israel, para a economia de Israel e para o futuro das nossas crianças.

A paz não é um compromisso. É a decisão mais corajosa que podemos tomar. A paz não é fraqueza. Ela in corpora dentro de si toda a força do espírito humano. A guerra é a rendição a tudo o que é mau dentro de nós. A paz é a vitória de tudo o que é bom.

Apesar de todos os obstáculos, ainda hoje uma grande maioria de is raelenses apoia a visão desta solução de dois Estados. Eu sou um deles.

Temos apenas uma condição: que um futuro Estado palestino seja pacífico. Que não se torne mais uma base terrorista para ameaçar o bem-estar e a própria existên cia de Israel. Que teremos a capacidade de proteger a segurança de todos os cidadãos de Israel, em todos os momentos.

Olhem para Gaza. Israel fez tudo o que o mundo nos pediu. Nós partimos. Há 17 anos desmantelamos as co lônias, desmantelamos as nossas bases militares. Não há um único soldado israelense em Gaza. Até lhes deixamos 3.000 estufas para começarem a construir uma economia para eles.

O que eles fizeram em resposta? Em menos de um ano, o Hamas, uma organização terrorista assassina, che gou ao poder. Eles destruíram as estufas e as substituíram por campos de treinamento terroristas e bases de lança mento de foguetes.

Desde que deixamos Gaza, mais de 20.000 foguetes e mísseis foram disparados contra Israel. Todos eles con tra civis. Todos eles contra nossos filhos.

Neste edifício, nos perguntaram mais de uma vez por que não levantamos as restrições em Gaza. Estamos prontos para fazer isso, amanhã de manhã. Estamos prontos para fazer mais do que isso. Eu digo daqui para o povo de Gaza, estamos prontos para ajudá-lo a cons truir uma vida melhor, para construir uma economia. Apresentamos um plano abrangente para ajudar a re construir Gaza.

86 | devarim | Revista da Associação
ATID / Associação Religiosa
ARI
Cultural–
Israelita–

O Secretário-geral António Guterres (à direita) encontra-se com Yair Lapid, PrimeiroMinistro e Ministro dos Negócios Estrangeiros do Estado de Israel, durante a septuagésima sétima sessão do Debate da Assembleia Geral.

Só temos uma condição: parem de atirar foguetes e mísseis em nossos filhos. Abaixem suas armas, não have rá restrições. Abaixem suas armas, tragam para casa nos sos filhos que estão sendo mantidos em cativeiro – Hadar e Oron, que sua memória seja uma bênção; Avera e Hisham, que ainda estão vivos – e construiremos juntos sua economia.

Podemos construir o seu futuro juntos, tanto em Gaza como na Cisjordânia. Baixem as armas e provem que o Hamas e a Jihad Islâmica não vão tomar o Estado palesti no que querem criar. Baixem as armas e haverá paz.

Israel busca a paz com nossos vizinhos. Todos os nos sos vizinhos. Não iremos a nenhum outro lugar. O Oriente Médio é nossa casa. Estamos aqui para ficar. Para sempre. E apelamos a todos os países muçulmanos – da Arábia Saudita à Indonésia – para que reconheçam isso e venham conversar conosco. Nossa mão está estendida para a paz.

O ônus da prova não está sobre nós. Já provamos nos so desejo de paz. O nosso tratado de paz com o Egito está totalmente implementado há 43 anos. O nosso tratado de paz com a Jordânia está em vigor há 28 anos. Somos um país que mantém a sua palavra e cumpre acordos.

Provamos nosso desejo de paz através dos Acordos de Abraão, da Cúpula do Negev e dos acordos que assina mos com o mundo árabe.

No livro de Números, há um versículo que é familiar a todo judeu:

םולש ךל םשיו ךילא וינפ םשה אשי Que o Senhor eleve Seu semblante para você e lhe conceda paz.

O Estado de Israel é o único país do mundo fundado por um livro. O Livro dos Livros. O Tanach. Esse livro e os princípios da democracia liberal exigem que esten damos a mão em paz. A nossa história exige que sejamos claros e muito cuidadosos.

Foi assim que fizemos a paz no passado. É assim que faremos a paz no futuro.

Gentilmente traduzido por Sheila e Michel Ventura da versão oficial em inglês do discurso

UN Photo/Loey
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 87
Felipe Obrigado.

DE UMA NOITE DE IOM KIPUR

Grandes velas, preparadas para longa duração, iluminavam o vasto salão e acentuavam os coloridos vitrais, num contraste com o acinzentado daquele dia.

Numa grande cidade, uma cúpula incrustada de pontinhos brilhantes orna mentou a noite que descerrava mais um Iom Kipur, mas o dia seguinte ama nheceu inesperadamente cinzento e chuvoso. O céu parecia ter descido a poucos palmos acima das cabeças. Empurrava os indivíduos para dentro de si mes mos. Diligentemente ajustado para o Dia do Perdão, reabriria seus portões a multicentenária sinagoga local que uma inclemente guerra reduzira a escom bros. Um trabalho demorado e minucioso triunfou sobre a descrença de se ter de volta o templo de tanta glória. Para os sábios do lugar, nenhum outro cená rio seria mais adequado para sediar a celebração do dia mais importante de sua religião. É que ele se prestava a representar, para a população de fé abalada pe los sofrimentos trazidos pela guerra, uma reafirmação do paradigma da perpe tuidade do povo hebreu.

Comemorado o Rosh Hashaná, de dez dias dispôs cada membro da comu nidade para se esquadrinhar no espelho de sua consciência, na avaliação do cum primento dos valores outorgados por Deus à nação judaica, desde milhares de anos, para sua prática e difusão. Compartilhara? Cuidara? Socorrera? Respeitara? Agradecera? Refreara suas pulsões? Perdoara, como agora suplicava?

Após a destruição da sinagoga, emudecida sua voz inspiradora, um afrouxa mento de princípios se instalara naquele lugar. Pecava-se muito. Era penosa uma honesta introspecção. Mas, naquele Iom Kipur, o farol se reacenderia ful gurante, para devassar a consciência culposa daquela gente e lhe favorecer o arrependimento.

88 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI
Salomão Polakiewicz

Embora austero, o renovado monu mento destacava-se sobre seus arredores, imponente. Grandes velas, preparadas para longa duração, iluminavam o vasto salão e acentuavam os coloridos vitrais, num contraste com o acinzentado daque le dia. Como expressão do empenho em se louvar o Criador, mãos habilidosas er gueram um púlpito no centro do templo, sutilmente esculpido em madeira, desde o gradil da escadaria que dava acesso ao seu alto até as colunas que sustentavam um domo dourado. Ao redor, poucos assentos estavam disponíveis, reservados às pessoas mais idosas ou debilitadas. Ainda que torturante, seria cir cunstancial que todas as demais permanecessem de pé por todo o tempo, para que o espaço excedente pudesse acomo dar um público presumivelmente numeroso. Aos devotos locais se uniriam correligionários esperados de comunida des vizinhas. Desejosos de testemunharem o evento, de bom grado eles despertariam bem cedo e, mesmo debilitados pelo jejum proverbial, venceriam as distâncias por es tradas que seus passos tornariam enlameadas. Mas o recin to se revelaria insuficiente para impedir que os indivíduos se apertassem numa forçada e constrangida intimidade.

Para voltarem a cobrir suas cabeças, homens e mulheres se curvaram entre si em direção ao solo, em busca dos véus e solidéus que ali se confundiam. Desavisado, alguém diria que mutuamente se reverenciavam.

Foi quando, repentinamente, uma as sombrosa ventania escancarou as pesadas portas do templo. Seu rugido abafou todas as vozes humanas. Crânios foram desnuda dos de suas coberturas, mantos agitados como asas. O turbilhão soprou em cada re côndito daquela casa, como a purificá-la de seus pesadelos. E, tão súbita e misteriosa mente quanto surgira, ele logo se extin guiu. Para voltarem a cobrir suas cabeças, homens e mulheres se curvaram entre si em direção ao solo, em busca dos véus e so lidéus que ali se confundiam. Desavisado, alguém diria que mutuamente se reveren ciavam. Na pressa, requintados ou simplórios, os objetos foram recolhidos sem qualquer critério de propriedade, num compulsório desapego. E, sob a pálida iluminação das poucas velas que não tiveram extinguido seu fogo, o brilho de joias e adereços se ofuscou e o colorido das vestimentas se desbotou num cinzento sem identidade.

Ao final das preces do dia, as primeiras estrelas se mos traram, rompendo as nuvens, talvez curiosas do que em baixo ocorria, ingenuamente legitimando a que a cerimô nia atingisse seu ponto culminante: o dirigente, esgotada a solene leitura do rolo sagrado, elevou-o para que toda a congregação reverentemente o contemplasse, na esperan ça de que, doravante, fossem cumpridas as leis divinas ali gravadas. Para alçar a comunidade ao nível mais alto de concentração, sacerdotes empunharam trombetas elabora das de chifres de animais e aguardaram a orientação para fazerem soar, do oco daquelas peças, os límpidos sons que abririam os céus para o veredito de cada um.

Passada a surpresa, o decano resgatou o momento de apoteose da cerimônia. Emitidos os toques do shofar, a perplexa assembleia, composta por eruditos e ignorantes, ricos e pobres, jovens e velhos, patrões e servos, mansos e rudes, abolidas todas as diferenças, se amalgamou num mesmo clamor por perdão e vida. E toda aquela agitação se acalmou quando um som terno e suave sussurrou aos ouvidos de cada um daquela gente ainda tola e insensata, Sua amada descendência, destinada à santidade, no tempo justo: Amém!

Salomão Polakiewicz é médico, casado, e tem três filhos. É autor do livro “M8 – Quando a Morte Socorre a Vida”, editado pela Editora Crescer em 1996 e que serviu de inspiração para um filme de mes mo nome, lançado em 2020. Mora em Belo Horizonte e é frequen tador da Associação Israelita Brasileira.

90 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI SkyNext/iStockphoto

Residencial para a Terceira Idade desde 1937

Na ética judaica, ajudar os outros é um dever essencial e nossa tradição nos ensina que somos responsáveis uns pelos outros. O Lar União tem sido esteio de nossa comunidade desde sua fundação, em 1937.

A atual sede, inaugurada em 1953, foi concebida para oferecer aos moradores do Lar instalações adequadas e confortáveis.

Ao longo dos anos, essa sede foi ampliada e ganhou áreas especiais para atividades como fisioterapia, restaurante, sala de TV. E as instalações vêm sendo modernizadas constantemente, tanto para proporcionar saúde, alegria e bem-estar aos residentes, como para torná-las mais econômicas e sustentáveis.

Em Rosh Hashaná 5783, inauguramos nossa nova sinagoga Beit União, revitalizando elementos da antiga sinagoga, com espaço mais moderno e amplo, reforçando assim nosso compromisso com a vida judaica de nossa instituição.

Venha

85 anos Leia sobre a nossa história.

(21) 2502-5522

Venha nos conhecer.

ANOS FAZENDO o BEM

Rua Santa Alexandrina, 464 Rio Comprido – Rio de Janeiro CEP: 20261-232

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Design: Charles Steiman | Ilustrações: Christian Monnerat

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa
ARI | devarim | 91
Israelita–
Tel: (21) 2502-5522 contato@laruniao.com.br www.laruniao.com.br lar união laruniao lar uniao nos fazer uma visita. Aguardamos você e sua família.

UM VIOLINO DA SHOÁ EM COPACABANA

Um dia de outubro a Devarim recebeu um mail que dizia: “Bom dia! Gostaria de enviar um livro para o Raul Cesar Gottlieb. Qual o melhor endereço? Entrego na portaria da própria da ARI?”

Alguns poucos mails e dias depois o autor do livro, Bruno Thyss, e eu estávamos tomando um café no Jardim Botânico. Depois de achar e cele brar as inevitáveis (e neste caso muitas) conexões naquilo que o Bruno chama de “rede social da comunidade judaica”, conversamos sobre os artigos publica dos pela Devarim 44 (abril de 2022) a respeito da música na Shoá e do proje to dos Violinos da Esperança.

Pois o livro de ficção do Bruno, um experiente jornalista com longa e bem-sucedida carreira nas organizações Globo, gira exatamente sobre estes te mas, urdidos dentro de uma deliciosa trama de mistério e delicada investigação, ambientada no Rio de Janeiro dos nossos dias. É um livro não muito gran de – 152 páginas –, de leitura muito agradável, em que cada capítulo puxa o seguinte, assim que a maior dificuldade que ele apresenta é a de deixá-lo no meio para terminar depois.

O Canto do Violino Bruno Thys

Eu adorei a leitura que devorei no fim de semana seguinte ao nosso café. Mas você não precisa, como aconteceu no meu caso, ter se envolvido, por uma feliz coincidência, na pesquisa das mesmas matérias que o Bruno para gostar do livro. Ele está sendo recebido com inúmeros aplausos:

Joyce Niskier, atriz

Muito comovente o livro, O Canto do Violino, de Bruno Thys. A história te leva a percorrer caminhos inimagináveis, através de um instrumento musical, símbolo de uma cultura.

Ruy Castro, jornalista, biógrafo e escritor Trinta anos de trabalho em biografias e reconstituições históricas corromperam minha capacidade de ler ficção. Fico o tempo todo em busca de elementos da realidade.

Em “O canto do violino”, nunca pensei que houvesse tanta coisa fascinante em torno de um violino. E, como estou trabalhando num livro que tratará da Segunda

92 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI
resenha de livro
Editora Máquina de Livros, 2022 À venda em formato livro e ebook na Amazon

Guerra, peguei dicas que me serão úteis. A ficcionista pura Heloisa Seixas me falou de como a música nos campos de con centração, no capítulo XI, a emocionou. Com isso o livro é vencedor em duas categorias.

Pedro Bial, jornalista, ator e escritor

Que beleza de livro! Sinfonia à memória, à vida, à arte. Profundo como só a simplicidade pode alcançar, melodioso, emocionante.

Marcos Shechtman, diretor de TV e cinema

Adorei, tive muita fruição na busca do ‘enigma’, quase como se o Carlos fosse uma espécie de D. Quixote moderno conec tando pistas ocultas. Especialmente saborosas as conexões mu sicais e do humor judaico.

Mas, creio, o grande diferencial é o olhar contrastante de um não-judeu para os judeus, o que permite ‘iluminar’ de maneira muito inteligente todo o legado judaico…

Parabéns pelo belo e saboroso livro!!!

Aliás extremamente cinematográfico…:)

Padre Rafael Vieira, trabalhou na Rádio do Vaticano e na assessoria da CNBB

Meu Deus. Me emocionei com cada descoberta do seu “Carlos”. Um livro comovente. A música, a maldade, a dor e a morte. A curiosidade, a bondade, a solidariedade, o canto de um instrumento. Nunca tinha visto estas palavras tão bem costuradas umas nas outras. Que lindo!!

Tirei foto de duas páginas … daquela que a diretora de Curitiba cita o Amos Oz… “provavelmente nem Deus era re ligioso” … e da pergunta que não foi feita ao cliente do escri tório“Por que acordar os anjos e perturbar o Criador a esta hora da madrugada e duas vezes por dia?”… sei que esses des taques falam de mim mais do que do seu livro e de você… estou feliz e agradeço o deleite dessa leitura!

Rosa Lima, jornalista

A caminho do Estação, parei na Travessa de Botafogo para pa querar os livros e me deparei com o seu “O Canto do Violino”. Pensei: Bruno Thys escrevendo ficção? O título me seduziu (eu canto, fiquei curiosa) e decidi apostar. Que grata surpresa!

O texto claro, as informações precisas, o jeito leve e fluen te de escrever são a sua cara. Como também o são os traços da cultura judaica – o humor, o apreço à tradição e o amor à

música. Sem falar da informalidade e da carioquice que são sua marca registrada. Tudo no tom certo. Mas além de tudo você conseguiu me encantar com a história do violino e o enor me poder da música. Emocionante! Parabéns!

Oswaldo Carvalho, escritor Acho que foi o Chico Buarque que disse que busca fazer sua literatura soar como música. O texto do Bruno é assim, impe cável, redondo, ritmado. E assim a gente é captado pela aven tura do protagonista Carlos e descobre, junto com ele, tudo so bre a relação entre música e Holocausto.

É uma história de muito sofrimento, e nunca é demais lem brar quanta dor ideologias totalitárias podem nos causar. Mas há também no livro uma abertura para o sublime, para a vi tória da arte sobre o horror. Uma leitura breve e potente que re vela um aspecto pouco lembrado de uma tragédia que, mais de sete décadas depois, ainda não foi totalmente digerida.

Ricardo Cota, crítico de cinema Leitura prazerosa e magnética. No livro, a compra de um vio lino de segunda mão na internet leva o protagonista e o leitor a uma curiosa investigação que vai da Copacabana de hoje à Polônia da Segunda Guerra, com uma escala na Cremona do luthier Stradivari.

Thriller cativante, com toques de erudição musicófila, a es treia no campo da ficção traz muito do espírito do autor: jor nalista de prima, pianista supimpa e observador acurado de uma de suas especialidades: o gênero humano. Para ser lido ao som da trilha de A Lista de Schindler. Pinta de que em breve vira roteiro.

A introdução do livro é assinada pelo Rabino Nilton Bonder. Ele diz: “Bruno nos conduz a uma viagem a suas próprias raízes: a herança judaica de seus antepassados no Leste Europeu, a música e o Rio de Janeiro.”

Embarcar nesta viagem junto com Bruno e seus perso nagens nos enriquece, informa e diverte. Existe uma cria ção literária judaica no Brasil, feita por filhos, netos e bis netos de imigrantes, que aborda os mais variados temas, sendo a maioria deles uma combinação de judaísmo com brasilidade. Essa literatura prova a feliz acolhida que tive mos no nosso belo país que, além de não ter nos forçado a abandonar a identidade judaica, na esmagadora maioria das vezes a celebra.

ARI | devarim | 93
Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita–
resenha de livro

EM POUCAS PALAVRAS

AWikipedia explica que um campo geomagnético é o campo magnético que se estende do interior da Terra para o espaço, onde interage com o vento solar, um fluxo de partículas carregadas que emanam do Sol. Estes campos magnéticos mudam de posição lenta e continuadamente, deixando o registro da passagem do tempo em rochas.

Pesquisadores da Universidade de Tel Aviv e da Universidade Hebraica de Jerusalém desenvolveram estudos para avaliar a teoria de que

os minerais contidos em rochas que foram expostas a fogo intenso registram o campo magnético no momento do incêndio.

Para provar a validade de sua teoria, eles e mais uma equipe multidisciplinar de pesquisadores de vários países usaram dados de campos geomagnéticos de 17 sites arqueológicos de Israel que, no conjunto, contêm 21 camadas de cidades destruídas.

Com isso eles provaram não apenas a validade de sua teoria,

como também a acuidade dos relatos históricos do Tanach (a Bíblia Hebraica). Eles partiram da camada arqueológica correspondente à destruição do Primeiro Templo de Jerusalém pelos babilônios, em aproximadamente 830 antes de era comum, e com isso conseguiram datar as demais destruições nos sites arqueológicos estudados e comprovar que os períodos registrados nos relatos do Tanach correspondem aos períodos revelados pelos campos geomagnéticos.

Provaram também as suspeitas de alguns pesquisadores, que argumentam que Judá não foi completamente destruída pelos babilônios. Cidades no Neguev e em outras localidades afastadas de Jerusalém não foram afetadas pela conquista da Babilônia, tendo sido destruídas várias décadas depois, provavelmente pelos edomitas, o que explica o ódio que a Bíblia Hebraica expressa por este povo, como, por exemplo, na profecia de Ovadiá (Obadias) que abre seu curto livro com: “Assim disse meu Senhor Deus a respeito de Edom: Farei de você a menor entre as nações, você será a mais desprezada.”

Mas, sem dúvida, a descoberta mais importante deste estudo é que o registro magnético dos minerais em rochas incendiadas determinam a data do incêndio, o que vai ajudar a datar a evolução geológica do mundo.

A ciência avança numa velocidade jamais experimentada na história humana e, neste caso, ela precisou que o Tanach lhe desse uma mãozinha.

94 | devarim | Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI em poucas palavras
James Emery, CC BY 2.0 via Wikimedia Commons O anfiteatro em Beit She’an

QUEM SÃO BEN-GVIR E SMOTRICH

Quem

são Ben-Gvir e Smotrich, que formam juntos o terceiro partido mais votado em Israel na última eleição, o “Sionista Religioso”?

Thomas Friedman:

Netanyahu foi impulsionado ao poder por aliados que consideram cidadãos árabe-israelenses uma quinta-coluna em que não se pode confiar, que prometeram tomar o controle político mediante nomeações na justiça, que acreditam que estabelecimentos judaicos [em terras palestinas] têm de ser expandidos para que não reste uma só polegada para um Estado Palestino, que querem fazer mudanças jurídicas que congelem o julgamento de Netanyahu por corrupção, e que expressam insatisfação com a longa e forte postura de Israel em favor de direitos LGBTQ+

Estamos falando de pessoas como Itamar Ben-Gvir, que foi condenado por um tribunal israelense em 2007 por incitação ao racismo e apoio à uma organização terrorista judaica. Netanyahu, pessoalmente, forjou uma aliança entre a “Força Judaica” de Ben-Gvir e o partido do Sionismo Religioso de Bezalel Smotrich,

conhecido, entre outras coisas, como quem sugeriu que mães israelenses devam ser separadas de mães árabes nas enfermarias de maternidade nos hospitais israelenses.

A coalizão de Netanyahu atacou também as vitais instituições independentes que sustentam a democracia israelense e são responsáveis, entre outras coisas, por proteger os direitos das minorias. Netanyahu e seus aliados querem por sob o controle da direita a Suprema Corte, “precisamente para que não protejam os direitos das minorias” com o vigor e o alcance de que hoje dispõem, segundo Moshe Halbertal [filósofo da Universidade Hebraica].

Daniela Kresch:

Quando o então primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin foi assassinado, em 4 de novembro de 1995, o jovem Itamar Ben-Gvir, com seus 19 anos, comemorou. Ele fazia parte – assim como o assassino, Yigal Ami – de um grupo de radicais de extrema-direita que odiava a ideia de acordos de paz com os palestinos, a exemplo dos de Oslo, que Rabin havia assinado três anos antes.1

Exatos 27 anos depois, BenGvir comemora novamente. Ele foi o fenômeno do pleito parlamentar de Israel desta semana junto com seu parceiro de coligação, Bezalel Smotrich.

A surpresa maior se deu porque, até bem pouco tempo atrás, ambos eram considerados radicais demais, marginalizados pelo mainstream político. Suas ideias e discursos xenófobos e racistas chocavam, mas não eram levados muito a sério. Agora, porém, essa retórica parece ser deglutida por cada vez mais eleitores israelenses, principalmente mais jovens, religiosos e abertos a estratégias violentas – e a comparação a líderes de ultradireita em outros países não é mera coincidência. Foi Netanyahu quem apadrinhou a união dos dois, pois sabia que só conseguiria formar um governo incluindo partidos religiosos e ultranacionalistas.

1 Ele roubou uma peça do carro de Rabin e disse que “se ele pôde chegar ao carro de Rabin, pode-se che gar até ele”. Num pôster, a imagem de Rabin estava sob a mira de um fuzil. Semanas depois Rabin foi assassinado.

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 95 em poucas palavras
Portão de Jafa, Jerusalem Laura Siegal/Unsplash.com

UM PAÍS SURPREENDENTE

Ao começo da última estrofe do Lechá Dodi, os aproximadamente 120 judeus dentro da pequena sinagoga se levantam em massa. 110 deles voltamse para a parede dos fundos da sinagoga e 10 para a porta da sinagoga, numa de suas paredes laterais.

Os 10 em minoria se entreolham com cara de ponto de interrogação. Mas rapidamente seus instintos os impelem a seguir a maioria e se voltam, eles também, para a parede dos fundos e é, com esta postura, que os 120 se curvam para simbolizar o recebimento da noiva – o Shabat.

Após o Kabalat Shabat, esses 10 turistas trocam ideias. Que costume é esse? Nenhum deles havia testemunhado algo igual.

Essa cena aconteceu no último Shabat do mês de outubro, em Marrakech, no Marrocos. Naquele país islâmico, há uma comunidade judaica de 3.000 pessoas, que são os remanescentese dos quase 400.000 que a compunham no momento de sua expansão máxima.

Os judeus de Marrakech rezam com uma kavaná de arrepiar os cabelos, com um canto alto e forte, que só termina quando a última pessoa sai da sinagoga. E seguem o ritual do Kabalat Shabat dos primeiros cabalistas de Tsfat que tinham o costume de celebrá-lo na porta da sinagoga, voltados para o pôr do sol no Ocidente, entoando o Lechá Dodi enquanto abriam os braços para receber o Shabat.

Portanto, no Lechá Dodi do Marrocos não se dirige o corpo nem para a porta, por onde entraria a noiva, nem para o Aron Hakodesh, na parede oriental, e sim para a parede ocidental da sinagoga – sua parede dos fundos.

O turista que faz questão de conhecer a vida judaica nas cidades que visita não se surpreende com minhaguim (costumes litúrgicos) diferentes, por mais inesperados que sejam. Mas as surpresas judaicas do Marrocos não se limitam à liturgia. Elas são muitas e tremendamente significativas.

Em primeiro lugar há o cuidado com que o governo árabe daquele país dedica aos sinais de sua multissecular presença judaica. Cemitérios preservados em vilarejos afastados, onde há muitíssimos anos não há judeus; sinagogas como monumentos nacionais e a recuperação dos nomes judaicos das ruas das Meláchs, os antigos bairros judaicos de suas cidades.

96 | devarim | Revista
ATID /
ARI
da Associação Cultural–
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Detalhe da porta do Aron Hakodesh da sinagoga de Fez
em poucas palavras
Sinagoga em Marrakech, outra das grandes cidades do Marrocos Porta de um cemitério Detalhe da Parochet (cortina que cobre o Aron Hakodesh) em uma das sinagogas de Marrakech Página de um livro de rezas que contém uma representação interessante do nome de Deus Sinagoga em Fez, uma das maiores cidades do Marrocos

Além disso, estes bairros não se assemelham em nada aos guetos judaicos das cidades europeias. Suas ruas têm a mesma largura que a dos bairros muçulmanos construídos na mesma época e sua densidade populacional é idêntica à dos bairros não judeus. As casas não se empilham em amontoados de aposentos minúsculos, tal qual acontece, por exemplo, no gueto de Roma.

Não menos importante que isso, a influente presença judaica na administração do país é demonstrada pelo fato que dois dos quatro componentes do conselho real são judeus. A isso se soma o fato de o Marrocos ter sido o primeiro (e por enquanto o único) país islâmico, em toda a história, a inaugurar uma sinagoga dentro de uma de suas universidades.

E, finalmente, a maciça presença de turistas israelenses que, depois da normalização das relações entre Israel e o Marrocos em 2020, são responsáveis por um acentuado aclive nos números globais do turismo do país. Muitos destes visitantes têm ascendência marroquina e sua viagem é uma volta às raízes familiares. Outros são atraídos pela beleza exótica do país, pela gentileza e receptividade do povo e, por quê não?, por seus preços baixos. Não há uma loja de artigos marroquinos que não tenha uma seção de Judaica. Há objetos e obras de arte para todos os gostos e bolsos.

Os judeus já tiveram altos e baixos naquele país. Que esse momento de alta sinalize o ponto de partida para um melhor entendimento entre judeus e muçulmanos em todas as partes do mundo.

Visite o Marrocos e inclua o circuito judaico no roteiro. Você vai se encantar!

Porta de casa típica do Marrocos antigo, chamadas Riad (literalmente, pátio) , onde os aposentos cercavam um pátio central, o que as tornavam arejadas e cheias de luz

Uma placa de bronze numa loja de especiarias que informa que seus preços são fixos (ou seja, é uma loja onde não se barganha). A ordem dos idiomas na placa é significativa. Primeiro o francês e o árabe: os idiomas oficiais do país. Depois o hebraico e o inglês: os idiomas falados pelos turistas que visitam a loja.

Antiga (e grande) Menorá de madeira num antiquário de Ourzazate, uma cidade que fica num grande oásis do deserto do Saara, um cenário muito usado por Hollywood para seus filmes

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Revista da Associação Cultural– ATID /
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ARI
Arco na Melá de Marrakech, onde a placa, em árabe e francês indica “Arco do Rabino Mordechai ben Attar”
em
poucas palavras
Fotos Raul Gottlieb

Porta de um cemitério reconstruído e mantido pelo governo em um vilarejo perdido nas montanhas do Médio Atlas, às portas do deserto do Saara

em poucas palavras

DIREITA, VOLVER?

Para um velho judeu sionista amante de Israel, que acompanhou como criança a luta pela sua criação, como adolescente sua criação e a luta por sua sobrevivência, que participou como jovem da construção do estado nacional do povo judeu, que arou, plantou e colheu na terra de Israel, que se orgulhou e se orgulha de suas conquistas, que vestiu o uniforme de seu exército, é difícil escrever sobre o resultado das últimas eleições, tema previamente escolhido, sem saber o resultado.

Como velho judeu sionista amante de Israel, não sou indiferente ao caráter e à identidade do estado, que não se limitam aos símbolos patrióticos (que me emocionam também), e que têm a ver com um futuro que seja judaico, sionista, humanista, democrático, universal e planetário, e não apenas, ou predominantemente, ufanista e hegemônico. Não devemos querer ser novamente um gueto, nem mesmo um

gueto altivo e dominador. A terra de Israel não é importante só porque é citada na Bíblia, mas principalmente por ser a origem, o destino e o lugar histórico de um povo de 4.000 anos que tem como bússola uma ética, um comportamento (pode-se chamar isso de religião judaica também) que diz respeito muito mais a pessoas, à humanidade, a um modo de se relacionar com o próximo, judeu ou não; que está explicitamente descrito por nossos profetas, resumido por Hillel, e implicitamente contido na visão moderna do Estado Judeu de Herzl, e na declaração de independência de Israel, um estado judaico e democrático, baseado na justiça e no humanismo.

Agora, tenho a quase impossível tarefa, que me impus a mim mesmo, de ser fiel a essa crença de toda a vida – sem o quê não poderia escrever um artigo – e ao mesmo tempo respeitar um espaço que pertence a uma comunidade em

que nem todos os membros pensam como eu. Preciso, portanto, me ater a fatos e significados, não por reivindicação de ‘neutralidade’, mas para elaborar alguma compreensão do momento atual e dos riscos que traz. Infelizmente, mas em benefício de minha tarefa, os fatos falam por si.

O fato sintetizador de outros fatos que vêm se acumulando em Israel, é que o país caminha celeremente para a extrema-direita, e que o resultado destas eleições parece anunciar que chegou lá. Entendamos antes que no termo ‘extrema-direita’, como aqui usado, o elemento crítico não é ‘direita’ (respeitando, sem concordar com eles, quem ache que a direita é o melhor caminho para a humanidade em geral e para Israel em particular), e sim ‘extrema’. (Assim como seria, simetricamente, no termo ‘extrema-esquerda’.)

Mas se quero me ater a fatos, quais são, então, os fatos associados à extrema-direita?

Revista da Associação Cultural– ATID / Associação Religiosa Israelita– ARI | devarim | 99 Raul Gottlieb
cócegas no raciocínio
Paulo Geiger Cole Keister/Unsplash.com

cócegas no raciocínio

Os fatos que caracterizam a extrema-direita em Israel são os mesmos que a caracterizam em geral, no mundo e na história. No nível político, tendência e esforço para assumir, sejam quais forem os meios, todos os poderes, perpetuar-se no poder, violar, ou tentar violar preceitos e dispositivos legais em benefício de seus objetivos, programar a ‘purificação’ da sociedade pela eliminação do outro. No nível social, instigar o ódio aos opositores dividindo a sociedade, demonizar e ameaçar e agredir opositores e minorias, pretender ser a única ‘verdade’ patriótica e moral. Na religião, arvorar-se a ser, também, a única ‘verdade’, e tentar impô-la como fato político e autoritário, atitude que de religiosa não tem nada. Respeitando minha própria decisão de ser objetivo e não interpretar fatos, não vou mencionar aqui o termo ‘fascismo’, no conteúdo e nos métodos, mas não mencionar não altera os fatos.

Tudo isso são realmente fatos e não ilações, descritos em notícias de jornais e em relatos confiáveis de amigos e conhecidos. ISSO ESTÁ ACONTECENDO EM ISRAEL! E significados que são explicitados pelos protagonistas das notícias configuram uma situação que cada vez mais, no mundo, caracteriza sociedades em processo de radicalização e com tendência para os extremos. Como aqui, em Israel amizades foram desfeitas, o ódio substituiu a discordância pura e simples, e como a tendência é para a direita, ‘esquerdistas’ são chamados de traidores, vilões, inimigos, melhor será, no melhor dos casos, que deixem o país. Israelenses (50% segundo algumas pesquisas) falam abertamente em expulsar ou eliminar árabes, e ‘traidores judeus’ também. Se vissem isso, Begin, Shamir, Sharon, muito menos Jabotinsky, não acreditariam.

Não sei, não posso saber, que fatos definirão um novo governo do Likud e sua coalizão. Mas sei quais são os candidatos mais prováveis de formar, com o Likud, a coalizão que governará Israel nos próximos quatro anos. Os de sempre, claro, mas desta vez com duas novidades que, na verdade, são definidoras. Diante das biografias e das posições declaradas de Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, eu me pergunto se Bibi Netaniyahu será patriota o bastante para não incluí-los numa coalizão, mesmo que isso lhe custe ou enfraqueça o cargo de primeiroministro. Pergunto-me se lideranças e parlamentares do centro e da esquerda (como Lapid, Gantz e outros) seriam patriotas o bastante para aceitar, engolindo em seco, formar uma coalizão com Bibi para evitar que Israel tenha essas figuras como ministros, que tenha de seguir, mesmo que em parte, a linha política por eles apregoada e praticada, e que entre num processo de deterioração de sua democracia.

Independentemente de como será a coalizão, o ambiente na sociedade israelense, acima descrito, que se reflete no resultado das eleições, já é por si preocupante para quem ainda ousa sonhar e trabalhar por um estado judaico, sionista, democrático, justo, representante dos valores e da ética do povo judeu. Mais uma vez, isso não é interpretação, infelizmente é um fato.

Mesmo que não seja incluída no governo de Israel (possibilidade real, diante dos números) a forte presença no parlamento de uma extrema direita ultraortodoxa, utranacionalista a ponto de ser chauvinista, antidemocrática, cultivadora do ódio ao diferente, alheia aos fundamentos hillelianos da ética judaica, poderá ser devastadora para a visão de um futuro de convivência de Israel

com o mundo democrático e com a grande maioria do povo judeu. No plano religioso, com a possível, para não dizer provável, rejeição às denominações conservadora, liberal e reformista; no plano nacional e político, com a rejeição da ideia de um acordo de paz definitivo baseado em dois estados para dois povos. Uma mega Israel seria ou o fim do estado judaico, ou o fim do estado democrático.

Ou seja, um estado judaico com essa identidade e mentalidade poderia ser o fim do sionismo. Poderia ser devastador para uma convivência pacífica da própria sociedade israelense, internamente em suas relações regionais e mundiais. Em suas relações com o povo judeu. Traria o recrudescimento do antiisraelismo e do antissemitismo, já tão preocupantes. O fim do ideal de uma paz justa. O fim da imagem de Israel que foi construída ao longo de tantas décadas, de tantos governos, de direita, de centro e de esquerda, mas nunca de extremadireita. Quase metade da população não votou nessa composição, e de acordo com relatos que recebo de muitos amigos e conhecidos, está preocupada e deprimida com a perspectiva de um acirramento provocado pelo extremismo e pela mudança do caráter e da identidade do estado.

Exagero? Ilações e interpretações e não fatos? Leia na seção “Em poucas palavras” neste exemplar de Devarim quem são Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, que se uniram no novo Partido Religioso Sionista, veja o que dizem e o que fazem. E torçamos para que Netanyahu, Lapid, Gantz, e outros sejam patriotas no bom sentido, e façam o que podem e o que têm de fazer para que Israel possa ser um exemplo de democracia e de ética, de orgulho do povo judeu.

100 | devarim |
ATID
Revista da Associação Cultural–
/ Associação Religiosa Israelita– ARI

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