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DO LAMENTO AO CRESCIMENTO
Criando uma nova liturgia profundamente judaica para Iom Hashoá, com base na Hagadá de Pessach
Este texto foi publicado originalmente em 3 de fevereiro de 2023 na revista Tablet, em tabletmag.com, com o título A More Meaningful Way to Remember the Holocaust (Uma maneira mais significativa de lembrar a Shoá), e está sendo reimpresso por gentil permissão.
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Na semana passada, um editorial do jornal Courier-Journal de Kentucky viralizou por seu absurdo ridículo. Nele, um grupo de nobres servidores públicos explicava a idiotas primitivos como eu que o Dia Internacional da Memória do Holocausto1 não é, de fato, um dia para lembrar o Holocausto. Em vez disso, é um dia em que devemos “lembrar todo o discurso de ódio e toda a violência que é perpretada contra religiões, raças e gêneros, todos os atos cometidos no passado e que continuam sendo cometidos até hoje”. Isso porque “quando um grupo (ou uma pessoa) alega que o ódio e a violência contra si é mais importante do que contra outro grupo, ele acaba encorajando atos de violência contra terceiros”. Acima de tudo, como os autores colocam numa frase digna de redação do ensino médio, “os judeus não têm o monopólio da perseguição e das atrocidades”.

Não preciso me dar ao trabalho de desconstruir essa posição profundamente antissemita, porque pessoas boas na internet já o fizeram por mim, apontando, por exemplo, que “já existe o Dia Internacional de Comemoração e Dignidade das Vítimas de Genocídio e de Prevenção desse Crime”2 ou que “com o Mês da História Negra3 chegando, é bom lembrar que existem mais raças do que a negra” ou “neste 11 de setembro, também devemos nos lembrar de todos os outros desastres aéreos ao longo dos anos”.
1 N. do E.: Instituído pela ONU em novembro de 2005, com o nome oficial “Dia Internacional de comemoração em memória das vítimas do Holocausto”. No texto, Dara Horn usa o nome “Dia Internacional de Memória do Holocausto”, que parece desfocar a intenção original da ONU em lembrar as vítimas da tragédia. Contudo, o nome usado pela autora, além de ser o nome usado no artigo que ela cita, é o nome adotado para a data pela grande maioria de pessoas e instituições que observam ou comentam sobre o dia. Assim que, não obstante a intenção da ONU, o contexto usado pela autora está perfeitamente alinhado com o uso cultural da criação da ONU.
2 N. do E.: Instituído pela ONU em 2015 e comemorado anualmente em 9 de dezembro.
3 N. do E.: Criado nos Estados Unidos em 1970 e observado nos Estados Unidos e no Canadá em fevereiro e na Europa em outubro.
Esse espetáculo barato é parte de um gênero de estupidez que tende a aparecer invariavelmente a cada 27 de janeiro. Ele me relembrou como o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto sempre me pega desprevenida. Por que esse dia existe, eu me pergunto todos os anos, quando a comunidade judaica tem seu próprio Dia da Lembrança do Holocausto, o Iom Hashoá?
Contudo, a diferença entre essas duas comemorações expõe um problema mais profundo, que é a forma como o mundo não judaico lembra o Holocausto, e a ideologia por trás da hipocrisia de artigos como aquele.
O Dia Internacional da Memória do Holocausto comemora a data em que as forças aliadas (neste caso, soviéticas) libertaram Auschwitz.4 As revelações da
4 N. do E.: O texto da resolução da ONU não menciona diretamente que a data foi escolhida por coincidir com o dia em que as tropas soviéticas entraram em Auschwitz. Contudo o texto refere explicitamente que a instituição da data foi realizada em comemoração ao sexagésimo aniversário da magnitude do Holocausto e os subsequentes julgamentos dos criminosos de guerra nazistas deram início a uma estrutura internacional de Direitos Humanos que, em teoria, empodera instituições internacionais a prevenir e punir tais abusos.


A ideia de que cooperação e comprometimento internacional são necessários para proteger os Direitos Humanos foi uma “lição central do Holocausto” para grande parte do mundo não judaico. Muitos judeus são céticos em relação a essa ideia, por inúmeras razões. Para eles, o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto é mais profundo do que isso. Em sua raíz, o dia instituído pela ONU celebra não judeus “libertando” judeus, ao mesmo tempo em que honra os judeus precisamente por serem vítimas passivas e sem iniciativa – uma condição que torna impossível a dignidade humana. O mundo muitas vezes parece preferir seus judeus dessa maneira.
O Iom Hashoá é exatamente o oposto. O nome hebraico completo do dia é Iom Hashoá Vehagvurá (Dia do Holocausto e do Heroísmo). Sua data, na primavera, não comemora os judeus sendo “libertados” por outros, mas sim a heroica e fracassada revolta do Gueto de Varsóvia, que começou na primeira noite de Pessach em 1943. Ele não foi colocado no calendário judaico logo após Pessach apenas para evitar conflitos com o feriado bíblico, mas também para conectá-lo com as modernas observâncias israelenses de Iom Hazikaron (dia em lembrança dos caídos em defesa do moderno Estado de Israel e das vítimas do terrorismo perpetrado contra sua população) e Iom Haatsmaut (dia da independência de Israel), cada uma destas datas também comemorando os judeus como atores
“liberação dos campos de concentração nazistas” e ainda “honra a dedicação e a coragem mostrada pelos soldados que liberaram os campos de concentração” (apesar de que os Aliados não se opuseram militarmente à Alemanha nazista com o intuito de liberar os prisioneiros dos campos e evitar seu assassinato).
Dara Horn: “Os momentos que me abalaram foram inesperados. Uma leitura, intitulada “O centésimo milésimo livro”, descreveu uma celebração realizada no gueto de Vilna em homenagem ao centésimo milésimo livro retirado da biblioteca do gueto. Como autora, fiquei encantada em incluir essa passagem, que também apareceu no texto israelense. Mas ouvi-la lida em voz alta nessa reunião de judeus americanos, em meio a uma cultura americana mais ampla, em que a leitura continuada simplesmente não é um valor, me atingiu com força.” que moldam seu próprio destino coletivo. Essa abordagem gera alguns grandes problemas, é claro. Mas pelo menos esses problemas não envolvem desumanizar os mortos removendo deles toda e qualquer iniciativa. com um diversificado grupo de artistas, rabinos, estudiosos, psicólogos e educadores, está hoje bem estabelecido na vida pública israelense, onde é usado como cerimônia de Iom Hashoá em ambientes institucionais como escolas, bases de exército e hospitais.
Nos últimos anos, educadores americanos em pânico com a idade avançada dos últimos sobreviventes adotaram táticas cada vez mais desesperadas para reimaginar a educação da Shoá para o futuro. A mais famosa delas foi a criação de hologramas ativados por inteligência artificial a partir de sobreviventes agora falecidos. O mesmo problema paira em Israel, onde os sobreviventes também têm participado da educação e comemoração da Shoá. Mas lá, os líderes culturais escolheram um caminho diferente. E desde a semana passada, os judeus americanos também têm uma maneira de partilhar este caminho.
A cerimônia israelense foi projetada para ampliar o foco para além das histórias de resistência física e incluir experiências espirituais e emocionais, e também para incluir histórias de vítimas e sobreviventes sefarditas e norte-africanos.

No ano passado, por meio do Instituto Shalom Hartman dos Estados Unidos, tive o privilégio de fazer parte de uma equipe que adaptou essa liturgia e ritual para as comunidades judaicas dos Estados Unidos. O produto final já está disponível ao público e ele é exatamente o oposto da visão edulcorada e genérica que entulha o Dia Internacional da Memória do Holocausto. O Hitkansut é profundamente judaico. E para minha surpresa, é comovente a um grau que eu pensei não ser possível alcançar.
Há dez anos, a aclamada romancista, poeta e diretora de teatro israelense Michal Govrin previu o problema ocasionado pela morte dos sobreviventes. Mas, ao contrário dos educadores nos Estados Unidos, ela não sonhou com hologramas ou turnês de realidade virtual em Auschwitz. Em vez disso, ela se baseou nos milhares de anos de experiência judaica ao lidar com a questão da Memória e fez o que os judeus sempre fizeram: reuniu mentes criativas e construiu uma liturgia e um ritual para o futuro que ela chamou de Hitkansut (encontro, em hebraico). O Hitkansut, que Govrin desenvolveu junto
O Hitkansut evita o problema da passividade judaica do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, escolhendo Pessach como seu modelo, ao invés do padrão “Tishá Beav” de luto comunal judaico. Sua liturgia assume a forma de uma Hagadá, com um texto central complementado por muitas e variadas leituras adicionais, além de pontos explícitos para participação coletiva e discussão. Tal como um Seder de Pessach, cada grupo, família ou instituição pode conduzir esse roteiro por diferentes direções conforme a visão dos participantes. Ainda mais importante, a liturgia do Hitkansut também segue a estrutura da Hagadá de Pessach em seu caminho que parte do desespero e chega ao empoderamento. Govrin e seus colegas chamaram essa progressão de mikiná lekimá (המיקל הניקמ, do lamento ao crescimento). Os tradutores e adaptadores do Hitkansut experimentaram frases semelhantes em inglês e chegaram à formulação “da responsabilidade de lembrar para a lembrança responsável”.5
Como um Seder de Pessach, o Hitkansut inclui etapas fixas: começa com um convite (que ecoa o convite do tradicional Birkat Hamazon – as bênçãos após a refeição), segue com uma exploração da vida judaica pré-guerra por meio de memórias e músicas das diversas comunidades, e chega a um lamento (numa homenagem às Lamentações bíblicas, enfatizando testemunhos individuais e coletivos), que usa textos que estimulam a discussão sobre o confronto contra o mal.
O Hitkansut conclui com os entrelaçados conceitos judaicos de zachor e shamor (lembrar e preservar) e com apelos tradicionais à sacralidade da vida, tanto individual quanto coletiva. Sua última linha é a bênção tradicional sobre a criação divina do ser humano.6
Seus muitos componentes, repletos de visões sionistas e humanistas, fontes religiosas e seculares, textos tradicionais e inesperados, são projetados para serem flexíveis da mesma forma que uma Hagadá de Pessach o é.
5 Original em inglês: “From the responsibility to remember to remembering responsibly”.
6 םָדָאָה־תֶא רַצָי
Comunidades diferentes encontrarão nele diferentes ressonâncias e enfatizarão diferentes aspectos. Citações do Tanach, do Talmud e do Sidur, junto com três rezas tradicionais nas orações em lembrança dos falecidos: El Malê Rachamim, Izkor e Kadish, fazem parte do ritual central e também são entretecidas no texto.

Adaptar o Hitkansut para o público norte-americano envolveu muito mais do que apenas traduzí-lo. A cerimônia israelense foi projetada para ampliar o foco para além das histórias de resistência física e incluir experiências espirituais e emocionais, bem como para incluir histórias de vítimas e sobreviventes sefarditas e norte-africanos para seu público, principalmente o não ashkenazi
No caso dos judeus norte-americanos, enfrentamos um conjunto diferente de expectativas e necessidades. Nossa equipe descobriu, por exemplo, que as fontes em iídiche ressoavam de maneira muito diferente entre os judeus norte-americanos e israelenses, e que textos tradicionais que eram muito familiares a uns não eram tanto assim a outros. Também adicionamos material voltado para os americanos, como depoimentos de soldados judeus que participaram da Segunda Guerra Mundial. Mas a maior parte do trabalho de adaptação envolveu uma questão mais profunda do que a adaptação dos textos. Uma questão que os israelenses, que não vivem imersos em sociedades não judaicas, mal conseguem entender: o desafio levantado pelo velado antissemitismo de um mundo que chama os judeus de egoístas por quererem chorar seus próprios mortos. Precisávamos responder, pelo menos para nós mesmos, às vozes dos “filhos perversos” que escrevem coisas como o citado editorial patético, aqueles que perguntam, essencialmente: “O que tudo isso significa para você?” nervosas, embora todos nós fôssemos oradores públicos experientes.


Nós lutamos incessantemente com essa questão. Muitas vezes discordamos. A Hagadá do Hitkansut, como a Hagadá de Pessach, reflete essas divergências, cada uma com sua própria machloket leshem shamaim (argumento em nome dos céus). Ela compartilha a óbvia característica da Hagadá da Pessach escrita por um comitê, um encontro de contradições irreconciliáveis. Como a Hagadá de Pessach, que de fato não funciona como um livro, a simples leitura da liturgia do Hitkansut é a maneira inadequada de experimentá-la. Seu poder, como todas as práticas judaicas, provém de ser vivenciado em comunidade. E esse poder me pegou de surpresa.
Os tradutores e adaptadores do Hitkansut experimentaram frases semelhantes em inglês e chegaram à formulação “da responsabilidade de lembrar para a lembrança responsável”.
“Eu sinto o hirá (אריה)”, disse um participante, usando uma palavra bíblica que, literalmente, significa temor; que, entretanto, se refere a um dos objetivos da vida espiritual judaica: o medo dos céus, o tremor reverencial diante do Divino, a consciência de Sua presença. Fiquei surpresa ao perceber que eu também o sentia. Momentos antes de começarmos, o organizador nos lembrou que, apesar da equipe de filmagem e das centenas reunidas online, “isso não é uma performance. Este é o nosso Hitkansut. Precisamos estar presentes!”.
Na primavera passada, no Iom Hashoá, eu, outros colaboradores e um um pequeno grupo de educadores e sobreviventes idosos nos reunimos para a pré-publicação do Hitkansut norte-americano no Instituto Hartman em Nova York. Junto conosco estavam centenas de participantes online.
Enquanto nos preparávamos para entrar ao vivo, várias pessoas da equipe expressaram como estavam
E presentes estivemos. Durante o ensaio reprimi as lágrimas, mas durante o próprio Hitkansut todos nós choramos abertamente atrás da câmera, mal nos segurando enquanto nos revezamos no microfone. Eu não havia considerado anteriormente as pessoas assistindo online, que me pareciam ser um público passivo. Quando a liturgia os levou pela primeira vez a compartilhar uma memória ou pensamento sobre a vida antes da Shoá, houve uma pausa, longa o suficiente para nos preocuparmos que ninguém tivesse algo a dizer. Então, a conversa online explodiu repentinamente, despejando centenas e centenas de nomes, imagens e ideias – coisas tão gerais quanto “toda a cidade de Baranovitch” e tão específicas quanto “o casamento de meus pais em Salônica em 1939”, junto com os nomes de escolas e sinagogas e livros e peças de teatro e filmes e dinastias chassídicas e grupos de jovens socialistas e times de futebol sionistas. Quando a cerimônia levou as pessoas a compartilhar os nomes daqueles que foram assassinados, a lista de nomes continuou a aparecer durante todo o encontro, variando de pessoas famosas a artistas obscuros e inúmeras pessoas não identificadas como “o primeiro bebê da minha avó” – um poço sem fundo de almas. Mais tarde, as pessoas se recusaram a sair do Zoom, permanecendo online e compartilhando pensamentos muito depois do término do próprio evento. Não tivemos coragem de desligá-lo. Os momentos que me abalaram foram inesperados. Uma leitura, intitulada “O centésimo milésimo livro”, descreveu uma celebração realizada no gueto de Vilna em homenagem ao centésimo milésimo livro retirado da biblioteca do gueto. Como autora, fiquei encantada em incluir essa passagem, que também apareceu no texto israelense. Mas ouvi-la lida em voz alta nesta reunião de judeus americanos, em meio a uma cultura americana mais ampla, em que a leitura continuada simplesmente não é um valor, me atingiu com força. Ninguém num evento do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto incluiria um fato assim, eu me dei conta, porque judeus celebrando livros é tão contracultural agora quanto sempre o foi. Eu desabei completamente durante o canto de Eli, Eli, um poema de Hannah Senesh, a sionista húngara assassinada pelos nazistas em missão do exército britânico. Há muito eu havia descartado a música, um elemento básico da vida judaica institucional, como algo dolorosamente sentimental. Mas ela foi cantada pela rabina Angela Warnick Buchdahl.7 Três meses antes, a rabina Buchdahl havia respondido com calma e eficácia a telefonemas de um antissemita violento que mantinha judeus sob a mira de uma arma em uma sinagoga do Texas, um ataque que terminou quando os reféns, judeus americanos, reagiram e se autolibertaram. Ninguém falou dessa história extremamente recente, mas ela simplesmente estava lá, como a antiga liturgia hebraica estava lá, e nós estávamos vivos dentro dela.
Perto do final do Hitkansut, o rabino Justin Pines,8 com palavras de improviso (porque, como um Seder, o Hitkansut não pretende ser um script estático), falou sobre seus ancestrais sobreviventes, assim como contou a história bíblica das parteiras hebreias Shifra e Puá, que desafiaram o decreto genocida egípcio de assassinar os recém-nascidos judeus, porque “as parteiras temiam a Deus” – elas sentiam o hirá. Ele citou o versículo da Torá dizendo que Deus recompensou essas parteiras estabelecendo casas para elas. “Eu sou da casa de Shifra e Puá”, disse ele.
Todos os judeus são da “casa” citada pelo rabino Pines, porque as comunidades judaicas só existem graças à bravura e à devoção, nos bons e nos maus momentos, daqueles que vieram antes de nós. Não há “lição” a ser aprendida na lembrança da Shoá, apenas um profundo e doloroso luto pelos mortos e um profundo e antigo temor diante da presença do Eterno. Por trás de toda lembrança internacional do Holocausto e de toda arrogante tentativa de aniquilação da experiência judaica, existem milhões de judeus mortos, pelos quais devemos lamentar, junto com judeus vivos que estão novamente sentindo o hirá de seus ancestrais. O exaustivo esforço de defesa contra esse ataque hipócrita deixou pouco espaço para o luto e menos ainda para sentimentos sublimes. O mundo pode ter seu Dia Internacional da Lembrança do Holocausto e celebrá-lo lembrando que todas as vidas importam. Mas no Iom Hashoá podemos nos reunir entre nós, tal como aquelas dedicadas parteiras, prontas para o futuro.
Dara Horn é autora premiada de cinco romances e da coletânea de artigos “People Love Dead Jews”, editado por W. W. Norton & Company em 2021. Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb. Todas as notas são do tradutor.

