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O NEORREALISMO BUREKA
Martin Scorsese aplicado ao cinema israelense: dos filmes históricos ao neorrealismo Bureka o neorrealismo Bureka se mostra como uma poderosa alavanca de reflexão e análise do mundo em que vivemos, seja por aquilo que ele busca efetiva e literalmente retratar, apelando aos nossos sentidos imediatos, como a partir do que ele carrega de essencialmente subjetivo e criativo, mas não necessariamente perceptível nos limites da tela.
O Cinema Bureka apresenta a questão da imigração judaica do norte da África e suas dificuldades de ajuste em um Estado que se moderniza e se ocidentaliza em velocidade galopante.
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Océlebre cineasta americano Martin Scorsese certa vez teria comentado acerca do potencial subjetivo do cinema, a partir daquilo que nós, enquanto espectadores, não somos capazes de ver na tela imediatamente. Mais do que simplesmente uma arte em torno de imagens em movimento, com planos, ângulos, luzes e fotografia, o cinema produz uma arte fundamentalmente discursiva, algo que escapa muitas vezes daqueles que buscam experimentá-lo como um entretenimento de primeira ordem. O criador de grandes sucessos como Taxi Driver (1976) ou do recente Os Infiltrados (2006) deixou claro seu argumento, ao dizer que “o cinema é uma questão do que está enquadrado na tela, mas também do que não está”.
Quando buscamos nos familiarizar com a riquíssima produção cinematográfica israelense, esse argumento de Scorsese não apenas cai como uma luva, como se aplica aos mais diversos movimentos cinematográficos que floresceram em Israel, desde o surgimento do Estado, em 1948, ou até mesmo antes disso.
É possível verificar a ideia defendida por ele a respeito da existência de uma “mensagem” ou até mesmo de uma “linguagem” para além do que a tela projeta, tanto nos primeiros contornos de um cinema-manifesto, mergulhado em todas as metáforas políticas e culturais do Sionismo, entre as décadas de 1930 e 1950, quanto no melancólico, abstrato e pungente movimento Nova Sensibilidade, entre o final da década de 1960 e 1970, onde uma certa reflexão estética do cinema em Israel esteve sob forte influência da Nouvelle Vague francesa, com filmes de grande complexidade semiótica como Ele caminhou pelos campos (1967), de Yosef Milo, ou Todo bastardo é um rei (1970), de Uri Zohar.
Até mesmo em obras hoje consideradas pioneiras e históricas do cinema israelense, a tese de Scorsese se sustenta de forma quase que incontornável. Em filmes geniais como Oded, o caminhante (Oded Hanoded), lançado em 1933, por exemplo, podemos verificar um verdadeiro transbordamento de intenções de seu criador, Chaim Halachmi. Oded transita por uma terra que um dia será Israel, um país independente. Sua caminhada tem como missão conhecer visualmente a terra (ou quem sabe reconhecê-la?), para ensinar às gerações presentes e futuras sobre ela. Filme mudo e ao mesmo tempo radicalmente eloquente, ele pode ser considerado a primeira de muitas obras cinematográficas israelenses que transfiguram para fora da tela aquilo que a obviedade das imagens pode, quando muito, apenas sinalizar.
O mesmo ocorre com outra obra-prima daqueles primeiros anos: A Colina 24 não responde (1955), produzido ainda antes de Israel completar seus primeiros dez anos enquanto Estado independente. A Guerra de Independência, que vemos narrada em primeiro plano, é frequentemente atravessada por uma pletora de elementos simbólicos, que se transformam ao longo do filme em uma poderosa e didática mensagem, típica dos primeiros anos de formação da cultura nacional de toda uma sociedade. Neste filme, o diretor britânico residente em Israel, Thorold Dickinson, nos coloca diante de uma essencial alegoria histórica e política: a cidade de Jerusalém, ainda partida e recortada na sua geografia urbana por arames farpados e muros apinhados de snipers. Mas o diretor também nos apresenta binômios narrativos que sempre farão parte da dinâmica histórica do Israel contemporâneo, como ameaça/defesa, ou sobrevivência/permanência.
Naturalmente, se desejarmos, podemos assistir A Colina 24 não responde como apenas mais um filme de guerra, mas dificilmente esta obra pode ser classificada de forma tão reducionista.
Outras obras destacam-se ainda a partir daquilo que Martin Scorsese observou com relação ao poder discursivo do cinema enquanto veículo de arte e debate. Sallah Shabati (1964), por exemplo, consiste inquestionavelmente em um deles. Ainda hoje considerado um marco na história do cinema em Israel, Sallah Shabati teve como efeito imediato divertir o público, ao mesmo tempo que provocava nele seríssimos dilemas de consciência. Efraim Kishon não poupou seus espectadores ao lhes apresentar dilemas importantes para a sociedade israelense, ao mesmo tempo em que conferia fama internacional à sétima arte de seu país. Utilizando recursos corrosivamente satíricos, Kishon traz à tona os desafios de uma sociedade multicultural, multiétnica, com todos os dramas que vem no pacote da geléia geral de um país de formação recente.
Sallah Shabati , que traz como ator principal Chaim Topol, o nosso Tevye de O Violinista no Telhado , apresenta pela primeira vez a questão da imigração judaica do norte da África e de outros países do Oriente Médio, e suas dificuldades de ajuste em um Estado que se moderniza e se ocidentaliza em velocidade galopante. Ao mesmo tempo, lançando mão de um expressionismo radical que chega a tangenciar o patético, Efraim Kishon também expõe toda uma sociedade que olha com estranhamento para outras camadas migratórias que não aquelas com as quais outrora estava habituada. E tudo isso ambientado a partir de um roteiro que narra os esforços de um judeu oriental iletrado em sua luta contra a burocracia estatal de sua velha-nova terra.
Ao criar Sallah Shabati , Kishon poderá, talvez sem saber, ter prenunciado a chegada na década seguinte ao seu lançamento, daquilo que historiadores e críticos do cinema israelense, a exemplo de Nachman Ingber, convencionaram chamar de Neorrealismo Israelense. Surgia a necessidade de lidar com aspectos de uma sociedade, que na década de 1970 já apresentava novos sinais de modulação e comportamento, que começavam a reconfigurar o tecido social israelense para além de uma “idade de ouro”, alicerçada na revolução sionista e no heroísmo kibutziano, em direção a uma dinâmica mais orientada para os estratos médios urbanos e para uma cultura de consumo. Isto produziu no cinema israelense pontos de inflexão no mínimo intrigantes, dos quais o neorrealismo é apenas uma de suas facetas, com grande destaque para uma gama de filmes que foram registrados na historiografia cinematográfica israelense como parte de algo conhecido como Cinema Bureka.
O adjetivo nos apresenta aqui um signo tão imaginativo como curioso: a bureka, iguaria imemorial da gastronomia judaica de origem sefaradita, surge como elemento evocativo da possibilidade da descoberta de uma cultura popular alternativa a uma ashkenormatividade israelense, insistente em projetar uma imagem mais uniforme e menos colorida do que o possível. Nesse sentido, o cinema israelense constituiu-se a partir da década de 1970 como uma ferramenta importante na busca de novos desafios para a compreensão de um país e de uma sociedade tão nova quanto complexa e internacionalmente ameaçada, seja no âmbito regional imediato, com a Guerra dos Seis Dias em 1967, a Guerra de Desgaste que se prolongou entre 1967 e 1970 e a Guerra do Iom Kipur de 1973.
A cultura urbana e popular foi o elemento estético agregador e fundador do Cinema Bureka. Há um processo de revelação cinematográfica que se desenrola em Israel durante aqueles anos, cujo objetivo é, apesar de toda uma situação internacional desafiadora e angustiante, apostar em uma certa arqueologia do presente (em contraste direto com Oded, o caminhante, por exemplo), que só a lente do cinema pode efetivamente engendrar, com tudo o que a tela tem direito de expor e com o que ela poderá escolher ou decidir não expor, abrindo espaço para os discursos subjetivos que fazem da arte comentada por Scorsese algo de mágico e ao mesmo tempo denso.
A aposta que grandes diretores da época, como Boaz Davidson, fizeram no Cinema Bureka pode ser bem menos ingênua do que podemos imaginar, se optarmos por considerar este gênero popular da sétima arte em Israel apenas como algo voltado para uma cultura de massa, amparada em uma indústria exclusivamente voltada para o entretenimento. O neorrealismo israelense, que acabou gerando os filmes de tipo Bureka, pode ter sido na verdade um exercício de real descoberta da diversidade cultural urbana e popular em Israel, com a intencionalidade da resistência à permanente ameaça de aniquilamento pelos países vizinhos, especialmente após o que a Guerra dos Seis Dias deixou como lição, a ser confirmada em 1973 com o desdobramento de outro conflito.
Como arte produtora de imagens, mas também de linguagem, o cinema neorrealista injetou na onda bureka a equação da coesão social pela descoberta ou revelação das idiossincrasias de homens, mulheres e crianças comuns, vivendo no ordinário cotidiano das cidades, todos cheios de qualidades e defeitos capazes de fazer o público rir, chorar e se reconhecer nos personagens. Se o enfrentamento do inimigo no plano externo é um fait accompli no Israel daqueles anos, é imperativo que a sociedade israelense se conheça ainda melhor enquanto um mosaico paradoxalmente coeso e ao mesmo tempo diverso de comunidades, a partir das quais os pactos nacionais de autodeterminação e de defesa nacional pudessem ser acordados. O cinema em Israel, na década de 1970, pode ter servido a esse propósito, mais do que qualquer outra expressão artística e estética no país.

Há nos filmes bureka uma dose propositalmente exagerada dos aspectos psicológicos imediatos de seus personagens, em uma rapidez frenética, denunciando e ao mesmo tempo exaltando elementos como intrepidez, esperteza, sagacidade e a capacidade de tomada de decisão do indivíduo, projetando na tela um certo Sein israelense que se consolida como narrativa social. Se tomamos como exemplo um filme como Charlie e a metade, dirigido por Boaz e lançado no ano de 1974, este mecanismo subjetivo vem à tona escancaradamente. Charlie nos lembra muito o pesonagem buarquiano de A Ópera do Malandro, peça escrita por Chico Buarque em 1978, imortalizada no fraseado “eis o malandro na praça outra vez, caminhando na ponta dos pés, como quem pisa nos corações”.
A diferença é que o compositor brasileiro ambienta sua obra na década de quarenta, enquanto Boaz Davidson apresenta o malandro israelense como uma síntese do agora, do imediato, do dia a dia de seu país. A relação entre Charlie e o garoto de rua Miko enuncia a chegada de um Israel de tipo novo, cujo povo comum precisa potencializar sua criatividade cotidiana para sobreviver nas selvas urbanas. Miko, prefere a rua com Charlie e suas aventuras à rotina chata das escolas. É na trama urbana que a vida realmente pulsa e não necessariamente nos bancos entediantes das salas de aula. É preciso viver, e viver rápido. E tudo isso recheado por uma poética romântica singular, com a chegada, já no início do filme, da sensualíssima Gila, uma jovem moça rica que Charlie deseja a qualquer custo conquistar, superando diferenças econômicas, em um país que na década de 1970 começava a apresentar novos matizes em termos de classes sociais. Boaz nos presenteia com uma genuína versão israelense para cinema de A Dama e o Vagabundo, com o benefício de servir ao mesmo tempo de fotografia social de um país que seus cineastas entendiam ser essencial mostrar nos bancos de cinema. E para isso, a interpretação do genial e ainda jovem Yehuda Barkan, grande estrela do Cinema Bureka ao longo de toda a década de 1970, no papel de Charlie, parece mais do que perfeita.
O imenso caldeirão de sentidos que estão para além da tela, tal como Scorsese insiste em argumentar, aparecem na perspectiva neorrealista liderada por Boaz Davidson em Israel de forma muito consistente. O diretor de cinema e pesquisador Rami Kimchi discute a importância de seu legado em uma importante obra, Israeli Bourekas Films. Their origins and legacy , apontando para dois importantes fatores: o primeiro deles refere-se a chegada de personagens de origem Mizrahi e Sefaradita na boca de cena cinematográfica israelense, conferindo visibilidade e representatividade a comunidades importantes do mosaico nacional. Em seguida, o pesquisador aponta para a existência de um diálogo entre essas comunidades com a cultura popular íidiche, tipicamente europeia, a partir das perspectivas pelas quais personagens semelhantes a Charlie, Miko e Gila eram retratados nos filmes. O argumento das pontes entre as culturas em direção a uma coesão cultural de tipo nacional que Rami Kinchi sustenta, pode ser um interessante aspecto trazido pelo Cinema Bureka como debate e reflexão cultural coletiva em Israel durante a década de 1970, e possivelmente nos anos posteriores a ela.

Em A Festa na Sinuca (רקונסב הגיגח), lançado em 1975, Boaz Davidson deixa essa equação estética ainda mais evidente, especialmente na construção de uma outra modalidade de ponte. Desta vez, mais do que buscar uma conexão entre os mundos ashkenazi, sefaradi e mizrahi, Davidson tenta de forma profundamente criativa e lúdica estabelecer uma ponte entre o mundo religioso e o secular em seu país, metaforizado em dois personagens radicalmente diferentes, Gavriel e Azriel, irmãos gêmeos, interpretados pelo mesmo autor, novamente o gênio da comédia israelense Yehuda Barkan. Enquanto Azriel é construído como um personagem piedoso e dedicado ao trabalho em Yaffo, homem ligado à Torá e a um estilo de vida fundamentado na fórmula ora et labora, Gavriel e seu melhor amigo Hanuka dirigem juntos um salão de jogos de sinuca, onde a honestidade está longe de prevalecer.
A trama se torna ainda mais apimentada quando os irmãos gêmeos, que não se falam e vivem em mundos inteiramente diferentes, precisam se encontrar, a fim de juntos confeccionarem um inventário para a venda de bens de família, dos quais ambos são simultaneamente proprietários. Ao apostar em uma dialética que enreda mundos diferentes, mas destino comum, Boaz Davidson aqui deixa tanto o que está na tela quando o que nela não está incontrolavelmente escancarado, confirmando a percepção de Scorsese de que tanto o visível objetivo, quando o sutil e subjetivo constituem-se como cinema, como arte e como debate.
O Cinema Bureka, como parte do movimento estético neorrealista da década de 1970, constituiu-se portanto como uma ferramenta de comunicação e arte na direção de um interessante projeto cultural: o de superar barreiras entre mundos aparentemente fechados em si mesmos, em nome da formação de uma sociedade mais coesa, que se reconhecesse coletivamente como um tecido nacional, como um povo dotado de um destino comum, que ao mesmo tempo soubesse comportar em seu seio diferenças e particularidades. Charlie, Gila, Azriel e Gavriel são poderosas metáforas criadas pelo fenômeno Bureka nas telas israeleses. Metáforas que apontavam para a necessidade do encontro das diversas clivagens sociais israelenses debaixo do mesmo teto nacional e, ao mesmo tempo, intercultural. Talvez o cinema tenha ocupado um lugar especial nesta operação, comparado a outras artes no país.
Nesse sentido, o neorrealismo Bureka se mostra como uma poderosa alavanca de reflexão e análise do mundo em que vivemos, seja por aquilo que ele busca efetiva e literalmente retratar, apelando aos nossos sentidos imediatos, como a partir do que ele carrega de essencialmente subjetivo e criativo, mas não necessariamente perceptível nos limites da tela. O cinema israelense, em toda a sua riqueza, parece dimensionar isso como poucos, e isso pode explicar a razão de seu sucesso doméstico e de sua visibilidade internacional.
Referências
KIMCHI, Rami. Israeli Bourekas Films. Their origins and legacy. Indiana University Press, 2023.
_______________ A Shtetl in Disguise: Israeli Bourekas Films and their Origins in Classical Yiddish Literature. Tese de doutorado apresentada na Universidade do Michigan, 2008.
In: (PDF) A Shtetl in Disguise: Israeli Bourekas Films and their Origins in Classical Yiddish Literature. (researchgate.net)
TALMON, Miri & PELEG, Yaron. Israeli Cinema. Identities in Motion. University of Texas Press, 2011.
NADJARI, Raphael (dir.). Israeli Cinema. Kino Lobers Film (DVD). 2013.