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DIFERENTES CULTURAS E MOMENTOS HISTÓRICOS
Defender a ideia de um único judaísmo autêntico não faz jus à verdade histórica, além de deslegitimar expressões judaicas.
Embora a ortodoxia judaica se apresente como uma religião que salvaguarda o único e verdadeiro judaísmo – o judaísmo dos antepassados, desde os mais longínquos no tempo até avós e bisavós–, a realidade é muito diferente e as mudanças no judaísmo rabínico sempre existiram. Pensemos nas grandes transformações ocorridas depois da Emancipação dos judeus na Europa e o surgimento das correntes liberais (Movimento Reformista e Movimento Massorti), da criação da Neo-ortodoxia na Alemanha do século 19 e, posteriormente, do surgimento do judaísmo ortodoxo sionista no século 20, principalmente em Israel. Mudanças e inovações menores e maiores aconteceram no judaísmo desde tempos remotos, desde a transformação da religião bíblica, ancorada na Terra de Israel e num tipo específico de estrutura socioeconômica agrária, para o judaísmo rabínico, religião eminentemente diaspórica, ligada a uma estrutura socioeconômica completamente diversa. Judaísmo racionalista e judaísmo místico, judaísmo ashkenazita e judaísmo sefardita, todas essas expressões da religião e cultura judaicas conviveram no decorrer da História, constituindo um indicador expressivo da multivocalidade e da heterogeneidade do judaísmo, da sua riqueza, do fato de ele ter existido em contextos muitas vezes hostis, mas sempre com a potencialidade de se aggiornar a diferentes culturas e momentos históricos.
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Defender a ideia de um único judaísmo autêntico não faz jus à verdade histórica, além de deslegitimar expressões judaicas que, segundo a ortodoxia, constituem desvios daquela religião considerada a única e verdadeira, o judaísmo dos nossos ancestrais, cuja continuação está encarnada na ortodoxia contemporânea.
E aqui talvez seja relevante salientar que a ortodoxia judaica não está sozinha no ensaio de recuperar um passado prístino e imaculado; os fundamentalismos religiosos como um todo apresentam essa característica e, abstendo-se de analisar o percurso da própria religião a partir de uma abordagem histórica, fazem uma análise cosmológica que lhes permite chegar a conclusões que nada tem a ver com os acontecimentos ocorridos no curso dos eventos históricos.

No que diz respeito a mudanças ocorridas no seio do judaísmo rabínico, do judaísmo que, segundo suas lideranças, se mantém idêntico a como sempre existiu no passado, gostaria de mencionar o estabelecimento da doutrina do Daat Torá,1 que constitui a diretriz que rege a visão de mundo ortodoxa contemporânea. O Daat Torá está inextricavelmente ligado às mudanças ocorridas nas comunidades judaicas após a Emancipação dos judeus na Europa nos séculos 18 e 19, e diz respeito à implantação de um novo mecanismo de autoridade rabínica nessas comunidades. Outra inovação diretamente relacionada aos tópicos mencionados é a expansão do alcance da Halachá ou Lei judaica, que nesse mesmo período deixou de estar restrita às questões religiosas stricto sensu, que preocuparam os judeus durante séculos, para abranger questões políticas, econômicas, profissionais, laborais, entre outras.
Para compreender melhor estas mudanças, é necessário mencionar que embora os judeus observantes sempre obedeceram os preceitos ou mitsvot que compõe a halachá, nunca houve uma padronização de como levar à prática esses preceitos para ser um bom judeu. Diferenças entre as comunidades das diversas regiões nas quais residiam os judeus originaram os Sifrei Minhag (livros de costumes), nos quais os grandes rabinos dessas comunidades explicavam o melhor modo de obedecer as mitsvot nesses contextos singulares. Os Sifrei Minhag exprimem a riqueza de um judaísmo que teve a plasticidade de se ajustar às necessidades particulares de cada situação e períodos específicos. Assim, nem sempre celebrar um jejum ou cumprir as estritas regras de pureza familiar eram seguidos do mesmo modo por todos os judeus nos quatro cantos do mundo. Cantores litúrgicos, livros de rezas, refeições rituais e regras para cobrar juros podiam mudar substantivamente de comunidade para comunidade, sem por isso violar as leis haláchicas.
1 Do hebraico: conhecimento da Torá, em referência à erudição dos grandes rabinos.

O próprio sistema do estudo religioso encorajava longos debates, cujas conclusões nem sempre eram aceitas por todos os grandes sábios, promovendo aquilo que se designou como a polissemia característica dos textos judaicos, principalmente do Talmud.
Entretanto, as transformações de fundo decorrentes da Emancipação dos judeus na Europa exerceram grande influência na estrutura das comunidades judaicas que escolheram o judaísmo rabínico, corrente que, a partir desse momento, ficou conhecida com o nome de ortodoxia. Entre as transformações mais importantes destacam-se a separação de tudo aquilo considerado alheio, isto é, a separação não só dos gentios, mas, também, dos judeus reformistas, sionistas e seculares. Paralelamente, e com o objetivo de evitar formas lenientes de cumprir a halachá, sob quaisquer influências possíveis das correntes judaicas liberais consideradas apóstatas, as lideranças rabínicas da época, entre as quais sobressai o nome do rabino Chatam Sofer, reestruturam o judaísmo ortodoxo húngaro (e como consequência, segmentos importantes do judaísmo europeu) transformando-o em uma religião mais severa, na qual se deixou cada vez menos espaço para discussões e debates, uma religião que começou a exigir de seus membros o cumprimento dos preceitos da forma mais severa possível.
Esse processo, seguir à risca e do modo mais estrito os preceitos haláchicos, é conhecido como chumratização,2 processo que tem se enraizado nas comunidades ortodoxas israelenses a partir da década de 1950, sob a liderança do rabino Chazon Ish, e que continua vigente nesse país e na diáspora como um todo.
Assim, iniciado na Hungria do século 19 e cristalizado no Israel do século 20, o processo de chumratiza- ção levou à criação de uma padronização nas diferentes comunidades ortodoxas, por um lado, e a uma radicalização da ortodoxia, por outro.
Ao mesmo tempo e como fora mencionado, a autoridade dos rabinos ganhou protagonismo com a instauração da doutrina do Daat Torá.
2 N. do E.: derivada da palavra hebraica “chumrá”, que significa “estrito”, “severo”.
O Daat Torá é uma nova forma de abordar a autoridade nas comunidades ortodoxas, que outorga aos grandes rabinos o direito de decidir questões da vida privada e pública de seus fiéis em dimensões que no passado não estavam incluídas no escopo da halachá. Isso significa que as lideranças rabínicas contemporâneas têm poder para guiar seu rebanho muito além do estritamente religioso. Esse fenômeno se observa muito claramente em Israel, por exemplo, na falta de autonomia dos judeus ortodoxos para escolher o partido político e os candidatos nas eleições do país. Mas muitas outras facetas da vida privada e social dos judeus ortodoxos se tornaram tópicos da competência dos rabinos, a exemplo do direito a trabalhar ou a seguir uma carreira universitária, a possibilidade de servir no Exército de Defesa israelense e o bairro no qual fincarão residência jovens casais.
O Daat Torá expressa as suas conclusões num modo similar ao de uma sentença, sem quaisquer justificativas encontradas nos textos sagrados.
Benjamin Brown, proeminente pesquisador da ortodoxia, num interessante artigo no qual analisa em detalhe a doutrina do Daat Torá,3 afirma que foram três os estágios na sua implantação. Assim, de um conceito que enfatizava a magnitude e grandeza da Torá, transformou-se em um modelo que destaca a grandeza dos rabinos eruditos que interpretam a Torá para desembocar numa conclusão inapelável: a necessidade de obedecer incondicionalmente aos grandes rabinos.
A figura que instaurou e solidificou a doutrina do Daat Torá em Israel foi o rabino Elazar Menahem Mann Schach, talvez a liderança rabínica mais importante na configuração da ultraortodoxia israelense contemporânea. Os estudiosos do judaísmo ortodoxo atual destacam que a doutrina do Daat Torá já não se exprime através de conselhos, mas por meio de prescrições e proscrições obrigatórias que devem ser seguidas à risca pelos judeus que se identificam como ortodoxos. Finalmente, em contraste com a abordagem consagrada ao longo dos séculos nas responsas rabínicas ou nos Sifrei Minhag, o Daat Torá expressa as suas conclusões num modo similar ao de uma sentença, sem quaisquer justificativas encontradas nos textos sagrados, sejam haláchicas ou de outra fonte, em franca oposição ao modo através do qual o judaísmo rabínico se expressou e legislou ao longo dos séculos.
A partir dessas constatações –apesar de existirem muitas outras modificações e inovações ocorridas no seio da ortodoxia contemporânea, filha da ultraortodoxia criada na Hungria no final do século 19 –, é possível afirmar, sem qualquer espaço para dúvidas, que a ortodoxia contemporânea é uma religião nova, fruto da Modernidade europeia, embora se apresente como o judaísmo assim como ele foi praticado antes da Emancipação política dos judeus na Europa, nas cidades e nos shteitls da Europa Oriental.

Relevante e atual
O novo governo israelense, liderado pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, formou uma coalizão governante com a participação, poderíamos dizer protagonista, de vários partidos ortodoxos. Não é o caso de fazer eco aqui aos reiterados alertas no sentido do perigo para a democracia israelense, das reformas jurídicas que começaram a ser votadas no parlamento israelense em fevereiro deste ano. A sociedade civil israelense, através de suas instituições e organizações, está se manifestando em várias frentes para bloquear um processo que ataca os fundamentos democráticos e liberais sobre os quais foi estabelecido o Estado de Israel.
O que me interessa destacar são dois fenômenos. O primeiro deles é que apesar de existirem pontos de encontro entre os diversos partidos religiosos que compõem a coalizão governante, as divergências entre elas são muitas e profundas. O que, irremediavelmente, nos leva, mais uma vez, à conclusão de que não existe um único judaísmo rabínico autêntico e verdadeiro, impoluto, e a ortodoxia tem tantas facetas como outras correntes judaicas. Segundo, diante do extremismo das lideranças ortodoxas que guiam doutrinariamente os políticos que representam esses partidos, têm aumentado, nos últimos anos, as vozes contrárias ao que é definido como os interesses pessoais das lideranças ortodoxas e sua aspiração em exercer um controle totalizador do público ortodoxo. Com certeza, o “Congresso do Judaísmo Religioso de Esquerda”, realizado em Jerusalém no final de janeiro deste ano, constitui o exemplo mais revelador de certo esgotamento de segmentos expressivos dentro da ortodoxia israelense em relação ao poder decisório dos grandes rabinos em questões que ultrapassam, em muito, questões propriamente haláchicas ou religiosas. Mas o questionamento à autoridade das lideranças rabínicas tem outras expressões, talvez menos radicais, mas não por isso, desprovidas de importância no que diz respeito ao futuro das comunidades ortodoxas israelenses. Estou me referindo à reivindicação de segmentos importantes entre os jovens ortodoxos de se alistar no exército do país, ao questionamento da necessidade de os homens ortodoxos se dedicarem em tempo integral ao estudo dos textos religiosos, e aos reclamos no sentido de ter a possibilidade de estudar em universidades e exercer uma profissão para ganhar o próprio sustento, e não depender de subsídios estatais e doações públicas.
A sociedade civil israelense, através de suas instituições e organizações, está se manifestando em várias frentes para bloquear um processo que ataca os fundamentos democráticos e liberais sobre os quais foi estabelecido o Estado de Israel.
É difícil prever qual será o impacto destas reivindicações, que questionam em cheio a doutrina do Daat Torá, e como ele se plasmará na estrutura das comunidades ortodoxas israelenses. Mas o certo é que essas reivindicações – e muitas outras–existem, estão se difundindo ao redor do país e começando a mostrar os primeiros frutos.
Profª Drª Marta Francisca Topel é graduada pela Facultad de Sociología da Universidad de Buenos Aires (1985), com mestrado em Sociologia e Antropologia Social na The Hebrew University Of Jerusalem (1990), doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1996) e pós-doutorado no The Hebrew University in Jerusalem (2004-5). Atualmente é MS-5 da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Cultura Judaica, atuando principalmente nos seguintes temas: judaísmo, antropologia, religião, identidade étnica e etnicidade.