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INOVAÇÃO X TRADIÇÃO

Uma das alternativas geradas por intelegência artificial a partir do mesmo texto/instrução: “Moisés fala aos israelitas aos pés do Monte Sinai”

“Faça para ti um mestre; adquira para ti um amigo, e julgue todos favoravelmente”, ensina o Capítulo da Ética dos Pais. Então solicitei ao amigo da Congregação e mestre em espiritualidade, Rabino Sérgio, para completar meu texto e avaliar, sob luzes novas ou similares, as ideias expostas.

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Ernesto Haikewitsch

Intelig Ncia Espiritual Intelig Ncia Espiritual

A tradição desafiando a inovação Sérgio R. Margulies Davar acher – ‘outra palavra’, assim muitas vezes começa um debate rabínico no Talmud. As ideias expostas por um rabino, ou por um grupo de rabinos, são argumentadas por outro rabino ou grupo de rabinos. Este argumento, por sua vez, gera novo davar acher, novas palavras, novos argumentos e contra-argumentos. Estes rabinos dialogam transcendentalmente, pois podem estar localizados tanto em lugares diferentes quanto em épocas distintas, séculos à parte. O relevante é pensar de modo argumentativo. No entanto, as extensas discussões talmúdicas requerem em dado momento de uma síntese para que regras e normas sejam estabelecidas. Este foi, por exemplo, o trabalho executado por Maimônides através do código de leis Mishnê Torá no século 12. Após esta codificação, os debates argumentativos e contra-argumentativos prosseguiram gerando coletâneas complementares ao Talmud. No entanto, novamente, no intuito de prover orientação sobre os procedimentos éticos, rituais, entre outros, um novo código surge no século 16: Shulchan Aruch. A dinâmica dos debates prossegue até hoje – inclusive porque situações novas aparecem, e, quiçá, de modo contínuo de hoje em diante continuarão a surgir. A fim de que instruções sejam dadas do que fazer ou não, os movimentos institucionais rabínicos criam as ‘Responsa’ (respostas às diversas questões que suscitam um posicionamento judaico). Então chegamos ao ChatGPT. O ChatGPT é a Mishnê Torá, o Shulchan Aruch e eventualmente as Responsa ao organizar as ideias e elaborar conceitos a partir de informações de seu vasto banco de dados. Porém – davar acher – o ChatGPT carece do processo de ebulição de argumentos e contra-argumentos talmúdico. Assim, é útil e válido, mas não completo. Se o

ChatGPT tivesse sido criado há dez séculos seria como a Mishnê Torá, poderia formatar as ideias e preparar os conceitos existentes até aquele período desde que seu banco de informações tivesse sido alimentado pelas informações existentes. Para se tornar um Shulchan Aruch teria que se alimentar de novas informações. Ou seja, a amplitude do rápido e eficiente processamento de dados – que o cérebro humano é incapaz de realizar (por ora?!) – se depara com a temporalidade dos dados, “pois o output depende do input”, adverte o rabino Geoffrey Mitelman.

Como é feito este ‘input’? Quais são os critérios? E dentre o manancial de informações que o Chat dispõe, sob quais princípios seleciona os dados na criação, por exemplo, de um texto? Se para o ‘input’ – isto é, o que é ingerido pelo corpo há regras, denominadas kashrut, também deve haver determinações éticas para o que e como é são alimentadas as informações que a inteligência artificial utiliza. Isto é o que podemos denominar –a partir da ferramenta matemática do algoritmo Inteligência Artificial – de ‘Algo-Kashrut’, ou de modo amplo: uma ética do algoritmo.

De acordo com a professora de Ciências dos Dados da Universidade de Nova Iorque, Julia Stoyanovich, “os algoritmos são criações do espírito humano, são o que nós fazemos deles, depende de nós escolhermos o mundo no qual eles são utilizados”. Assim, a necessida de de parâmetros éticos e morais são cruciais, pois, importante pontuar que um sistema ético também é carregado de seus próprios vieses e tendências. Entendendo isto, na determinação dos parâmetros, o judaísmo cita a fonte que abaliza determinado posicionamento. Ao citar a fonte, abre espaço para que, com o passar do tempo, haja davar acher – outras palavras que se fundamentam em diferentes fontes – numa prática de apurar os critérios utilizados no estabelecimento dos paradigmas. Este é um processo eminentemente humano que preserva a autonomia diante do receio do absolutismo dos autômatos sistemas.

Ainda que amplas e plurais, as fontes do conhecimento judaico não são únicas, nem se aplicam a todos –como, aliás, de nenhum sistema religioso ou filosófico. Por outro lado, as consequências da Inteligência Artificial são universais, gerando a questão de como estabelecer um sistema ético definindo o que é bom e mal de modo abrangente? A busca desta resposta tem fomentado o diálogo interreligioso exemplificado pelo recente encontro (10/01/2023) com representantes mulçumanos, católicos e judeus no Vaticano, entre outros debates que incluem crenças não circunscritas às fés abraâmicas. É o desafio humano no resgate da ética pelo bem de todos.

O real medo de ver a Inteligência Artificial substi-

Esta intersubjetividade é nutrida pelas faces humanas. Tanto das inúmeras faces de vários seres humanos quanto das faces que emergem de cada ser humano em suas trocas. A ética, sugere o filósofo Emmanuel Levinas (1906-1995), deriva da alteridade que se expõe e está exposta a outras faces. Assim, em vez de apontarmos o apocalipse da subjugação do ser humano através da Inteligência Artificial, nos deparamos com o desafio de reforçarmos a construção da inteligência ‘Arte-facial’. A arte com seu infinito potencial subjetivo e criativo de ver, perceber, sentir e sensibilizar as infinitas faces humanas.

Davar acher – o medo talvez não seja somente causado pela previsibilidade determinística das fórmulas algorítmicas e sim também oriundo da dificuldade de enfrentar a imprevisibilidade do livre-arbítrio humano com suas reações imprecisas. O medo de não conseguirmos reorganizar os modelos da sociedade a fim de aproveitarmos a chance de nos libertarmos de certas tarefas que as ferramentas da I.A. permitem que possamos ser ainda mais criativos e imaginativos, sobretudo sensíveis. No fundo, humanos.

Que possamos lidar com o medo da Inteligência Artificial e do ChatGPT, que ganha contornos de humanização, evitando a desumanização do humano que corrói a alteridade e a intersubjetividade.

P.S.: Ao ser indagado se praticava um determinado preceito religioso, o filósofo Franz Rosenzweig (1886-1929) respondeu: ‘ainda não’. Ernesto, em seu texto, citou um rabino: “I.A. é extremamente inteligente. Mas ainda não desenvolveu compaixão, amor e empatia.” Então, pergunto: haverá um tempo em que o ainda não será substituído pelo agora sim? Seja como for, esta inquietação surge porque há troca. Trocas entre amigos que fazemos e mestres que estabelecemos.

A halachá de cada geração é fruto de uma caminhada intensa. Para se manter nos costumes e normas práticas da vida judaica, é preciso correr muito.

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