devarim Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 4, n° 10, Setembro de 2009 Edição especial para o décimo número Judaísmo em ação em El Salvador Tamara Milsztajn Os pensadores sionistas e os árabes palestinos João Koatz Miragaya Entrevista com Eetta Prince-Gibson, editora da Jerusalem Report Racismo e liberdade de expressão Artur Benchimol e Breno Casiuch Depoimento de um sheliach israelense expulso da Venezuela Marcelo Treistman Índice completo dos artigos de Devarim 1 a 10
Chegamos ao número dez de nossa revista. Nú meros redondos convidam o olhar ao passado de forma a certificarmos que a conexão dos pontos esteja coerente com a direção que desejamos. Quando faço isto, a primeira coisa que me vem à mente é que a Devarim é fruto do compromisso da ARI com o futuro, com a continuidade do judaísmo no Rio de Janei ro e no Brasil.
Através da convicção de que o ser humano é dotado de livre arbítrio, o judaísmo está fundamentado sobre a pos sibilidade da escolha. Nosso texto mais antigo – a Torá –alerta em mais de um momento sobre as escolhas com que o ser humano terá que se defrontar em sua vida, recomen dando que estas sejam sempre para o bem.
De mãos dadas com o livre arbítrio caminha a grande responsabilidade envolvida em tomarmos as decisões cor retas. A tradição judaica obriga que as nossas comunida des construam ambientes que favoreçam escolhas positi vas, afastando-nos do tentador caminho da perpetuação acrítica de regras impostas no passado. E para isto é preci so que cada um de nós saiba mapear suas decisões, ou seja, é fundamental que estejamos bem informados.
Sempre se pode escolher com base nas decisões dos outros: “porque todos fazem assim” ou “porque isto sem pre foi assim”. No entanto, esta forma não leva à constru ção de uma identidade capaz de vencer novos desafios. As boas decisões do passado fizeram todo o sentido em sua época e, como tal, são extremamente valiosas e honradas, mas a nossa época exige decisões baseadas nos desafios do presente. A manutenção do judaísmo no entorno políti co que instituiu a liberdade cívica universal e no entorno tecnológico que permite um estonteante grau de dissemi nação instantânea de informações não pode seguir as fór mulas dos dias do confinamento judaico nos guetos e shtetlech da Europa.
A continuidade do judaísmo depende das decisões que fazemos hoje e estas decisões dependem, tanto no âmbito judaico como em qualquer outro, que estejamos bem in formados, que conheçamos muito bem o assunto.
É este imperativo de conhecimento que levou a ARI a lançar Devarim em fevereiro de 2006, como uma amplia ção da mensagem que emana do púlpito e das nossas ati vidades sociais, educativas e culturais. Devarim expande o horizonte de abrangência da ARI tanto pela multiplicida de das vozes que falam de suas páginas como pelo territó rio geográfico extramuros que alcança.
Para avaliar se os objetivos que levaram à criação de Devarim dez números atrás estão sendo alcançados con cebemos um teste prático. Este número que você tem nas mãos se propõe a ser uma espécie de benchmark1 da vali dade de Devarim e da continuidade do judaísmo em nos so país. Decidimos confiar as páginas desta Devarim quase que exclusivamente para pessoas com menos de 30 anos. São judeus brasileiros, vivendo em várias partes do mun do, que nas páginas a seguir abordam os temas habituais de nossa revista. É uma revista feita por jovens, com assun tos de interesse para todas as faixas etárias.
Abrimos duas exceções: a primeira é um muito opor tuno texto sobre a confiança na juventude, escrito pelo rabino fundador da ARI, o dr. Henrique Lemle z’l, comen tado pelo rabino Sérgio Margulies. A segunda é um dis curso sobre o Instituto Weizmann de Ciências, que repre senta a busca incessante dos judeus pelo conhecimento em todas as áreas. A juventude na qual repousava a confian ça do rabino Lemle é a responsável pela vivência judaica experimentada no Brasil de hoje. A juventude que escre ve nestas páginas terá a mesma responsabilidade nos anos à frente. O nosso benchmarking se propõe a avaliar se con tinuaremos a existir como comunidade criativa e inserida num judaísmo informado, valioso para o mundo e praze roso para seus praticantes. Convido cada um de vocês a fa zer seu julgamento individual. De minha parte, estou mui to satisfeita com o que vi.
Evelyn Freier Milsztajn Presidente da ari
1. Conceito adotado em administração de empresas, definido da seguinte forma pela Wikipedia: “Um processo sistemático e contínuo de avaliação dos produtos, servi ços e processos de trabalho das organizações com a finalidade de comparar desem penhos e identificar oportunidades de melhoria”.
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editorial
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 4, n° 10, setembro de 2009
P R e SI dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn
R A b I no S d A ARI Sérgio R. Margulies dario e bialer
dIR eto R d A Rev IS tA Raul Cesar Gottlieb
Con S elho e d I to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino Sérgio Margulies
e d I ção Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um)
e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) Paola Nogueira • Tainá Nunes Costa
F oto GRAFIAS iStockphoto.com
CAPA obra de Anna bella Geiger
Rev IS ão de t exto Mariangela Paganini
t RA d U ção teresa Roth
Colaboraram neste número: Artur benchimol, breno Casiuch, eduardo Zylberstajn, Gabriel Mordoch, haim harari, Jana tabak, João Koatz Miragaya, Marcelo treistman, Paulo Geiger, Rabino Sérgio Margulies e tamara Milsztajn
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br
Administração e correspondência: Rua General Severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
Rabino Lemle: O centenário de um jovem Rabino Sérgio R. Margulies 3
Judaísmo em ação em El Salvador Tamara Milsztajn.................................................................................... 7
As novas concepções políticas, sociais e religiosas em Israel Entrevista de Eetta Prince-Gibson, editora da Jerusalem Report, a Jana Tabak 13
Coexistência, indiferença ou inimizade: Os pensadores sionistas e os árabes palestinos João Koatz Miragaya 19
Depoimento de um sheliach israelense expulso da Venezuela Entrevista de Eldad Paz a Marcelo Treistman 27
A singularidade das línguas judaicas Gabriel Mordoch.................................................................................. 33
O Instituto Weizmann de Ciências - 60 anos de realizações Haim Harari 39
Seção Pilpul: Liberdade de expressão e racismo Breno Casiuch e Artur Benchimol 47
Especial: índice de artigos de Devarim 1 a 10 Organizado por Paulo Geiger 51
Cooperação e continuidade Eduardo Zylberstajn 56
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r abino l emle: o centenário de um jovem
rabino sérgio r. margulies
Recentemente faleceu o ídolo da música pop Michael Jackson. A no tícia de sua morte foi acompanhada por milhões de pessoas. A ceri mônia prévia ao sepultamento foi literalmente um show. No final, ficou a incógnita do lugar em que foi enterrado e mais triste: quem se importava realmente pelo ser humano Michael?
Recentemente lembramos os 150 anos de nascimento do grande escritor da literatura idish Scholem Aleichem, que nos legou, entre tantos clássicos, o pri moroso texto de “O Violinista no Telhado”. Falecido em 1916, numa era em que a informação percorria passos lentos, a cerimônia de seu sepultamento em lugar conhecido e ritual ancestral foi acompanhada por cem mil pessoas. A sua obra literária celebra com humor os relacionamentos humanos. Seus textos são como falas. O leitor tem a real sensação de estar ouvindo o escritor. Fala, assim, sobre seres humanos, e trata o leitor como ser humano.
Estes dois fenômenos, ainda que distantes no tempo e separados pelo pro pósito, permitem o encontro de um elemento que distingue o destino de um ídolo das massas descaracterizado de si próprio e o de um apreciador do gênero humano que caracteriza o seu pensar e sentir. Quem é realmente famoso? Cer tamente Michael Jackson é mais conhecido, porém Scholem Aleichem deixou marcas mais profundas na vida de tantos.
Este ano estamos lembrando da efeméride do rabino Henrique Lemle z´l que, se estivesse vivo, celebraria cem anos no mês de outubro. Deixou, como erudito do judaísmo, líder comunitário, humanista e professor, uma marca transcendental na vida de nossa comunidade e na vida de tantos. O que o im
O rabino Henrique Lemle deixou, como erudito do judaísmo, líder comunitário, humanista e professor, uma marca transcendental na vida de nossa comunidade.
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pulsionava era a sensibilidade para com o ser humano, sendo capaz de sentir e com partilhar as alegrias e as dores, de vibrar em conjunto e amparar a todos e a cada um, de falar com o coração e fazer sua mensagem chegar ao coração. O púlpito poderia ser um palco para projetá-lo para o sucesso e estrelato, pois, sim, frequen temente o púlpito – mesmo que religioso – é assim utilizado.
No entanto, ainda que tenha tido con tato com as mais altas autoridades do país de sua época, do alto da imponência do púlpito e revestido de reverência, enxer gava a profunda dimensão do ser humano. Como ser humano, dialogava de igual para igual com todos. Foi, assim, como se intitula o livro biográfico escrito por seu filho, “o rabino que gostava de gente”. O sucesso não foi seu combustível. O seu
O sucesso do rabino Lemle foi consequência de sua missão: abraçar gente, sobretudo e especialmente os jovens. Enquanto em nossas categorias estanques o jovem fica separado da terceira idade, Lemle, também preocupado com os mais idosos, agregava. Talvez seja por isso que vários jovens passaram por experiências comunitárias no Lar da União.
sucesso foi consequência de sua missão: abraçar gente. Entre esta gente, sobretu do e especialmente os jovens. Enquan to em nossas categorias estanques o jovem fica separado da terceira idade, Lem le, também preocupado com os mais ido sos, agregava. Talvez seja por isso que vá rios jovens – egressos da ARI e que se tor nariam futuros rabinos e chazanim – pas saram por experiências comunitárias no Lar da União.
No centenário de seu nascimento, a revista Devarim atinge seu décimo nú mero. A coincidência é oportuna. Deva rim em hebraico significa palavras e ele foi um homem dotado de palavras – palavras instigantes e provocativas, confrontado ras e confortantes, eloquentes e simples. A oportunidade das coincidências permi te-nos ver na décima edição o mesmo nú
Henrique Lemle, um rabino que sabia dialogar, e o presidente Juscelino Kubitschek em evento na ARI.
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mero de pessoas necessárias para constituir um grupo de reza, o minian. Rabi no Lemle queria trazer para o nosso mi nian comunitário jovens. Trazer jovens, mesmo que o décimo não faltasse no mi nian, mas entendia que sem jovens no fu turo não haveria o décimo, e talvez nem o nono, o oitavo...
Ora convocava os jovens, ora ia até eles abrindo caminhos múltiplos para o diálogo. Um de seus textos chama-se “O judaísmo no diálogo das gerações”, no qual conta:
“Numa discussão sobre o significado dos Dez Mandamentos que há pouco realizei com um grupo de jovens estudantes, levan tou-se uma das participantes e fez a seguinte contribuição, curta, mas bem clara: ‘eu estava já há muito tempo com a opinião de que se deve acrescentar uma emenda ao Quinto Mandamento. Em continuação ao tradicional ‘Honrarás ao teu pai e à tua mãe’ deve-se exigir: ‘Respeitarás ao teu filho e à tua filha’. Somente na base do respeito mútuo pode-se obter a compreensão entre as gerações”.
Se Lemle, em sua época, não tivesse confiado na juventude, hoje não haveria uma nova juventude. Mas ela está aqui, escrevendo, pensando, deixando sua marca. Pode parecer óbvio confiar na juventude, porém tantas vezes o óbvio é esquecido.
“Naqueles jovens que firmemente ficam leais a si mesmos e àquilo que a voz mais ín tima neles lhes diz ser bom e justo, reto e no bre. Pois eles encontram sua verdadeira for ça na inspiração que cada um tem, por ser criado com a capacidade de fazer de si mes mo uma criatura valiosa, criatura nobre mente humana.
“Eu desejo aos jovens, agora aos jovens judeus, por ocasião do início de um novo ano, que, ao lado de todos os seus compa nheiros e amigos, consigam ser realmente jovens para sua felicidade e a de suas famílias, da sua sociedade, deste mundo que tanto de les precisa”.
Ao relatar as palavras da jovem, o rabino Lemle ampli ficou o comentário dela e o corroborou. Ele ouvia os jo vens e dava ressonância ao que diziam.
Numa mensagem de Rosh Hashaná (o ano é desco nhecido, mas pouco importa diante da transcendência do texto) escreveu:
“Eu confio na juventude, naqueles jovens que por nada no mundo se deixam arrancar a vontade de construir e recons truir. Pois eles dão prova que o verdadeiramente jovem quer ver a fruta e flor, construção e avanço, amor e nova vida.
“Naqueles jovens que, apesar de tudo, aspiram por um ponto de compreensão com os mais velhos. Pois eles compreen dem que eles, é verdade, sabem mais matemática e física, são melhores técnicos e conhecedores de aparelhos modernos – mas os mais velhos conhecem melhor a vida, a força da persistên cia, a beleza da dedicação ao outro, a riqueza da moral e fé.
“Naqueles jovens que conseguem manter abertos seus olhos e sua mente para as conquistas e orientações que vêm do pas sado. Pois eles estão compenetrados do fato de que nada que se faz hoje podia se alcançado sem que as gerações anteriores tivessem se esforçado a passar avante seus conhecimentos, sua sabedoria.
Esta edição da Devarim com artigos es critos por jovens ecoa as palavras “eu confio na juventu de”. Aliás, se Lemle, em sua época, não tivesse confiado na juventude, hoje não haveria uma nova juventude. Mas ela está aqui, escrevendo, pensando, deixando sua marca. Pode parecer óbvio confiar na juventude, porém tantas ve zes o óbvio é esquecido e deixamos o menos óbvio sobres sair, como, por exemplo, o artificialismo do ídolo descarac terizado construído para o consumo mais do que o genuíno que nos faz rir. Aqui – fazendo o óbvio prevalecer e espelha dos na convocação de Lemle – confiamos na juventude.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
O Rabino Lemle ouvia os jovens e dava ressonância ao que diziam.
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Eduardo Fuentes
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j udaísmo em ação em e l s alvador
tamara milsztajn
Quando comentava com as pessoas que iria passar quase um ano em El Salvador, muitas delas me perguntavam com estranhamento o que eu iria fazer nesse pequeno país da América Central, quase imperceptível no mapa. Eu havia sido selecionada, junto com outros dez jovens judeus, para participar do World Partners Fellowship, um programa da Ame rican Jewish World Service, onde cada jovem era alocado para trabalhar como voluntário por dez meses com uma organização não governamental (ONG) na América Central.
A American Jewish World Service (AJWS) é uma organização americana de desenvolvimento internacional baseada no imperativo judaico de buscar a jus tiça social. Essa organização tem como missão “aliviar a pobreza, a fome e as doenças nos países em desenvolvimento, independentemente da religião, raça e nacionalidade”.
Com fundos provenientes majoritariamente de pessoas físicas, a American Jewish World Service desenvolve projetos em áreas como HIV/Aids, agricultu ra sustentável e proteção às minorias em parceria com 400 organizações locais em 36 países da Ásia, África e América Latina. A partir de doações para orga nizações de base, trabalho voluntário, ativismo e educação, a AJWS busca pro mover os direitos humanos e o desenvolvimento sustentável, fomentando, ao mesmo tempo, os valores e as responsabilidades de uma cidadania global den tro da comunidade judaica.
Em fevereiro de 2008 cheguei a San Salvador, capital de El Salvador, sem saber ao certo o que me esperaria pelos próximos dez meses. Pensava que auxiliaria, em alguma medida, na transformação social daquele país. Porém, o que recebi em troca – não só uma nova concepção de um judaísmo mais solidário, mas também uma nova visão de mundo – foi muito maior do que a minha contribuição.
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Em consonância com o objetivo de formar líderes judeus responsáveis, a AJWS envia voluntários de todas as ida des para os mais diversos países. Há pro gramas para jovens do ensino médio, uni versitários e profissionais. Jovens como eu são impelidos a participar desse tipo de programa não só pela vontade de traba lhar em prol de um mundo melhor, mas também pelo desejo de fazer isso através de uma organização judaica. A ideia des se programa consiste em exercer na práti ca os valores judaicos e fazer parte de um judaísmo mais engajado e atuante.
Com financiamento da American Jewish World Service, a Organización de Mujeres Salvadoreñas por la Paz criou uma linha telefônica por meio da qual é possível realizar denúncias anônimas e receber aconselhamento jurídico.
Em fevereiro de 2008 cheguei a San Salvador, capital de El Salvador, sem sa ber ao certo o que me esperaria pelos próximos dez me ses. Pensava que auxiliaria, em alguma medida, na trans formação social daquele país. Porém, o que recebi em tro ca – não só uma nova concepção de um judaísmo mais so lidário, mas também uma nova visão de mundo – foi mui to maior do que a minha contribuição.
Discriminação de gênero e violência
Ao chegar à América Central, apesar de saber que a discriminação de gênero é um problema cultural e histó rico de nível mundial, eu nunca havia sofrido pelo fato de ser mulher. As ideias machistas estão arraigadas na socie dade salvadorenha e os homens desrespeitam sistematica mente as mulheres. Todos os dias, a caminhada do ponto de ônibus até o trabalho significava ser assediada por no mínimo uns três homens. Sei que eu não chamava aten ção pelos meus atributos físicos, mas sim porque todas as mulheres no país estão sujeitas à violência sexista, ou seja, a violência exercida pelos homens sobre as mulheres com base nas desigualdades de gênero existentes. Além disso, o fato de eu ser estrangeira deixava-me em uma posição ain da mais vulnerável. Quando visitava pequenas comunida des no interior do país não podia sair à noite desacompanhada de um homem, pois os demais agiriam como se não fosse digna de respeito.
Durante meu trabalho com a Organización de Mujeres Salvadoreñas por la Paz (Ormusa), uma organização não governamental que luta pelos direitos humanos das mulhe
res, pude presenciar de perto as histórias de violência física e psicológica e compre ender realmente a dimensão do problema. Passei a frequentar algumas das reuniões do grupo de autoajuda, onde as mulheres agredidas se encontravam para comparti lhar seus traumas e se ajudar mutuamente a romper com o ciclo de violência.
“O meu marido me agredia fisica mente e me impedia de trabalhar e sair de casa”, disse uma salvadorenha de 32 anos durante uma das reuniões em Olo cuilta, interior de El Salvador. Todas as salvadorenhas presentes na reunião pos suíam histórias similares de abusos e agressões. Em El Salvador, a violência de gênero não é uma exceção e sim uma constante.
Em outra reunião, choquei-me com o depoimento de Doris, uma salvadorenha de 40 anos que, antes de come çar a participar dessas sessões, achava que era natural que seu marido a espancasse e a obrigasse a manter relações se xuais com ele. Todas as mulheres do grupo, antes de rece ber os treinamentos da ONG em autoestima e em direi tos humanos, tinham a concepção de que era natural so frer agressões físicas por ser mulher. A ideia de superiorida de hierárquica dos homens, uma mera construção social, estava cristalizada na sociedade salvadorenha. Como con sequência, as mulheres sofriam de baixa estima, sentiamse desprovidas de valor e não conseguiam se ver como su jeitas de direito.
Apesar de serem vítimas de abusos constantes, as mu lheres em El Salvador dificilmente concretizam denúncias, pois têm medo de represália. Assim, parte do traba lho da Ormusa consiste não só em estimular as mulhe res a denunciar os abusos, mas também em fornecer assis tência legal àquelas que decidem processar os agressores. Com financiamento da American Jewish World Service, a Ormusa criou uma linha telefônica por meio da qual é possível realizar denúncias anônimas e receber aconse lhamento jurídico.
Violações aos direitos trabalhistas
Em El Salvador, a discriminação de gênero também se nota claramente pela divisão sexual na inserção no
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mercado de trabalho. Na indústria têxtil, onde as condições de trabalho são péssi mas, 84% dos empregados são mulhe res. Durante minha estadia em El Salva dor, tive a oportunidade de trabalhar e conversar com diversas trabalhadoras das maquilas, indústrias têxteis que produ zem roupas a custo extremamente baixo para grifes nos Estados Unidos e que são conhecidas por suas violações aos direi tos humanos.
“Eu não tenho água potável em meu local de trabalho e minha supervisora controla quantas vezes eu vou ao banhei ro”, disse Reina, uma das funcionárias. Todos os domingos, diversas trabalhado ras de maquilas vinham à ONG na qual eu estava trabalhando para se informar acerca de seus direitos. Ao conversar com essas empregadas, descobri que todas elas trabalham horas extras sem receber nenhum tipo de com pensação. Apesar de a legislação salvadorenha garantir o direito de associação, na prática as trabalhadoras que fazem parte de sindicatos são colocadas em uma lista negra. Uma
Como judeus, nós temos a responsabilidade pelo que acontece do outro lado do mundo. Temos uma história de mais de dois mil anos de perseguição e, por isso, também temos um dever moral de mostrar nossa solidariedade com aqueles que são oprimidos, sejam as mulheres em El Salvador, os dalits na Índia ou os darfurianos no Sudão.
das funcionárias contou-me que não rece bia máscara para trabalhar com materiais químicos e, por isso, começou a sofrer de problemas respiratórios. Ouvi ainda inú meros casos de abusos sexuais, exigência de realizar teste de gravidez antes da con tratação, maltratos verbais, entre inúme ras outras violações aos direitos trabalhistas de El Salvador e às leis da Organiza ção Internacional do Trabalho. Além de ensinar às trabalhadoras de maquilas acerca de seus direitos trabalhis tas, a Organización de Mujeres Salvado reñas por la Paz trabalha incansavelmen te monitorando esses abusos e denun ciando-os através de relatórios divulgados na mídia. A organização tem pressiona do o governo salvadorenho a inspecionar as fábricas e punir aquelas que não este jam respeitando os direitos dos trabalha dores. Em cooperação com outras ONGs, a Ormusa en viou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA para investigar a omissão do governo salvadore nho em face desses abusos.
David T. Gomez /
Apesar de serem vítimas de abusos constantes, as mulheres em El Salvador dificilmente fazem denúncias por medo de represálias.
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Um outro mundo é possível
Frente a todos esses desafios que en frentam as mulheres salvadorenhas, o mais impressionante foi observar a resi liência das mesmas. Não só o staff da Or ganización de Mujeres Salvadoreñas por la Paz, mas principalmente as mulheres vítimas de abusos têm lutado incansavel mente para reverter a situação de discri minação. Doris, a mulher que era vítima de abusos do marido e que achava natu ral sofrer agressões físicas, hoje em dia dá capacitação em autoestima e direitos hu manos a outras mulheres. Reina, uma das trabalhadoras das maquilas, contou-me: “Agora não deixo mais a minha supervi sora maltratar-me verbalmente. Eu sei que eu mereço ser respeitada, ainda que eu seja pobre”.
Parte importante dessa experiência também foi mostrar aos salvadorenhos que os judeus se importam com questões de justiça social e que a nossa tradição nos ensina, através do preceito de tikun olam, que devemos fazer a nossa parte na construção de um mundo melhor.
trada em vigência da Lei Maria da Penha, é que o Brasil passou a contar com uma legislação específica que versa sobre a vio lência contra mulheres.
Essa discriminação de gênero também se traduz em discriminação econômica e, em nosso país, apesar de as mulheres estu darem mais, essas recebem um salário que equivale a somente 56% do que os ho mens recebem. No que tange à participa ção política, as mulheres ocupam apenas 9,4% dos cargos legislativos. Nem mes mo em países desenvolvidos a inclusão das mulheres se dá de forma plena. Na Suécia, país considerado com a menor de sigualdade de gênero, as mulheres só ocu pam 32% dos cargos legislativos e 47% dos cargos de alto escalão (relatório do PNUD, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas).
As mulheres salvadorenhas estão tomando controle de seu próprio destino, conscientizando-se acerca de seus di reitos e aprendendo a ver o mundo de forma crítica. Esse é o primeiro passo para que elas possam de fato começar a mudar a realidade de discriminação socioeconômica na qual se encontram. As mudanças reais e duradouras são aquelas que se originam nas bases, no seio da própria po pulação local.
Desigualdade e gênero: um problema mundial
A discriminação de gênero é um problema presente não somente em El Salvador, mas em praticamente todos os países do mundo. Segundo relatório publicado pela Uni fem (Agência das Nações Unidas para as Mulheres), um terço de todas as mulheres já sofreram algum tipo de vio lência ao longo de sua vida. É fácil imaginar que a violên cia de gênero assola nações remotas como, por exemplo, a República Democrática do Congo, onde o estupro é utili zado como arma de guerra e em algumas vilas no interior do país 90% das mulheres já foram estupradas.
Porém, essa realidade está muito mais próxima do que muitos acreditam. No Brasil, segundo estudo publicado pela organização não governamental Agende, uma em cada quatro mulheres foram vítimas de violência entre os anos de 2000 e 2005. Somente no ano de 2006, com a en
Acabar com a discriminação de gênero consiste em um dos maiores desafios da atualidade. A contínua exclu são das mulheres de oportunidades políticas e econômicas constitui um obstáculo à redução da pobreza. Não se pode atingir um desenvolvimento sustentável enquanto se ex clui cerca de 50% da população. A inclusão das mulheres de forma plena na sociedade traz o benefício não somente do desenvolvimento econômico, mas também da redução da mortalidade infantil, da diminuição da contaminação por Aids e de um nível mais alto de educação e prosperi dade para a próxima geração. Ao tolher a discriminação de gênero, não somente geramos um benefício para toda a sociedade, mas também asseguramos um direito humano fundamental.
O judaísmo e a Justiça Social
Durante meu tempo na América Central, quase sempre eu era a primeira judia com a qual os salvadorenhos haviam entrado em contato. Assim, parte importante des sa experiência também foi mostrar aos salvadorenhos que os judeus se importam com questões de justiça social e que a nossa tradição nos ensina, através do preceito de ti kun olam, que devemos fazer a nossa parte na construção de um mundo melhor. Segundo diz a Torá, todos os seres humanos foram criados à imagem de Deus e, por isso, nós
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temos o dever de assegurar que todos, independentemente da religião, tenham uma vida digna.
Atualmente, vivemos em um mundo globalizado onde as ideias e informações se movem livremente entre as fron teiras nacionais. Como judeus, nós temos a responsabili dade pelo que acontece do outro lado do mundo. Temos uma história de mais de dois mil anos de perseguição e, por isso, também temos um dever moral de mostrar nos sa solidariedade com aqueles que são oprimidos, sejam as mulheres em El Salvador, os dalits na Índia ou os darfurianos no Sudão.
É verdade que muitas vezes nos sentimos intimida dos com a enormidade dos problemas que afetam o nos so mundo. Guerras civis, desastres naturais, subdesenvol vimento, discriminação de gênero, a lista de fatos é enor
me. Diante de tantos desafios, o mais comum é ficarmos apáticos. Ao ver as mulheres salvadorenhas conseguirem com muita luta mudar sua realidade social, comecei a ter esperança de que outro mundo é possível. Como judeus, cada um de nós tem o dever de fazer a sua parte e modi ficar esse mundo tão desigual. Como ensina a nossa pró pria tradição: “Você não é obrigado a completar a tare fa, no entanto, você também não está livre para desistir”. (Pirkei Avot 2:21)
Tamara Milsztajn é formada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestranda em Relações Internacionais pela Georgetown University, ex-bol sista da American Jewish World Service e filha e neta de só cios da ARI.
Tamara Milsztajn com um grupo de mulheres apoiadas pelo programa da American Jewish World Service.
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a s novas concepções políticas, sociais e religiosas em i srael
Entrevista com Eetta Prince-Gibson, editora da Jerusalem Report
texto final de jana tabak
Eetta Prince-Gibson, editora-chefe da Jerusalem Report, a mais impor tante revista israelense editada em inglês, mudou-se dos Estados Uni dos para Israel ao finalizar os estudos escolares. Ela serviu no exército durante a Guerra de Yom Kipur e se estabeleceu em Jerusalém. Mestre em Serviço Social pela Yeshiva University, atualmente cursa doutorado em Psicologia Política na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Em julho, a jornalista esteve no Rio de Janeiro para participar do Seminá rio Internacional de Mídia sobre Paz no Oriente Médio, organizado pelas Na ções Unidas. Aproveitamos sua visita à cidade para uma entrevista exclusiva à revista Devarim. Após nos honrar, em nossa própria sinagoga, com uma pré dica na sexta-feira e com um brilhante comentário sobre a parashá no sábado de manhã, Devarim teve a oportunidade de conversar com Eetta acerca de te mas relevantes sobre Israel, a identidade judaica e o movimento religioso pro gressista. Participaram da entrevista Jeanette Erlich, Ricardo Gorodovits, Raul Gottlieb e Jana Tabak.
Devarim: Qual o principal desafio de produzir uma revista como a Jerusalem Report?
Eetta: Acredito que são quatro os desafios principais. Nosso objetivo é reportar sobre Israel, o Oriente Médio e acerca do mundo judaico. Ao mesmo tempo, nosso público-alvo é tanto Israel, a comunidade judaica internacional, quanto o mundo diplomático. Assim, o primeiro grande desafio é identificar o que nossos leitores sabem, com o que se preocupam e o que lhes interessa. Isto não é uma tarefa simples. Por um lado, por sermos uma revista quinzenal, há
Um desafio consiste em apresentar Israel sem ignorar toda a sua complexidade. A sociedade israelense é multicultural, isto é, composta por diversas populações, como os árabe-israelenses e os imigrantes provenientes de diferentes países. Assim, a pergunta é: como apresentar uma imagem única de Israel que faça sentido para os leitores sem desrespeitar sua imensa diversidade?
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fatos que podemos ignorar e isto facilita o processo de elaboração das pautas. No entanto, enfrentamos o dilema de como nos manter relevantes ao longo de duas semanas. Então, a definição das pautas é um processo delicado que demanda mui ta reflexão.
Outro desafio consiste precisamente em apresentar Israel sem ignorar toda a sua complexidade. A sociedade israelen se é multicultural, isto é, composta por diversas populações com características distintas e muito marcantes, como os árabe-israelenses e os imigrantes pro venientes de diferentes países. Assim, a pergunta que nos persegue é: Como apresentar uma imagem única de Israel que faça sentido para os leitores sem desrespeitar sua imensa diversidade? Precisamos abstrair dos fatos diários e pensar a complexidade israelense a fim de passá-la aos nossos leitores.
Israelenses e palestinos são parecidos em vários aspectos, como: viver no Oriente Médio, ter um senso de humor semelhante, vivenciar o mesmo conflito.
O que pode acontecer – e acontece – é os entrevistados não fornecerem todos os dados. Logo, é dever do repórter desco brir que dados são estes e o porquê da não disponibilização dessas informações. De qualquer forma, acredito sim que é mais fácil para um jornalista local adquirir as informações do que para um repórter in ternacional. No entanto, entendo que isto seja comum em todo o mundo.
O terceiro desafio está ligado ao fato de sermos ao mes mo tempo “jornalistas”, “israelenses” e “sionistas”. Há mo mentos em que escrevemos comentários sobre Israel que não nos deixam nada orgulhosos. Frequentemente recebe mos críticas, pois, para alguns leitores, só deveríamos re latar o lado positivo de Israel. Esta pressão é maior sobre nós do que sobre o restante da mídia israelense, porque es tes leitores entendem que a Jerusalem Report é uma revista voltada à comunidade internacional.
Finalmente, o quarto desafio está associado ao fato de escrevermos sobre o mundo judaico para comunidades ju daicas tão distintas, cuja reação a algumas notícias não é previsível. Nesse sentido, precisamos nos policiar constan temente para não sermos ofensivos. Um dos meios para li dar com tal diversidade é manter uma equipe o mais mul ticultural possível.
Devarim: Há muitos representantes da mídia internacio nal em Israel. Você acredita que o acesso à informação é o mesmo para jornalistas israelenses e internacionais?
Eetta: Como em qualquer democracia, o governo não está disposto a divulgar informações sensíveis ou negati vas. Em outras palavras, há um interesse governamental em controlar as informações disponíveis ao público. No entanto, isto não significa que o acesso à informação seja negado. Inclusive, há de fato poucos segredos políticos em Israel.
Por exemplo, sobre a decisão do go verno israelense de proibir o acesso da mídia, tanto israe lense quanto estrangeira, à Faixa de Gaza durante o con flito no início deste ano, o exército acredita que foi positi vo. Segundo os militares, os mal-entendidos foram evita dos, uma vez que o governo controlou a informação. Já a imprensa obviamente não concorda com tal posição. Para nós, quanto mais soubermos, melhor é. Neste contexto fi cou clara a falta de confiança entre jornalistas israelenses e palestinos. Infelizmente não pude contar com a colabo ração de repórteres palestinos para obter informações sobre as ações em Gaza.
No entanto, é interessante notar que quando nos en contramos em conferências internacionais tal relação tor na-se possível. Israelenses e palestinos são parecidos em vá rios aspectos, como: viver no Oriente Médio, ter um senso de humor semelhante, vivenciar o mesmo conflito, entre outros. Mas, infelizmente, quando retornamos para casa, voltamos à estaca zero. É certo que, no nível pessoal, o rela cionamento permanece. Por exemplo, quando ocorre uma ação armada em território palestino, ligo para o meu cole ga para saber se ele e a família estão bem e vice-versa. Mas, no nível profissional, qualquer relação é proibitiva.
Devarim: É possível estabelecer uma paz sustentável entre dois povos – israelense e palestino – que tanto já sofre ram ao longo de vários anos de conflito?
Eetta: Antes de mais nada, é fundamental definir a si tuação no âmbito político. Se conseguirmos estabelecer dois Estados por meio do acordo de paz, já é um pas so significativo. Não precisamos, num primeiro momen to, ver nossas crianças jogando futebol com crianças pa lestinas. Quando isto acontecer, será ótimo e, com certe za, ajudará a manter o que os políticos devem alcançar no nível político.
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Um dos principais obstáculos à manutenção da paz é a presença em ambos os lados de pessoas resistentes ao estabeleci mento de um acordo político, cujas ações podem ser minimizadas se as relações hu manas entre os dois povos estiverem for talecidas. Mas, novamente, precisamos primeiro dos políticos e muito provavel mente da ajuda internacional para dar início ao processo de construção de uma paz duradoura.
Sobre a possibilidade de um relacio namento entre o povo israelense e o pa lestino, acredito que este seja possível. Hoje, o sentimento de raiva é presente em ambos os lados. É possível superar tal raiva? Sim, uma vez que o con flito termine.
Acredito que seja possível um relacionamento entre o povo israelense e o palestino. Hoje, o sentimento de raiva é presente em ambos os lados. É possível superar tal raiva? Sim, uma vez que o conflito termine.
Eetta: O primeiro passo nesta direção é não termos medo de permitir maior au tonomia cultural aos diversos grupos que constituem a sociedade israelense, inclusive a dos árabes. Em minha opinião, se ria muito importante ensinar e aprender sobre outras culturas.
Acredito que o problema central é a decisão, tomada desde a fundação do Es tado, de tornar o Estado de Israel judai co por legislação e não através de instru mentos culturais. Hoje, o significado de um Estado judeu está associado à lei e à legislação. Em consequência disso, ex pressões culturais, que levariam a uma diversidade social, são inibidas.
Da mesma forma que legislar Israel como um Estado judaico é problemático, abrir mão de certos elementos, mesmo que não sejam tão democráticos, também é com plicado. Ou seja, as questões são muito complexas e não é possível tratá-las sem analisar seus diversos ângulos. Te
Devarim: Como lidar com a questão de Israel ser um Es tado judaico e ao mesmo tempo multicultural e multir religioso?
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mos que analisar caso a caso e sempre haverá tensões. Sejamos honestos: a identi ficação de não judeus com o Estado de Is rael será em certo sentido limitada. Mas em qual extensão ela será limitada, isto é outra história. Por exemplo, não defendo a extinção da Lei do Retorno – ao con trário, argumento em prol de sua rele vância. Ao mesmo tempo, ser um Esta do judaico significa limitar os direitos dos árabes de reunificar suas famílias ou for çá-los a aprender a história judaica? Para mim, a resposta é não. Entretanto, não são apenas não judeus que sofrem o im pacto do conceito de Estado Judeu. Em Israel, há um movimento do governo de forçar o judaísmo – especialmente o juda ísmo conforme o entendimento da linha ortodoxa – sobre a população. Acredito que redefinir o conceito de Estado judai co, ajustando-o à realidade da nossa so
Há um fenômeno novo de grupos que se formam para rezar em conjunto, sem pertencer a nenhum movimento religioso. No entanto, os serviços religiosos destes grupos são muito semelhantes ao reformista. Assim, acredito que veremos, num futuro próximo, uma nova definição de espiritualidade israelense que desafiará a ultraortodoxia.
ciedade, contribuirá para a resolução das tensões que esta definição provoca.
Devarim: É possível identificar um crescimento do movimento reformista/reli gioso progressista em Israel?
Eetta: A presença do movimento re formista é cada vez mais intensa entre a população israelense. Este crescimento se deve a várias razões. Entre elas, está a edu cação de muitas crianças na rede de esco las “Tali” [rede de escolas mantida pelo movimento Reformista em Israel] e a pre sença cada vez maior de sinagogas refor mistas. Os primeiros formandos do “Tali” têm cerca de 20 anos de idade. Logo, esta mos, neste momento, dando os primeiros passos em direção à construção de uma massa crítica reformista em Israel. Meus filhos, por exemplo, e seus amigos se sen tem muito confortáveis com a religião ju
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daica e se identificam como judeus religiosos e reformistas. Eles afirmam serem religiosos, mas não ortodoxos. Não há dúvidas de que eles sabem manejar muito bem as fontes re ligiosas judaicas, o Talmud, a Torá e outros textos. A reli gião é muito importante em suas vidas. Há reflexos, tam bém, na vida social, uma vez que a sinagoga é um local de encontro destes jovens. Estes jovens reformistas nasceram em Israel, o hebraico é seu primeiro idioma, frequenta ram escolas israelenses e servem o exército. Portanto, eles são iguais a qualquer outro jovem cujos pais nasceram em Israel. Os formandos da “Mechiná”1 também constituem um grupo que apresenta sinais de avanço do movimento reformista. Embora o programa não estabeleça pré-re quisitos religiosos, a maioria dos participantes é composta por judeus reformistas. Estes jovens, durante o programa, aprendem sobre a sociedade israelense e, quando estão no exército, fazem as tefilot e lêem o Sidur. Nesse sentido, co meçamos a identificar os valores do movimento reformis ta ao ver o processo de formação destes jovens. Além dis so, dentre as realizações do movimento reformista em Is rael está a luta em prol dos direitos civis, como contestar as autoridades rabínicas nas questões de divórcio e de con versão religiosa. Por meio destas ações a sociedade israelen se é beneficiada e o movimento reformis ta ganha cada vez mais visibilidade, apoio e força. Por fim, não podemos ignorar o crescimento, entre os israelenses, da bus ca pela religião e pela espiritualidade. Há um fenômeno novo de grupos que se formam para rezar em conjunto, sem perten cer a nenhum movimento religioso. No entanto, os serviços religiosos destes gru pos são muito semelhantes ao reformista. Assim, acredito que veremos, num futuro próximo, uma nova definição de espiritualidade israelense que desafiará a ultraortodoxia. Tal crença é ainda sustentada pelo fato de os líderes ultraortodoxos estarem se distanciando cada vez mais da população em geral.
As jornalistas Jana Tabak (à esq.) e Eetta Prince-Gibson, editora-chefe da revista Jerusalem Report, na biblioteca da ARI.
Ser um Estado judaico significa limitar os direitos dos árabes de reunificar suas famílias ou forçá-los a aprender a história judaica? Para mim, a resposta é não.
tebol depois de fazer o kidush, contradizendo os precei tos básicos do judaísmo ortodoxo, não aceitam a igualda de religiosa de gênero, porque acreditam que esta igualda de representa um desvio muito grande da tradição judai ca. Assim, um dos principais pontos de distanciamento entre os judeus tradicionalistas, porém não religiosos, e os judeus ligados ao movimento reformista, que se declaram religiosos, é o fato de ho mens e mulheres serem tratados de forma igual. Para os tradicionalistas, é muito es tranho ver mulheres lendo a Torá ou re zando lado a lado com os homens. Tal reação não é tão absurda se atentarmos para o fato de que, sociologicamente, as rela ções de gênero constituem a base de di versas sociedades. Entretanto, há um cla ro crescimento e a disseminação do conceito religioso re formista em Israel e os tradicionalistas tendem de certa for ma a uma maior aproximação e identificação.
Jana Tabak é jornalista e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio.
Devarim: Como você vê a diferença entre os tradicionalistas2 e o movimento reformista? A questão da participa ção da mulher na religião ainda é muito forte?
Eetta: Um dos aspectos que ajudam a definir os ju deus tradicionalistas é a questão de gênero. Por exemplo, pessoas que viajam no shabat ou vão a uma partida de fu
Notas
1. Programa de um ano de duração ligado ao Exército de Israel, que propõe serviço social voluntário antes de iniciar período regular de serviço militar, sem diminuir a sua duração.
2. Chamamos aqui de tradicionalistas aquela parcela da população que mantém al guns vínculos e rituais religiosos, como, por exemplo, acender as velas no shabat, porém não se identificam como judeus religiosos.
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c oexistência, indiferença ou inimizade?
Os pensadores sionistas e os árabes palestinos
Otema Sionismo é alvo de polêmicas em qualquer debate sobre Oriente Médio nos dias de hoje. E incrivelmente para um tema tão polêmico, a desinformação é muito grande. Existem os que associam o Sionis mo como consequência do Holocausto, ignorando que o primeiro é anterior ao segundo. Existem os que enxergam no Sionismo uma aventura co lonialista, sem, contudo, identificar qual potência colonial a teria patrocinado. O Sionismo já foi tido como um tipo de racismo, por exemplo, por uma as sembleia na própria ONU. Felizmente esta caracterização foi revogada em um curto espaço de tempo, embora tenha havido outras tentativas de reafirmá-la. Mais do que o próprio discurso antissionista, o que mais me intriga é o fato de ele ser um pano de fundo para discursos antissemitas. Alguns destes discur sos afirmam que o Sionismo é, por definição, antiárabe. Duas teses são defen didas: a primeira afirma que os sionistas considerariam a Palestina como um território desocupado, ou seja, que os árabes não compunham um povo na quela região. E a segunda afirmativa era a de que o Sionismo prega, necessaria mente, que os árabes sejam removidos da Terra de Israel. Estes elementos, presentes nos discursos de muitos antissionistas, são citados como fatos. Este arti go, portanto, visa analisar os discursos dos próprios sionistas a fim de vermos quais são os fatos verdadeiros.
Todos os principais teóricos do Sionismo evidentemente sabiam da exis tência dos habitantes árabes na Palestina – que estava sob o domínio do Im
Todos os principais teóricos do Sionismo evidentemente sabiam da existência dos habitantes árabes na Palestina – que estava sob o domínio do Império Turco-Otomano. E todos se manifestaram a seu respeito.
joão Koatz miragaya
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pério Turco-Otomano – no tempo em que todos elabora vam suas teorias. E todos se manifestaram a seu respeito. O que nos importa, portanto, é como estes pensadores li daram com os árabes e se é verdade que algum deles pro pôs a expulsão destes da Terra de Israel. Veremos a partir das próprias fontes.
Primeiras visões
“Uma terra sem um povo, para um povo sem uma ter ra.” Visto por muitos como um slogan do Sionismo, às vezes citada como uma frase de Theodor Herzl, a primei ra aparição desta expressão, como mostra a pesquisado ra Diana Muir, se dá em 1843 na obra “The Land of Isra el According to the Covenant with Abraham, with Isaac and with Jacob”, do clérigo evangélico Alexander Keith, per tencente à Igreja da Escócia.1 Este seu comentário, segun do a própria autora, se deu após uma visita sua à Palestina em 1839, quando os turco-otomanos detinham o contro
le da região. Em 1853, com opiniões muito semelhantes, o funcionário do Estado Inglês, Lord Shaftesbury, utilizou a mesma expressão para embasar a sua opinião, de que os judeus não possuíam uma pátria e deveriam retornar à ter ra de seus ancestrais2. Outros utilizaram esta expressão nos anos seguintes, como o presbiteriano escocês Horatius Bo nar, em 1958, o norte-americano William Eugene Blacks tone, em 1881, o clérigo anglicano George Seaton Bowes, em 1884, o norte-americano John Lawson Stoddard, em 1897, o novelista inglês Winifred Graham, em 1902, o teólogo batista Augustus Hopkins Strong, em 1917, dentre mais alguns outros.3 Como vemos, ao longo de todo o século XIX (e até o início do século XX) esta expressão foi utilizada por muitos cristãos, mas nunca por nenhum ju deu, quanto mais por um sionista.
Sua aparição no ideário judaico se dá através de Is rael Zangwill, em 1901. Este defende que os árabes como povo são oriundos das terras de Bagdá, Meca e Damasco, não da Palestina, e esta deveria ser palco da nação judai
Cooperação árabe-judaica em Haifa no ano de 1936.
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ca, tão oprimida4. Paradoxalmente, embora Zangwill fizesse uso da tal expres são, ele jamais afirmou que os árabes não deveriam habitar aquele pedaço de ter ra. Reforçando isso, cumpre lembrar que ele foi um dos que apoiaram a criação de um Estado judeu em Uganda, no 6º Congresso Sionista.5
Como, então, se atreve, hoje em dia, designar a todo o movimento sionista não só a criação desta expressão, mas ain da o fato de levá-la a cabo? Para respon der a esta questão, devemos recorrer aos principais teóricos do Sionismo, a fim de examinarmos como cada um deles lidava com a questão árabe.
A origem do debate: Herzl e Achad Ha’am lançam as diretrizes
A memória recente dos judeus, estrangeiros na Europa, era latente no imaginário de Herzl quando deu origem à sua obra. Acredito não ser possível acusá-lo de negligência em relação aos árabes, pois ele previa que vivessem lado a lado com os judeus cidadãos com credos e nacionalidades distintas, e prezava pela coexistência legal entre todos.
“A ideia de Estado judeu tem mui tos padrinhos.”6 É difícil assinalar quem foi o primeiro teórico do Sionismo moderno, tendo em vista que desde meados do século XIX alguns indivídu os escreveram sobre o tema. A princípio, tendo a conside rar Leon Pinsker como o primeiro sionista, mas enquanto um ideólogo de algo ainda não concreto. É só a par tir de Herzl que o Estado judeu passa a transitar do mun do das ideias para a realidade objetiva que o caracterizaria daí em diante. Peço licença, então, para excluir as ideias de Pinsker deste estudo, pois, ao referir ao que há de mais abstrato na ideologia, ele não se ateve às questões práticas de um Estado judeu, como, por exemplo, aos árabes que habitavam a Palestina.
Muito se diz sobre uma certa negligência de Theodor Herzl (1860-1904) sobre uma solução para a questão ára be na Palestina. Isto se deve a uma única razão: os confli tos entre árabes e sionistas eram insignificantes até 1904 –ano de seu falecimento. O princípio do nacionalismo ára be e os embates entre estes e os judeus só vieram a acontecer após a 1ª Guerra Mundial. Isto, no entanto, não signi fica que este teórico negligenciasse o fato de cidadãos per tencentes a outras culturas que não a judaica gozassem de plenos direitos de cidadania. Na sua principal obra, é pos sível encontrar passagens como a citada abaixo:
“O exército e a religião merecem altas honrarias pelo seu valor funcional. Mas eles não devem interferir na administra ção do Estado (…). Todo homem será livre, imperturbável na sua fé ou na sua descrença assim como na pertença à sua nacionalidade. E, se ocorrer que homens de outros credos e diferentes nacionalida des venham viver entre nós, nós concede remos com honrada proteção e igualdade perante a lei. Temos aprendido tolerância na Europa. Isso não é dito com sarcasmo; para o antissemitismo atual, isso só pode ria ser compreendido pela antiga intole rância religiosa”. 7
A memória recente dos judeus, estran geiros na Europa, era latente no imagi nário de Herzl quando deu origem à sua obra. Acredito não ser possível acusá-lo de negligência em relação aos árabes, pois ele previa que vivessem lado a lado com os judeus cidadãos com credos e nacio nalidades distintas, e prezava pela coexistência legal en tre todos.
Achad Ha’am (1856-1927), por sua vez, é crítico em relação aos primeiros olim. Inicialmente opositor do Sionismo político, este pensador atacava ferozmente a forma como alguns pertencentes às duas primeiras aliot lidavam com os árabes. O seu texto fala por si só:
“Há algo que certamente deveríamos ter aprendido da nossa história passada e presente, que é não criar a hostili dade da população local (…). Devemos tratá-la com amor e respeito, com sensatez e justiça. E o que fazem os nossos irmãos na terra de Israel? Exatamente o contrário! Foram escravos em seus países de origem e de repente encontramse em uma liberdade anárquica e sem limites, como sempre tem sido quando o escravo se converte em rei. E dirigem-se ante os árabes com hostilidade e crueldade, violando o limi te de suas propriedades, golpeando-os vergonhosamente sem razão. Nossos irmãos estão certos quando dizem que os árabes somente honram a quem demonstra valor e força, mas isso unicamente quando sentem que, em contrapartida, têm a justiça a seu lado. É muito diferente quando o árabe pen sa que as ações do seu oponente estão motivadas na iniqui dade e na justiça. Neste caso, é possível que durante mui
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to tempo guarde a ira dentro de si, mas a conservará em seu coração, e a longo prazo tornará vingativo”.8
Achad Ha’am, assim como Herzl, não previa que surgisse um nacionalismo pa lestino quando escreveu suas principais obras. Os principais textos de ambos re feridos ao Sionismo – e ao que deveria ser o Estado de Israel – foram escritos an tes do início dos tumultos na Palestina, antes que este território tivesse passado das mãos dos turcos para os britânicos, e, principalmente, dos próprios palesti nos se enxergarem como uma nação. Este fato, entretanto, não justifica a acusação de que o Sionismo considerava a Palestina uma terra sem um povo. Os discursos destes primeiros pensadores nos mostram que a relação com os outros povos – especialmente os árabes –era algo não só presente no imaginário sionista, mas con siderado de extrema importância.
O discurso dos primeiros pensadores sionistas mostra que a relação com os outros povos – especialmente os árabes – era algo não só presente no imaginário sionista, mas considerado de extrema importância.
a guerra e as diferenças entre culturas e etnias não seriam, de forma alguma, ex cluídas. Vale lembrar que todos os teóri cos destas correntes assistiram à 1ª Guerra Mundial, a partir da qual os conflitos com os árabes se intensificaram – especialmen te após a Declaração Balfour9 –, tornan do a questão árabe ainda mais decisiva em um futuro Estado judeu.
Aaron David Gordon (1856-1922), integrante da 2ª Aliá10 e um dos ideólo gos do kibutz, foi um dos que escreveu sobre isto. Gordon defendeu o trabalho ju deu na terra como fator de reconstrução nacional. Para ele, os árabes possuíam uma identificação muito maior com a Palestina, simplesmente pelo contato com a terra através do trabalho. Isto, no entanto, não se ria um obstáculo, visto que, para Gordon, a relação com os árabes podia ser positiva para os judeus.
A preocupação dos dois era, sobretudo, com uma co existência pacífica. Nem todos os teóricos sionistas, toda via, compartilhavam este pensamento. Veremos a seguir se os pensadores de uma segunda geração negligenciavam a questão árabe, considerando a Palestina uma terra sem um povo.
Gordon e Borochov: as esquerdas pregam união
Assim como o Sionismo Político de Herzl e o Sionis mo Cultural de Ha’am, os “sionismos” posteriores tam bém possuíram importantes mentores intelectuais, cada um aliado a uma ideologia distinta. Surgiram, por exem plo, o Sionismo Naturalista (de Aaron David Gordon), o Sionismo Socialista (de Dov Ber Borochov) e o Sionismo Revisionista (de Vladimir Ze’ev Jabotinsky). Utilizamos aqui o conceito de Hobsbawm (2008) de tradição inventada como de um conjunto de práticas que normalmen te são reguladas por “regras tácitas ou abertamente acei tas”, estabelecendo sempre uma continuidade a um passado histórico apropriado. Sendo assim, outras tradições, em sua maioria apropriadas da modernidade, são incorpo radas ao Sionismo.
Por serem novos sionismos, com relações significati vas com as teorias modernas de até então, a relação com
“Através da vida, do trabalho e da criação, obteremos ou ratificaremos o nosso direito histórico ao país, e nisso reside o critério pelo qual nos relacionaremos com os árabes. Estes aqui habitavam, viviam, e não podemos atentar contra seus direitos, usurpá-los, mas tampouco eles podem reivindicar a terra onde vivemos e trabalhamos.” 11
A preocupação com os direitos árabes na região é um ponto de suma importância na teoria de Gordon. Por ser um homem de esquerda, defensor dos direitos humanos e extremamente otimista em relação à natureza humana, Gordon acreditava na paz e na coexistência. Para ele, as di ferenças culturais se davam, principalmente, devido às di ferenças no modo de vida dos judeus e dos árabes. Quando os judeus, finalmente, passassem pela experiência do traba lho na terra e compreendessem o significado da natureza e da própria terra para o ser humano, as fronteiras seriam muito mais estreitas, e não haveria conflito.
De semelhante, para Borochov (1881-1917), o oti mismo e a coexistência. Principal expoente do Sionismo Socialista, Borochov acreditava que a problemática ju daica era uma questão fundamentalmente de classe. Era necessária aos judeus uma própria pátria, para que estes pudessem compor um proletariado nacional, o que não podiam compor em outros Estados devido ao fato de se rem considerados estrangeiros. Para Borochov, “a Pales tina é uma estância internacional (…), que adotará o tipo
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de economia e a cultura de quem detiver o poder econômi co; os imigrantes judeus tomarão para si a tarefa do desen volvimento das forças produtivas na Palestina assimilando as populações locais”.12 Em relação a estas populações locais, Borochov acredita que os proletários árabes teriam interesses semelhantes aos judeus:
“Quando as terras improdutivas forem preparadas para a colonização, quando se introduzirem as novas técnicas de pro dução e quando os outros obstáculos forem removidos haverá terra suficiente para acomodar tanto os judeus como os árabes. As relações normais entre judeus e árabes prevalecerão”.13
Para Borochov, então, os interesses que prevaleceriam seriam os de classe, não os de etnia ou cultura. O que para Gordon se daria a partir da experiência com a natureza e a terra, para Borochov seria resultado das condições sociais e de produção. Estas relações normais, para Borochov, se riam as relações sociais. Ambos, portanto, lidavam com os árabes como aliados em potencial.
Vimos até agora que os sionismos não vinculados a outras ideologias modernas (como o de Herzl e Achad Ha’am) não ignoravam a presença árabe, muito pelo con trário, eram atentos aos problemas que poderiam ocorrer e propunham soluções pacifistas. E os sionismos de esquer da, por suas vezes, lidavam com os árabes como aliados, ou seja, não apenas não os desprezavam como os conside ravam positivamente. Até o momento não encontramos justificativa alguma para as declarações vindas dos grupos antissionistas. Vamos em frente.
O Revisionismo de Jabotinsky: o que seria a “Muralha de Ferro”?
Vladimir Ze’ev Jabotinsky (1880-1940) foi, de fato, o pensador sionista que mais se importou e escreveu so bre a relação com os árabes. Diferentemente dos outros, este viveu até o ano de 1940, tendo assistido e participa do dos tumultos ocorridos na Palestina após a Declaração Balfour e as ondas de imigração de ambos os povos – so bretudo no ano de 1929. Sua visão sobre a relação entre os povos não era muito otimista. Isto fica claro quando propunha que os judeus se organizassem em milícias e garan tissem a paz a partir da guerra. Para ele, não havia como ter os árabes como aliados a princípio, mas no futuro isto seria viável, visto que a sua liberdade seria protegida pelo próprio Estado judeu.
Este discurso bélico, no entanto, o caracterizou ainda em vida como um antiárabe. Não é o nosso objetivo dis cutir esta designação, mas se o Sionismo, em si, é antiára be. Até agora, vimos que todos os pensadores anteriores lidavam com a questão árabe de alguma forma. Jabotinsky, por suposto, também escreve sobre o tema. Em sua obra mais famosa, ele ressalta sua visão sobre o conflito, mostrando uma grande preocupação com as diferenças cultu rais entre ambos.
“O autor dessas linhas é considerado um inimigo dos ára bes, alguém que quer expulsá-los de Eretz Israel, etc. Isto não é verdade. (…)
“Primeiro considero inaceitável a expulsão dos árabes de Eretz Israel, pois o país estará sempre habitado pelos dois po vos. Segundo: orgulho-me de ter participado do grupo que anunciou o programa de ‘Helsingfors’, que exigia o acolhi mento dos direitos de autonomia das minorias nacionais. Ao fazer este programa não só quisemos defender os judeus, como todos os povos em sua condição de minoria, estejam onde es tiverem. A base do programa constitui a absoluta igualda de de direitos.
“Pessoalmente, estou disposto a assinar em meu nome e de nossos descendentes que nunca haveremos de contrair esta Encontro entre Weizmann e o líder árabe Faiçal, 1918.
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igualdade de direitos, nunca haveremos de fazer nada para expulsar alguém”.14
Jabotinsky discorre, posteriormente, sobre as dificul dades de se estabelecer a paz com os árabes, visto que eles jamais permitiriam, segundo ele, que “ainda em seus co rações há esperança de poder evitar que a sua ‘Palestina’ se transforme em Eretz Israel”.15 Ele, então propõe que, den tro do Estado judeu, árabes e judeus vivam sob leis seme lhantes, mas que estas sejam impostas sob a vontade dos árabes ou não.
“Um povo vivo estará disposto a transigir em questões tão decisivas somente quando não lhe restar mais nenhuma esperança de livrar-se do intruso e quando na ‘muralha de ferro’ se fechem todas as brechas. Somente então os grupos extremistas perderão a sua influência e darão lugar a gru pos moderados, dispostos a chegar a acordos internos e dis cutir conosco problemas práticos como: garantia contra de
sassentamento da população árabe, igualdade de direitos ci vis e nacionais, etc. Pessoalmente, creio que nesses casos ha veremos de dar-lhes garantias suficientes para tranquilizálos e para que ambos os povos possam conviver pacificamen te, em boa vizinhança.
“Porém, o único caminho que conduz a um acordo é a ‘muralha de ferro’, ou seja, a existência em Eretz Israel de uma força que não seja influenciada de nenhuma manei ra pela pressão árabe. Em outras palavras, o único caminho pelo qual se poderá obter um acordo no futuro é deixando de lado qualquer intento de acordo no presente.” 16
Por estes discursos conflituosos, Jabotinsky ganhou a fama de inimigo dos árabes, porém em nenhum momen to Jabotinsky fala em remoção dos árabes e nem lida com a Palestina como uma terra sem povo. Pode-se questio nar o fato deste pensador considerar os árabes como um obstáculo, a princípio. Mas não se pode, de forma algu
Encontro entre líderes sionistas e árabes em 1931; ao centro, Weizmann e Arlosoroff.
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ma, acusá-lo de apoiar remoções nem de tratar este povo com indiferença. Perce be-se, afinal, que nem Jabotinsky, o me nos otimista em relação aos árabes de todos os teóricos do Sionismo, se utili za do discurso de “uma terra sem povo” pelo qual todos são acusados indiscrimi nada e injustamente.
O que diz o Sionismo, afinal?
A respeito dos árabes, percebe-se claramente que nenhum sionista os igno ra. Dentre os teóricos dos vários sionis mos existentes, só um faz alguma alusão ao fato de os árabes constituírem uma si tuação problemática por si só, enquanto os outros afirmam a vontade de coexistir pacificamente com eles.
Por ser um homem de esquerda, defensor dos direitos humanos e extremamente otimista em relação à natureza humana, Aaron David Gordon acreditava na paz e na coexistência. Para ele, as diferenças culturais se davam, principalmente, devido às diferenças no modo de vida dos judeus e dos árabes.
Pode-se discutir, todavia, se foram eficazes ou ingênu as as propostas destes pensadores para a convivência com os árabes. Algumas destas teorias são totalmente descar tadas pelos líderes de Israel atualmente, visto o que a his tória nos mostrou a seguir da época destes pensadores. As críticas, de fato, da relação que o Estado de Israel de hoje em dia tem com os palestinos são justas em boa parte das vezes. Muitas delas, inclusive, vêm de dentro do Estado de Israel, sobretudo de grupos pacifistas e movimentos so ciais. E é importante frisar que, hoje em dia, há, sim, integrantes de partidos políticos israelenses a favor da remo ção dos árabes.
Nenhum destes grandes teóricos, entretanto – e nin guém pode se referir melhor ao Sionismo do que quem formulou suas bases –, afirma, em nenhuma linha sequer de suas obras, que a Palestina é uma terra sem um povo. E mais distante ainda estão discursos antiárabes pregando a sua remoção do Estado judeu. Considero o fato de alguns personagens atuais defenderem atitudes grosseiras como a remoção dos árabes do Estado de Israel como um fenôme no marginal, pois esta proposta jamais foi sequer apreciada no parlamento israelense.
Pode-se concluir, portanto, que nenhum dos teóricos do Sionismo traz consigo, em seus discursos, as características apontadas pelos antissionistas. Por que, então, estes teimam em afirmar “ad nauseam” que o Sionismo é anti
árabe por definição, e mais ainda, que o Sionismo desconsiderou a existência ára be na Palestina? Passo esta questão para eles. Estou ansioso por uma resposta.
João Koatz Miragaya é bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminen se e ex-boguer do Habonim Dror. Foi professor da ARI.
Bibliografia
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Ha’am, Ahad. “The Jewish State and the Jewish Problem”. In: Nationalism and the Jewish Ethic. Por Y. Introduccion by Hans Kohn. New York, 1962.
Herzl, Theodor. O Estado Judeu. Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 1998.
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Pinsky, Jaime. Origens do nacionalismo judaico. Ed. Hucitec, São Paulo, 1978.
Notas
1. Muir, Diana. A land without a people for a people without a land, p. 55.
2. Idem, p. 56.
3. Idem, pp. 56-57.
4. Idem, p. 60.
5. Realizado em 1903, o 6º Congresso Sionista ficará marcado por ter discutido a proposta britânica de se criar um Estado nacional judaico na colônia de Uganda. O projeto, aprovado nesse mesmo congresso, foi rejeitado no seguinte.
6. Pinsky, J. Origens do nacionalismo judaico, p. 105.
7. Herzl, T. O Estado Judeu, p. 114.
8. Ha’am, A. The Jewish State and the Jewish Problem, p. 117 (tradução minha).
9. Documento no qual o governo britânico, em 1917, em meio à 1ª Guerra Mun dial, prometeu apoiar a criação de um Estado para judeus na Palestina, até então território do Império Turco-Otomano, aliado da Alemanha no conflito contra os britânicos.
10. Segunda onda de imigração para a Palestina (1904-1910), formada basicamente por judeus socialistas oriundos da Rússia após o Pogrom de Kishinev e o fracasso inicial do levante revolucionário de 1904.
11. Gordon, A. D. Del vuelta a la tierra, p. 78 (tradução minha).
12. Pinsky, C. B. Pássaros da Liberdade, p. 97.
13. Borojov, D. B. Eretz Yisrael en Nuestro Programa y Tacticas, p. 87 (tradução minha).
14. Jabotinsky, V. Z. “La Muralla de Hierro”. In: Selección de escritos de Zeev Jabo tinsky Rosh Betar, p. 83 (tradução minha).
15. Idem, p. 84.
16. Idem, p. 85.
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Steven Wynn
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“
d epoimento de um sheliach israelense expulso da v enezuela
entrevista de eldad Paz a Marcelo treistman
Por esta causa estarei sempre disposto!” Assim respondeu Eldad Paz ao meu pedido para entrevistá-lo. Poucas horas, depois sua esposa, Ilana, me ligou convidando para um sábado de sol na piscina do Kibutz Dália, no norte de Israel. Num clima descontraído, Eldad falou a Devarim sobre a complicada situação dos judeus na Venezuela a partir de sua história pessoal como sheliach da comunidade e o relato de sua expulsão pelo governo de Hugo Chávez.
Devarim: Como você se tornou um sheliach1 e qual era o seu trabalho na Ve nezuela?
Eldad: Tenho 45 anos de idade e de vida kibutziana. Nasci e cresci no Ki butz Ramot Menashe e atualmente sou membro do Kibutz Dália. Tive a hon ra de passar por três experiências de shelichut em três momentos bem diferentes da minha vida. A primeira foi quando eu tinha seis anos de idade e meu pai foi convidado pelo movimento juvenil Hashomer Hatzair da Venezuela. Na quela oportunidade conheci o país e aprendi a falar espanhol. Em 1998, com 34 anos e ainda solteiro, tive uma nova experiência na Venezuela, esta funda mental em minha vida, pois foi quando conheci a minha esposa. Ilana era a re presentante da Hagshamá no Brasil e nos conhecemos num seminário no Mé xico. Nos casamos no Rio de Janeiro e, depois de eu terminar a minha sheli chut na Venezuela, voltamos a morar em Israel.
Aparentemente Chávez resolveu expulsar os israelenses de impulso, ao final de um dos longos discursos que faz frequentemente na televisão, sem seguir nenhum protocolo diplomático conhecido. Somente três horas depois chegou o comunicado oficial declarando que todos os representantes oficiais de Israel teriam que sair do país em 72 horas.
Os povos da Venezuela e de Israel têm uma amizade longa de muitos anos e a maior parte da sociedade venezuelana não é e jamais será antissemita ou racista; ao lado, a imagem de Simon Bolivar (1783-1830), líder do processo de independência da Venezuela e de outros países da América espanhola.
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Trabalhei como coordenador de ven das na fábrica do Kibutz Arad. Duran te esses anos, tivemos nossos dois primei ros filhos Alon e Daniel. Mas nunca perdemos o contato com a comunidade ve nezuelana e, em julho de 2006, durante a guerra do Líbano, com a Ilana grávida do nosso terceiro filho, aceitamos o con vite da kehilá2 da Venezuela e da Soch nut3 para mais uma shelichut na Venezue la. Topamos o desafio, arrumamos nossas coisas e fomos. A comunidade venezuelana estava se sentindo muito sozinha e fragilizada por conta das repercussões da guer ra em nível local. Por questões diplomáticas, o embaixa dor de Israel foi chamado para consultas em Israel e estava fora da Venezuela.
Poucas semanas antes da expulsão o prefeito de Caracas havia acendido uma vela na menorá, no meio da rua, junto com o embaixador de Israel.
de Caracas e, em minha opinião, é o clu be judaico mais bonito do mundo. Atuei como diretor de Juventude deste centro comunitário. Eu tinha contato com todas as instituições juvenis da comunida de para fornecer e garantir conteúdo ju daico em todas as atividades do centro comunitário – esportes, dança, cultura, ci nema, música e também atividades extra curriculares no colégio. O grande desafio era localizar e incentivar os jovens a trabalhar em prol da comunidade e conduzi-los ao êxito nessa função.
Devarim: Como está organizada a comunidade judaica na Venezuela?
Eldad: A Venezuela conta com um centro comunitário que atende a toda a comunidade: sefaradim e ashkenazim, jovens e adultos, ortodoxos, liberais e laicos. A vida comu nitária é extremamente ativa. A Hebraica fica no centro
O compromisso e a colaboração funcionavam perfei tamente. A comunidade me auxiliou em tudo. Eu segui uma política educacional que consistia em dar autono mia aos diferentes grupos da juventude, sem obrigá-los a seguir as diretrizes dos adultos. Cada jovem ou grupo teve a liberdade para escolher o que fazer nos campos de judaísmo e de cultura judaica com o objetivo de produ zir atividades e programas criativos e de efeitos positivos para a comunidade. O papel do sheliach neste processo é fazer o “coaching”, ajudar nas ideias e na implementação dos projetos.
A cidade de Caracas, tendo ao fundo as montanhas de Avila.
R. Gomez /
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Neste contexto todos ganham. Quem é passivo percebe que os amigos que se en gajam realizam coisas grandes e assim se consegue construir o sentimento generali zado de pertinência à comunidade. Fiquei na Venezuela cerca de dois anos e meio.
Devarim: Como foi a experiência de ser expulso do país?
Eldad: Tínhamos saído de férias para Los Llanos, um lugar incrível, onde pes camos piranhas, demos comida para cro codilos, vimos anacondas e botos-rosa. É um lugar totalmente afastado e não tem sinal de celular. Quando estávamos voltando e recuperamos o sinal do celular, muitas mensagens de texto e de voz come çaram a chegar. Era janeiro de 2009, tinha começado a operação militar em Gaza.
As pessoas da comunidade começaram a chegar para se despedir, para nos consolar, a cabeça estava a mil e as crianças estavam extremamente confusas.
Em um momento elas estavam prontas para ir estudar na escola no dia seguinte e de repente elas precisavam se preparar para sair do país. É muito difícil internalizar essa realidade.
Quando conseguimos chegar a um lu gar com televisão percebemos como era feita a transmissão do conflito. Passavam somente programas antissemitas e antissionistas, nos quais diziam que “Israel foi imposto ilegal e unilateralmente, que faz a mesma política nazista que o povo judeu sofreu e que ignora a opinião mundial”. Um fato curioso é que a Venezuela votou a favor da criação do Estado israelen se em novembro de 1947 na ONU. Mas aparentemente o governo de Chávez se esqueceu disto.
Chegamos em Caracas e um dia depois chegou a irmã da Ilana com suas três filhas e o marido para nos visitar. Nos éramos dez pessoas em casa, era o dia de aniversário do nosso casamento. Eu estava voltando do trabalho, liga a diretora-geral da Hebraica e me diz:
– Eldad, você não vai embora?
– Embora por quê?
Você não vê televisão? Estão avisando neste momento que Chávez expulsou vocês!
Fiquei atordoado e imediatamente liguei para o embai xador israelense, que também não estava vendo televisão e, por isso, não estava sabendo de nada. Ou seja, não hou ve nenhum contato diplomático. Aparentemente Chávez resolveu expulsar os israelenses de impulso, ao final de um dos longos discursos que faz frequentemente na televisão, sem seguir nenhum protocolo diplomático conhecido.
Somente três horas depois chegou o comunicado oficial declarando que todos os representantes oficiais de Israel teriam que sair do país em 72 horas. Junto havia uma lista de nomes e o meu nome estava incluído nela.
Foi uma loucura. A gente não sabia se era algo temporário ou permanente. Não sabíamos se iríamos para algum lugar pró ximo, esperar umas semanas para depois voltar ou se deveríamos voltar definitiva mente para Israel. Passamos 12 horas sem saber o que iria acontecer.
Estávamos completamente confusos. Poucas semanas antes da expulsão o pre feito de Caracas havia acendido uma vela na menorá, no meio da rua, junto com o embaixador de Israel...
Na manhã seguinte liguei para Israel e recebi o ultimato. Começou a correria: fechar a conta no banco, organizar as coisas pessoais, começar a desmontar a casa, vender o carro e os móveis, enfim, tudo o que precisa ser feito quando você vai se mudar definitivamente de um país para outro. Além disso, não havia casa disponível para uma família do nosso tamanho no kibutz, assim que nem ao menos tínhamos onde ficar em Israel.
E o mais complicado: conseguir um vôo para fora da Venezuela dentro do prazo estipulado. As pessoas da co munidade começaram a chegar para se despedir, para nos consolar, a cabeça estava a mil e as crianças estavam extre mamente confusas. Em um momento elas estavam pron tas para ir estudar na escola no dia seguinte e de repente elas precisavam se preparar para sair do país. É muito difí cil internalizar essa realidade. Começamos a receber muitas manifestações e gestos realmente emocionantes vindos da comunidade. Eles nos deram todo o apoio e a ajuda que puderam. Estavam se sentido muito abalados e machuca dos com a situação.
Nos mandaram uma advogada não judia para fazer uma procuração outorgando poderes para a comunida de gerir os bens que ficariam para trás. Quando ela en trou na nossa casa eu me desculpei pela bagunça, mas foi ela que começou a se desculpar com lágrimas nos olhos pela situação que nós estávamos passando, dizendo que
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isso que estava acontecendo não refletia a sociedade venezuelana e que ela se sentia extremamente envergonha da por seu país.
No dia de ir para o aeroporto foi muito difícil aceitar que você não vai ver de novo as pessoas com as quais tra balhou e criou laços de amizade e que você não vai mais poder voltar para aquele país. Hoje nenhum israelense entra na Venezuela. São “personas non grata”. Jovens que trabalhavam comigo e estavam viajando naquele momen to ligavam chorando dizendo que não ia dar tempo de chegar para se despedir. Saímos de casa para o aeroporto e no caminho cruzamos com uma manifestação contra a embaixada de Israel, já vazia, com suásticas nas bandeiras de Israel e as pessoas gritando slogans antissemitas.
No aeroporto foi uma confusão grande. Eu tive que ir à polícia federal explicar que estávamos sendo expulsos do país. Mostrei os passaportes para o oficial e ele, com uma troca de olhares, indicou que sabia perfeitamente o que es tava acontecendo e que não compactuava de forma algu ma com aquilo tudo.
Devarim: Qual o sentimento da comunidade judaica na Venezuela? E o que eles pensam e como estão reagindo aos ataques?
Eldad: Desde 2002, 35% da comunidade já deixou a Venezuela. Foram, em sua maioria, para Miami, Costa Rica, Panamá e alguns para Israel. A liderança da comuni dade está se preparando para vários cenários. São pessoas de muita qualidade e estão se preparando para as distintas possibilidades do que pode acontecer lá.
Devarim: O que você prevê de futuro para os judeus na Venezuela?
Eldad: Quem sou eu para opinar sobre o futuro. Eu gostaria que as pessoas das quais eu gosto viessem morar aqui em Israel. Mas é claro que respeito profundamente a determinação deles de querer inserir o judaísmo e a cultu ra judaica no país onde vivem. Todos têm o direito de viver onde quiserem e de professar a religião que escolherem.
Ao mesmo tempo estou bastante preocupado. Real mente espero que o pior não aconteça. Imigração é um passo muito forte, é sempre muito difícil deixar tudo para trás, porém, quase todos os judeus na Venezuela têm hoje um plano B.
Devarim: Você acha que a política antissionista de Chá vez pode implantar um sentimento antissemita nos vene zuelanos?
Iraida Bassi
Vista da cidade de Caracas, capital da Venezuela.
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Eldad: No curso da história, vemos que o antissemistismo não apoiado por um governo não é muito perigoso. Mas tudo muda quando ganha apoio governa mental, porque nesta situação há a possi bilidade de os racistas fazerem mais mal do que apenas falar. Hoje em dia há mais racismo na Venezuela e, neste contexto, há mais antissemitismo. Por outro lado, a maior parte da sociedade venezuelana não é e jamais será antissemita ou racista.
Obviamente, há uma grande dissemi nação de ideias antissemitas. E a políti ca do Chávez tem repercussão em toda América Latina. Eu quero perguntar a toda a sociedade brasileira, não apenas aos judeus: o que vocês vão fazer para que essa onda não se expanda? Há que se construir obstáculos para deter esta ame aça. A situação é realmente muito peri gosa e eu tenho a sensação de que as pes soas não estão conseguindo dimensionála corretamente.
no venezuelano. Não posso nem quero misturar as coisas, as minhas observações se restringem à política do Chávez frente à comunidade judaica, onde servi como sheliach.
Devarim: Você aceitaria outra shelichut ou o trauma o afastou para sempre des ta possibilidade?
Os povos da Venezuela e de Israel têm uma amizade longa de muitos anos. Espe ro que a gente supere logo esta fase e que
Eldad Paz: No dia de ir para o aeroporto foi muito difícil aceitar que você não vai ver de novo as pessoas com as quais trabalhou e criou laços de amizade e que você não vai mais poder voltar para aquele país. Hoje nenhum israelense entra na Venezuela. São “personas non grata”. sigamos amigos do povo venezuelano. Há muitos árabes venezuelanos com laços de amizade com os judeus. Eu acho imprescindível manter esses laços, pois onde há conhecimento não há intolerância.
Devarim: É verdade que o Hizbolá e o Irã são cada vez mais influentes e presentes na Venezuela?
Eldad: Sim. Você anda na rua e vê talibãs, você escu ta muito mais árabe do que antes. Existe um vôo direto de Caracas para Damasco e Teerã, com o detalhe de que para Quito, no Equador, não há vôo direto. Antes se via muita tecnologia israelense na Venezuela, agora só há tecnolo gia iraniana. Dizem que os iranianos entram no país qua se sem serem controlados.
Devarim: Na sua opinião, por que Chávez está tomando este caminho antissionista e antissemita? Qual seria seu objetivo no final das contas?
Eldad: Eu não saberia analisar os objetivos do gover
Eldad: O impacto foi muito forte em mim e em toda a minha família. Pensa mos nisso o tempo todo, sonhamos com isso à noite. Ainda está tudo muito próxi mo, ainda conversamos muito sobre tudo o que aconteceu. É muito importante para as crianças saber que nós dividimos com elas as saudades da vida da Venezue la. Porém, eu não encaro a expulsão como algo pessoal. Chávez não me conhece. Eu tive a oportunidade de fazer parte de um momento significativo da história da comunidade da Venezuela. Tentei ajudá-los durante o meu trabalho e continuo em contato com eles agora.
Os três períodos de shelichut muda ram muito a minha forma de ser, tanto como pessoa quanto como israelense e
como judeu. Ser parte da vida de outra comunidade é um privilégio que sempre estarei disposto a aceitar. Sempre quis fazer parte disso. Gosto dessa mistura da vida comu nitária com a vida pessoal. Contribuir e receber. Sou mui to agradecido à comunidade venezuelana e a toda a aju da que eles me deram antes, durante e depois do meu pe ríodo lá.
Marcelo Treistman é advogado, ex-boger da Chazit Hanoar do Rio de Janeiro e madrich da Chazit em Israel, onde mora desde 2007.
Notas
1. “Sheliach” (literalmente “enviado”) é o nome que se dá à pessoa que sai de sua co munidade para exercer alguma função (normalmente educativa) em outra. “She lichut” é a condição de ser “sheliach”. Na entrevista os termos denotam um israe lense que vai servir em comunidades judaicas fora de Israel.
2. Comunidade judaica.
3. Agência judaica – um organismo do governo de Israel e que dá apoio educativo às comunidades judaicas de todo o mundo.
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Anna Bella Geiger, Ouvinte do Mundo, 2001, 22 x 33 cm, papel pergaminho, chumbo e pigmento azul cobalto
Anna Bella Geiger, Rrolo com oval amarelo, 2008, 22 x 33 cm, papel pergaminho, fotogravura e chumbo
a s ingularidade das l ínguas
j udaicas
Um dos pioneiros do estudo acadêmico das línguas judaicas, o linguista israelense Chaim Rabin levanta a seguinte questão: por que os judeus não levaram o hebraico à diáspora enquanto idioma falado? Os armê nios, por exemplo, outro povo diaspórico, apesar de dispersos man tiveram sua língua ancestral enquanto meio de comunicação oral no âmbito da família e da comunidade (Rabin, 1979:41). Diferentemente dos armênios, conforme Rabin, quando do início de sua grande dispersão, no séc. 1, os ju deus já não mais se comunicavam cotidianamente na língua ancestral. De fato, nesta época o hebraico já havia sido substituído entre os judeus, no âmbito vernacular, pelo aramaico e pelo grego, línguas predominantes então em Eretz Israel e no Egito helenístico.
A integração às paisagens linguísticas locais continuou a caracterizar as co munidades judaicas dispersas pelo mundo, demarcando assim o caráter essen cialmente diaspórico das línguas judaicas que vieram a se constituir a partir de então. De modo que as diferentes comunidades judaicas diaspóricas estiveram ligadas entre si menos por uma língua franca vernacular do que por uma ancestralidade e filiação religiosa em comum.
O hebraico obviamente não deixou de atuar enquanto fator de coesão, mui to embora retirado da esfera vernacular. Nas palavras do linguista norte-ame ricano John Myhill, aspectos não linguísticos da identidade judaica são igual mente importantes para a compreensão do comportamento sociolinguístico judaico,
Segundo Moshe Bar-Asher, um dos principais elos entre as línguas judaicas é a herança literária hebraica comum, mais ou menos presente na consciência de seus falantes. Essa herança literária ganhou expressão nas línguas às quais os judeus estiveram integrados, ao longo da história através de traduções.
Obras de Anna Bella Geiger
gabriel mordoch
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principalmente porque permitiram aos ju deus adotar diferentes línguas de comunica ção diária sem, no entanto, afetar sua iden tidade enquanto judeus (2004:32)
O parâmetro étnico religioso é, por tanto, o critério que coloca num mesmo grupo línguas geneticamente tão diferen tes como iídiche, judeu-espanhol, árabejudaico, entre outras. Dentro da diferen ça, quais são as marcas distintivas ou os denominadores comuns das línguas ju daicas? Ou, de outro modo, como se de fine ou se manifesta o caráter judaico des te grupo de línguas?
Segundo o linguista israelense Moshe Bar-Asher (2009:30), um dos principais elos entre as línguas judaicas é a herança literária hebraica comum, mais ou me nos presente na consciência de seus fa lantes. Essa herança literária ganhou ex pressão nas línguas às quais os judeus es tiveram integrados ao longo da história através de traduções. As traduções pos sibilitaram o acesso à literatura sacra àqueles não mais proficientes no idioma original, o hebraico denominado leshon ha-kodesh (literalmente “a língua da santidade”), bem como serviram para fins didáticos, ou seja, o ensino da leitura do texto original. É neste contexto que Rabin formula a seguinte definição: língua judaica é aquela que convive com o hebraico sagrado numa relação de diglossia1 (1981:21). O consequente fluxo de vocábulos e estrutu ras hebraicas – e aramaicas intrínsecas – às línguas judai cas vem a ser uma das características que as torna diferen tes das línguas não judaicas.
A tendência arcaizante também constitui uma das marcas de singularidade das línguas judaicas. Ela resulta não somente do deslocamento geográfico, como no caso do judeu-espanhol e do íidiche, como também pelo seguinte fato: as comunidades judaicas estiveram geralmente afastadas dos sistemas de ensino e de outros órgãos responsáveis pelas inovações linguísticas.
O sistema de tradução calcada, pala vra por palavra na mesma ordem origi nal do versículo, reflete a construção sin tática estrangeira do original hebraico na linguagem de algumas das traduções; por exemplo, na Bíblia de Ferrara: Y atemo el Dio en el dia el seteno su obra que hizo, y holgo enel dia el seteno de toda su obra que hizo (Genesis 2,2).
Cabe assinalar que o termo ladino de signa a língua das traduções castelhanas judaicas calcadas no hebraico, enquanto judeu-espanhol refere-se ao idioma falado (e eventualmente escrito) pelos judeus de ascendência ibérica (e seus descendentes) que vieram a residir na península balcâni ca, no norte africano e em outros centros do Império Otomano a partir de 1492. Contudo, o termo ladino é comumente usado nas duas acepções.
O contato entre a linguagem da tra dução e a língua judaica falada (e por ve zes também escrita) resulta na influên cia, em maior ou menor medida, da primeira sobre a se gunda, de maneira que, por exemplo, a presença de Ayif to (para “Egito”) na Hagada de Pessach em ladino pode ex plicar a presença desta palavra na boca dos locutores do judeu-espanhol
O Pentateuco, a literatura profética e as Escrituras fo ram traduzidas por judeus às mais diversas línguas, e o corpus literário traduzido muitas vezes também incluiu a Hagada de Pessach, a Ética dos Pais, exegese rabínica e ou tros textos do currículo judaico tradicional. Algumas des tas traduções são muito famosas, como por exemplo a Bíblia judaica grega alexandrina conhecida como Septuaginta (redação iniciada no século 3 a.e.c.), as traduções bíblicas de Onkelos ao aramaico (séc. 3) e de Saadiah Gaon (882942) ao árabe, bem como a tradução ao ladino conhecida como Bíblia de Ferrara (1553).
A medida de inteligibilidade entre a língua judaica e a língua correlata da qual originou-se parece ser um bom cri tério para declarar a independência da primeira em relação à segunda. O judeu-espanhol possui aspectos de um sistema linguístico independente do castelhano, e várias das mar cas distintivas do judeu-espanhol, bem como uma perio dização histórica da língua, estão apresentadas no funda mental artigo do professor David Bunis (1992). Esta lín gua também ganhou expressão jornalística, a partir do sé culo 19, em alguns centros judaicos, principalmente Sa lônica e Istambul. Apesar das várias investigações sobre o jornalismo em judeu-espanhol, a maior parte do vasto ma terial disponível nunca foi analisado.
Desterrado da Península Ibérica, o castelhano falado pelos judeus trilhou seu próprio caminho, de modo a co nhecer desenvolvimento próprio nas novas paisagens lin guísticas, das quais tomou empréstimos. O mesmo se apli
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ca ao iídiche, língua de base germânica que veio a se cris talizar num entorno leste europeu de expressão majorita riamente eslava. Por outro lado, o francês, o provençal e o italiano dos judeus da Idade Média foram escritos em am bientes homófonos, de modo que não se desgarraram ge ograficamente de seu berço de formação. A versão judai ca do provençal ganhou o nome de chuadit, e esta varian te aparece, enquanto recurso dramático, na fala de personagens judeus do teatro provençal. A despeito de sua rea lidade intertextual em relação ao hebraico, estas varieda des menos independentes da língua correlata talvez me lhor se enquadrariam numa subdivisão das línguas judai cas, a dos dialetos judaicos
A tendência arcaizante, em maior ou menor medida, também constitui uma das marcas de singularidade das línguas judaicas. Ela resulta não somente do deslocamen to geográfico, como no caso do judeu-espanhol e do íidi che, como também pelo seguinte fato: as comunidades ju daicas estiveram geralmente afastadas dos sistemas de en sino e de outros órgãos responsáveis pelas inovações lin guísticas. Em seu artigo pioneiro, Rabin (1979:43) assi nala o “atraso” de entre cem e cento e cinquenta anos da escrita judaica em italiano em relação à língua de seu res pectivo entorno.
Dado que até recentemente houve direta relação en tre tradição religiosa e alfabeto, as línguas judaicas foram geralmente escritas no alfabeto hebraico(-aramaico), sen
do esta mais uma marca singular. Temos em Maimônides (1138-1204), entre outros, um exemplo de escrita judai ca árabe em alfabeto hebraico(-aramaico). Entretanto, nas circunstâncias em que o público leitor não era proficien te neste alfabeto, empregou-se o alfabeto local, como por exemplo na supracitada Septuaginta ou em grande parte do material escrito em espanhol e português pelos sefara ditas ocidentais.
Nos séculos 17 e 18 o espanhol e o português foram, conforme assinala o historiador Cecil Roth (1945:15), as principais línguas da comunidade judaica de Amsterdam, a capital da “diáspora marrana”. Segundo o linguista Paul Wexler (1985:190), até o século 19 um singular portu guês foi falado e escrito nas comunidades judaicas de ascendência portuguesa espalhadas pela Europa Ocidental e o Novo Mundo. Além de servir de língua de comunica ção diária, o português também foi empregado em drashot (prédicas), literatura panegírico-apologética, registros co munitários, livros de acordos, registros do mahamad (con selho administrativo), etc. A famosa excomunhão de Espi nosa (1656), por exemplo, está registrada em português. Os critérios de distinção das línguas judaicas também se aplicam ao português destas comunidades de “judeus no vos”, conforme a expressão do professor Yosef Kaplan. Tra ta-se, contudo, de um fenômeno único: esta variedade do português não foi uma versão judaizada da língua local e tampouco desconectou-se definitivamente de sua fonte
Anna Bella Geiger, ESTERsblues, 2005, 60 x 200 x 10 cm, papel pergaminho, pigmento de azul cobalto e chumbo
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Acontinuidade e a coerência no meu trabalho de arte se revelam no trato de certas questões tais como o eixo da arte, a condição de múltipla identidade como a de ser brasileira, judia, de origem européia oriental, cosmopolita, entre ou tras reflexões.
Dizem em alguns textos da critica que revisito minhas origens e junto reinvento minha identidade brasileira. A realidade é que a conexão que existe nas obras em
que utilizo cartografia e memória é acima de tudo profundamente marcada por mi nha experiência brasileira. Nesses rolos procuro criar um elo dialógico entre pre sente e passado, acentuando no proces so ora mudança ora permanência, rela ções entre história e local.
Seria também uma outra tentativa de correspondência entre geografia e arte, isto é, de poder trazer para esse espa ço reflexivo e imaginário que é a arte si
nais, símbolos, possíveis modelos do in consciente coletivo através de alguns ar quétipos que a todo momento retornam, como os signos judaicos, expressos em várias obras além desta série de RrolosScrolls.
São repletos de camadas, numa su perposição de informações que permite incorporar, através das folhas de perga minho, chumbo, gravura, desenho, pig mento de cor, narrativas diversas.
original – dado o contato permanente, por diversos mo tivos, entre as comunidades judaicas de origem portugue sa e a Península Ibérica. O historiador português Mendes dos Remédios (1911) oferece um inventário da literatura judaica escrita em português na cidade de Amsterdam a partir do século 17, e há também um importante estu do da variedade judaica do português de autoria de Giuseppe Tavani (1988).
Apesar de menos representativas quantitativamente, vá rias outras línguas faladas e/ou escritas por judeus, como, por exemplo, o malaiam de judeus de Cochim (Índia) ou o neoaramaico de judeus de origem curda, têm recebido
atenção de pesquisadores e vêm sendo abordadas enquan to línguas judaicas.
Qual é a situação das línguas judaicas no século 21? Al guns motivos explicam a quase extinção das línguas judai cas: o golpe fatal sofrido pelas comunidades iídiche falan tes durante a Segunda Guerra Mundial, a política linguís tica do Estado de Israel e a integração linguística praticamente completa das comunidades judaicas contemporâ neas fora de Israel e o abandono da tradição religiosa são alguns exemplos.
A construção da identidade israelense implicou na negação da identidade judaica diaspórica, à qual as lín
Cartografia e memória A nn A bell A G e IG e R
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guas judaicas estiveram intrinsecamente ligadas. Na disputa pelo posto de língua cotidiana da nova comunidade judaica na terra ancestral, o hebraico israelen se, que por um lado funcionou enquan to fator de coesão, por outro foi respon sável pela marginalização das línguas tra zidas pelos imigrantes provenientes de mais de cem países.
Quem poderia imaginar que no recente aniversário de 61 anos da fundação do Estado o canal público israelense
Arutz 2 ofereceria uma programação de canções em íidiche, antítese da hebraicidade das gerações pioneiras e fundadoras?
Os jovens [judeus] nascidos sob o mandato britânico, conforme assinala o professor Cyril Aslanov, envergonhavamse de seus pais ou de seus avós que ainda falavam o íidiche ao menos na esfera pri vada (2006:87). De maneira anedótica, o destacado poeta e prosador israelense de origem polone sa Pinchas Sadeh (1929-1994) conta em sua autobiogra fia que em sua juventude um diálogo em íidiche no dia de aniversário da declaração do Estado virou motivo de con flito. Quem poderia imaginar que no recente aniversário de 61 anos da fundação do Estado o canal público israelen se Arutz 2 ofereceria uma programação de canções em íidi che, antítese da hebraicidade das gerações pioneiras e fun dadoras? Além do mais, a estação estatal de rádio Kol Israel oferece diariamente programas de notícias em íidiche, em judeu-espanhol e em outras línguas diaspóricas.
A instituição do hebraico enquanto língua vernacular e língua materna das gerações nascidas ou educadas no Es tado de Israel é considerado por muitos um dos grandes méritos do sionismo. Como é sabido, Herzl descartou o hebraico enquanto língua oficial do futuro Estado judeu: “Quem de nós sabe bastante hebraico para pedir nesta lín gua um bilhete de trem?”, indagou o visionário em 1896.
Posteriormente vinculados, o projeto sionista e o res surgimento do hebraico vernáculo caminharam juntos, não sem percalços, até o estabelecimento definitivo do he braico modernizado enquanto língua oficial do Estado. Há algumas décadas já não mais “ameaçado” por nenhu ma concorrência linguística, um dos sintomas do sucesso e segurança do hebraico moderno é a abertura social e a valorização das até recentemente caladas vozes da diáspo ra – interesse este que também se explica pelo crescente re conhecimento ou pela legitimização do multiculturalismo em Israel. Certamente que o moderno hebraico israelense também tem seu lugar no horizonte das línguas judaicas,
contudwo este tema se reserva a uma discussão à parte.
A integração linguística característica do judaísmo reflete a convivência cons tante entre populações judaicas e não ju daicas, de modo que refuta hipóteses so bre o isolacionismo dos judeus ao longo dos séculos. Além disso, a multifacetada investigação das línguas judaicas também reflete o caráter polifônico da milenária tradição judaica, capaz de manter sua sin gularidade através da história sem deixar de ao mesmo tempo expressar sua plura lidade essencial.
Gabriel Mordoch é mestrando em Línguas e Literaturas Judaicas na Universidade Hebraica de Jerusalém.
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http://www.intkolisrael.com/ [Radio Kol Israel]
Notas
1. Diglossia: situação de bilinguismo na qual há relação de hierarquia entre as lín guas.
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o i nstituto Weizmann de c iências: 60 anos de realizações
Palestra proferida em encontro comemorativo do 60o aniversário do Instituto Weizmann em Paris, França, em 4 de maio de 2009
haim harari
Senhoras e Senhores, Prezados Amigos.
N o mundo científico, há o costume de celebrar o 60o aniversário dos cientistas proeminentes. A praxe é organizar um simpósio científico, onde os colegas, os alunos e às vezes até o orientador da tese de dou torado do “barmitzvando” sessentão falam sobre os sucessos alcança dos no decorrer da vida do cientista homenageado.
Na medida em que eu vou envelhecendo, venho participando cada vez mais de eventos deste tipo, com frequência sendo convidado a fazer uso da palavra. Desenvolvi a minha própria fórmula especial sobre o que dizer nessas ocasiões, uma mistura de 30% de fatos, 30% de admiração, 30% de nostalgia e 10% de historinhas. Na maioria das vezes funciona bem. Hoje o aniversariante não é um cientista: é o Instituto Weizmann e seu precursor, o Instituto Daniel Sieff, mas mesmo assim vou usar a minha fórmula.
Ao olharmos para trás, é da maior importância compreendermos o pano de fundo de onde se desenvolveu a nossa história. O nosso não é um instituto normal, em um país normal, em uma época normal. Permitam-me come çar com uma breve cápsula de quase 200 anos de história, que serviu de guia no passado e acompanha até hoje o Instituto Weizmann de Ciências. Farei isto de modo muito pessoal, relacionando os acontecimentos à minha própria his tória familiar e à minha associação com o instituto.
Em 1921, na cidade de Rehovot, num pedacinho do terreno que hoje é propriedade do Instituto Weizmann, a comunidade judaica fundou uma estação de pesquisa agrícola, que foi o primeiro estabelecimento de pesquisa científica do país. O Technion, a universidade técnica em Haifa, foi fundada um ano depois e três anos depois Chaim Weizmann iniciou a Universidade Hebraica em Jerusalém.
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Meus primeiros ancestrais que chegaram à Terra Santa o fizeram por vol ta de 1820, na época de Napoleão. Em 1860 viviam em Jerusalém, que já conta va com maioria de população judia. Em 1870 um grupo de judeus franceses fun dava a primeira escola secundária agríco la, Mikve Israel, onde mais tarde estudou meu avô Haim Harari. Em 1890, um pe queno grupo de judeus liderados por um certo Aharon Eisenberg, que vem a ser meu bisavô, fundou a cidade de Reho vot, onde fica o Instituto Weizmann. Em 1897 desembarcou sozinho em Jaffa o úl timo membro de minha família a chegar em Israel: meu avô Haim Harari, então com 13 anos. Em 1903 estabeleceu-se o primeiro sindicato na Terra Santa: o sindicato dos professores de hebraico, que tinha entre seus fundadores minha avó Yehudit, filha do citado Eisenberg, que se casou com Haim Harari três anos mais tarde. Nes te ínterim, Chaim Weizmann visitou Israel pela primei ra vez e, quando esteve em Rehovot, passou uma noite na casa de Eisenberg.
Não me ocorre nenhum outro instituto de pesquisa no mundo que cubra todos os campos da ciência em um mesmo campus, tenha seus próprios cursos de pós-graduação, não ofereça cursos de graduação e se dedique à pesquisa básica.
tífica do país. O Technion, a universidade técnica em Haifa, foi fundada um ano de pois e três anos depois Chaim Weizmann iniciou a Universidade Hebraica em Jeru salém. Assim, ao despontar da década de 30 já existiam muitas cidades e aldeias ju dias, incluindo Rehovot e Tel-Aviv, duas universidades, um instituto de pesquisa agrícola, teatros, sindicatos, kibutzim, es colas secundárias de língua hebraica, e haviam acontecido as primeiras duas intifa das, em 1921 e 1929.
Em 1909, há exatos 100 anos, Tel-Aviv foi fundada em um areal por 66 famílias: uma delas foi a dos meus avós maternos, a família que chegara no tempo de Napoleão, e uma outra foi a dos meus avós paternos, a família Harari. Em 1912, meu avô Haim Harari deixou a cidadezinha de Tel-Aviv e foi para Paris estudar na Sorbonne com o objetivo de conseguir um doutorado em literatura e, como vocês podem imaginar, o Dr. Haim Harari e sua família eram cidadãos turcos porque a área que hoje constitui Is rael, Jordânia, Síria e Líbano fazia parte do Império TurcoOtomano. Durante a Primeira Guerra Mundial eles passa ram a ser cidadãos inimigos da França, porque a Turquia, como sabem, estava do lado da Alemanha. Conseguiram fugir para a Suíça e voltaram para a Terra Santa em 1917, quando a Grã-Bretanha conquistou o país. Foi em 2 de novembro daquele ano que Chaim Weizmann obteve em Londres, de Lord Balfour, a famosa declaração do estabe lecimento de uma pátria judaica.
Em 1921, na cidade de Rehovot, num pedacinho do terreno que hoje é propriedade do Instituto Weizmann, a comunidade judaica fundou uma estação de pesquisa agrí cola, que foi o primeiro estabelecimento de pesquisa cien
O próximo evento, geralmente igno rado pelos livros de história, foi uma dis puta bastante desagradável entre os líderes da recém-formada Universidade Hebraica e o Dr. Weiz mann, em realidade o fundador visionário da Universida de. Este conflito, direta ou indiretamente, educadamente ou não, fez com que ele estabelecesse, em separado, o seu próprio instituto científico perto da estação de pesquisa agrícola em Rehovot. Ele comprou um terreno nas proximidades e ali construiu sua casa usando os frutos da pro priedade intelectual que granjeou com sua invenção relati va à acetona. E quem lhe vendeu o tal terreno? Minha avó Yehudit, a filha de Eisenberg, que tinha um vinhedo per to da Estação de Pesquisa Agrícola!
Casa pronta, ele convenceu a família Sieff, de Londres, a ajudá-lo financeiramente e estabeleceu o Instituto Daniel Sieff em 1934. Assim, foi o trabalho científico de Chaim Weizmann e seus frutos comerciais que indiretamente per mitiu que meus avós, Yehudit e Haim Harari, construís sem sua casa em Tel-Aviv.
Jean Marie Le Pen na extrema direita, Hugo Chávez na extrema esquerda e Mahmoud Ahmadinejad lá no fundo andam dizendo a todo mundo que o Holocausto nunca aconteceu. Também andam dizendo que, como consequência do Holocausto que nunca aconteceu, os ju deus chegaram e roubaram a terra de seus habitantes. Mas como vocês perceberam na história que estou contando, chegamos em 1934 com duas universidades, dois institu tos de pesquisa, teatros, sindicatos, escolas secundárias em hebraico, jornais em hebraico, todos judeus. Nada equiva lente a isto foi feito por mais ninguém no país. A mentira sobre o Holocausto por si só não é muito perigosa porque muito poucos acreditam nela, e se refere inteiramente ao
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passado. Mas a mentira de que toda esta comunidade florescente só se desenvolveu depois do Holocausto, esta sim, é a maior e mais perigosa mentira. Muitas pessoas desin formadas crêem nesta segunda mentira e isto é da maior relevância para o presente e para o futuro.
No mês passado o Instituto Sieff, estabelecido em 1934, celebrou seu 75o aniversário. Ele serviu de refúgio para muitos cientistas judeus alemães que conseguiram es capar de Hitler, mas era um instituto muito pequeno, ape nas um edifício, mais tarde dois, dedicado a um único campo da ciência. Em 1944, quando Chaim Weizmann completou 70 anos, seus admiradores e amigos america nos entram em cena pela primeira vez e, liderados por Meyer Weisgal e Dewy Stone, decidem estabelecer o Ins tituto Weizmann, para isto expandindo o Instituto Sieff. A família Sieff, em um gesto da maior nobreza, concordou em mudar o nome do Instituto de Sieff para Weizmann, mantendo o primeiro edifício construído no campus com o nome de Edifício Daniel Sieff.
Quem conhece o Edifício Sieff certamente já repa rou que ele tem duas alazinhas, uma de cada lado. Estas alas não tinham qualquer função ligada às suas finalida des científicas. O que ocorreu é que o prédio foi projeta do por um arquiteto britânico especializado na construção de estações ferroviárias na Índia e nessas estações era obri gatória a existência de uma sala de espera para os muçul manos e outra para os hindus, e por isso todas as estações eram dotadas de estruturas com aparência de caixotes de cada lado. Da próxima vez que visitarem o Instituto Weizmann não se esqueçam de olhar bem o Edifício Sieff: hoje temos muçulmanos e hindus no campus, só que nenhum deles está esperando um trem!
No ano de 1949, quando Weizmann completou 75 anos, o Instituto Weizmann foi oficialmente inaugurado. Neste meio tempo, em 1948, tivemos a Declaração de In dependência e a Guerra da Independência de Israel, assim que a inauguração já aconteceu no Estado de Israel. Ti nha cinco novos departamentos, dirigidos por cientistas notáveis de quem falaremos mais tarde, quando mencio narmos alguns dos verdadeiros heróis da nossa história. A data exata do 60o aniversário do Instituto Weizmann é 2 de novembro de 2009, daqui a seis meses, e precisamente 92 anos depois da Declaração de Balfour.
Por ocasião dos simpósios científicos em que celebra mos o aniversário de um cientista um pouco mais entra
do em anos, costumamos dizer: eu me lembro dele quan do tinha tantos ou quantos anos. Pois bem, eu me lem bro do Instituto Weizmann quando a instituição tinha 11 anos. Eu tinha 20 anos quando o Instituto Weizmann ti nha 11 e vim como candidato a um mestrado em Física. No outono de 2010 espero poder celebrar o 50o aniversá rio da minha chegada.
Dois meses antes da Guerra dos Seis Dias, em 1967, cheguei a Professor Titular, mas não há qualquer regis tro escrito nos arquivos do Instituto Weizmann sobre isto. Durante o período de espera anterior à Guerra dos Seis Dias a administração ficou caótica, muitas pessoas foram para o serviço militar e ninguém se lembrou de escrever uma carta formal me informando de que eu tinha uma posição permanente na instituição. Assim que uma das me nos importantes consequências da Guerra dos Seis Dias é que, 42 anos mais tarde, eu posso ser despedido do Instituto Weizmann sem grandes problemas. Por sorte, nin guém reparou!
Há 20 anos eu tive a honra de me tornar o oitavo pre sidente do Instituto Weizmann, o primeiro nascido em Is rael e o primeiro mais novo que o Instituto Sieff. Em 2006
Instituto Weizmann nos primeiros anos de sua existência.
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Daniel Zajfman tornou-se o décimo presidente do Insti tuto Weizmann, o primeiro mais novo que o próprio Ins tituto Weizmann. Ele era um bebê de um ano quando eu cheguei ao instituto. Como vêem, as gerações vão mudan do, mas a história continua.
É desnecessário dizer que nesta minha história eu pu lei um sem número de acontecimentos, bons, ruins e in diferentes. Mas é importante que se compreenda que todo este desenvolvimento científico vem acontecendo em um cenário de lutas permanentes, que limitou e limita mui to a fonte de cientistas em potencial. Estamos falando de uma cadeia interminável de eventos políticos, guerras, tragédias, realizações, triunfos, terror, problemas econômicos, desenvolvimento industrial e o mais que puderem imagi nar. Assim, que nunca tivemos a opção de simplesmen te escrever uma carta a um cientista promissor na Suécia, ou em Oxford, ou em Los Angeles e dizer: gostaríamos de
oferecer-lhe uma posição no Instituto Weizmann. O grupo dos que até talvez considerasse vir trabalhar no Institu to Weizmann sempre foi muito pequeno, e se acrescentar mos a esta limitação o cenário político e estratégico, nos deparamos com dois enormes obstáculos, que nos levam a apreciar ainda mais as realizações do Instituto.
O Instituto Weizmann se baseia em uma certa “fórmu la”. Se vocês fizerem uma lista de todos os institutos de pes quisa do mundo que apresentem as seguintes quatro ca racterísticas em conjunto: primeiro, que seja um instituto de pesquisa básica; segundo, que cubra todos os campos das ciências naturais em um único campus, com incursões pela engenharia, pela agricultura, pela medicina e por ou tras tecnologias; terceiro, que tenha seus próprios cursos de pós-graduação; e quarto, que não ofereça cursos de graduação, chegarão a duas conclusões, uma boa e uma má. A boa é que o Instituto Weizmann é o melhor de todos estes
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institutos no mundo. A má, é que provavelmente ele é também o pior, por ser o único! Não me ocorre nenhum outro ins tituto de pesquisa no mundo que cubra todos os campos da ciência em um mes mo campus, tenha seus próprios cursos de pós-graduação, não ofereça cursos de gra duação e se dedique à pesquisa básica.
Existem outros institutos famosos, maravilhosos, e alguns podem ser melho res do que o Instituto Weizmann, mas ne nhum tem a mesma fórmula. Há a Socie dade Max Planck na Alemanha, mas eles têm 70 ou 80 campi em lugares diferen tes, e cada um se dedica a um assunto específico. Há o excelente Instituto Pasteur aqui em Paris, essencialmente dedicado às Ciências da Vida. Há a fantástica Univer sidade Rockefeller em Nova Iorque, tam bém quase totalmente imersa nas Ciên cias da Vida. Há a CERN em Genebra, só física, com alguns lampejos de outros tópicos, e não ofe rece pós-graduação. Não esqueçamos da Caltech na Cali fórnia, um dos melhores lugares do mundo, mas que con ta com cursos de graduação. Assim, bem ou mal, o Insti tuto Weizmann se baseia em uma fórmula diferenciada e única que é um dos segredos do seu sucesso.
A ciência é verdadeiramente internacional, desconhece bandeiras e fronteiras. É um presente e uma contribuição do Instituto e do país para o mundo. Ao mesmo tempo, o Instituto faz uma contribuição imensa para o Estado de Israel, primeiro e principalmente para sua indústria e economia, e depois para o seu sistema educacional.
seus líderes têm contribuído enormemen te para a defesa de Israel como consulto res, conselheiros e ocupando cargos varia dos. De fato o Instituto contribui com to das as facetas da vida em Israel, e vou enu merar algumas daqui a pouco.
Sempre aleguei que se fôssemos apenas internacionais não teríamos o direito de esperar tanto apoio por parte do gover no israelense e do povo judeu, mas, se fôssemos apenas israelenses jamais teríamos a qualidade que gostaríamos de ter e que ouso afirmar termos. Pode ser esquizofre nia ou dualidade, ou um caso de múlti pla identidade; escolham o nome. Mas é a harmonia entre o sabor internacional e o sabor israelense que faz o Instituto fun cionar.
O Instituto Weizmann tem outra característica espe cial: uma esquizofrenia deliberada e autoinduzida, que é um dos seus “segredos” principais, sendo simultaneamen te tão internacional e tão israelense quanto possível. Tudo que o Instituto Weizmann estiver fazendo em ciência é para o mundo todo, quer seja inventando um novo medi camento, quer seja uma nova descoberta em física, ou al guma coisa em informática, ou qualquer outro resultado em pesquisa básica. Não há nada especificamente israe lense a respeito de sua ciência. A ciência é verdadeiramen te internacional, desconhece bandeiras e fronteiras. É um presente e uma contribuição do Instituto e do país para o mundo. Ao mesmo tempo, o Instituto faz uma contribui ção imensa para o Estado de Israel, primeiro e principal mente para sua indústria e economia, e depois para o seu sistema educacional, mas falaremos sobre isto daqui a pouco. Indiretamente contribui também para a sua defesa. O Instituto não conduz pesquisa de defesa, mas alguns de
Hoje em dia, na era da globalização, não é tão difícil ser internacional. No campus fazemos tudo em inglês, o que não é trivial, sobretudo quando se fala disto aqui em Paris, mas também não chega a ser um esforço assim tão grande. Porém, quando eu cheguei ao instituto para trabalhar na minha tese de mestrado e a seguir na minha tese de dou torado, não haviam computadores pessoais, e-mail, tele fonemas internacionais baratos e nem mesmo copiadoras. No entanto, mesmo assim, nós, alunos daquela época, fi cávamos sabendo de tudo que acontecia no mundo da Fí sica de Partículas, claro que não no mesmo dia e nem no espaço de horas, como é hoje, mas no espaço de uma se mana. Nós nos contentávamos com isto. Aqueles eram os dias mais quentes da Física de Partículas, e todo dia havia uma nova e importante descoberta em algum lugar, e no início da década de 60 nós estávamos completamente “conectados” ao cenário internacional.
Quando cheguei aos Estados Unidos como candida to ao pós-doutorado, alguns anos mais tarde, e comecei a dar seminários em vários lugares, encontrei óti mas universidades que eram muito mais isoladas do que nós. Foi então que aprendi que o isolamento científico é um estado de espírito e não um fato geográfico. Nós tínhamos uma enorme fome de contato internacional. Em Israel, na década de 50, viajar para o estrangeiro era quase tido como um crime contra o país. Mas o Ins
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tituto Weizmann tinha consciência da importância de trazer numerosos visi tantes estrangeiros ao campus e de via jar com frequência a congressos, por que compreendíamos que é impossível fazer parte dos times internacionais sem jogar em casa e fora de casa contra ou com seus competidores/associados cien tíficos internacionais.
É simplesmente impossível competir sem estar presente o tempo todo e sem es tabelecer laços fortes com a ciência ameri cana, com a ciência francesa e posterior mente com a ciência alemã, e todas es tas conexões foram desenvolvidas muito cedo. Praticamente não há um país cien tífico no mundo hoje que não colabore conosco, e em algum momento, recen temente, a estatística era que 35% de to dos os estudos publicados por cientistas do Weizmann tem pelo menos um coau tor de uma instituição de outro país! Tra ta-se de uma porcentagem enorme sob qualquer perspec tiva, mas ainda maior para uma ilhazinha isolada como Is rael, que fica a três horas de avião do nível de ciência acei tável mais próximo. Assim, estamos falando de um ver dadeiro sucesso desde os primórdios. Hoje, não é gran de coisa. Temos e-mail, telefonemas baratos e videoconfe rências, mas na época em que o Instituto foi fundado era muito importante.
Sempre aleguei que se fôssemos apenas internacionais não teríamos o direito de esperar tanto apoio por parte do governo israelense e do povo judeu, mas, se fôssemos apenas israelenses jamais teríamos a qualidade que gostaríamos de ter e que ouso afirmar termos. É a harmonia entre o sabor internacional e o sabor israelense que faz o Instituto funcionar.
to de Chaim Weizmann. Weisgal foi um grande empreendedor, líder de campa nhas financeiras, contador de histórias e “schnorer”1, uma pessoa que falava vários idiomas, todos em iídiche, e não tinha absolutamente nenhum conhecimento de ciência. Uma das histórias que Weis gal sempre contava era que, antes de via jar para o estrangeiro em campanha fi nanceira, ele reunia os cientistas do Ins tituto e dizia: “Vou viajar e contar um monte de mentiras sobre vocês. Quando eu voltar, quero que todas estas mentiras tenham se transformado em verdades”. Neste contexto, permitam-me contar outra história que ouvi recentemente so bre mentiras, esta talvez um pouco mais profunda. Diz assim: “Se não conhece mos a verdade, fica muito difícil men tir”. Neste espírito proponho que, an tes de mais nada, nos certifiquemos de que sabemos a verdade sobre o Instituto Weizmann, e só depois consideremos a possibilidade de começar a contar mentiras.
Traduzido por Teresa Roth. A segunda parte do discurso, onde aprenderemos os pilares sobre os quais se baseia o Instituto Weizmann, será publicado no próxi mo número de Devarim.
Notas
Quem, acima de qualquer outro, criou o Instituto Weizmann foi, é claro, Meyer Weisgal, o braço direi
1. Iídiche para “pedinte”, “mendigo”. Usado atualmente para denominar de forma jocosa as pessoas que arrecadam fundos para as instituições judaicas (n.t.).
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seção pilpul l iberdade de expressão e racismo
V ISãO 1 – A intolerância, no plano do discurso e das ideias, deve ser combatida pela tolerância
Breno Casiuch
Volta e meia, nos meandros de nossas vidas cotidianas, somos confron tados com diversos atos de preconceito. Algumas vezes – quiçá a maio ria delas – somos alvos de comentários racistas, xenófobos, de taxações e de estereótipos. Como judeus, talvez já tenhamos sido atingidos por palavras de racismo e de intolerância. Noutras oportunidades, somos atores pró-ativos de opiniões preconceituosas a respeito de outras pessoas e fatos.
Se for possível falar em uma verdade absoluta (perdoem o pleonasmo!) com relação a todos os seres humanos, esta seria a de que nenhuma pessoa é neutra. Cada indivíduo carrega consigo valores, ideologias e princípios construídos e lapidados ao longo de sua história pessoal. Repito: nenhum ser humano é neu tro. Por consequência, todo ser humano (independentemente de etnia, religião e outros atributos) traz consigo, juntamente com seus valores, inúmeros pre conceitos, estereótipos e estigmas. No plano das ideias, portanto, a tolerância e a igualdade são axiomas. No plano da prática, a questão torna-se um pouco mais complexa e difícil.
Qual seria o papel, pergunto, em meio a um mundo aflito pela guerra, pela intolerância e pela belicosidade, do tão importante direito à liberdade de ex pressão? Qual seria a real proporção deste princípio? Até que ponto as pessoas podem (ou devem?!) falar tudo aquilo que pensam?
É muito comum lermos e ouvirmos na mídia impressa e falada notícias, re portagens e matérias imbuídas de preconceitos subliminares ou, até mesmo, bastante explícitos. Recentemente, por ocasião da invasão de Israel à Faixa de Gaza, os judeus foram alvos de diversos comentários racistas. Tempos atrás, o
“É proibido proibir” foi uma das principais palavras de ordem da juventude nos anos 60. Mas este lema, adotado como autoevidente e verdade universal por uma imensa legião de jovens daquela época, não é de forma alguma pacífico. Nesta seção, oferecemos duas visões sobre o assunto para que os leitores tirem suas próprias conclusões e, se assim o desejarem, as compartilhem com a revista pelo mail devarim@ari-rj.com.br.
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presidente iraniano, por exemplo, verbalizou que não acreditava que o Holocaus to tivesse realmente ocorrido e que o sio nismo era uma ideologia racista.
Nestes casos (assim como em outros similares) seria correto falar em um pri mado da “liberdade de expressão racis ta” frente ao respeito às minorias? Devese notar que ambos os valores são igual mente caros à nossa sociedade. Afinal, em uma sociedade democrática todos devem poder emitir suas opiniões assim como todos devem ser igualmente respeitados.
Expressar-se é, incontestavelmente, um direito de todo ser humano. É através desta liberdade que lutamos por nos sos direitos, verbalizamos nossas opiniões e propagamos conhecimento. A liberda de de expressão, seja ela escrita ou fala da, em tese, nunca deveria ser censurada. Em quase todas as sociedades democráti cas modernas, a liberdade de expressão é elevada a um pa tamar de verdadeiro direito humano e de ferramenta fun damental à completude da dignidade da pessoa humana.
A liberdade de expressão, seja ela escrita ou falada, em tese, nunca deveria ser censurada. Em quase todas as sociedades democráticas modernas, a liberdade de expressão é elevada a um patamar de verdadeiro direito humano e de ferramenta fundamental à completude da dignidade da pessoa humana.
make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exerci se thereof; or abridging the freedom spe ech, or of the press (...)” [“O Congres so não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercí cio dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a repara ção de seus agravos].
Os Framers (como são denominados os filósofos po líticos norte-americanos que idealizaram a Independên cia e a Constituição dos Estados Unidos), cientes do pa pel que a liberdade de expressão exerce em todo governo e país que se diz democrático e cumpridor das liberdades e dos direitos individuais, elevaram à verdadeira cláusula constitucional este princípio. É assim que a 1a Emenda da Constituição deste país é assim redigida: “Congress shall
Não coincidentemente é nos Estados Unidos, país que institucionalizou a liber dade de expressão, onde se encontram tal vez os mais curiosos casos e as melhores soluções relativos a este assunto. No ano de 1987, por exemplo, a famosa organi zação Ku Klux Klan solicitou a um canal de televisão de Kansas um espaço de tem po para veicular seu programa, intitula do “Klansas City Kable”. O programa se ria dedicado e lidaria com questões raciais. Imediatamen te a polêmica se instaurou. Esta foi ainda maior devido ao fato de que o estúdio do referido canal estava situado em uma região da cidade cuja maioria era negra. Para esta co munidade, o preconceito que iria ser demonstrado duran te o programa era absolutamente desarrazoável, de forma que seria repugnante assistir a um programa desta espécie dentro de suas próprias casas. Os membros da Ku Klux Klan, incontinentemente, ajuizaram uma ação perante o tribunal local a fim de salvaguardar o seu direito e liberda de de expressão, consagrado na 1a Emenda. Ao final de al
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guns anos, entendeu a Suprema Corte que a liberdade de expressão, por seu importante papel que exerce junto à so ciedade, só poderia ser restringida quando o seu discurso pregasse o uso de violência e incitasse diretamente ações ilegais. Caso o discurso tratasse de temas racistas, mas isen tos de qualquer teor indutor de violência, não poderia ser restringido ou censurado.
Mesmo que possamos pensar em uma decisão acerta da da Corte norte-americana, reflito e chego à conclusão de que é muito difícil existir um discurso racista e precon ceituoso não imbuído de incitação à violência. Violência no mínimo psicológica, porque todo tipo de intolerância e desrespeito às minorias e aos mais fracos é naturalmen te violenta e odiosa.
Não acredito, portanto, que caiba ao governo e aos nossos juízes definirem qual é o bom discurso, o bom livro, o bom quadro ou o bom filme. Não acredito, inclusive, que é correto censurarmos livros porque emitem ideias racistas. No limite, não acredito até em uma pessoa ser presa devi do a um comentário racista. A liberdade de expressão, con forme salientava um ex-ministro da Suprema Corte norteamericana, deve ser compreendida e entendida dentro de um ambiente de livre mercado e, portanto, de liberdade. A liberdade de expressão – que sempre deve se dar em um ambiente de paz e no ambiente das ideias, sem uso da for ça e da violência – deve ser plena. Comentários e ideias ra cistas devem ser refutadas por outras ideias e comentários antirracistas. A intolerância, no plano do discurso e das ideias, deve ser combatida pela tolerância e pela dignidade. Somente desta forma, no longo prazo, poderemos pen sar em um mundo mais pacífico e menos hostil.
Deve-se ter em mente, contudo, que se esta expres são, este discurso ou debate se transmudarem em violên cia, ódio, guerra, morte, difamações e injúrias pessoais, os causadores dos danos deverão e merecerão responder pelos seus atos. O texto que aqui escrevo, portanto, não visa le gitimar práticas preconceituosas, nem incentivar que pes soas saiam às ruas xingando umas às outras. Estes atos são intrinsecamente odiosos e criminosos. O presente texto cuida, por outro lado, da discussão em tese entre ideias e teorias antitéticas.
Breno Casiuch é graduado em Administração de Empresas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
V ISãO 2 – Não se pode tolerar quem não tolera Artur Benchimol
“... O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simples mente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domina ção, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
Michel Foucault, em A Ordem do Discurso
Eu não tolero quem não me tolera, principalmente com as palavras e, apesar do paradoxo iminente, não me resta outra opção. Além disso, pensar que o discurso é uma esfera desvinculada da disputa pelo poder, desvinculada da realidade prática e cotidiana em que existe liberdade em termos absolutos, deve ser vis to como uma ingenuidade.
Vivemos na era da internet, na qual a comunicação em rede estabeleceu um modelo de comunicação na qual a li berdade é praticamente ilimitada. Existem sites que con gregam pessoas para as mais diferentes, e às vezes bizar ras, finalidades. Vemos desde comunidades utilizadas para aproximar e facilitar o encontro de cachorros da mesma raça, até grupos de incentivo ao suicídio.
Que uma página desse tipo esteja lá onde o vento faz a curva na internet, muito além dos poderosos olhos do Google, tudo bem, mas quando nos deparamos com práticas violentas ou incompreensíveis nas capas dos jornais, nos chocamos.
Um caso específico nunca me saiu da cabeça: em 2001, o alemão Armin Meiwes publicou um anúncio na internet dizendo que tinha vontade de praticar canibalismo. Pron tamente, outro membro da comunidade online se interes sou, voluntariando-se para ser devorado. Os dois, então, realizaram o feito entre quatro paredes e em comum acor do. O caso foi para a Justiça e a notícia para o pé da porta de nossas casas no jornal da manhã.
Desculpem a história de terror nessas páginas da Devarim, mas a relação entre a livre propagação do discurso e tal acontecimento é direta. Interferir em um é interferir no outro. Bastava o administrador do suposto site tirar a página do ar, ou pelo menos censurar os posts mais cabe ludos, que esse crime não teria sido cometido. Apesar de
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ser uma clara violação de uma ideal liberdade de expressão, esse ato teria evitado o homicídio. Não teria suprimido as von tades e as intenções, que são de profun didade específica e psicológica, mas sim a realização e, como consequência, a di fusão da prática através dos meios de co municação.
Entretanto, uma prática de censura e repressão a formas de discurso violentas e propagadoras de violência fere o forte sentimento contemporâneo de que a plu ralidade é riqueza. E devo dizer que sim, a pluralidade é a maior das riquezas, mas não tem como conter a antipluralidade, pois assim torna-se impraticável. Não se pode tolerar quem não tolera.
Quem abre a boca ou a caneta para incitar ódio, supremacia, submissão, ge nocídio, violência e outros tipos de ideias fundamentalistas não será convencido por aquilo que não possui, que não tem. Explico: alguém com ideias que não seguem uma lógica, não será conven cido pela lógica.
A prática de censura e repressão a formas de discurso violentas e propagadoras de violência fere o forte sentimento contemporâneo de que a pluralidade é riqueza. A pluralidade é a maior das riquezas, mas não tem como conter a antipluralidade, pois assim torna-se impraticável. Não se pode tolerar quem não tolera.
Devemos tentar restringir sua circula ção e sua concentração, abertamente. A lógica é simples: para entrar no clube de mocrático, você deve respeitar as regras da democracia, caso contrário, espere do lado de fora e reflita até pensar diferen te. É sempre de torcer o nariz quando assistimos ao surgimento de mais um par tido antidemocrático (teocrático, racista, totalitário, etc.) no seio de democracias. Quando uma ideia intolerante se institu cionaliza a esse ponto, o discurso já cir culou de maneira ampla debaixo de nos sos narizes.
São direitos democráticos também querer boicotar revistas racistas, não dar ouvidos e não convidar a debates inte lectuais intolerantes, tentar refutar suas declarações, deslegitimizar suas teorias, não financiar suas instituições, etc. Ob viamente não é algo agradável de se assumir, mas não estamos aqui para sermos queridos por esse tipo de gente.
E chega de cinismos. Sem essa história de que muitos discursos que lemos e encaramos nos botequins da nos sa vida não são intolerantes quando claramente são. Um exemplo recente é o presidente do Irã, que defende que Israel não deve existir. Muitas pessoas, inclusive esclarecidas, acabam defendendo esse ponto de vista, argumentan do que não se trata de antissemitismo e sim antissionismo. Ora, negar o direito de autodeterminação, um direito hu mano básico, a um determinado povo e os indivíduos que o compõem não pode ser outra coisa senão racismo. Os jovens franceses que se vestiram de palhaços e chamaram o presidente do Irã de racista na conferência de Durban II o fizeram com muita propriedade.
E agora, como atuar sem se assemelhar aos monstros que tentamos combater? Trivial, além de tentar esclare cer e ajudar essas pobres mentes obscurecidas por ideias violentas e intolerantes, saber separar o joio do trigo, e cortar o mal antes que se propague. Devemos confron tá-las frontalmente nos fóruns democráticos de nossa sociedade.
Claro que devemos manter o bom-senso, sem transformar nossa prática discursiva em um estado de paranoia, em um combate incessante ou em uma cruzada, achar que todos são conspiradores violentos – tais sentimentos só nos transformarão naquilo que tentamos combater.
Mas podemos ser incisivos e diretos contra aqueles dis cursos que tentam, muitas vezes através de subterfúgios, ameaçar a pluralidade e até a própria liberdade na nossa so ciedade. Podemos censurar piadas racistas em nossas con versas, lutar pela censura de publicações de mesmo cunho, ser mais incisivos contra sutilezas intolerantes nas conver sas que participamos, lutar por legislações mais atentas a essas práticas, apoiar e fortalecer grupos e discursos amea çados, entre milhares de outras coisas.
Até porque, quem tenta propagar uma ideia que tem como objetivo reprimir a vida e a liberdade, seja de outras ideias, seja de outros indivíduos, só pode ser deixado de uma maneira: falando sozinho.
Artur Benchimol é publicitário, formado pela ECO-UFRJ e ex-peil da Chazit Hanoar.
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índice de devarim 1 a 10
Com este número Devarim completa dez edições, o que permite, ao folheá-las, repercorrer o cami nho entre o projeto – a ideia do que se queria que fossse – e sua realização – aquilo que alcançou ser como contribuição para o pensamento, o sentimento e a prática de um judaísmo contemporâneo, iluminado por sua herança milenar e iluminador dos caminhos de intera ção desse judaísmo com o povo judeu, a nação judaica, o mundo, a humanidade, a realidade de nossos tempos.
O projeto de Devarim foi e é o de promover a reflexão, a informação, o esclarecimento, a discussão sobre os caminhos do judaísmo contemporâneo como continuação do judaísmo histórico, e sobre a maneira de preservar sua essência pela renovação de suas formas. Sobre a interação entre o povo judeu contemporâneo e o judaísmo como re ligião, como filosofia, como ética, como comportamento contemporâneos. Sobre a integração dos judeus como um povo só, disperso que esteja, com sua história comum na linha vertical e diacrônica do tempo e com seu caráter de nação, na linha horizontal e sincrônica de sua presença no mundo. Sobre o papel central de Sion na história judaica em todos os tempos, e sobre a centralidade do estado ju daico renascido em Sion, o Estado de Israel, como o esta do de todo o povo judeu em nosso tempo. Sobre a integra ção do povo judeu e de cada judeu com o estado judaico contemporâneo em Sion, não por solidariedade, mas por pertinência. Sobre o papel renovado do povo judeu como fonte de valores para um mundo e um tempo que aspi ram à diversidade e à pluralidade. Consequentemente, so bre os caminhos de integração do judaísmo e dos judeus a
esse mundo e esse tempo pela reafirmação e pelo fortaleci mento de sua identidade e de seus valores.
O projeto de Devarim foi e é o de promover essa reflexão, essa discussão, esse pensamento não somente no campo distante das ideias em si, mas a partir do exercício concreto de uma atuação comunitária, participante, inte ragente, no âmbito de todas as instâncias do povo judeu. Especialmente nas do judaísmo progressista, mentor, arau to e agente dessa postura. Especialmente em seu compro misso de identidade e atuação com a WUPJ. Especialmen te em sua sintonia com as conquistas e os problemas cru ciais que envolvem o Estado de Israel e o futuro do judaís mo como nação. Especialmente em sua preocupação com o judaísmo e as questões judaicas no Brasil e no Rio de Ja neiro. E muito, muito especialmente, a partir de seu con texto e fonte imediata de ação e de inspiração, a congrega ção da ARI, hoje amanhã e sempre.
No índice geral remissivo destes dez números, que aqui publicamos, ao correr os olhos pelos títulos do material publicado por Devarim, ao observar a classificação de te mas em que este material se divide, ao avaliar a idoneida de, representatividade e influência institucional de seus co laboradores, sem falar na primorosidade da apresentação, na qualidade gráfica da publicação, no alto nível editorial de todo o conjunto, podemos constatar o quanto os resul tados foram além dos objetivos, e junto com isso comemo rarmos todos, mas também concluir que o sucesso com promete, e que mais difícil do que atingir esse nível será mantê-lo e aprimorá-lo.
Devarim conta com todos para isso.
organizado por paulo geiger
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 51
Judaísmo Progressista
N° 1 p. 3 S/Cem porcento kosher: o caminhar judaico Rabino Sérgio R. Margulies
N° 1 p. 7 O dilema religioso do desemprego: uma resposta judaica Rabino Daniel Goldman
N° 2 p. 3 Judeu: um verbo, Deus: um advérbio Rabino Sérgio R. Margulies
N° 2 p. 7 Judaísmo liberal no Brasil Rabino Henry I. Sobel
N° 2 p. 15 A conversão ao judaísmo em contexto Jeanette Biering Erlich
N° 3 p. 3 Simplesmente paradoxal Rabino Sérgio R. Margulies
N° 3 p. 48 A Torá e seus comentários Rabino Sérgio R. Margulies
N° 4 p. 3 Por que sou um judeu progressivo? Uma declaração pessoal sobre a fé e a vida Rabino Joel Oseran
N° 4 p. 15 Conexão com nexo (o eu e o outro judaicos) Rabino Sérgio R. Margulies
N° 4 p. 20 A história de um judaísmo multifacetado e transgressor Rabino Dario E. Bialer
N° 4 p. 50 Torá da vida Rabino Sérgio R. Margulies
N° 5 p. 3 Diálogos transcendentes (o judaísmo como diálogo) Rabino Sérgio R. Margulies
N° 6 p. 3 Israel: entre o céu e a terra (da fé transcendente ao imanente na Terra) Rabino Sérgio R. Margulies
N° 6 p. 21 Qumran: os misteriosos Manuscritos do Mar Morto Rabino Dario E. Bialer
N° 7 p. 3 Desvendando os jogos, revelando o sagrado Rabino Sérgio R. Margulies
N° 7 p. 12 Bendito seja aquele que me fez mulher Rabino Michel Schlesinger
N° 7 p. 23 Definindo a identidade judaica: extinção ou renovação Steven M. Bauman
N° 8 p. 3 A misteriosa voz do sagrado Rabino Sérgio R. Margulies
N° 8 p. 7 O dilema da exclusão: o que fazer com os casamentos mistos? Rabino Dario E. Bialer
N° 8 p. 13 O perigo do imobilismo (mudar para continuar o mesmo) Rabino Roberto Graetz
N° 8 p. 29 Feminismo e Halachá: os judeus que (ainda) não chegaram lá Rabina Haviva Ner-David
N° 9 p. 3 Uma Questão de escolha Rabino Sérgio R. Margulies
N° 10 p. 56 Cooperação e continuidade Eduardo Zylberstajn
História Judaica/Judaísmo/Filosofia Judaica
N° 1 p. 23 O povo judeu e o judaísmo Paulo Geiger
N° 1 p. 27 As luzes que não queremos Francisco Moreno de Carvalho
N° 2 p. 10 A religião e a necessidade da ciência: Ibn Daud e Maimônides Edgard Leite
N° 3 p. 9 A Torá como fonte de legislação: sua influência até os dias de hoje Mario Robert Mannheimer
N° 4 p. 26 Ortodoxia ou contra-reforma? Raul C. Gottlieb
N° 5 p. 7 A cautela de Espinosa Edgard Leite
N° 6 p. 29 A história do Sidur e o desenvolvimento da liturgia no judaísmo Rabino Leonardo Alanati
N° 7 p. 7 Rashi, o precursor da tradição interpretativa Rabino Dario E. Bialer
N° 7 p. 41 O sapato e a azeitona: a responsa, passado e presente Raul C. Gottlieb
N° 8 p. 17 A leitura ‘cantilada’ da Torá: a serviço da palavra Chazanim André Nudelman e Oren Boljover
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N° 8 p. 21 Éticas e utopias da literatura profética Edgard Leite
N° 9 p. 11 Quando profanar o nome de Deus pode santificá-lo Rabino Dario E. Bialer
N° 9 p. 37 Os sabores da música sinagogal e a expressão da identidade Chazanim André Nudelman e Oren Boljover
N° 10 p. 33 A singularidade das línguas judaicas Gabriel Mordoch
Judaísmo em Israel
N° 1 p. 10 Messianismo político e religioso em Israel Raul C. Gottlieb
N° 3 p. 14 A presença e o significado da ação do Irac em Israel Rabino Uri Regev
N° 3 p. 17 A atuação do Irac e o pluralismo religioso Joel Katz
N° 3 p. 43 A cisão secular-religiosa no ensino em Israel. Em poucas palavras (seção) Raul C. Gottlieb
N° 3 p. 46 Visão estreita (sob o status dos manzerim em Israel). Em poucas palavras (seção) Raul C. Gottlieb
N° 4 p. 10 As palavras de Amos Oz na Conferência do Judaísmo Progressivo em Israel Amos Oz
N° 4 p. 46 Ônibus segregados (pelos ultraortodoxos em Israel). Em poucas palavras (seção)
N° 5 p. 15 Sucessos e desafios no trabalho do Movimento Israelense pelo Judaísmo Progressivo Gusti Yehoshua-Braverman
N° 6 p. 43 Nova data no calendário judaico (data do judaísmo etíope). Em poucas palavras (seção)
N° 7 p. 50 O sagrado direito de ser ignorante (subsídio ortodoxo ao não ensino). Em poucas palavras (seção)
N° 7 p. 51 Doação de órgãos (posições opostas de partidos ortodoxos). Em poucas palavras (seção)
N° 9 p. 51 É proibido trabalhar (judeus ortodoxos em Israel). Em poucas palavras (seção)
N° 5 p. 21 Ser muçulmano e jornalista no Oriente Médio Khaled Abu Toameh por Jana Tabak
Sionismo e Estado de Israel
N° 2 p. 29 Árabes no futebol de Israel: entre a integração e o racismo Salvador Barzellai
N° 3 p. 21 2006: o ano que ainda não terminou para Israel e o Oriente Médio Yaacov Keinan
N° 4 p. 46 Israel e o Holocausto (Israel não é consequência do Holocausto). Em poucas palavras (seção)
N° 4 p. 47 A construção do inimigo (a mídia mentirosa do Hizbolá). Em poucas palavras (seção)
N° 4 p. 48 O que os analistas ignoram (sobre a repressão ao terror em Israel). Em poucas palavras (seção)
N° 4 p. 49 40 anos da Guerra dos Seis Dias. Em poucas palavras (seção)
N° 6 p. 9 Por que Israel? (Israel como continuação da história judaica) Paulo Geiger
N° 6 p. 14 Da fundação de Israel à montagem de fábricas no Egito e na Jordânia Dov Lautman por Bruno Gottlieb
N° 6 p. 44 O que é notícia (o bias da mídia [BBC] com relação ao conflito). Em poucas palavras (seção)
N° 6 p. 45 Democracia é a solução? (para o extremismo fundamentalista). Em poucas palavras (seção)
N° 7 p. 19 O drama incessante do Oriente Médio Luis Felipe Lampreia
N° 7 p. 48 A diferença (de comportamentos e valores entre israelenses e árabes). Em poucas palavras (seção)
N° 7 p. 49 A Nakba judaica (os judeus expulsos dos países árabes). Em poucas palavras (seção)
N° 7 p. 51 Propaganda racista (na estranha interpretação saudita). Em poucas palavras (seção)
N° 9 p. 25 Kibutzim urbanos e comunas: a renovação dos ideais socialistas e alternativos em Israel Felipe Lacs Sichel
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N° 9 p. 31 Dono do seu próprio destino: A luta do povo judeu para a criação de Israel Márcio André Sukman
N° 9 p. 45 O Mandato Sionista nos dias de hoje: dos sonhos às ações: a visão de Herzl e os desafios do Sionismo do futuro Rabino Richard G. Hirsch
N° 10 p. 19 Coexistência, indiferença ou inimizade: os pensadores sionistas e os árabes palestinos João Koatz Miragaya
N° 10 p. 39 O Instituto Weizmann de Ciências –60 anos de realizações Haim Harari
História, Religião e Política no Contexto Contemporâneo
N° 1 p. 17 As origens do totalitarismo islâmico Ali Kamel
N° 1 p. 30 Judeus, negros e os paradoxos da promoção racial no Brasil Monica Grin e Marcos Chor Maio
N° 2 p. 20 A divergência enfraquece? (a importância do debate e de seu resgate) Henrique Rzezinski
N° 2 p. 24 A partir daquilo que somos (ser judeu e sionista hoje) Alan Kaufman Spector
N° 2 p. 40 Resposta (em nome da ASA) ao artigo “Judeus, Negros..” Devarim n° 1 Horácio Itkis Schechter
N° 2 p. 41 Réplica à carta da ASA, sobre o mesmo artigo Monica Grin e Marcos Chor Maio
N° 3 p. 40 A trajetória do Mopar e a condenação do anti-semitismo pelo STF Luis Milman
N° 3 p. 44 Onipresença. Em poucas palavras (seção) Raul C. Gottlieb
N° 3 p. 44 Judeus na Alemanha. Em poucas palavras (seção) Raul C. Gottlieb
N° 3 p. 46 Visão estreita. Em poucas palavras (seção) Raul C. Gottlieb
N° 4 p. 39 A L’Oréal tomou a minha casa (a colaboração impune com o nazismo)
Monica Waitzfelder
N° 4 p. 48 Dicotomia (a diversidade como construção e não divisão). Em poucas palavras (seção) Paulo Geiger
N° 5 p. 25 Terrorismo: uma complexa relação entre política e violência Mônica Herz e Nizar Messari
N° 5 p. 32 Estado laico, Estado de todos Roseli Fischmann
N° 5 p. 39 Quem não é criativo morre (renovar para preservar o judaísmo) Artur Benchimol
N° 6 p. 37 O negacionismo e a realidade irreparável do Holocausto Renato Lessa
N° 6 p. 42 Acreditando no inimigo (levar a sério as ameaças de Ahmadinejad?). Em poucas palavras (seção) Raul C. Gottlieb
N° 7 p. 28 Judeus no coração do Brasil Alberto Léo Jerusalmi
N° 7 p. 35 Psicanálise e judaísmo Arnold Richards
N° 7 p. 46 Em memória do Holocausto Breno Casiuch
N° 8 p. 35 Quando a alma faltou ao Mahatma (Gandhi e sua não compreensão) Ricardo Gorodovits
N° 8 p. 45 Herança do Caso Dreyfus João Koatz Miragaya
N° 9 p. 17 A guerra e os critérios de necessidade e proporção Márcio Scalercio
N° 9 p. 48 Michá e o MP4. Em poucas palavras (seção)
N° 9 p. 49 Dormindo com o inimigo (o bias da mídia [O Globo] em relação a Israel). Em poucas palavras (seção)
N° 9 p. 50 Refugiados e refugiados (a indústria dos refugiados palestinos). Em poucas palavras (seção)
N° 9 p. 51 Helen Suzman (necrológio). Em poucas palavras (seção)
N° 9 p. 23 A guerra e a lei judaica Ricardo Gorodovits
N° 10 p. 7 Judaísmo em ação em El Salvador Tamara Milsztajn
N° 10 p. 13 As novas concepções políticas, sociais e religiosas em Israel Entrevista de Eetta Prince-Gibson, editora da Jerusalem Report, a Jana Tabak
N° 9 p. 27 Depoimento de um sheliach israelense expulso da Venezuela Entrevista de Eldad Paz a Marcelo Treistman
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ARI/Diálogos, memória, pilpul, amenidades, juventude
N° 1 p. 38 Com a mãe na massa Michel Gorski
N° 2 p. 42 Cartas à redação Vários
N° 3 p. 28 Memórias da ARI dos anos 1950 e 1960 Ruth Josephsohn
N° 3 p. 30 A palavra do rabino Lemle (excertos) Rabino Henrique Lemle
N° 3 p. 32 Uma história de transformações e um sonho realizado Margot Lemle por Jana Tabak
N° 3 p. 35 A experiência de viver um movimento juvenil judaico Ricardo Gorodovits
N° 4 p. 35 Os primeiros passos do judaísmo liberal no Rio de Janeiro Guilherme Levy por Jana Tabak
N° 5 p. 44 Como evoluir preservando (duas posições antepostas). Seção Pilpul
N° 6 p. 46 Judaísmo se aprende na escola? (duas posições antepostas). Seção Pilpul
N° 6 p. 50 Comentando “Como evoluir preservando’, em Pilpul do n° 5 Gustavo Guberman (Pilpul)
N° 10 p. 3 Rabino Lemle: O centenário de um jovem Rabino Sérgio R. Margulies
N° 10 p. 47 A intolerância, no plano do discurso e das idéias, deve ser combatida pela tolerância Breno Casiuch. Pilpul (Seção)
N° 10 p. 47 Não se pode tolerar quem não tolera Artur Benchimol. Pilpul (Seção)
N° 10 p. 51 Especial: índice de artigos de Devarim Arte/livros/crônicas/humor
N° 1 p. 40 O burro do messias (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 2 p. 33 A língua absolvida de Elias Canetti Rosana Kohl Bines
N° 2 p. 38 Beissoilem briders, irmãos para sempre (crônica sobre cemitérios) Michel Gorski
N° 2 p. 44 O repolho dos povos (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 3 p. 47 Judeus macunaímicos (poema) Marcos Chor Maio
N° 3 p. 52 A estaca e a luz (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 4 p. 52 A ira do Irã (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 5 p. 49 Livro: ...e Deus criou a empresa familiar (Luiz Kignel e Rene Werner) Resenha: Raul C. Gottlieb
N° 5 p. 50 Livro: Sobre o Islã (Ali Kamel) Resenha: Raul C. Gottlieb
N° 5 p. 50 Livro: Fragmentos sagrados (Neil Gillman) Resenha: Rabino Leonardo Alanati
N° 5 p. 52 Povo eleito, sim, mas para quê? (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 6 p. 52 Pode um estado sessentão ter uma alma? (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 7 p. 52 O iarmulke e o ídiche: Naassé venishmá? (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 8 p. 54 Livro: O filho do Holocausto –Memórias (Jorge Mautner) Resenha: Raul C. Gottlieb
N° 8 p. 55 Livro: Tribunal da história (I e II) (Vários) Resenha: Jeanette B. Erlich
N° 8 p. 56 Mudar para ser o mesmo (o ritual como síntese simbólica) (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
N° 9 p. 8 Um poema e um talit (sobre a arte para a capa de Devarim) Leila Danziger
N° 9 p. 52 Isratina ou Palestrael? (Cócegas no raciocínio) Paulo Geiger
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cooperação e continuidade
e duardo z ylberstajn
Oprimeiro
gueto judaico na Europa de que se tem notícia foi o de Veneza. Criado por um decreto governamental em 1516, nunca abrigou mais do que 4.000 ju deus. Além de ser o responsável por popula rizar mundialmente o termo “‘gueto”, que se originou do termo “ghetta” do dialeto local, há outras peculiaridades nessa minúscula área. Uma das mais curiosas é a presença de cinco sinagogas no local. Isso mesmo: cinco sinagogas, para no máximo 4.000 fre quentadores. Duas ashkenazim (uma para os franceses e outra para os alemães), uma sefaradi, para espanhóis e portugueses, uma turca e uma dos judeus italianos.
Não é preciso muito esforço para imagi nar a guerra de vaidades que existia na épo ca. Cinco sinagogas vizinhas! Quando uma contratava o arquiteto mais famoso da re gião para um projeto de reforma, a outra não deixava por menos e fazia o mesmo. Mas o curioso dessa história é notar como é anti ga a nossa necessidade de criar e gerenciar instituições. Certamente trata-se de um cos tume com mais do que cinco séculos, mas que continua forte entre nós: hoje temos mais de 200 organizações judaicas somen te no Brasil. De todo modo, é importante no tar uma diferença básica entre os tempos atuais e a época dos nossos antepassados venezianos: eles tinham os muros do gue to para lhes proteger. Ao mesmo tempo em que enfrentavam restrições severas em suas vidas, como o local em que podiam morar e as profissões que podiam exercer, os judeus que moravam no gueto não precisavam lidar com questões como assimilação ou proje ções demográficas catastróficas.
Quando os guetos europeus começa ram a se abrir (o de Veneza terminou em 1797, quando Napoleão conquistou a cida de e concedeu igualdade civil aos judeus), o tema da assimilação começou a fazer par te da agenda comunitária. Foi no século XIX que surgiram, então, os movimentos refor
mista, ortodoxo e, depois de algum tempo, o conservador. Desde então, uma disputa (às vezes não tão saudável) se iniciou.
Provavelmente essa disputa termina rá na próxima geração. Nos EUA, o índice de casamentos mistos é superior a 50%, o que significa dizer que daqui a 30 anos, pelo menos 50% dos judeus adultos (des cendentes dos atuais casais) terão dificul dades para serem aceitos em comunidades ortodoxas. No Brasil não existem dados ofi ciais, mas há quem estime esse número em mais de 70%. A maior parte dos nossos fi lhos, portanto, será presenteada com ape nas duas alternativas religiosas: abandonar as tradições judaicas ou frequentar sinago gas não ortodoxas. Para completar o qua dro, temos que adicionar a demografia. Se nos tempos de Herodes os judeus chega ram a representar 10% de toda a população do Império Romano, hoje não somos mais do que 0,2% da população mundial, com uma clara tendência de redução. É possí vel, num cenário apenas levemente pessi mista, que em 40 anos o número de judeus no Brasil caia pela metade.
Tudo isso significa apenas uma coisa: os líderes de hoje devem se preocupar muito mais com o futuro próximo do que vêm fa zendo. Em termos práticos, as sinagogas re formistas e conservadoras devem se prepa rar para um mundo com menos gente para contribuir e muito mais pessoas para alcan çar e incluir. O futuro exigirá uma nova postu ra dessas sinagogas, que terão que ser mui to mais ativas do que passivas; apenas es
perar que as pessoas venham para o shabat ou as Grandes Festas não funcionará mais.
Podemos contar nos dedos das mãos as sinagogas liberais que existem no Brasil. Capilarizar essa estrutura custará caro, por isso o uso dos recursos tem que começar a ser mais bem gerenciado desde já. As ins tituições devem seriamente passar a consi derar a geração de superávits para formar fundos que, no futuro, lhes permitam sobre viver sem depender tanto das contribuições individuais (os chamados endowment fun ds). A formação de líderes religiosos tam bém deve entrar na agenda: hoje é muito caro formar um rabino não ortodoxo.
Mas não devemos parar por aí. Se as ins tituições liberais passarem a ajudar umas às outras, os recursos serão utilizados de ma neira muito mais eficiente. Não há porque ter uma mikve por sinagoga; machanot ou colônias de férias poderiam ser organizadas em conjunto, talvez até em âmbito nacional; livros de rezas transliterados poderiam ser editados e impressos em conjunto, sem re petir a competição que existia em Veneza.
Enfim, as possibilidades são enormes, assim como o desafio que nos aguarda. Para vencê-lo, precisamos de coragem e no vas ideias. Novas ideias, normalmente, são trazidas por novos líderes. Por isso, é hora de, por um lado, os líderes atuais abrirem cada vez mais espaço para os jovens e, por outro, os jovens deixarem de acreditar que tudo vai continuar a cair do céu e passar a atuar cada vez mais comunitariamente.
Em tempo: hoje não há mais do que 300 judeus em Veneza. Das cinco sinagogas, so mente uma funciona o ano inteiro. Uma só abre em Rosh Hashaná e Yom Kipur, outra só em Pessach, outra só em Sucot e uma delas está sempre fechada.
Eduardo Zylberstajn é engenheiro e pre sidente do Conselho Deliberativo da Con gregação Israelita Paulista (CIP).
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