
6 minute read
TRABALHEI NO CATAR
Em julho do ano passado fui contratado pela FIFA para umas das oito vagas de Coordenador de Broadcast na Copa do Mundo do Catar, a primeira Copa do Mundo de Futebol da FIFA no mundo árabe. Independentemente da descrição do cargo e do trabalho em si, o projeto começou no dia 4 de agosto e foi até o dia 20 de dezembro de 2022.
Durante todo o processo de contratação, que começou em maio, fiquei calado. Quando tudo foi confirmado e assinado, comentei com algumas pessoas do meu círculo judaico. Além da alegria pelo novo desafio, sempre vinha a pergunta com espanto: No Catar?! Um judeu no Catar?! Cinco meses?!
Advertisement
Óbvio que por trás desse espanto estava a questão de um judeu ir trabalhar no Catar, um país que apoia abertamente o Hamas e hostiliza Israel. Esse pequeno Emirado tem a metade do tamanho do menor estado brasileiro, Alagoas. Em algum momento da história, foi determinado pelas potências colonizadoras que a família Al Thani seria a proprietária daquele imenso deserto que vivia prioritariamente da pesca de pérolas no Golfo Pérsico. Com o desenvolvimento da humanidade e das tecnologias, descobriram em 1970 que o pequeno território, juntamente com o Irã, estava assentado sobre a maior reserva de gás do planeta, algo como 10% de toda a reserva da (sub)face da Terra. Com isso, o Catar é hoje um dos países mais ricos do mundo. Ainda que a riqueza, graças à política da Grã-Bretanha para o Oriente Médio dos séculos 19 e 20, pertença apenas a uma única dinastia.
Em nenhum momento eu tive qualquer preocupação em relação a essa viagem a trabalho para um país islâmico. Naturalmente estamos falando de uma janela de exceção, um momento em que o Emirado se abre e se expõe para o mundo como uma oportunidade de bons negócios, uma forma de olhar para o futuro e diversificar a economia através do esporte e do turismo, ainda que isso tenha um viés de sportswashing, uma maneira de um país ou mesmo um produto melhorar sua imagem através do esporte. Tal como foram as Olimpíadas de Berlim na Alemanha, em 1936, e a Copa do Mundo de 1978, em plena ditadura Argentina. Durante o processo de contratação e viagem, nunca perguntaram a minha religião. E foi assim durante todo o tempo em que estive por lá.
O Catar é hoje um dos países mais ricos do mundo. Ainda que a riqueza pertença apenas a uma única dinastia.
4 de agosto de 2022. Chego em Doha, capital do Catar. O vai e vem dos homens de Dishdasha (a túnica branca) e Guthras (o ornamento na cabeça) e de mulheres de Abaya e Hijab (respectivamente, o vestido e o véu pretos que deixam apenas as mãos e o rosto aparentes) já me causou uma sensação estranha. Quando vemos isso por imagens pela internet e televisão, há um certo distanciamento. Mas quando esse monte de gente está passando de um lado para o outro na sua frente, afloram quase que naturalmente uma série de sentimentos. Pelo menos em mim. Jamais imaginei estar tão próximo e no cotidiano dos muçulmanos. A primeira reação poderia ser de repulsa, mas a verdade é que o dia a dia é de certa forma anestesiante. Nossos olhos vão se acostumando, mas, mesmo depois de cinco meses, não consegui aceitar de forma alguma essa condição imposta pelos hábitos religiosos.
Alguns dias depois da minha chegada, ligo para um amigo da ARI: “Você sabe se existe na Torá ou no Alcorão algum texto oficialmente religioso que determina que as mulheres devem ‘esconder’ o corpo e os cabelos?” “Não existe, pelo menos na Torá”, respondeu rapidamente o meu amigo. E a conversa seguiu pela grande possibilidade desses costumes terem sido agregados ao comportamento religioso por conta de um viés machista exacerbado ao longo do tempo. Apenas para posicionar a mulher como inferior, subserviente e impossibilitada de se apresentar de forma natural ao mundo internet por judeus, comunidades ou eventuais sinagogas ou clubes naquele país. Queria apenas confirmar o que já imaginava: não encontrei qualquer registro, resquício, história, nada que conectasse judeus ou judaísmo com o Catar. Muito bem, então como dividir nesse espaço uma experiência judaica no Catar? Penso que isso só pode acontecer através do compartilhamento das reflexões que lá tive. exterior. Aqui vale uma curiosidade. Por conta das obrigações e dos hábitos religiosos, homens e mulheres não se misturam nas praias. Homens de sunga e mulheres de biquíni são algo muitíssimo raro de se ver. O país é todo banhado pelas águas do Golfo, mas em muitas praias o acesso é simplesmente proibido. Em alguns casos, as praias são fracionadas em espaços para famílias (pai, mãe e filhos) e espaços apenas para homens. Não tem a menor chance de uma “azaração”.
Sportswashing é a maneira de um país ou de um produto melhorar sua imagem através do esporte. Tal como as Olimpíadas de Berlim, em 1936 na Alemanha Nazista, ou a Copa do Mundo de 1978, em plena ditadura Argentina.
Um pouco antes de partir para o Catar, comecei uma busca na
O calor de agosto no Catar é tão intenso que parece que vai queimar sua pele ao ar livre. Por isso, o cotidiano é casa-carro-escritório-shopping, o mínimo de rua e o máximo de ar condicionado. Em uma das minhas primeiras caminhadas no shopping, vi pela primeira vez uma família “devidamente vestida”: pai, mães e filhos (meninos e meninas), todos com suas Dishdasha e Abayas. Em que momento da vida uma criança começa a usar essas roupas? Elas decidem vestir-se assim ou são obrigadas pelos pais? O que acontece se uma menina decide que não quer esconder os cabelos?
Confesso que não tive muita intimidade com os cataris para fazer essa pergunta ou ter esse tipo de conversa. Mas essa reflexão me levou a Shemot, a primeira parashá de Êxodo, o segundo livro da Torá. Entre os diversos temas tratados em Shemot, temos o faraó assustado com um povo judeu muito numeroso no Egito a ponto de decidir que todo israelita recém-nascido deveria ser morto. Observando Êxodo 2:1-10 com mais atenção, a Torá relata o nascimento de um menino sem mencionar o nome da mãe. Diz apenas que “certo homem da casa de Levi casou-se com uma mulher de Levi, que teve um filho”. Numa das histórias mais conhecidas de Pessach, sabemos que esse menino foi colocado numa cesta no rio Nilo e encontrado pela filha do faraó, que imaginou ser uma criança judia. Ela pagou uma de suas criadas para cuidar da criança que, depois de crescida, foi criada pela filha do faraó. Essa criança era Moisés. A narrativa dá um salto e já passa para Moisés crescido, indo até seu “povo” para acompanhar seus trabalhos (escravos). Ele viu um egípcio batendo num hebreu e matou o egípcio.
Não precisamos discutir aqui a importância de Moisés na história do povo judeu. Mas traçando um paralelo com a reflexão sobre a família caminhando no shopping em Doha, eu fico me perguntando: se Moisés foi abandonado no rio aos três meses de idade e foi encontrado e criado no meio dos egípcios, em que momento ele se entende como judeu?
Falando em primeira Copa do Mundo de Futebol da FIFA nos países árabes, vale a pena compartilhar uma curiosidade sobre a participação de Israel nessa competição. É uma história que acompanha os conflitos no Oriente Médio nos últimos 70 anos. Devido à sua localização geográfica, Israel deveria estar ligado à Confederação Asiática de Futebol (AFC). E esteve durante um longo período. Foi justamente no tempo em que participava da AFC que Israel teve seus melhores resultados, vencendo uma Copa da Ásia em 1964 e se classificando para sua única Copa do Mundo até hoje, em 1970 no México. Mas os conflitos na região sempre colocaram em xeque a presença da seleção de Israel na Confederação Asiática, que também inclui os países árabes. E a seleção de Israel chegou a participar das eliminatórias pela Confederação da Oceania até o país ser aceito (eu diria acomodado) na União Europeia de Futebol em 1991. Como a UEFA inclui os poderosos times e seleções da Europa, ainda vai levar um tempinho para Israel conseguir evoluir seu jogo a ponto de conseguir conquistar sua segunda participação em Copas do Mundo.
Um episódio que não me parece ter repercutido muito por aqui foi o regime de exceção provocado pelo futebol na relação entre Israel e Catar. Sabemos que os dois países não têm relações diplomáticas desde 2009 e que, em certos momentos, os israelenses não tiveram sequer acesso à compra de ingressos para a Copa do Mundo. Mas às vésperas do Mundial, no dia 20 de novembro, o primeiro dos 12 voos comerciais operados pela principal companhia aérea do Chipre teve autorização e decolou levando torcedores palestinos e israelenses juntos para curtir, aproveitar e torcer na Copa do Mundo do Catar. Ainda que seja um passo tímido em regime de exceção, não obstante os filminhos que correram a internet mostrando cataris recuando horrorizados ao perceber que estavam sendo entrevistados pela televisão ou por amadores israelenses, não podemos perder de vista a esperança de um dia a paz ser estabelecida no seu aspecto mais amplo. E para terminar, o torcedor brasileiro ficou novamente com o gostinho amargo de não chegar a uma final de Copa do Mundo. Talvez seja o caso da nossa CBF experimentar uma travessia do deserto e contratar um técnico chamado Moisés. Melhor ainda se for Moshé
Às vésperas do Mundial, o primeiro de 12 voos comerciais operados pela companhia aérea do Chipre decolou levando torcedores palestinos e israelenses juntos para curtir, aproveitar e torcer na Copa do Mundo do Catar.


