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MEMÓRIA, AFETOS, RESISTÊNCIA
A beleza e o vigor da língua e da cultura Yiddish
Sonia Kramer
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Alíngua e a cultura Yiddish1 voltaram à cena nos últimos anos, com livros publicados, cursos, filmes, festivais de música, jornais online, peças teatrais, materiais de ensino, jogos, concursos de música e vídeos, apoio a estudantes, encontros de falantes, bolsas de estudo.
Músicos e atores cantam e atuam em Yiddish; professores, sociólogos, linguistas e escritores se dedicam ao ensino, à tradução e à pesquisa nas áreas da música, literatura, folclore, sabedoria; publicações das literaturas infantis e juvenis são escritas em Yiddish e clássicos da literatura universal são traduzidos para o Yiddish; universidades procuram preservar a memória, ensinar a língua e promover a criação literária, musical e teatral. Depois de quase extinta no século 20, a língua permanece, resiste, vive!
Vive nas lembranças e nos afetos que temos dos nossos pais e avós – a gute nacht ou a guite nacht (boa noite); shlof gezunterheit ou shluf gezinterhait (dorme bem); zai gezunt ou zai gezint (fica com saúde). Essas como outras palavras e expressões trazem votos de dormir bem, aproveitar bem, ter bom sono, bons sonhos, ficar com saúde, ditas no dialeto litvish, poilish ou volini, da Lituânia ou da Polônia. Como todas as línguas, o Yiddish tem dialetos.
O Yiddish vive em projetos de ensino, pesquisa e produção cultural para crianças, jovens e adultos. Persiste em ações que, além de resgatar o passado, têm o compromisso de atuar, no melhor sentido dado a esse verbo por Martin Buber: agir hoje, na atualidade, tornar atual. A internet passou a desempenhar um papel inesperado. Nos Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra, Alemanha, Suécia, Polônia, Lituânia, Israel, Argentina, Brasil, entre outros, observa-se a revalorização da língua Yiddish por jovens em 1 N. do E.: em português, iídiche. A opção pela grafia “Yiddish” pela autora deve-se ao fato de ser usada em artigos, publicações e pesquisas internacionais.
A dimensão cultural da língua Yiddish sempre circulou na vida cotidiana e no ensino: a presença da Yiddishkeit – a cultura Yiddish – marca canções, poemas, contos, romances, o folclore expresso em provérbios, ditos populares, anedotas.
instituições que viabilizam acesso digital gratuito a milhares de livros em Yiddish, a shows e conferências, a cursos presenciais e online, oferecidos ainda antes da pandemia. Essa presença da língua Yiddish no mundo e no Brasil de hoje nos provoca, convida à reflexão e à ação.
Mas em que contexto nasceu a língua Yiddish? Qual a sua história?
Hoje, a resistência da língua Yiddish acontece no ensino e difusão da língua e da cultura, com acesso à produção literária em muitos gêneros
Que instituições trabalham na resistência para que a língua não desapareça, criando espaços, tempos e materiais para que a cultura Yiddish seja conhecida e a língua não seja mais silenciada?
Para começar, vale registrar que há várias formas de transliterar a palavra שידִיי no alfabeto latino: Yiddish, ídiche, iídiche, ídish, yidish, jdish. A opção pela forma “Yiddish” se deve a essa ser a grafia usada em artigos, publicações e pesquisas internacionais. Vale lembrar ainda que a palavra שידִיי significa, em שידִיי, o nome da língua e da cultura, e também judeu, judia ou judaica. Ou seja, שידִיי é parte integrante e relevante da história e da identidade judaica.
Um pouco da história do Yiddish
Todas as línguas são marcadas pela pluralidade, de dialetos, registros, sotaques. Porém, mais que diversa, o Yiddish é língua amálgama ou língua de fusão. Fusão porque ela se formou do hebraico, alemão e línguas eslavas. Essa combinação originou seu léxico e vocabulário. O hebraico lhe deu também o alfabeto; a língua alemã, a estrutura, a sintaxe; e as línguas eslavas (russo, polonês, entre outras), além do vocabulário, fornece incontáveis expressões enfáticas e interjeições.
A origem da língua Yiddish data do século 10, em áreas de fronteira entre as atuais França e Alemanha. Naquela região, judeus vindos da Itália e de outros países românicos começam a falar o alto-alemão, misturando-o com elementos judaicos do francês e do italiano com o hebraico, a língua sagrada (loshn koidesh), e com palavras hebraico-aramaicas, ligadas a atividades diárias e comerciais. Nascia o jüdish-deutsch, “judeu-alemão”, nome que se alterou para iídisch-taitsch, de onde derivou o vocábulo “iídiche” (Guinsburg, 1996, p. 17). Os judeus dessa região eram chamados de ashkenazim (de Ashkenaz, a Alemanha) e falavam Yiddish.
Ora, os judeus sempre falaram muitos idiomas: nos tempos bíblicos, hebraico (loshn koidesh, língua sagrada reservada aos textos religiosos) e aramaico (usado na conversação cotidiana). Na era moderna, o Yiddish nasceu e se constituiu, segundo Benjamin Harshav (1994), num contexto de polilinguismo interno (os judeus falavam várias línguas) e externo. No shtetl (vilarejo) do Leste Europeu, a rua judaica (di yidishe gass), como a ela se referiam poetas, escritores, músicos, era ruidosa; nela se ouvia russo, polonês, romeno, húngaro. Nos grandes centros, porém, aprendia-se alemão, francês e, mais tarde, inglês.
Jargão, dialeto ou língua?
Inicialmente considerada um jargão e dialeto das línguas germânicas, o Yiddish deve a uma densa produção literária nos séculos 18 e 19 seu reconhecimento como língua. Essa diversa e rica produção literária em Yiddish é encontrada também na esfera da produção musical: muitas letras de canções são poemas musicados. Além disso, o Yiddish está longe de ser um dialeto do alemão, pois não existe língua Yiddish sem hebraico!
A dimensão cultural da língua Yiddish sempre circulou na vida cotidiana e no ensino: a presença da Yiddishkeit – a cultura Yiddish – marca canções, poemas, contos, romances, o folclore expresso em provérbios, ditos populares, anedotas. O humor judaico sempre foi humor em Yiddish. Rua barulhenta, praça onde convivem alegria e tristeza, trabalho e festas religiosas, expulsões e migrações, essa língua-passaporte (Guinsburg, 1996) se deslocou por tempos e espaços, nunca teve território, se fez e se refez nas comunidades, e seguiu, se espalhou, carregada na bagagem como o violino, as histórias, lendas, tradições. Mas além de falar, os judeus liam. Liam e leem livros e jornais que publicavam resenhas literárias, contos e capítulos de obras de escritores que faziam rir, chorar e pensar. Autores como Mendel Sforim, Scholem Aleichem, I. L. Peretz, Abraham Reisen, Itzik Manger, Abraham Sutskever, I. B. Singer eram e são lidos mundo afora. Sim, o Yiddish nunca teve território nem nacionalidade. Nos anos 1930, havia cerca de quinze milhões de judeus, dos quais nove milhões na Europa. Provavelmente, a maioria dos seis milhões de judeus assassinados falavam Yiddish. A Shoá (Churbn, em Yiddish: destruição) dilacerou a língua. Também o totalitarismo stalinista perseguiu, calou, matou escritores que escreviam em Yiddish, muitos executados na Noite dos Poetas Assassinados em 12 de agosto de 1952 – uma das tentativas de aniquilar a língua e a cultura.
Quase extinta pelo nazismo e pelo stalinismo, a língua Yiddish se espalhou pelo mundo, mas deixou de ser falada em comunidade. Apenas grupos de judeus ortodoxos falam Yiddish na esfera doméstica, sem reconhecer, porém, a produção literária, musical e teatral. Voltar-se hoje para a língua e a cultura Yiddish é movimento de resistência contra o silenciamento da língua, o apagamento da cultura e o esquecimento da história.
A língua resiste e se renova
O revival se deu nos anos 1970 com a música klezmer. A palavra klezmer, que significa “músico” em Yiddish, passou a se referir ao gênero, em que os instrumentos parecem falar Yiddish. Milhares de bandas foram criadas principalmente, mas não só, nos Estados Unidos e na Alemanha, misturando nigunim e tons contemporâneos, clássicos e modernos.
A partir dos anos 1990, e mais recentemente nos anos 2000, o ensino e a pesquisa se tornam intensos e se mostram em cursos, livros, jornais, seminários, em centros de pesquisa e universidades. Chamado de Academic Yiddish, sem a ilusão de que é possível recuperar o que foi destruído pela barbárie, seu objetivo é favorecer que a língua e a cultura Yiddish sejam conhecidas, e devolvidas a crianças, jovens e adultos, ashkenazim e sefaradim, judeus e não judeus. É impedir que se cale a língua, que seja esquecida.
A resistência da língua Yiddish durante a Shoá se deu na escrita em diários, textos literários, músicas, versões de letras sobre a vida no gueto e nos campos de concentração, como também na luta de poetas e escritores que salvaram livros em Yiddish de bibliotecas, enterrando-os e voltando depois da guerra para resgatá-los (Fishman, 2018).
Hoje, a resistência da língua Yiddish acontece no ensino e difusão da língua e da cultura, com acesso à produção literária em muitos gêneros, com traduções e adaptações, com pesquisa na área da linguística, história, sociologia. Em diversos países, e também no Brasil, o que foi registrado em livros, músicas e peças teatrais, e ficou guardado na memória, em diários, cartas e arquivos, vem sendo resgatado, se torna acervo e é partilhado em cursos, encontros, seminários, festivais, publicações. Devolvemos assim às gerações mais jovens o que foi usurpado de nossos pais, avós e bisavós.
A internet já favorecia o acesso a vídeos, livros, filmes, músicas, peças; aproximava falantes e estudiosos. Com a pandemia, esse processo intensificou a experiência com a música, a literatura, a sabedoria, com as histórias de diferentes tempos e espaços, ouvidas, repetidas, contadas em romances, contos, poemas, peças teatrais, jornais, autobiografias.
Contos autobiográficos escritos por mulheres é um tesouro recém-descoberto (Forman et al, 1994). Sua leitura revela histórias de vida de jovens judias que sofriam discriminação por serem mulheres, por serem escritoras e por escreverem em Yiddish. Retratam contextos diversos e adversos de mulheres que imigraram do Leste Europeu para a América, Inglaterra ou Israel. Muitas pesquisas se voltam para a tradução de Anna Margolin, Bella Chagall, Celia Dropkin, Chava Rosenfarb, Esther Kreitman, Kadja Molodowski, Katie Brown, entre muitas outras.
O universo do Yiddish hoje
Nu, es vet zain a farguenign oib ir vet kenen zen oder leienen oif iidish oder vegn iidish haint! (Nu, será um prazer se vocês puderem ver ou ler em Yiddish ou sobre Yiddish hoje!) “Nu”, assim como “oi vei”, não tem tradução.
Como uma pessoa que mergulhou de volta no Yiddish, permito-me compartilhar aqui algumas poucas sugestões. As leitoras e os leitores vão encontrar um universo infinito – ir kent glaibn (podem acreditar) – de publicações, músicas e pesquisas. Esses conteúdos podem ser acessados na internet através das mídias as mais variadas ou em endereços que constam no rodapé deste artigo.
O YIVO/ Institute of Jewish Research2 é um grande centro de pesquisa e ensino. Criado em Vilna em 1925, onde na época já realizava pesquisas linguísticas e literárias, estudos e publicações, foi transferido para Nova Iorque em 1940. Até hoje oferece espaço e apoio para estudantes, pesquisadores e intelectuais. Mantém um imenso arquivo de fotos, diários, jornais, verbetes, uma verdadeira enciclopédia digital, bem como gravações de conferências, cursos, apresentações em Yiddish e inglês de variados temas.
O Yiddish Book Center3 resulta do trabalho de jovens estudantes de Yiddish que, há mais de 40 anos, se tornaram pakn-tregers (carregadores de pacotes). Liderados por Aaron Lansky, esses jovens reuniram mais de um milhão de livros de Yiddish que seriam jogados fora por pessoas, escolas, sinagogas, bibliotecas. Hoje, além de permitir

2 https://www.yivo.org
3 https://www.yiddishbookcenter.org/ download gratuito dos livros digitalizados, o Yiddish Book Center oferece cursos de língua e tradução para/de Yiddish. O site é belo, como também a sede situada no College de Amherst, Massachusetts, EUA.4
O Workers Circle,5 Di Arbeter Ring (Círculo de Trabalhadores/as), foi criado pelo Bund, Partido Socialista Polonês Judaico. Voltado para a justiça social, a educação e a cultura Yiddish, o Arbeter Ring faz programas, encontros e cursos de Yiddish online há anos, ainda antes da pandemia. Hoje, há dezenas de turmas de ensino de Yiddish presenciais e remotas. Seus cursos dão a conhecer quem escreve em Yiddish hoje: Boris Sandler, Gitl Shaechter, Sholem Berger nos Estados Unidos; Emil Kalin, Dov Ber-Kerler, Velvl Tsernin em Israel; Evgeny Kissin, Yoel Matveyev na Rússia; Khayke Wiegand na Inglaterra.
O Congress for Jewish Culture6 (Der Yiddisher Kultur Kongres, Congresso para a Cultura Yiddish) dedica-se em especial às artes, música, teatro, literatura. O ator Shane Baker, que o preside, é incansável na defesa e atuação do Kongres e no apoio a projetos.
A League for Yiddish (Yidish Lig), jornais Forverts7 e In geveb8 nos Estados Unidos; Biblioteca MEDEM na França; Yung Yidish Library and Cultural Center e o jornal Yidishland em Israel; podcasts, periódicos e editoras de universidades em vários países – oi vei, es iz nisht meglech tsu redn vegn ale (oi vei, não é possível falar de todas).
Publicações recentes bilíngues e livros infantis belíssimos, como os da editora sueca Olniansky, mostram a criatividade gráfica desse campo.
Na América Latina, alguns destaques: o IWO de Buenos Aires realiza seminários e cursos de Yiddish. Em São Paulo, o teatro Yiddish, entre outras iniciativas da Casa do Povo,9 pioneira no Brasil na militância pelo
4 Nota do editor: a Devarim 12 (julho de 2010) publicou um texto sobre o Yiddish Book Center.
5 https://www.circle.org/yiddish
6 https://www.facebook.com/Kultur.kongres
7 https://forward.com/yiddish
8 https://ingeveb.org
9 https://catracalivre.com.br/agenda/casa-do-povo-sp/
Yiddish; exibições e encontros no Museu Judaico,10 Kleztival e Bubba Awards, concursos de música Yiddish, promovidos pelo Instituto de Música Judaica.11 De São Paulo, há também importantes publicações recentes.12
No Rio de Janeiro, a ASA (Associação Scholem Aleichem), uma das mais antigas na valorização da cultura Yiddish, o programa Ot Azoy: dos iz Yiddish (É isso aí, isso é Yiddish), interrompido com a pandemia, e o Núcleo Viver com Yiddish da PUC-Rio.13 Como tenho vivido em Yiddish, permito-me fazer um convite às leitoras e aos leitores para conhecer os projetos do Núcleo: os cursos de Yiddish;14 o grupo musical; as oficinas com crianças; a pesquisa “Mulheres que escreviam em Yiddish: memória, superação e resistência”, entre outras produções.15
E termino mit grois farguenign (com grande prazer) ao perceber que as muitas ações de, com e para o Yiddish hoje não cabem em um artigo.
Referências Bibliográficas
BUBER, Martin. O caminho do homem segundo o ensinamento chassídico. São Paulo, Realizações Ed., 2011.
CYTRYNOWICZ, H; GENHA, M. (Orgs). O conto Ídiche no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2007.
FALBEL, N. Literatura Ídiche no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2009.
FISHMAN, D. Os homens que salvavam livros: a luta para proteger os tesouros judeus das mãos dos nazistas. São Paulo, Vestígio, 2018.
FORMAN, F. et al. Found treasures: stories of Yiddish women writers, Second Story Press, Toronto, 1994.
GUINSBURG, J. Aventuras de uma língua errante. Campinas, Perspectiva, 1996.
HARSHAV, B. O significado do Yiddish. Ed. Perspectiva. SP. 1994.
KRAMER, S., SILVEIRA, A., RIAN, B. (orgs.). Likhtik (iluminado). Rio de Janeiro, 2018.
KRAMER, S.; ANTABI, M.; MILLER, I. Ensinar e aprender Yiddish hoje? Rio de Janeiro, Numa Editora, 2022.
LANSKY, A. Outwitting History: the amazing adventures of a man who rescued a million Yiddish books. USA, Algonquin Books of Chapter Hill, 2005.
10 https://museujudaicosp.org.br/
11 http://www.imjbrasil.com.br/
12 Cytrynowicz e Genha, 2007; Falbel, 2009.
13 www.vivercomyiddish.com.br
14 https://linktr.ee/cursos_yiddish_PUCRio
15 Kramer, Silveira, Rian (2018); Kramer, Antabi, Miiler (2022).