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A inovação desafiando nossa tradição Ernesto Haikewitsch

No início deste século, exatamente em 2001, Steven Spielberg nos brindou com o filme “A.I. – Inteligência Artificial”, em um futuro distante, no qual, após catástrofes ecológicas causadas pelo degelo das calotas glaciais, a tecnologia humana evolui consideravelmente no campo da robótica e da inteligência artificial. A humanidade desenvolve robôs androides, que replicam a aparência de seres humanos com o objetivo de servir incondicionalmente a seus desejos, atuando como “escravos”. David, interpretado por Haley Joel Osment, é um menino-robô programado para amar sua dona, expressando sentimentos de afeto, cujo filho está em coma, congelado até que a medicina encontre uma cura para sua doença. Em algum momento, ele se recupera, volta para casa e se estabelece um conflito entre o filho orgânico e o robô-Pinóquio. Spielberg, um genial mestre em provocar emoções, sabe como conduzir esta sombria história de amor, através de uma profunda empatia pelo sofrimento e súplica de um androide. Muitos anos antes, em 1968, Stanley Kubrick – um dos idealizadores do filme de Spielberg – entregava uma obra-prima cinematográfica chamada “2001: Uma Odisseia no Espaço”, quando os computadores ainda eram denominados de “cérebro eletrônico” e o conceito de “inteligência artificial” sequer existia. Neste filme, Kubrick mostrava que o computador HAL 9000 controlava a nave especial Discovery One em sua missão a Júpiter e manipulava, com requinte, os seres humanos representados pelos astronautas Dave Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood). Na antológica cena final, após matar a tripulação, HAL percebe que será desligado por Dave e começa a agir como um ser humano: tenta convencer seu algoz a não “matá-lo” e se desespera ante o inevitável destino, revelando suas mais profundas emoções. “Pare, Dave, pare, sim?

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Pare, Dave. Tenho medo. Estou com medo. Dave. Dave... minha consciência está se esvaindo. Estou sentindo. Estou sentindo. Minha consciência está se esvaindo. Tenho certeza absoluta. Estou sentindo. Estou sentindo. Estou sentindo. Estou... com medo.”

Em ambos os casos, se demonstra como a inteligência artificial trouxe angústias e sentimentos inerentes aos seres humanos muito antes da tecnologia propriamente dita começar a estar disponível. O termo “inteligência artificial” foi cunhado em 1956 pelo matemático e pesquisador da área de ciências da computação John McCarthy, que sempre afirmou que a I.A. deveria interagir com o ser humano.

Desde que foi lançada, em 30 de novembro de 2022, a ferramenta de inteligência artificial ChatGPT (Chat Generative Pretrained Transformer ou Transformador Generativo Pré-treinado), que tem a capacidade de lidar com um volume infinito de dados e, consequentemente, de forma criativa, gerar (daí o conceito de “generativo”) respostas para perguntas de qualquer grau de complexidade, superou mais de 100 milhões de usuários e quase 15 milhões de visitantes diários, ganhando a posição de “aplicativo de consumo com crescimento mais rápido da história”. Apenas para compararmos com outros lança mentos recentes, o chinês Tik Tok levou nove meses para da área de tecnologia: o atual CEO, Sam Altman, e o bilionário Elon Musk, que saiu em 2018. Seu objetivo original estava focado em jogos eletrônicos, mas somente no final de 2022 ele chegou ao grande público mostrando todo seu poder computacional, respondendo perguntas complexas, redigindo textos personalizados e até criando poemas para os usuários, originalmente sem custo. Agora começa a introduzir novas funcionalidades, como APIs, ou seja, interfaces amigáveis e que podem ser oferecidas por qualquer outra empresa. Imagine poder interagir com uma central de atendimento livrando-se daquelas irritantes restrições de diálogo, passando a “conversar” de forma natural, seja por aplicativos de mensagens como WhatsApp ou mesmo por voz!

René Descartes, o fundador da moderna filosofia, criou uma frase icônica: “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum). Buscando obter o “conhecimento absoluto”, duvidou de tudo, inclusive de sua própria existência, mas encontrou algo do qual não duvidava: a existência da dúvida. Em seu pensamento, ao duvidar de algo, estaria pensando. E pensando, elaborando perguntas.

Há profundas questões éticas que precisam começar a ser avaliadas, desde já. A magia da interface por meio de um diálogo simples induz o usuário ao equívoco de considerar suas respostas precisas e verdadeiras. O seu uso na educação levou a uma forte reação negativa refletindo o conservadorismo do setor e os gaps ainda existentes sobre o uso de novas tecnologias digitais. Estas tecnologias continuam em fase experimental, mas em função de seu poder disruptivo faz-se necessário a criação de propostas regulatórias com diretrizes básicas de conduta e ética em I.A., bem como de mecanismos que consigam, de alguma forma, detectar a origem de textos produzidos exclusivamente por essas ferramentas.

Em fevereiro deste ano, Isaac Herzog, presidente do Estado de Israel, chocou profissionais em uma conferência de cibersegurança, ao afirmar que a abertura de sue discurso havia sido redigida pelo ChatGPT. Mas tranquilizou a audiência ao dizer que aquele parágrafo inicial fora apenas a inspiração para o resto do conteúdo, redigido por ele mesmo. Um rabino norte-americano, em sua prédica semanal de Shabat, comentou que todo o texto havia sido elaborado pela ferramenta de I.A. Ao final, “confessou” à sua congregação que o texto não era originalmente dele. E ainda questionou se as palavras proferidas teria a empatia necessária que somente o rabino poderia oferecer, concluindo: a I.A. é extremamente inteligente. Mas ainda não desenvolveu compaixão, amor e empatia, sendo incapaz de construir comunidades e relacionamentos.

Ou seja, como a I.A. irá verdadeiramente impactar o que se considera “espiritual”? Como a espiritualidade irá funcionar em um mundo repleto de dados e informações? Será que, ao invés do “bezerro de ouro”, passaremos a idolatrar a “máquina”? Máquina essa que tanto interfere em nosso cotidiano, principalmente em momentos que deveriam ser de introspecção e reflexão, como quando vamos na sinagoga e somos constantemente distraídos pelos sons dos celulares em nossos bolsos?

Alguns dizem que a tecnologia de inteligência artificial, o que quer que ela possa fazer, será sempre artificial. Não importa o que possa acontecer, nada substitui a alma humana e a sabedoria que leva as pessoas às discussões judaicas. O rabino Greg Wall da sinagoga Beit Chaverim, em Westport, Connecticut, conhecido como “The Jazz Rabbi”, acredita que o que os rabinos transmitem não pode ser ameaçado por algo que não possui linhagem. “É sobre messorá, tradições judaicas passadas de geração em geração. Quando você ouve um rabino falar, eles aprendem de um rabino, que aprendeu de outro antes dele. Saber de onde vem, traz uma autenticidade que eu acho que nenhum sistema ou máquina pode ter.”, disse Wall.

Em tempo de um RabbiGPT, o grande desafio passa a ser como permanecer fiel ao nosso passado e à riqueza de nosso conhecimento milenar e nossa tradição, aproveitando positivamente os benefícios da inovação.

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