6 minute read

MEIA-VOLTA, VOLVER!

Vittorio Corinaldi

A autonomia do poder judiciário e o equilíbrio entre os três poderes é elemento fundamental das democracias.

Advertisement

O que Levin propõe não é uma democracia, mas a ditadura de uma pequena maioria parlamentar.

No número 46 (Dezembro de 2022) de Devarim, Paulo Geiger intitula “Direita volver” um seu escrito, no qual analisa e interpreta as tendências de direita que vêm crescendo no eleitorado israelense.

O conhecido chamado de ordem, usado em marchas e desfiles para conduzir o andamento dos participantes, reflete bem a natureza do atual momento político. Estava eu propenso a usá-lo em ulteriores comentários sobre o mesmo assunto que continua na ordem do dia 2023 adentro.

Mas a realidade tornou-se entrementes muito preocupante e carregada de ruidoso confronto com potencial de violência entre as partes contrastantes: tanto que o “Direita, volver” (que na verdade sintetiza uma situação “de facto” existente) requer ser substituído por “Meia-volta, volver”, mais apropriado para conclamar os litigantes a uma suspensão na polêmica amarga e intransigente e a uma volta a diálogo ponderado e reciprocamente tolerante.

Não é que haja uma simetria de posicionamento. A semântica da discussão classifica as opiniões como “Direita” e “Esquerda” – não segundo a clássica definição das diferentes visões da sociedade, mas de acordo com a identificação política com o governo e seu programa.

Este programa, apresentado como “Reforma” a ser legislada com impaciente urgência, revela-se dia a dia com novas disposições que em seu conjunto constituem um ataque destrutivo contra o poder Judiciário, contra a autonomia dos tribunais, contra a defesa de direitos da minoria diante da arbitrariedade da maioria: requisitos inerentes da democracia. Reformas e melhorias são aceitáveis e até desejáveis em qualquer organismo ou sistema, desde que se destinem a um desenvolvimento positivo de sua função, e desde que não alvejem a um abalo no equilíbrio essencial entre os vários poderes da estrutura civil. Evidentemente esta finalidade só pode ser atingida com um debate bem-intencionado e uma pesagem objetiva de motivos e consequências – coisa que não está no projeto do atual ministro da Justiça Iariv Levin, fervoroso partidário da predominância dos políticos no mecanismo de nomeação de juízes e promotores, que ele aspira a transformar em submissos subscritores de fachada das decisões do executivo. Nesta ordem de considerações, ele procura introduzir uma regulamentação tendenciosa do funcionamento dos tribunais, com inegável sentido de legalização de medidas manchadas de corrupção, e com o camuflado desejo de abolir os processos que pesam sobre Netanyahu.

Levin sustenta que a atual autonomia do poder judiciário é contrária à essência do regime democrático, que segundo ele se expressa exclusivamente na maioria aritmética obtida pelos partidos de governo. Com isso, ficaria a defesa de direitos do cidadão à mercê politiqueira de partidos, deputados e grupos de pressão.

Ora, esta afirmação de Levin é insana. A autonomia do poder judiciário e o equilíbrio entre os três poderes (judiciário, legislativo e executivo) é elemento fundamental das democracias. Nenhum regime que não inclua este equilíbrio pode ser intitulado de “democracia”. O que Levin propõe não é uma democracia, mas a ditadura de uma pequena maioria parlamentar.

A ofensiva contra o Judiciário é sem dúvida o aspecto mais preocupante do endereço fascista ao qual o governo vem obstinadamente conduzindo, recusando-se a admitir uma troca de opiniões que assumiria para ambos os lados o simbólico lema de “Meia-volta, volver”. E movido pela euforia de poder que uma pequena maioria (as eleições na verdade registraram um empate) lhe dá na Knesset, vem pressionando – em sintonia com grosseiros parlamentares da ala “Bibista” – também outras reformas antidemocráticas igualmente limitadoras de direitos e liberdades: contra a livre expressão na imprensa, televisão e rádio; na injeção de um retrógrado coeficiente religioso no currículo escolar; na subscrição da política segregacionista e discriminatória do ministro da Segurança Interna Itamar Ben Gvir, cujo partido ideologicamente racista e intolerante, herdeiro das ideias do defunto Rav Kahana, conseguiu entrar no parlamento graças à manipulação interesseira de Bibi e à votação de um público fanático e mal esclarecido, milícia gritante e demagógica, revestida de um superficial falso judaísmo e de um nacionalismo oco e vingativo.

O termo “vingativo” se aplica também ao espírito que orienta os partidos ortodoxos no acordo que os trouxe para o governo: sua conhecida retórica sempre lamenta uma pretensa limitação no apoio a suas instituições (a despeito da cínica repetição de “slogans” de aparente piedosa humildade com que se apresentam na busca do dinheiro público do qual se sentem merecedores).

Logo do início de sua presença no executivo, os representantes ortodoxos de vários tipos de vestimenta e “kipá” se lançaram então a um assalto às fontes de financiamento público de que sempre foram hábeis usuários. Daí a cessão da pasta das Finanças ao militante messiânico da colonização judaica na Cisjordânia Betsalel Smotrich, complementada por sua estranha anexação em caráter de “ministro adjunto” também ao Ministério da Defesa – o que é um perigoso precedente de intromissão na política de segurança e na orientação do exército, e um transparente esforço de garantir medidas e recursos para as metas e os interesses daquela colonização, e justificativa para sua constante agressão à população palestina.

Na outra extremidade da ala não sionista da bancada religiosa, o partido “Iahadut Hatorá” (o judaísmo da Torá) recebeu o controle da influente Comissão de Finanças da Knesset, de há muito um baluarte da liderança “charedi” (ultraortodoxa).

Vice-ministros religiosos foram nomeados para pastas de largo alcance para a população, como a da educação ou da cultura, onde já deram voz a suas ambições eleitorais de coerção religiosa, visando abolir estabelecidos costumes de abertura intelectual nos programas didáticos, e mesmo revogar resoluções nesse sentido adotadas pelo governo precedente.

Esta jornada por um estado autoritário de ditadura disfarçada desencadeou uma grande corrente de protesto, que não se enquadra na classificação de esquerda ou direita. Atingindo um público generalizado preocupado com o rumo que o país vem tomando, ela se mostra em grandes comícios semanais de ampla participação, e em pronunciamentos críticos vindos de representantes vários da opinião pública: do ambiente acadêmico e cultural; de oficiais do exército na ativa ou na reserva; da central sindical e de corporações profissionais; de círculos econômicos locais e internacionais, que acentuando a interdependência entre economia, confiabilidade jurídica e estabilidade democrática, advertem sobre o perigo de colapso da economia do país se a anunciada reforma for aprovada.

A administração norte-americana e os governos europeus já condenaram a tendência com linguagem clara e com dúvidas quanto à continuação de apoio em campo econômico ou diplomático, e não é compreensível que Netanyahu ignore um fator de tal peso para a existência de Israel.

Provavelmente, a mais grave reação partiu da jovem geração de empreendedores da indústria “high-tech”, incontestada propulsora da prosperidade da economia local. Vários deles anunciaram sua decisão de transferir negócios e capital para o estrangeiro, e deixar pessoalmente o país, suspendendo o pagamento dos impostos, que eles veem desperdiçados em fantasiosas esotéricas plataformas partidárias.

Ao redor da problemática descrita criou-se um discurso carregado de emoções e ameaças. Estas últimas partem quase que somente da direita, de há muito versada na linguagem de incitamento e na proposital confusão entre verdade e mentira. É parte de sua propaganda, apreendida (caiam os céus!) na famigerada escola de Joseph Goebbels: fomentar uma ruptura na solidariedade nacional e dela acusar “a Esquerda” com violência verbal e mesmo física, dirigida em grande parte contra legítimos membros da atual autoridade jurídica.

Mas o impasse na situação e o esforço de pouca probabilidade de sucesso do Presidente Herzog de trazer os lados contendores a um diálogo, exerce pressão para que ambos sejam vistos como igualmente responsáveis pela radicalização das posições (Levin já rejeitou com convicção belicosa; a presidente do Supremo Tribunal já havia divulgado uma cristalina argumentada negação ao projeto).

E o dístico “Meia-volta, volver!” é posto em campo para neutralizar as tensões embutidas no “Direita, volver” de Levin e seus seguidores. Mas todos sabem que a verdadeira causa da cruzada não é uma honesta iniciativa de revisão estrutural dos tribunais, e sim um enfraquecimento destes até a auspiciada abolição das acusações de corrupção e do processo de Netanyahu. No caminho ainda se fará aprovar vergonhosas “leis pessoais” que modifiquem veredictos pendentes sobre outros ministros e políticos do serviçal séquito do “líder-monarca”, pelos quais eles estariam impedidos de prosseguir suas tortuosas carreiras por semelhantes culpas.

“Meia-volta, volver!” Para um diálogo sadio, SIM! Para um insano sufocamento da verdade, da liberdade e da moral, NÃO e NÃO!

Vittorio Corinaldi é engenheiro formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do kibuts Bror Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutsiano.

This article is from: